Saiyame abre os olhos, mas não tem forças ou vontade de se mexer. Sabe que não está em casa, pois nunca teve uma, e há muitos anos que não dorme em uma cama. É estranho e distante. Ele sabe que já é noite, algo lhe diz isso, talvez o instinto, e fica no mesmo lugar, sabe que não está sozinho, mas não se importa com isso. Não se importa com ninguém, e nem consigo mesmo, agora. De repente começa a falar, mais para si do que achando que alguém vai ouvir. Ninguém nunca ouviu, e que diferença faz? Ele sente uma mão em seu cabelo solto. Não se importa com nada disso. Suas palavras começam:
O Mestre nunca foi um homem repugnante, pelo contrário, ele era conhecido por sua beleza, tanto ou mais do que era conhecido por gostar tanto de feitiçaria. Ele era muito alto, até quando não era mais criança, Cerberus ainda tinha de levantar o rosto para olhar para ele. Tinha olhos de chumbo mesmo, cinza escuro, por vezes quase azuis, outras, quase negros. Como todos os chineses naquela época, tinha cabelos longos, e como os cabelos dos chineses, esses eram pretos e azulados, lisos e espessos, ia até sua cintura, e ele se recusava a usar a trança, dizia que não era tão chinês a ponto de fazer isso. Seus sarongues, ou suas roupas feitas na moda da Europa, eram sempre escuros e sóbrios, mas não tiravam o que poderia ter de amável em seu rosto, em seu sorriso, que continuava juvenil, mesmo ele sendo um homem maduro. As mulheres (e alguns homens) enlouqueciam por ele, apaixonavam-se, o cercavam, sempre havia alguém querendo partilhar sua cama nem que fosse por uma única noite. Ele nunca negou, dividia-a com um, dois, ou como em certas noites barulhentas, com vários eleitos, sempre os de maior beleza.
Lead detestava o feio, ele, como seu pai, amava o belo.
Por isso criou Yue, que mesmo quando era criança demais para conseguir descer as escadas até o salão da casa sem se sentar nos degraus, era tão lindo quanto um anjo. As criadas tinham pena de cortar seus cabelos, que estavam cada vez mais claros, cada vez mais leves, e eles cresciam livremente, atados na trança, ou soltos, porque ele sempre se revoltava com o nó. Com o tempo, ele se afastou das lembranças que lhe davam pesadelos, e já aprendia a portar-se como um legítimo servo, às vezes curioso a ponto de encarar o Mestre sem prestar atenção em nada do que ele dizia. Lead sempre esteve muito longe de se aborrecer por qualquer coisa que Yue fazia. Nunca levantou a mão para lhe bater, ao contrário do que acontecia com Cerberus até mesmo quando ele não fazia nada. Pelo contrário, quando Yue não tinha mais medo daquele homem tão alto, de sarongue preto e açafrão, Lead o mimava, deixava-o brincar, e proibiu Cerberus e as criadas de deixa-lo ajudar nas tarefas da casa, punha-o no colo e contava histórias, quando Cerberus nada tinha a fazer, o Mestre permitia que ele ouvisse também. Cerberus invejou cada instante que Yue teve com Lead, invejando não ter tido-o sempre assim, como um pai, invejando, enquanto treinava caligrafia, no chão da biblioteca de Lead, as risadas de Yue, que podia sair para o jardim quando quisesse. Ele nunca havia visto uma daquelas rosas de perto... Lead passava por ele e resmungava "aberração" e seguia em frente. Assim Yue ia crescendo, até Cerberus se esquecer de si mesmo, maravilhado em como ele era bonito e amado.
Nunca o Mestre tentou tocar Yue com as mãos de luxúria com que tentara tocar Cerberus antes, (e depois mais ainda) de Yue ter vindo. Quanto mais amava Yue, mais Lead odiava Cerberus, e quanto mais Yue amava seu mestre, mais distante ficava do menininho que precisara tanto do outro servo.
Quando Yue já aparentava o que seriam sete ou oito anos, ele saiu para o jardim, depois de ter estudado sua lição da tarde – O Mestre nunca se descuidou disso, para nenhum deles, para o bem ou para o mal, o Mestre educou-os muito bem nas letras chinesas, nas letras inglesas, e na língua dos jesuítas, na qual os encantamentos eram feitos – e pouco depois correu de volta para dentro da casa, com uma grande folha de papel em sua mão. Não era uma pipa, mas era tão colorido quanto. Ele veio correndo com suas roupinhas inglesas, como um pequeno rapaz, mostrar a Cerberus, que não tinha pressa em deslizar o pincel no papel de arroz. Cerberus lia melhor, mas não via sentido nas letras. Cerberus tinha agora o que eram os treze anos de uma criança humana. Decidiram em acordo levar aquilo para o Mestre explicar. Havia algo que parecia ser um animal de boca aberta nas figuras, entre outros, e um humano de casaca vermelha com um chicote na mão.
Bateram de leve na porta do quarto de Lead, que os mandou entrar, e recebeu Yue com um sorriso, chamando-o para se sentar na sua cama, ao lado dele, que lia um grosso livro cheio de figuras. Ele pegou o papel que Cerberus lhe mostrou e sorriu, disse que era um cartaz de circo, que há anos que não via um em Hong Kong, que deveria ter vindo com algum navio dos que passavam pelos portos da China, da América para as colônias da Índia. Apontou o grande animal de presas à mostra, que mesmo sendo um desenho, poderia ser assustador para as crianças, que quase nada sabiam do que acontecia além dos limites da casa. Este animal, ele disse, é um leão.
"Um leão como Cerberus." – E Lead continuou, devolvendo o cartaz a Yue, que olhava com estranheza para o leão e para Cerberus, alternadamente. – "Se parece com você."
Nenhum dos dois, Yue e Cerberus jamais estiveram frente a nenhum espelho, e até o do quarto do Mestre vivia coberto por um lençol branco. Ele disse o que acontecia num circo, os animais, as ilusões dos falsos magos, as mentiras dos falsos videntes...
Chegou a noite, e depois do jantar, em silêncio, os meninos sabiam-se curiosos demais para dormir. A idéia foi de Cerberus, que guardou aquela folha de papel amarrotada e amarela, olhando por muito tempo para o animal terrível no centro do desenho. Aquele era ele, o Leão Cerberus. Terrível, assustador, não à toa Lead o chamava de aberração. Já concordava com isso, mas estava curioso por ver alguém como ele, outro leão, mesmo que fosse um animal e não pudesse falar-lhe. Ele pulou da cama e procurou nas gavetas. Vestiu as roupas chinesas, o sarongue comprido, de cetim vermelho escuro, e fez sua trança. Quando calçava as sapatilhas, Yue sentou na cama e perguntou o que ele ia fazer.
"Vou ver o circo."
"Posso ir?"
"O Mestre não vai gostar que você vá."
"Ele também não vai gostar que você vá. Se não me levar, eu vou contar para ele!"
"Oh, está bem..." – Cerberus suspirou, abrindo outra gaveta e tirando uma muda de roupas para Yue. Vestiu-o de azul, com o sarongue curto, de criança, fez a trança dele e amarrou firme.
Pareciam prontos para um passeio numa praça, se não fosse noite alta. Yue perguntou como eles iam sair, se não tinham permissão para irem além da soleira ou dos portões. Cerberus disse que iam tentar de outro jeito, mas que Lead não poderia saber. Saíram para o corredor e tomaram as escadas que iam para o terraço e o sótão. Chegando lá, subiram por outra, de bambu, errando os degraus no escuro, e chutando uma janela, e não sabendo medir sua força, arrancando uma das bandas das dobradiças, eles saíram para o telhado. Por um instante Cerberus achou que poderia finalmente fugir, ser livre e... Yue segurou firme a manga de sua roupa, dizendo baixinho que era alto demais, podia ver as luzes das ruas próximas, e até as da cidade, e olhando para o outro lado, além das árvores do bosque, além da cidade, os mastros finos e afiados dos navios no porto, as velas de barcos do ocidente e oriente. Havia estrelas no céu, não havia o que temer.
"Estou com medo. Podemos cair." – Ele disse, não deixando Cerberus ficar de pé sobre a quina das telhas.
"O Mestre nos deu poder para não nos machucarmos tão facilmente. E não vamos cair. Vou mostrar a você. Não somos crianças agora, nesse telhado! Somos os Guardiões do Mago Lead!" – Ele se afastou, os braços ligeiramente afastados do corpo, e parou. Yue engatinhou, tentando não pensar que a telha que escorregou ao seu lado foi se espatifar no chão lá embaixo. Estavam tão alto que não havia um modo de descer sem cair. Cerberus era alto para a idade, mas era apenas um garoto.
Ele parou na ponta do telhado e fez muita força, soltando um gemido estrangulado, como se doesse, e de repente, inexplicavelmente, as asas irromperam de suas costas, e como não fossem asas comuns, as costas de seu sarongue continuaram inteiras. Eram asas grandes, inteiramente brancas, assustadoras, e várias plumas se espalharam ao redor, caindo sobre as telhas negras. Ele as fechou, e mesmo assim, Yue viu que tinham quase toda a altura de Cerberus, de comprimento.
Yue piscou algumas vezes, vendo a silhueta de Cerberus tão... Assustadora. Era ainda o mesmo, mas as asas o faziam tão diferente...
"Vamos, Yue. É a sua vez. Não sei se posso levar você sozinho."
"Mas, Cerberus...!"
"Você é um Guardião de Lead, ele lhe deu asas! Vai envergonhar o Mestre se não tentar, ao menos." – Ele perdia a paciência, ressentido que Yue ainda não tivesse tanta coragem de tentar como ele, ousadia. Ele sabia ter coragem, e nunca tolerou a fraqueza de ninguém.
Yue ficou de pé, sem conseguir evitar olhar para baixo. Tão alto... Cerberus sabia e disse que ele pensasse nas próprias asas. Yue obedeceu e sentiu o mesmo que Cerberus, um calor que vinha debaixo da pele de suas costas, doía, mas fez força para movimentar aquele músculo logo abaixo dos seus ombros, as asas se libertaram, e parou de doer. Ele olhou para trás, para baixo, vendo a ponta delas, tão grandes para ele quanto eram as de Cerberus para ele próprio.
"E agora, Cerberus?" – Ele perguntou, temeroso, tocando as pontas das penas, olhando para as que flutuavam no ar, soltas, ao redor.
Agora?
Correndo e empurrando-o sem nenhum pesar, Cerberus o jogou para fora do telhado. Yue tinha de aprender, e como ele mesmo não tivera quem lhe dissesse como usar suas asas, não via outro modo de ensina-lo. Caiu sobre as telhas, não conseguiu se segurar, algumas escorregaram e se espatifaram no chão, muito abaixo. Yue chamou por ele, mas mesmo sentindo o coração apertado, Cerberus ficou no mesmo lugar, vendo-o se segurar na calha, sua mãozinha escorregar e esperou que ele fizesse alguma coisa. Se não tentasse, a queda ia ser inofensiva, mas muito dolorida.
"Bata as asas!" – Cerberus gritou, quando os dedos de Yue se soltaram da beira da calha e ele sumiu, caindo. Escutou o ruído, mas era fraco demais, logo ficou mais forte e Yue reapareceu na beirada do telhado, mais embaixo, ofegante, pálido de medo, suas asas tremendo, muitas penas soltas, flutuando no vento, e ele olhando fixamente para baixo. Cerberus teve vontade de rir, nunca fizera maldade alguma com seu irmão, mas vê-lo com medo estava engraçado, todavia, manteve a seriedade.
"Você me empurrou!"
"Você não ia querer pular!" – Cerberus foi de novo para a ponta do telhado, enquanto Yue voltava para a quina das telhas. – "E se não voar, quem vai contar para o Mestre sou eu!" – Ele jamais faria isso, mas não queria perder a noite por nada. Pulou então, batendo firmemente as asas, respirar fundo ajudava, e tinha de inclinar o corpo para frente para manter o equilíbrio, afastou-se do telhado e voltou, abrindo os braços para amparar Yue se ele não conseguisse. Yue tentou ficar de pé e bateu as asas com tanta força e medo de cair de novo que se ergueu das telhas, e conseguiu segurar no braço de Cerberus.
Era o suficiente, só teriam que fazer isso até descer da casa e pular o portão do jardim. Cerberus não sabia por que não tinha tido essa idéia antes, talvez o medo estivesse só com ele, pensou, enquanto eles corriam, rindo alto, pela alameda, seguindo uma trilha de cartazes colada pelos postes de óleo de baleia que ainda estavam acesos, e colados em alguns muros, perguntaram a um velhinho e ele apontou a direção onde estava o circo. Cerberus se sentia tão feliz longe do medo que o Mestre lhe inspirava que não queria voltar, poderia morrer de fome nas ruas, mas qualquer lugar de onde podia ver o céu era um lugar mais feliz que a casa em que era prisioneiro. As luzes do circo. Lâmpadas de óleo, velas de gordura acesas dentro de jarros de vidro colorido e balões de papel, pendurados por toda parte. Estrangeiros que viviam em Hong Kong naquela época se misturavam com chineses, pobres e ricos, novos-ricos, crianças, idiomas se misturavam. Pisavam sobre a mesma serragem no chão, entrando para a lona, escorada num velho galpão de madeira apodrecida, mas tudo era tão diferente que até o que havia de feio era fascinante. Perguntaram a um carregador onde estavam os animais. O homem apontou a direção dos animais, e eles os viram em grandes jaulas sobre carroças coloridas. Havia um que parecia um grande gato preto, enorme e inquieto, que não desviou os olhos dos dois servos. O leão estava na jaula mais afastada, sendo alimentado. Dois empregados chineses do circo enchiam de carne sangrenta uma bacia que era empurrada por debaixo da parte inferior da grade. Era lindo e era horrível ao mesmo tempo.
"Se é assim que eu sou, talvez eu devesse ficar numa jaula também."
Yue correu para mais perto. Um dos homens parou e mandou que eles não ficassem perto dos animais, que não queria problemas com crianças inglesas machucadas.
Inglesas? Cerberus não entendeu, e Yue não prestou atenção. Olhava para o animal na jaula e para Cerberus. Ficou em silêncio, e ele compreendeu isso como a confirmação do que Lead lhes disse.
O leão se saciou e enrodilhou-se como um grande gato.
Eles se afastaram, entediados, um pouco decepcionados. Havia várias pequenas tendas com luzes coloridas e intensas espalhadas pelo descampado, e até escoradas nos muros das construções ao redor. Passando em frente a cada uma, Cerberus pensou em não ir, mas também pensou em como Yue voltaria sozinho para casa, para Lead... Não queria que ele sofresse. Quem ia cuidar dele?
Olharam para dentro de uma das tendas, a que estava vazia. Era um homem da idade de Lead, mas seu cabelo não era tão preto, e não era chinês, vestia roupas inglesas de uma certa elegância, embora desbotadas, e ele segurava um tipo de cajado na mão, mesmo estando sentado sobre caixas de madeira vazias, ele tinha uma nobreza em seus modos que fez os meninos se aproximarem.
O estrangeiro se dirigiu a eles na língua dos ingleses, mas não os encarou, apesar de ter sorrido. Ele era completamente cego, suas íris eram de um azul leitoso e inteiro, mas era penetrante. Disse-lhes que os esperava nesta noite, em que um sonho lhe havia dito que um anjo e um leão entrariam em sua tenda e ele não poderia jamais predizer o futuro daqueles dois, acontecesse o que acontecesse. O homem não disse seu nome, e fez um gesto para que os meninos se sentassem sobre as sacas de grãos que estava ali. Obedeceram, fascinados com aquela visão. O homem disse quem era naquele circo, era o vidente, aquele que predizia o futuro, mas que o futuro deles ele não poderia revelar.
"Por que?" – Yue perguntou, sem conseguir desviar os olhos daquele homem, seu rosto de traços como que feitos à machado, seu cabelo comprido e grisalho.
"Porque..." – O vidente os encarou com olhos cegos e penetrantes. – "... eu estou nele. Eu os esperava esta noite. O leão e o anjo. Não imaginei que fosse verdade, achei que estava louco por esperar tal visita. Minha tenda nunca fica vazia."
"Sabe quem somos? Como somos?" – Cerberus perguntou, um tanto chocado com estas palavras. Ele nunca aparecia na frente das visitas, e ter sua natureza revelada nas palavras de um estranho o fez sentir uma tremenda vergonha do que era.
"Sim, e não estou assustado com isso. Eu já não sou jovem, mesmo com estes olhos que Deus fechou, eu vi muitas coisas, muito mais terríveis do que duas crianças que fugiram de casa..."
Cerberus se sentiu corar.
"Tenho algo a lhes dizer. Sinto que não voltarei a esta cidade quando este circo passar por Hong Kong novamente, mas meu destino está inevitavelmente entrelaçado ao de vocês. Não me perguntem de que modo, eu mesmo jamais saberei. Meu destino está, a partir do instante que cruzaram a entrada desta tenda, unido ao seu." – E apontou Yue, mesmo cego, e o menino em silêncio, ele soube onde Yue estava.
Ele fez um silêncio profundo. Dele emanava uma aura quase tão poderosa quanto a do Lead, mas muito diferente, era uma contida aura de poder, escondida em si mesma. Ele continuou apontando Yue e suas palavras não cessaram:
"Um dia, eu precisarei de você."
E apontou para Cerberus, logo em seguida:
"E um dia, você precisará de mim."
Sua mão voltou para seu colo e junto com a outra agarrou o cajado com firmeza.
"Vou morrer antes do verão, não entendo como meu destino se cruza e se une com o de vocês." – Ele sorriu, como se suas palavras não fossem terríveis, e disse, com a simplicidade de um bom conselho: - " Voltem para casa."
Cerberus puxou Yue pela mão, ele não conseguia tirar os olhos do vidente. Ele parecia um homem saudável e vívido, como poderia dizer que morreria em breve? O homem cego disse então, no mesmo instante que eles cruzavam a saída da tenda, para Yue:
"Até algum dia, meu anjo de gelo."
Saiyame conta a história com palavras cada vez mais lentas e baixas, até silenciar definitivamente, e nem saber se realmente contou até onde desejava. Se sente inevitavelmente cansado, e tudo o que pode fazer é fechar os olhos. Não sabe se alguém o escutou. Ele sempre esteve sozinho, talvez ainda esteja, até mesmo quando fala agora. Ele não tem tempo de saber se é verdadeira a sensação da mão passando por seu cabelo, e nem a de ter uma coberta macia estendida sobre ele. Ele não escuta os passos se afastando, e nem o estalo da porta abrindo e fechando em seguida, e nem imagina que pudesse ser um perturbado e perplexo Hisashi quem acaba de sair do seu lado.
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Não sei quantos dias se passam. Ganho uma folga generosa até demais, Tomoyo parece outra quando sua mãe volta para casa. Não estou sendo despedido, ela diz, estou sendo temporariamente dispensado. Assim terei tempo para pensar. Volto para meu apartamento, que parece grande demais, organizado demais, tento dormir e não consigo, passo dias sem conseguir dormir, pensando nas coisas que vi, a reação inexplicável de Saiyame. Penso muito nele. Fui egoísta com ele. Penso em tudo o que ele tem me contado naquela história a princípio louca. Talvez queira dizer alguma coisa com ela, talvez seja um modo disfarçado de dizer a verdade, mas como vou saber? Não tenho com quem falar. É difícil ficar trancado aqui, sem ter com quem falar. Sinto falta de voltar para um lugar onde sei que não vou estar sozinho, e eu sei que não adianta vestir minha melhor roupa e tentar arranjar alguma coisa pelas boates da cidade. Posso conseguir o melhor sexo de toda a minha vida, mas nenhum vai calar a minha obsessão por ele. Agora tenho medo de fazer qualquer coisa para conseguir o que quero, antes, eu poderia até forçá-lo, mas depois do que vi... Ainda estou tão nauseado que não consigo pensar em ter fome. Vou ficar horrível, aí sim ele não vai me querer.
Espero que ele esteja bem, que tenha parado de usar aquela coisa na cabeça para se esconder, espero que ele não tenha ressentimentos, que quando eu voltar a falar com ele, tudo seja como um sonho ruim. Espero que Li não encoste um dedo em Saiyame. Vou morrer se isso acontecer. Talvez ele seja virgem. Pensar isso me deixa tão excitado que só consigo dormir esta noite depois de um banho de água fria...
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Vários dias depois, me sinto mais magro, mais cansado e mais velho. Pareço trágico no espelho do meu quarto. Meus olhos estão mais claros, mas as olheiras... Pentear o cabelo também não ajuda muito, talvez eu devesse acabar com essa preguiça e mandar cortar isso... Tento não odiar muito Saiyame por fazer estes horrores comigo, sem querer. Se eu quisesse sexo simplesmente, eu poderia fazer até me esfregando sozinho no capim da praça, mas é um desejo que beira a perversão. Sinto-me quente e calorento... Já é outono, mas minhas roupas são mais leves do que deveriam, tudo me sufoca, me incomoda. Todos meus banhos são frios, e a noite, quando encho a banheira, tenho de esvaziar nela as cubas de gelo. Talvez eu morra só de ficar aqui, trancado, pensando em Saiyame e nos mistérios de suas roupas folgadas... Considero obra de Deus o telefone tocar, a mãe de Tomoyo me pedindo para voltar a casa, ela vai viajar de novo e faz questão de dizer:
"... Mas não a trabalho."
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Tomoyo me abraça, se pendura no meu pescoço, e está suave como nunca. Atrás dela, Li pigarreia tão forte que parece um rosnado. Tomoyo não deixa de sorrir. Quando sua mãe me avisou, era quase meio-dia, e é metade da tarde quando vou para sua casa. Ao menos me distraio, quero muito ver Saiyame, e só de pensar, me arrepio por completo. Fazem-me entrar, saber do que tem acontecido. Tomoyo foi convidada para o conservatório onde estudou quando menina, mas me diz à meia-voz que não sabe se vai conseguir, se sente com coragem para muita coisa, mas não para a música. Li me trata do mesmo modo seco de sempre, e isso é um alívio, já basta que disse que me odeia por Saiyame, não espero que me odeie por Tomoyo, também. Subimos para o quarto dela. Ela está jogando coisas fora e com seu jeito doce, me obriga a carregar caixas e caixas de tralhas velhas que estavam no seu armário, enquanto Li se deixa escravizar arrastando móveis e prometendo que vai dormir aqui esta noite. Não satisfeita, Tomoyo convoca o jardineiro que a conhece desde criança para nos ajudar a cavar um grande buraco na parte de trás do jardim.
"Vai arrumar as coisas para o meu funeral, Tomoyo? Quer que eu chame os músicos?" – Li pergunta, deixando a pá um pouco de lado. Estamos imundos, minha camiseta está irreconhecível. Ela está intacta como uma boneca, com seu vestido leve e solto, poderia estar em alguma capa de revista, e Li sente o mesmo, do modo que se distrai olhando para Tomoyo. – "Assim é você quem vai me matar..."
"Mas me deixe assistir, está bem?" – Ela ri, dando a volta para dentro da casa. O que pretende com esse buraco no jardim? É um mistério. Depois que terminamos de cavar, ela aparece com mais gentis e irresistíveis pedidos, e com uma quase desagradável surpresa ao seu lado, tão discreta que poderia confundir com uma das árvores amarelas e vermelhas do jardim. Saiyame chegou e a está ajudando a carregar as coisas. Mas isso é apenas um detalhe. Ele sorri para nós. E olha diretamente para mim, e não mais através de mim. Agora eu existo para ele? Foi preciso todo aquele sofrimento para ele me enxergar? É tão incrível que se Li der apenas uma palavra para me tirar do meu estado de surpresa, vou enterrá-lo vivo nesse buraco.
Voltamos para cima e Tomoyo pede que ele jogue as coisas lá. São muitas fitas de vídeo, nenhuma com etiqueta, todas iguais, a maioria muito velha. Saiyame esvazia a caixa que está no seu colo e vai buscar as outras. Li vai com ele e quando faz o mesmo, parece ter um prazer quase indecente ao vê-las se desbandando, o plástico partindo. Mas isso também é apenas um detalhe. Agora vejo que a doçura de Tomoyo dissimula muito da força que ela tem, do sangue frio. Ela esvazia duas garrafas de álcool sobre os papéis, as fotografias rasgadas, as fitas de vídeo velhas, antigas recordações, bonecas, diários de menina... E Li acende o fósforo, Tomoyo ri alto e deliciosamente, vendo o fogo crescer até se tornar uma crepitante e alegre fogueira. Ela rodopia nos braços de Saiyame e acaba por cair nos de Li, indiferente de ele estar imundo e trocam um sorriso sincero e cúmplice, abraça o peito dele e diz que é muito bom tê-lo ao seu lado.
Se Li não entendeu, é porque não quis entender...
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Tanto eu quanto Li temos que tomar um banho, aquela fogueira ainda está ardendo com vontade, consumindo tudo o que havia no buraco. Tem muitos dias para queimar, se quiser, e conta, depois que estamos em roupas limpas e que não são nossas, e sim do pai de Tomoyo – Divorciado da esposa, a última vez que alguém o viu foi quando ele passou por aqui, jurado de morte por uma dívida de jogo, há uns três anos, e implorando por um empréstimo, é isso o que Li me diz... – e ficam grandes em nós, estranhas... Li enfiou-se num enorme blusão verde-oliva, e em calças de linho que precisaram de um cinto. Ele conta que a mãe de Tomoyo não tem pressa alguma de voltar, já que foi para o litoral com o pai de Sakura, depois de anos de brigas e um disfarçado namoro que às vezes se confundia com ódio.
"Li, só não posso dizer que você está parecido com o meu pai porque eu nunca o vi!" – Tomoyo graceja, passando com a toalha enrolada na cabeça. Saiyame sumiu. Já está escuro lá fora, e quero falar com ele, não sei o quê, não temos nenhum assunto em comum, mas quero falar com Saiyame.
Tomoyo volta depois de um tempo, para a sala onde estamos, com cabelos soltos e molhados, e finge esconder alguma coisa detrás das costas. Pergunto o que é e ela me mostra uma grande garrafa de vodca. "Relíquia" de uma das viagens de sua mãe.
O rótulo prateado parece animar Li. Vamos os três para a mesa redonda no fundo da sala, três copos sobre a mesa, quebramos o lacre e servimos uma dose para cada. Não pretendo beber, alguém tem de estar sóbrio se acontecer alguma coisa... Tomoyo e Li esvaziam seus copos num gole só e servem a segunda rodada. Mas não é necessário, depois da primeira, e sendo ambos muito fracos para bebida, as línguas se soltam quase imediatamente, e de um modo que é capaz de me fazer estremecer de vergonha:
"Quero dizer uma coisa, Li. É importante. Não. Um dia foi importante, acho que hoje você não vai se importar de ouvir..."
"Fale primeiro." – Ele entorna mais devagar a segunda dose. Meu copo continua intocado.
"Eu pedi para a Sakura para que ela me deixasse gravar... vocês dois. Você sabe..."
Li cospe tudo na mesma hora e o copo rola pela mesa.
"!" – Ele está estarrecido, em todos os sentidos possíveis e imagináveis, e eu me sentiria assim mesmo, nessa situação.
"... Mas ela não deixou. Fico ressentida por isso até hoje. Essa foi a única parte do namoro de vocês que eu não gravei. O resto era tão sem graça..."
"Droga, Tomoyo, você não controlava essa fixação na Sakura! Isso é doença!"
"Bom, Li... depois que você começou a namora-la... Digamos... Que a minha fixação não era mais apenas a Sakura. É assim há todos esses anos..." – Ela segura um sorriso: - "Eu queria ver a cara do Toya se ele soubesse que a Sakura e você..."
Com olhos arregalados, Li serve uma dose maior ainda, mas não bebe. Eles agem como se estivessem mesmo sozinhos e altos da bebida.
"Eu também tenho algo a dizer." – Tomoyo pára e eles se encaram. – "Eu já sabia."
"Sempre soube?" – Se bem que Tomoyo nunca me pareceu muito discreta...
"Sempre, Tomoyo."
"Então?"
"Ah... então..." – Li parece inquieto. Ele se levanta de um jeito que a cadeira quase cai no chão. Fica em pé, e puxa Tomoyo pelos ombros e o que vejo então, é um beijo tão selvagem que poderia estar nos filmes mais quentes do século. Estão estreitamente abraçados, são dois e parecem um, se beijando desse jeito e nem respiram sequer ou notam que deixei meu copo no mesmo lugar e saio daqui disfarçadamente.
Talvez não seja de um enfermeiro que Tomoyo precise...
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Subo a escada, seguindo o ruído de passos, e espero que não seja mais uma assombração. Estou farto de assombrações, copos que se mexem e vidraças que partem sozinhas, histórias apavorantes e qualquer coisa que a lógica não possa explicar, e isso inclui a reação de Saiyame na última vez em que estivemos a sós. Claro que fico ansioso em estar perto dele novamente, ao mesmo tempo, tenho medo, do que pode acontecer, do perigo que posso correr, e esse medo me enlouquece de desejo.
Escuto um ruído de televisão e fico curioso, vozes com estática. Vem de umas das portas, depois do segundo lance de escadas, e vejo Saiyame entrando numa sala mergulhada na penumbra azul da televisão, daqui, mesmo que escutasse, ele não me veria, estou quase na curva. Sinto algo como já ter visto isso antes, mas sei que não vi, estou somente nervoso porque tenho sensações demais quando o vejo, e não controlo nenhuma delas. Chego na sala, ele está de costas para a porta. Há dúzias de salas assim aqui, o pai de Tomoyo devia gostar de festas, quando estava casado com sua mãe. Ele não olha, apesar de parar um momento com o que está fazendo, escutando a madeira do piso estalar com o meu peso. Está tirando e colocando fitas no parelho de vídeo e colando etiquetas no lado de cada cartucho que vê. Não vê muito, só se há algo gravado ou não. Mas depois de um certo tempo noto que não muda mais as fitas. Chego mais perto e olho também... Quem diria... Tomoyo, como boa voyeur, tem sua coleção secreta de filmes de índole duvidosa. O que está na tela eu já vi, sei exatamente o que acontece agora, mas Saiyame parece um pouco chocado com isso. Chego mais perto e ele ergue o rosto para mim, está sentado sobre os tornozelos, no chão, parece mais um adolescente do que um adulto. Não tenho certeza de sua idade, gostaria de perguntar, mas sua voz quando fala me faz arrepiar de prazer e surpresa:
"Eles estão filmando estas coisas agora?" – E olha perplexo de novo para a tela da televisão. Ele arranha a cabeça descoberta. Seu gorro ainda deve estar naquela mesma sala de antes, perto do quarto de Tomoyo.
No filme, uma produção erótica e antiga, em película, em preto e branco, um homem tira sua camisa e recebe as carícias de uma mulher de olhos muito pintados. A princípios são somente olhares lascivos, que por si só são piores do que todo resto do filme. Depois são mãos, mas não olho para a tela, já vi este filme há muito tempo – Tanto tempo que eu ainda deveria ser virgem naquela época, nem me lembro mais... – a expressão meio abobada e curiosa de Saiyame é mais excitante, seus lábios entreabertos e secos, vendo as mãos da atriz explorarem o tórax desse homem, os suspiros fingidos de prazer... Ele mesmo está um tanto ofegante. Agora tenho medo de toca-lo, fazer com que ele fique daquele jeito de novo, mas pensar que ele seja virgem... Eu acho que nunca beijei uma criatura virgem, acho que nunca dormi com uma criatura virgem... Seus olhos são grandes, estão castanhos e talvez escuros demais... Eu é que estou feito um estúpido olhando maravilhado para seu rosto arredondado. Realmente, parece um anjo dos quadros de antigamente, o cabelo solto desse jeito. A atriz agora troca as mãos pelos lábios, espalha beijos mal ensaiados pelo peito do ator, descendo, subindo, e passa língua num close trêmulo pelo mamilo dele. Falando seriamente: o filme é horrível, a única coisa inovadora é a cena do zíper, mas ainda falta cerca de meia hora para isso.
Saiyame pára de olhar e olha para mim, com a perplexidade de quem acabou de ver uma girafa de duas cabeças. Ele baixa a cabeça, o cabelo escondendo seus olhos e desliga a televisão.
Não sei o que se passa pela minha cabeça, mas vê-lo assim... Como eu queria umedecer esses lábios ressequidos que ele me mostra agora. Nunca vivi uma perversão assim, nunca estive tão obstinado por nada e ninguém nunca me ignorou desse modo tão atroz... Estou quase descontrolado, perdi as estribeiras, a vergonha e o juízo. Ofegante, escuto minha respiração pesada chiar fundo no meu peito, enquanto me afasto dele, certo que agora nada vai dar errado. Sinto-me escorar meu peso na beirada de uma mesa de madeira laqueada e negra, encostada na parede oposta, justamente por onde ele há de passar. Não faço nada para impedir minhas mãos soltarem os botões dessa camisa larga que visto, meu rosto esquenta, mas não posso parar. Não agora...
"Você tem coragem?"
Ele está de costas para mim, colocando a última etiqueta nessa fita, e coloca o cartucho ao lado dos outros, numa caixa, que é deixada no mesmo lugar, ao lado do sofá.
"Nunca fui covarde." – Sua resposta é seca, mas sua voz tem algo de novo e estranho. Queria ver seus olhos agora, mas até quando Saiyame se volta totalmente, não consigo vê-los, agora está um tanto escuro, com as luzes e o vídeo desligados.
"Então, você teria coragem de fazer o mesmo?" – Pergunto. Eu sei que não sou de se ignorar. Quando estou excitado, meus olhos ficam úmidos como se eu fosse chorar, e meus lábios ficam corados, meu corpo todo se arrepia, meus ombros se soltam, fico realmente...Suculento. Eu sei que fico assim. Por que ele me olha desse jeito? – "... de fazer agora, o que aquela mulher fez?" – Minha mão direita abre uma das bandas da camisa, e quando a seda corre por cima da minha pele eu não consigo conter um suspiro ruidoso. – "Você faria? Teria coragem para isso?"
Seus olhos se estreitam de um modo perigoso, vejo isso quando ele faz um movimento com a cabeça, afastando de um modo um tanto selvagem o cabelo louro de cima de seu rosto. É estranho ainda o modo que olha para mim, quase da mesma forma que olhou para a mulher na tela da televisão. Quero que implore por mim. Eu o desejo, mas quero que ele me implore. Tenho quase mais orgulho do que tenho desejo. Minha própria mão passa por meu peito, mais para calar uma parte do que sinto, tentar faze-lo entender o que quero. Ninguém precisa ouvir, ninguém precisa saber, basta que eu saiba. Talvez ele seja virgem, por isso me olha assim. É bastante jovem e tímido para isso... Não vai fazer nada?
"Faça comigo o que aquela mulher fez... Você viu... Você não sentiu? Você não sente?..." – Engulo em seco, é apenas sorte que esteja escuro, eu não gostaria que ele visse como meu rosto deve estar vermelho, minha boca está seca e minha voz é rascante nesse silêncio. Por favor, penso e não digo, eu nunca pediria, não para ele, eu jamais vou implorar por seu corpo, seu pirralho atrevido, ainda que eu morra de tanto desejo. Não engulo que me despreze. Ninguém nunca me desprezou... – "Faça-se em mim, se tem essa coragem."
Ele pára por um momento. Não consigo olhar para ele. Acabo de apostar com uma sorte que não tenho. Ninguém nunca me ignorou assim, ninguém nunca suportou me ver assim, e foram pouquíssimas pessoas que me viram assim tão ardente... Cerro os olhos porque tenho certeza de que ele não vai ser a primeira... Saiyame... Escuto seus passos se aproximando de mim, e afastando-se, no rumo da porta. Nossos olhos se encontram, a luz do corredor recorta sua silhueta esguia e alta. Ele vai atravessar a porta e me deixar aqui, sozinho, vai me ignorar de novo. Realmente eu aposto com uma sorte que desta vez não está do meu lado, e perco. Eu aposto alto e perco. Não acredito. Eu poderia chorar de raiva, mas a derrota me faz cansado, meu desejo não se aplaca com a frustração. Até a frieza mais profunda de Saiyame me deixa fora do chão. Mas eu não vou perder e me conformar com isso.
"Isso, fuja...!" – Me escuto dizer baixo, com uma raiva que não disfarço. Fecho os olhos, minha mão sobre meu peito, me sinto quente, minha pele arde com se houvesse fogo debaixo dela, mas esse fogo está se extinguindo, com a frieza desse garoto que me desprezou. – "Seu covarde."
Meu peso faz a mesa ceder com um estalo. Eu tenho orgulho e dignidade, sei quando perco. Nunca perdi antes, e o gosto é amargo. Ele que vá embora, para a sua casa abandonada, para o inferno, mas espero nunca mais olhar para sua cara.
"Covarde!"
Silêncio.
Está acontecendo. Não vou ter medo. Não me permito ter medo desse garoto. Ele que faça isso o quanto quiser, erga esse muro de silêncio, para me sufocar, me esmagar, só não quero mais ter de olhar para ele.
Tudo o que sinto é raiva, a pouca consideração que pensei em ter com ele desapareceu. Jamais deveria ter tentado toca-lo, ou fazer qualquer outra coisa. Ele não deve ser humano. Não é possível que não sinta o apelo da carne... Não é possível que não sinta absolutamente nada.
Maldito...
Respiro fundo, tomando coragem de fechar minhas roupas e ir embora daqui para nunca mais voltar.
Mas eu sinto. Sim, eu sinto, não sei o que sinto, mas me faz abrir os olhos na mesma hora, seu olhar em mim, é agudo como nenhum outro, dói... Encontro os dele, muito perto dos meus. Não, ele está bem na minha frente. Meu rosto esquenta com violência, não sei o que fazer, se eu o tocar, fazer menção disso, tudo vai se acabar... Vou morrer se eu souber que outro chegou a ele antes de mim. Olho nos seus olhos, rasgados, dourados nesse escuro, parecem os olhos de um animal... Sinto sua respiração sobre a minha pele... Seus lábios. Seus lábios, pequenos e aveludados... Olho para baixo, sem acreditar, vejo seus lábios sobre meu peito. Ele simplesmente encosta seus lábios úmidos e sedosos pelo meu peito, sua respiração me faz tremer. Esse toque não é quase nada, mas me deixa fora do meu juízo. Completamente. Nada nunca foi tão excitante, tão simples e tão excitante... Saiyame não me beija, somente encosta seus lábios na minha pele e cada toque é um arrepio, suas mãos estão apoiadas do meu lado, estou entre elas, mas nem chegam perto de me tocar. E seus olhos, não desviam dos meus, está furioso comigo porque o chamei de covarde, feri seu orgulho e... Não acredito... Sua boca, ele umedece os lábios, seus olhos faíscam e ele... Ele... Sua boca... Sua língua rósea... Respiro fundo tentando me conter... Ele... Sua língua... Ela passa a ponta de sua língua, de propósito, exatamente sobre meu mamilo e eu... Ele... Atiro a cabeça para trás, na mesma hora, arfando, gemendo alto e por este interminável instante, uma sensação devastadora sacode meu corpo inteiro e tenho quase certeza de que vou ter um orgasmo.
Já não sinto sua respiração, sua boca ou qualquer outra coisa. Ele se afasta de mim, como se nada houvesse acontecido, somente seu rosto, corado como o de uma criança, umedecendo os lábios. Eu entrevejo novamente a ponta de sua língua. Ele me abandona aqui, totalmente entregue, disposto a quebrar minha promessa e quase implorando para que ele continuasse, o cabelo um tanto desgrenhado, caído sobre meu rosto quente e úmido. Não está quente, mas eu estou, estou suando, estou ofegante, e não consigo ter um único pensamento em quem Saiyame não esteja nele.
Ele se vai pela porta, desaparece da minha frente, e eu demoro um bom tempo até controlar o tremor em meus joelhos, para ir de volta ao banheiro e tomar mais um banho frio, ou meu coração vai explodir...
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Não sei onde ele foi. Melhor assim, ou não respondo por mim.
Desço para a sala, tremendo de frio, e vejo Tomoyo e Li jogados no sofá, um deitado na direção oposta do outro, vestidos do mesmo jeito, parecem exaustos, mas o batom de Tomoyo desapareceu. A garrafa está do mesmo jeito que antes, praticamente cheia. Eles não precisam de mim... O que é isso sobre a mesa?
Num dos guardanapos, está escrito a caneta, palavras riscadas, tinta azul...
Eles são tão fracos para bebida que caíram assim só com um copo?
No guardanapo de papel está escrito o que pode ser somente um poema de apaixonados, pode ser uma música, ou podem ser palavras desesperadas...
Há vários outros guardanapos, soltos e riscados... Leio um deles, curioso demais, e de alguma forma, o que há nele não me é de todo estranho, mas não tem sentido algum para mim...
What you need and everything you'll feel
Is just a question of the deal
In the eye of storm you'll see a lonely dove
The experience of survival is the key
To the gravity of love...
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Inevitável ficar na casa. Não consigo dormir a noite toda, amanheço insone e inquieto, e o que mais há por aqui são largos sofás e quartos vazios, mesmo assim encontro Saiyame dormindo tranqüilamente, de manhã, sentado no chão do corredor. Não tenho coragem de fazer mais do que olhar fixamente para isso, seus braços cruzados no peito, como se fosse acordar ou levantar a qualquer momento. A mão de Li me tira desse transe e ele faz um gesto para que eu fique calado e vá com ele até outro lugar.
Vamos para a mesma sala onde ele e Tomoyo dormiram à noite. Li se queixa de uma dor de cabeça terrível, mas diz que quer que eu veja uma coisa.
"O quê? Se for a garrafa, ela está inteira." – Ele dá uma risada baixa ao me ouvir, e aponta para Tomoyo, que acaba de levantar e ainda está se espreguiçando, reclamando também de estar com dor de cabeça.
"Não é isso. Quero que você fique conosco esta noite. Talvez eu morra. Estou falando muito sério, Hisashi. Esta pode ser minha última noite."
"Por isso você a beijou?"
"Não importa porque a beijei. Mas não pense que eu estava esperando o cadáver da Sakura esfriar para fazer isso... Não sei o que sinto, só sei que não posso evitar. E não posso evitar também o que vai acontecer esta noite."
"Afinal, o que você vai fazer?" – Pergunto, tomando o rumo da cozinha. A empregada deixou o bule de café sobre a mesa, ao lado dos pães. Sirvo uma xícara para mim e outra para Li. Ele pega meio limão que está cortado sobre um pires e espreme com vontade no seu café, enquanto diz, baixo, como se temesse as próprias palavras ou que alguém o ouvisse:
"Vou chamar mais duas cartas. As duas, juntas. Elas juntas, poderão me matar."
Não me deixo abalar por estas palavras. Penso em Saiyame, encolhido no fundo do corredor, dormindo leve demais para uma pessoa sem preocupações. Ele não deveria estar em um colégio?... Lembro de suas palavras no hospital, muitos dias atrás, prometendo a Li que estaria ao seu lado, para ajuda-lo. Coragem...
"Você não desiste de querer me convencer de que isto é sério..." – Um gole de café talvez me deixe menos aéreo... Aquele banho frio de madrugada não me fez bem.
"Dane-se no que você acredita. Não quero que acredite. Quero que veja."
"Exatamente, o que você vai fazer?"
"Vou riscar um círculo no chão. Você simplesmente vai me ver fazendo isso, Hisashi."
"Mais nada?"
"Nada." – Ele se senta, experimentando o café e espremendo nele a outra banda do limão.
"Isso é uma piada, não é?"
"É, mas não tem graça nem para mim e nem para nenhum de nós. Só um detalhe."
"Qual?"
"Se você der um passo para dentro desse círculo, não vai poder voltar. Entende?"
"Isso é loucura, Li. Já pensou sobre isso? Já pensou seriamente sobre as coisas que está falando?"
"Eu não discuto tradição de família." – Ele sorri, bebendo esse café cheio de limão como se fosse a coisa mais deliciosa do mundo...
"Família... Lá vem você me falar sobre os casos de loucura da sua família."
"O que você sabe da minha família, além do que Saiyame conta? E quem garante que ele diga a verdade?" – Meu sangue esquenta nas veias, quando olho para Li e me lembro daquele beijo que ele quase roubou de Saiyame.
"Mas nada diz que ele me conte uma mentira."
"Ele fala de Lead?"
"Ele também fala dos dois servos. Me conte você, Li, então, como eles eram..."
"Ele não contou?"
"Não."
"Cerberus era o Leão dos Olhos Dourados, que devorou o coração dos inimigos de Lead. Yue era o Juiz, que deveria julgar o merecedor de ser o mestre das cartas selvagens."
"Como eles eram? Eles tinham uma forma, não é?"
Li pousa a xícara sobre a mesa, ela treme um instante, sobre o pires, tilintando.
"O Leão Cerberus deveria levar os que seriam julgados até Yue, e ele escolheria como deveriam ser julgados. E se ele merecesse a morte, era o que ele teria."
"Você fala como se houvesse visto tudo isso, ao invés de ser uma história de assustar crianças..."
"Eu estava lá quando Sakura foi julgada. Eu vi o julgamento dela."
"Ela fazia o mesmo que você? O ritual das cartas?"
"Ela as conquistou, todas, as domou como quem doma animais selvagens. Ao final de tudo, ela foi julgada pelo Leão e pelo Juiz."
"E o que houve nesse julgamento?"
"Ela se tornou para as cartas o mesmo que Lead foi um dia: Mestre. E se tornou a mestra do Leão e do Juiz, ao mesmo tempo, fosse o que eles quisessem ou não. Ela tinha poder para destruir os dois, se quisesse."
"E ela fez isso? Sakura os destruiu? Se quisesse..." – Não acredito que estou perguntando estas coisas, como se começasse a acreditar, estou curioso para saber cada vez mais e mais, mais do que já ouvi Saiyame contar...
"Não. Ela amava o Juiz. De uma maneira completa. Não importava como ele se apresentasse, ela o amava."
"E o Leão?"
"Este sim, ela não teria a mínima hesitação em matar. Por amor ao Juiz. E apenas por isso."
"E quem era o Juiz, afinal? Você me diz que não importava a forma... Mas como isso é possível?"
Li desvia os olhos escuros, parece muito triste em falar estas coisas, mas não podemos evitar. Eu não tento evitar perguntar, e ele não hesita em responder. A não ser agora.
"O Juiz era um anjo... Ele era Yukito."
CONTINUA
