Meu Destino é Pecar
Capítulo 05Durante o dia, há uma chuva fina, e por todo o caminho ela continua, e deixa nossos cabelos frios e úmidos quando vamos para a casa antiga e quase abandonada em que Saiyame vive. Vamos depois de um almoço silencioso e com sabor de fatalidade. Estou cansado, e cheio de pensamentos confusos sobre o que houve ontem à noite. Saiyame não ergue os olhos quando ando ao seu lado, um pouco distante de Li e Tomoyo (Vão de mãos dadas, ela não sorri e ele tem o olhar hostil...).Tocar no assunto de ontem à noite vai ser deliciosamente mais constrangedor para mim do que para ele, ou talvez para os dois, não paro de pensar em sua voz me contando aquelas coisas, aquela história sobre um anjo e um leão, ao mesmo tempo penso na sua boca úmida, sua língua...
Já estamos na casa, os casacos pendurados. Algumas pilhas de coisas velhas já sumiram. Os brinquedos velhos estão sendo limpos e alguns consertados, várias bonecas vitorianas estão nas grandes cristaleiras da sala, parecendo novas e alegres. Tomoyo as admira por um longo tempo. Mas tudo ainda é escuro e silencioso demais.
"Li?"
"O que é?" – Ele olha para mim. Com a mão dentro do meu bolso, sinto o gorro de Saiyame. O encontrei no mesmo chão daquela saleta, antes de virmos para cá. A lã é macia. Incomoda-me ver o constrangimento dele, com uma Tomoyo curiosa insistindo em pegar em seu cabelo comprido...
"Esse silêncio não incomoda você?" – Corro o sério risco de perder toda a moral como enfermeiro...
"Está com ele." – Ele aponta com o queixo, Saiyame subindo as escadas levando Tomoyo pela mão, estão indo para o sótão, debaixo do teto de duas-águas. Estão rindo, alheios a nós. – "Não sei como. Desde a primeira vez que o vi, foi esse silêncio que me chamou a atenção. Ou eu poderia tê-lo confundido com um móvel velho."
Ele tem toda a razão... O silêncio é tão profundo que nem nossas vozes o penetram. Antes de desaparecer na curva do corredor que vai para a escada do sótão, Saiyame olha para nós, como a nos convidar. Ele sorri verdadeiramente, e não apenas para Li. Vejo e sinto seu olhar e seu sorriso, não me considera mais uma parede ou um incômodo. Talvez seja puro fingimento dele, mas... Eu sou o primeiro a subir de dois em dois degraus a escada.
x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x
Passam a tarde riscando no chão vários círculos, colocados um dentro do outro, calculados de uma forma muito exata por Saiyame, como se estivesse habituado com estas coisas. Penso novamente na história que me conta. Às vezes, eu a esqueço, mas olhar para ele faz com que toda ela me atinja de uma vez, penso naqueles rituais que conta com detalhes, alguns deles são parecidos com o que se organiza aqui. O sótão é varrido, limpo, e o seu meio é esvaziado. O teto é alto aqui, mais do que dos forros normais. Se as coisas espalhadas na casa são antigas, aqui parecem seculares. Li abre as janelas, a despeito do frio do outono. Tomoyo coloca sua bolsa no chão e tira a filmadora de dentro.
"Você vai?..."
"O que você acha?" – Ela arranca o lacre da embalagem de uma fita, preparando tudo.
Enquanto Saiyame está ajoelhado no chão, riscando letras chinesas que não entendo e palavras em latim que são um mistério para qualquer um além dele, ela anda ao redor, mirando com a câmera. O sótão é tão grande quanto toda a largura da casa, como um grande salão que estivesse esperando por eles. A própria Tomoyo poderia pertencer a qualquer outra época, parada ao lado da janela, com o vestido claro esvoaçando lentamente, enquanto ouve as palavras de Li, que são subitamente tão amenas para ela agora quanto foram para Saiyame naquela tarde do hospital.
"Tudo pode acontecer. De bom e de ruim, mas se acontecer o pior... Me prometa que não vai contar a ninguém, está bem?"
"Eu prometo. Mas não pense no pior. Ou eu vou acreditar nisso."
"Mas é o que pode acontecer. E não pare de gravar. Isso é o que vai salvar a sua consciência, mesmo que você não se lembre... não pense que teve alguma culpa disso."
"A última fita de Sakura não salvou a minha consciência." – Tomoyo olha pela janela, pousando a câmera desligada sobre um baú velho de couro. – "Mas eu espero que tenha salvado a dela. Eu não queria que ela me visse como uma traidora, esteja onde estiver..."
"No céu ou no inferno, ela sabe melhor do que nós o que estamos fazendo..."
"Ela teria orgulho de você. Pelas cartas... pela sua força... Me sinto culpada por a estar esquecendo."
"Não está se esquecendo dela, Tomoyo, está esquecendo das coisas ruins que aconteceram. Droga, pare de falar assim, está me deixando confuso..." – Li passa um braço pelos ombros dela, abraçando Tomoyo com força e carinho, como amigos, irmãos, amantes, não sei, eles são o mundo um para o outro neste instante, sozinhos no canto desse depósito poeirento. – "...Eu também tenho de esquecer, ou vou afundar mais ainda nessa lama. Os poderes de Lead podem corromper a quem está com o espírito fraco."
"O seu nunca foi fraco. Ou teria enlouquecido como eu, morrido... silenciado."
"Você me dá essa força, agora."
A voz de Saiyame faz os dois voltarem a este planeta. É engraçado, ele não entende o que Li e Tomoyo faziam tão próximos um do outro, e nem o quanto os surpreendeu. Diz que terminou os pentagramas, jogando o giz de lado, e olha para eles, vermelhos e calados. Sai e demora um pouco, e nesse meio tempo... Olhando de longe... Quando me afasto posso ver o que foi desenhado. São os círculos, e de cada lado uma estrela, um sol, uma lua e um pentagrama invertido, mas a própria estrela também pode estar invertida em relação à ele. Isto está ficando sério.
"O circo está armado, vai sacrificar alguma vítima humana?"
"Se fizer mais alguma pergunta estúpida como essa você vai ser a nossa vítima humana."
Essa resposta é suficiente para gelar a minha espinha e me fazer calar definitivamente.
Saiyame volta, um tanto apressado, com algo nas mãos. Ele deposita então um punhado de terra ao lado do desenho do sol e uma pedra escura ao lado desse desenho. Pouco depois, ele volta com mais coisas estranhas: uma taça de cristal com água, e dentro de um lenço, um punhado de penas brancas.
"São daquele pombo do ritual da carta da luz." – Saiyame diz para Li, enquanto coloca as penas ao lado da taça, no chão. – "Não sobrou muita coisa da forma física dele..."
"Mas ele deve estar bem melhor na carta do que neste mundo, certamente..."
Lá fora está anoitecendo rápido demais, e cada palavra é preciosa, pois nunca os vi falando tão abertamente sobre o que houve na noite em que Li morreu (Melhor: morreu e ressuscitou).
Saiyame estica a mão (a palma cicatrizada, nem parece algum dia ter se ferido daquela forma...) para ajudar Li a se levantar. Trocam um olhar grave e sério, que se acaba quando solta sua mão e diz, um tanto severo, como se falasse a alguém muito mais jovem do que ele, quando é o contrário:
"Não torne a repetir isso. Você nunca esteve daquele lado para saber como é estar preso à algo."
Quando já está escuro do lado de fora, a última peça desse quebra-cabeça macabro é posta. Espalham ao redor do círculo uma fina trilha de sal grosso. Saiyame está terminando, quando se vê na mira da câmera de Tomoyo. Ela anda ao redor, mas não entra no círculo.
"Tenho vontade de por um laço no seu pescoço...!" – Ela diz, rindo, sem largar essa coisa.
Na verdade, eu também gostaria de fazer isso com Saiyame, ele parece um grande gato desconfiado, quando fica em pé. Coloca uma das mãos na frente do rosto, se afastando de lado, parecendo incomodado demais com a idéia de ser filmado.
"Oh, não faça isso..." – Ela está se divertindo em persegui-lo... – "Sorria para mim. Para a posteridade. Vai ser divertido ver isso em alguns anos!"
"Não. Não gosto de me ver... E não vou estar aqui para ver isso."
"Ora, por que? Posso fazer uma cópia para você, Saiyame!"
"Esta é a última vez que vai me ver." – Ele parece mais triste do que irritado, quando se volta para a câmera de novo, antes de ir tomar sua posição no centro. – "Não guarde lembranças de mim!"
Tomoyo entreabre os lábios para dizer mais alguma coisa, mas não fala nada. Não entendo o que ele quer dizer com isso, ninguém mais entende, aliás. É ele quem começa o ritual, erguendo o braço acima da cabeça e falando alguma coisa que talvez seja latim, é uma sonoridade agressiva e mais ainda na sua voz profunda e rouca. Li mal tem tempo de acompanhá-lo, em silêncio, erguendo o braço também, de pé e frente a frente com ele. Me afasto para ficar perto dela, se acontecer alguma coisa... Estou preocupado... Eles devem ter enlouquecido de vez, acreditar em feitiçaria...
Não entendo nada, tudo o que diz é estranho e com um tom indistinto de fatalidade. Agora, quando o vento que entra fica mais forte e mais frio, e invade o sótão pelas janelas abertas, a vela que Li deixou em pé no chão, apagada, se acende sozinha. Espero que Tomoyo esteja mesmo filmando tudo, não quero achar que estou vendo coisas. Mas estou, e são muito reais. Do lado oposto onde ela está, é aquela pedra escura sobre o pergaminho que se acende, em brasa e queima, o pergaminho continua inteiro, e ela queima com força, até quase a altura de uma pessoa. Eles não desviam a atenção do que estão fazendo, um aponta com se para o outro, as mãos quase se tocando, os dedos fechados sobre a palma e somente dois apontando juntos para cima. As mãos que deveriam estar livres fazem o mesmo gesto, mas às suas costas, como se fosse um modo de se defender. A voz de Li ordena que a sexta carta se apresente, e então o vento fica tão forte que tenho a sensação de que as telhas sacodem sozinhas, e quando olho para cima, vejo que tremem e se afastam uma das outras, pedacinhos do céu escuro aparecem entre elas.
Tomoyo está filmando. A voz de Saiyame ordena que a sétima carta se apresente. Não sei se é sua voz, mas acho que isso faz tudo ficar pior. Parece que um furacão vai arrancar o teto. Encosto numa das paredes ásperas, afastando as pernas para tentar me firmar, o vento ficando forte o suficiente para me derrubar. Estou preocupado com isso. Não sei se acredito no que estou vendo, mas é tão impressionante que é assustador.
O chão começa a tremer e as plumas do pombo esvoaçam num pequeno redemoinho branco que fica fino e cada vez mais alto, quase a chegar ao teto. Daqui posso ver Saiyame fechar os olhos, bater um dos pés com força sobre o chão, causando um barulho que me parece mais alto do que deveria, ao mesmo tempo, à sua frente surge uma coisa disforme e negra, como se fosse um tipo de verme, que tentasse ir na sua direção, mas não pudesse, intimidado pelo gesto que ele faz, pelas palavras que diz sem som, somente movendo os lábios. Li por sua vez já não parece tão seguro do que está fazendo. Não pára de olhar para a coisa que se contorce no chão, como se fosse atacar Saiyame, é grande e cada vez mais nítida, parece agora mais uma serpente do que um verme.
O chão ainda está tremendo quando ele perde a concentração. Li solta um grito como se estivesse ferido, apertando a cabeça entre as mãos, as costas tremendo como se ele fosse se partir em pedaços. Engulo em seco, penso em ir, chego até a beirada do sal, mas Tomoyo me manda não dar mais nem um passo, e ela tem razão. Não vou poder sair.
"Mas ele precisa de ajuda!"
"Quem está no círculo não pode sair antes de acabar! E quem estiver do lado de fora não pode entrar! Se você entrar não vai poder sair! Foi assim que Sakura morreu!"
"Li também vai morrer!"
"Ele não vai, Hisashi!" – Tomoyo grita comigo, no meio do uivo do vento que está cada vez mais forte, e alimenta a chama da vela, que continua acesa, alta como se fosse a de uma tocha. – "Ninguém vai morrer!"
Li continua gritando, se debatendo sobre si no chão, numa espécie de transe. A água que está na taça ferve, até estourar o cristal e ficar sobre o chão, como se estivesse viva. Nem em filmes de terror essas coisas são tão assustadoras. Saiyame começa a falar mais alto, abrindo os olhos, e eles faíscam numa cor que não é a que estou acostumado a ver. Não é amarelo, não é castanho, não é nenhuma cor normal, ele está irreconhecível, o cabelo sacudindo no vento e o os olhos... São dourados e claros como os de um animal. Ele me assusta, é a parte mais terrível disso tudo. Parece um carrasco, pálido e terrível no meio de uma escuridão crescente, que invade o círculo onde estão, tentando estar ao redor deles, aquela serpente se enroscando em torno de suas pernas, subindo por seu corpo, a mão que estava detrás dele vai para o lado da outra, apontando agora para Li, e ele fala alto e com autoridade para que a carta obedeça a seu mestre e senhor, em nome...
"... Das forças das trevas assim conquistadas por Clow!"
Li grita mais alto, como se tentasse agora parar de se sufocar. Seus lábios se abrem, e desce por seu pescoço algo que parece ser fogo líquido, é fogo! São chamas dentro dele! É loucura demais, não posso estar vendo isso! Tomoyo estica um braço para me mandar ficar no mesmo lugar. Do lado de fora do círculo não corremos perigo algum, a escuridão está somente dentro dos limites do sal. E esse fogo que desce de dentro de Li, por seus lábios, não queima sua pele, passa por cima dela, desce para o chão, se espalha nele e ateia fogo sobre o caminho dos riscos do giz, mas a luz que isso deveria causar é sufocada pela escuridão que os cerca, e mesmo assim, tudo o que emana deles é silêncio. O grito de Li é algo muito distante, como se não fosse dele. As palavras de Saiyame também são distantes, ele parece completamente diferente de tudo o que vi até hoje, de todas as coisas que já o vi fazer. Ele parece muito mais velho e muito mais forte, muito mais alto, como se seus pés pudessem se erguer do chão... Ele inteiro parece mais um animal do que o garoto. Li se curva inteiro, com um arranco que faz sua coluna se torcer como se fosse se quebrar. Saiyame, ou seja lá quem, ou o quê, seja, bate de novo com um dos pés sobre o chão, e desta vez o sal que faz a margem do círculo se incendeia, e de alguma forma isso faz com que essa coisa que está dentro de Li se revolte, grite com uma voz inumana. Isso não o impede de erguer o braço, como se tivesse algo em sua mão, como se fosse corta-lo em dois, mas sua mão está vazia, e ele diz então, para meu horror, porque nunca acreditei em nada disso, e, no entanto estou vendo isso diante dos meus olhos, escutando tudo:
"Eu ergo a espada de luz que o coração não pode quebrar...! Não corto a carne, eu corto e divido o espírito...! O corpo não é partido; só o símbolo é rompido. Mas não é diminuído. Não se muda o que contém." – E na sua mão, como se ele fosse um anjo, sem dúvida... Ele é um anjo agora, com uma espada de luz em sua mão pálida como nunca, descendo sobre Li como se fosse parti-lo ao meio, mas parando na altura de seu peito, e tornando a gritar que a carta obedecesse.
Ela obedece.
Quem não obedeceria se esse anjo alto com ar de fera gritasse assim, com uma voz que parece um rugido no meio da tempestade que se abate sobre esta casa que parece tão pequena e tão frágil? Eu me sinto assim, um nada, vendo o que estou, vejo meu começo e o meu fim, a minha ruína... Quem não se sentiria? É um vazio tremendo, um silêncio total quando o fogo do interior de Li sai por toda sua pele, e ele deixa, por um instante, de ser humano e se torna um ser todo de fogo, antes de ser como que sugado pelo nada, o vácuo que surge na ponta daquela espada de luz, e desaparece no ar, o corpo de Li tomba pesado para o lado, ele tenta recobrar desesperadamente a consciência, enquanto a espada desaparece na mão de Saiyame como se nunca houvesse estado lá, a luz que a cercava também some e mais do que antes as trevas o engolem, se deixa afundar, aquela serpente negra e escorregadia como uma espiral de fumaça preta toca seu rosto com a ponta de uma língua escura e um tanto transparente.
Ele não tenta se salvar. Não faz nada para isso, ele ordena que a sétima carta obedeça, e novamente repete para que ela o faça em nome...:
"... Das forças das trevas assim conquistadas por Clow!"
Li consegue se erguer nos joelhos, tossindo muito, mas sem conseguir falar nada, o olhar hipnotizado por aquela coisa aterrorizante que envolve o corpo de Saiyame, que se deixa prender naquele abraço de morte. Ele ergue seu braço para o ar, mais uma vez, mas não chama pela espada... Ele ordena que a sétima carta receba seu mestre como sendo uma parte dela, e são palavras que me causam mais medo do que tudo o que já aconteceu aqui...:
"... Não o parte quem celebra, não o rompe quem o quebra, mas inteiro é recebido. Receba seu mestre como sendo uma parte de sua existência...!" – E nesse momento, eu não vejo mais Saiyame, eu vejo somente luz, dourada como se no meio da escuridão do sótão fosse um autêntico amanhecer, é quase tão ofuscante como se eu estivesse olhando diretamente para o sol do meio-dia, quente e intenso, selvagem.
Toda a escuridão que se apoderava deste lugar desaparece, não há sombra em parte alguma, somente luz, como se nos atravessasse, como se pudesse nos destruir até sem querer. Se isto é poder... Se isto é poder, é sim um poder capaz de corromper, pela beleza, pela força que tem, pela ganância que pode causar em quem o deseja. Aperto os olhos para tentar vê-lo, chego mais perto da linha de sal que continua queimando, sinto o calor do fogo perto das minhas pernas. Eu vejo. Não sei se é Saiyame ou fruto da minha imaginação. Não sei se é a luz que me faz ver isso, ou o estado em que minha mente se encontra. Dura o tempo suficiente para que eu fique maravilhado com o que vejo. Vejo Saiyame deixar de vestir aquelas roupas de sempre, a camisa listrada em preto e branco, o jeans, os sapatos... Ele está descalço, nesse delírio que tenho, o que veste é um tipo de túnica de veludo vermelho e dourado, as costas lisas e nuas até a cintura, e dela despontam asas... Enormes, brancas... Impressionantes... Terríveis... Parece... Um anjo.
E depois, o anjo quase desaparece, sua forma se misturando a de um leão dourado e feroz... Os mesmos olhos dourados que eu vi em Saiyame antes, e esse leão divide suas asas com ele. Estou louco. Estou delirando. Quero ser internado quando sair daqui, se eu tiver forças para sair. Sinto o fogo do círculo quase queimando meus tornozelos, estou literalmente a um passo de entrar nisso para nunca mais sair. Eu faria. Deus sabe com eu faria. Não sei de mais nada, não vejo mais nada, somente esse leão, que encara frente a frente uma serpente negra, que se enrodilha, dócil, a seus pés, cada vez mais clara, até ficar prateada, até desaparecer... Até a luz desaparecer também.
Está tudo como deveria ser, aqui, novamente. Silêncio, os grilos do quintal lá embaixo cantam... As folhas dos salgueiros farfalham, minha respiração... Estou vivo. Estamos todos vivos. Tomoyo não parou de filmar. Li se levantou, parece tonto, desorientado. O luar lá fora deixa tudo aqui dentro um pouco azul. Sinto minhas mãos geladas, e meu coração como se fosse sair pela boca. Saiyame é o mesmo, o tempo todo ele fora o mesmo. Não é um anjo, é apenas um rapaz alto, de camisa um pouco larga demais, esse cabelo solto... Ele não se move, está como se olhando para cima, eu olho também.
No alto, rés ao teto, o que há são dois pontos pequenos e claros de luz, como vaga-lumes pequenos e preguiçosos... Eles descem do alto do teto, e pousam sobre as mãos de Li, que olha para eles com estranheza. O rosto de Saiyame me parece pálido, quase branco, como se fosse o rosto de uma das bonecas de porcelana que estavam nas cristaleiras... Antes da luz se extinguir naqueles pontinhos brilhantes, eles brilham mais forte por um segundo, e caem como que do nada as duas cartas sobre as palmas de Li. Quando caem em suas mãos, Saiyame também cai. Como uma boneca de porcelana atirada no chão, os olhos como os de uma boneca, de vidro, sem brilho.
É horrível. Ele cai não como se estivesse morrendo, mas como se já estivesse morto. Olho para Tomoyo, ela baixou a câmera, não acredita no que está vendo, e nem eu. Ninguém vai fazer nada?
"Ninguém vai fazer nada!" – Me escuto gritar, dando aquele derradeiro passo para dentro do círculo, as brasas ainda ardendo com vontade no chão. Escuto ao mesmo tempo Li gritando um "não" que se perdeu antes que eu pensasse em obedecer. Mal entro no círculo e todas as brasas se apagam. Espero que não signifique nada. Ele não pode morrer. Não aqui, não na minha frente.
Quando chego ao lado do corpo de Saiyame, inerte, branco, olhando fixo para o teto, com olhos muito abertos, Li já está lá, tirando seus sapatos, afrouxando seu cinto, soltando os punhos da camisa. Tenta sacudir seus braços para o sangue voltar a correr. Ele não reage. Tomoyo acende uma lâmpada fraca e amarela no teto. O que vejo quando ela nos ilumina é pior, ele está quase morto, quando encosto a mão em seu pescoço frio, a pulsação quase não existe. Fraca e espaçada. Abro sua camisa num puxão, para livrar seu pescoço, e começo a amassar seu peito para tentar fazer seu coração bater com mais força. Ele não está respirando, não adianta Li inclinar sua cabeça para trás, não há tempo de chamar uma ambulância, não há tempo para nada. Afasto Li com um empurrão, ele não tem culpa do que está havendo, Saiyame sabia o que ia acontecer, de alguma forma ele tinha certeza de que ia morrer. Desgraçado, não se atreva a morrer na minha frente! Grito com Saiyame, segurando-o firme e batendo suas costas no chão. Ele é tão leve, tão frio, tão bonito...
"Vou chamar uma ambulância!" – Li diz, levantando, recuando um passo ao ver que Saiyame continua do mesmo jeito, até pior.
"Não! Não chame ninguém! Eu posso cuidar disso!"
"Não adianta!" – Li revida, mais irritado ainda, todos estamos perto de sair do juízo... Oh, Saiyame, não se atreva a morrer agora! – "Ele quer morrer!"
Paro de amassar o peito de Saiyame, faço tanta força que suas costelas cedem como se fossem quebrar. Meu cabelo acaba se soltando, caindo encima dos meus olhos, melhor assim, não quero vê-lo assim, seguro seu queixo com força, abrindo sua boca, aperto seu nariz e assopro o ar para dentro dele com toda a força que consigo.
"Ele precisa de um médico!" – Li acrescenta, mais baixo, sua voz está embargada como se ele fosse chorar.
Tomoyo não se aproxima, sei que não, ela repete que não quer que Saiyame morra. Pede-me por favor que eu não o deixe morrer... Eu o vi de pé ainda há pouco, como eu havia visto Li antes de encontra-lo no hospital. O gosto de seus lábios é amargo. Não acredito que ele quisesse morrer, mas eu escutei quando ele disse que era a última vez que Tomoyo iria vê-lo, dizendo com tristeza que não guardasse lembranças suas. E pensar que eu nunca o beijei... Não morra agora, Saiyame, eu me flagro repetindo para ele. Seus olhos de vidro, um grande boneco de porcelana, frio como porcelana. Assopro com mais força o ar em seus pulmões inertes. Nada. Encosto o ouvido no seu peito estreito, seu coração parou de vez. Tento desesperadamente decidir o que fazer, mas não há tempo de pensar, faço como há muito tempo não tento fazer. Desafio qualquer coisa que esteja lá em cima ou lá embaixo, disputando palma a palmo a vida dele. Nunca acreditei em milagres, mas vou ter de fazer um agora mesmo. Ele não quer, é como se me dissesse isso nos seus olhos fixos e dilatados.
"Ele precisa de um médico!" – Li grita, tentando me tirar de cima de Saiyame, e sem pensar, sem avaliar que pela primeira vez eu estou dizendo a verdade, sem me lembrar de que jurei que aquele diploma ia ficar esquecido na gaveta da minha cabeceira, eu grito de volta, tão alto que me assusto, e ele recua, silenciando imediatamente, engolindo em seco:
"Mas eu sou!"
Ofego, me voltando para o corpo largado de Saiyame. E pensar que nem chegamos a ir para a cama... Ponho todo meu peso sobre suas costelas, amassando sobre seu coração, contando, me desesperando a cada vez que tenho de parar e assoprar de novo o ar na sua boca, e nada acontece. Não morra agora. Não morra!
"Não se atreva a morrer agora!" – Digo baixo, entredentes, como se ele pudesse me ouvir.
Luto por muito tempo com a morte e perco. Aposto alto e perco, me envergonho daquele diploma, tento de tudo para fazer seu coração bater de novo. Estapeio seu rosto com força, quando não sei mais o que fazer. Agarro seu colarinho e o sacudo com toda a força que consigo, dizendo tão perto de seu rosto que meu cabelo cai sobre o dele, como uma teia escura, nessa luz turva e trêmula. Acorde, garoto! Acorde, seu pirralho atrevido! Nada do que lhe digo pode alcança-lo. Ele não está mais aqui. Não é Saiyame quem está nesse chão, seu peito pálido debaixo das minhas mãos que quase o esmagam. Parece uma eternidade até eu aceitar que perdi, que o perdi.
Ele está jogado no chão, os braços ligeiramente afastados do corpo, sua mão direita, a mesma mão que beijei... Parecem horas até eu parar de lutar. Fico ajoelhado ao seu lado, os olhos turvos de lágrimas de raiva e derrota.
"Não morra antes de transar comigo, Saiyame!..." – Estou com mais raiva do que nunca pelo que ele fez, praticamente se matou. Como eu pude chamá-lo de covarde algum dia? Ele tem mais coragem do que todos os que já conheci juntos. Li era quem deveria ter morrido, ele literalmente estava cuspindo fogo...
Minha mão procura a dele, enquanto me inclino para olhar bem dentro de seus olhos.
"Não se atreva a morrer antes de transar comigo!..." – Não sei como consigo pensar nisso num momento como esses... Estou sentindo todas as coisas ruins de minha vida ao mesmo tempo. Ele está morto, seu coração parou definitivamente. Escuto o baque de Li caindo de joelhos no chão, exaurido, desesperado.
"Era o que ele queria! Meu Deus, era o que ele queria!... O que nós poderíamos fazer?"
Passo a mão nesse rosto arredondado, sua pele está úmida, fria... Como seu riso me faz falta, o seu olhar de desprezo, me ignorando. Por que não olha para mim? Por que não quer viver? Foi algo que eu fiz? Eu fiz você se lembrar de algo que quer esquecer? Foi algo que eu disse? Nem pude te beijar... Saiyame, não se atreva a me deixar falando sozinho de novo! Não morra antes de transar comigo, sua lesminha de gorro!
Devo parecer um louco pior do os pacientes de que cuidei, falando, gritando assim com um cadáver, beijando-o assim. Beijando? Eu o beijo. Dou-me conta disso tarde demais, sentindo o toque frio e macio dessa boca pequena na minha. Estou tremendo, estou imaginando coisas... Estou mesmo enlouquecendo. Sinto seus dedos se fechando nos meus, com força. Meus lábios ainda estão nos dele, não reage, não vai reagir, jamais faria isso mesmo que estivesse vivo. Sinto tanto medo. Por ele, por todos nós, como se o fim estivesse muito perto de nós, como se a vida fosse uma centelha muito fraca. Eu dei um passo para dentro do círculo, estou com medo de ter desafiado o que não conheço. Aposto e perco... Vou viver com esse peso e com mais esta morte, mas nenhuma dói tanto... Afasto meu rosto do dele, sentindo minha respiração colidir com sua pele fosca e fria...
Olho nos seus olhos. Tenho medo deles, mas olho em seus olhos, enquanto me afasto, seus dedos apertando os meus com tanta força que chego a sentir dor. Seus dedos enlaçados... Nos meus. Seu cabelo está todo espalhado no chão, se misturando com as penas que estão espalhadas nele, com o giz queimado... Seus olhos estão tão claros, fixos, e... Eles rolam lentamente na minha direção.
Sinto um terror indescritível e inesquecível ao sentir seu olhar morto sobre mim. Está olhando para mim. Vejo sua garganta se movendo lentamente, sua mão apertando a minha, como se fosse quebrar meus dedos. Está tão frio...
Não solta minha mão nem quando de repente seu corpo se sacode todo, arqueado, tremendo com violência, um gemido alto por sua garganta, tossindo muito, arranhando a garganta com força. Tomoyo grita por ele, Li se aproxima, todos nós vemos seu corpo se mexer sozinho, ele voltando à consciência, trêmulo de frio, sem desviar seus olhos dos meus, sem largar a minha mão...
x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x
Não sei quanto tempo se passou, mas foram horas e horas... Aquele ritual demorou muito mais do que nos pareceu. Tentar aquecer o corpo gelado de Saiyame, fazer com que não parasse de respirar de novo, demorou muito mais. Já é começo de madrugada quando Li e Tomoyo se convencem de que posso cuidar dele sozinho. Saiyame está dormindo, enrolado em duas mantas de lã que Tomoyo encontrou num dos quartos. Ele estava com muito frio, com o coração descompassado e teria vomitado, se seu estômago não estivesse vazio. O obriguei a comer sal para a pressão subir de novo, e vou ficar com ele, até que melhore.
"Se precisar de ajuda, me telefone, Hisashi." – Tomoyo me diz, enquanto me abraça e me agradece.
"Eu sei. Obrigado. Agradeço por ele. Não quero deixá-lo sozinho, se o que ele quer é morrer, pelo que me disseram."
Li baixa os olhos e coloca distraidamente a mão sobre o bolso do blusão, onde estão agora as duas cartas que surgiram do nada. Agora eu acredito em toda aquela conversa.
"Podemos conversar por um instante, Li?" – Pergunto, Tomoyo me soltando e se afastando, esperando por ele, junto à porta, como se soubesse que tenho mesmo algo para perguntar.
Talvez ela tenha muito que perguntar. Sorte que por sua vez, dificilmente Li vai querer estar longe dela depois dos momentos no sótão.
"Hisashi?"
"Mostre-me estas cartas. Que cartas são essas? Isso faz alguma diferença sobre o que houve com ele?"
"São duas cartas. Uma, nem mesmo eu fazia idéia, estava dentro de mim..." – Ele as tira de dentro do bolso e coloca na minha mão. São de couro, parecidas à primeira vista com a carta que Saiyame entregou a ele no hospital. Uma delas tem uma serpente, de sua boca pinga sangue. A outra, tem uma forma humana, mas feita de fogo, com as duas mãos unidas acima da cabeça.
"O que são?"
"A que tem essa cobra é a carta do Veneno. A outra é a que estava em mim, é a carta da Destruição." – Ele as pega de novo. – "Por isso as coisas estavam se destruindo quando eu me aproximava. Por isso Saiyame teve tanto frio, é como se ele houvesse se deixado picar por esta cobra."
"Por que ele quer morrer? Ele poderia ter evitado isso, não? Como ele pôde fazer isso?"
"Eu não conheço seus motivos, eu nem sei se o nome de Saiyame é mesmo esse. Não quero ter de pensar sobre isso, eu não quero saber a verdade, se há alguma sobre ele. Gosto dele do modo que ele se mostra para nós, se ele é outra coisa... Não faz diferença. Ele me salvou mais de uma vez, fez Tomoyo olhar para fora daquele quarto..."
"Você... você o conhece há muito tempo, Li?"
"Não. Não sei. Ele não me é de todo estranho. Às vezes parece que ele tem duzentos anos de idade..." – Ele ri de suas palavras, de um modo meio sinistro...
"Isso mesmo. Me responda: o que ele disse quando... naquela noite que..."
"Ah!" – Ele sacode a cabeça, pensativo, seu riso sumindo lentamente, até restar a seriedade de sempre. – "... Eu não sabia que ele era chinês. Pelo menos deve ter sido criado em Hong Kong ou Macau. E antiquado, se quer saber... Minha bisavó falava como ele."
"Eu não estou perguntando sobre a sua família."
Ele ergue o rosto, muito sério, seu cabelo castanho e despenteado caindo sobre os olhos escuros e penetrantes:
" 'Não me toque', 'não', 'saia de perto de mim', 'não', 'de novo não'..." – Diz isso sem nenhum tipo de entonação, diz e pronto. Ele me respondeu, o que mais eu posso querer saber? – "Claro que isso não é tudo. Há coisas que talvez ele mesmo deva dizer. Se eu repetir aqui... Nem eu vou acreditar no que vou dizer."
"Claro."
"Era o que queria saber? Está satisfeito com isso?"
"Estou. Por enquanto estou. Não era tudo o que eu gostaria, mas neste momento, levando em conta o que tem acontecido... Estou satisfeito em saber isso."
"Ótimo. Tenho de levar Tomoyo em casa. Afinal, eu sou um cavalheiro. Ao contrário de você. Onde já se viu dizer aquelas coisas? Reze para que Tomoyo não tenha gravado as suas declarações." – Ele dá meia volta e vai direto para a porta, o Li de sempre, "social" como sempre foi.
"Saiyame me falou de Sakura." – Digo, quando eles já estão na calçada, de braços dados nessa madrugada. Nenhum deles olha para trás.
"Sakura está morta." – Li responde. – "Enterre os mortos, começando pelos que estão na sua cabeça e esqueça-os!"
x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x
Quando volto para o quarto, encontro Saiyame sentado na cama, com cara de quem não sabe onde está, e muito menos fazendo idéia de quem seja. Ele olha para mim e chuta os cobertores para o lado, sua camisa está colada no corpo, seu cabelo está pesado e seu rosto, úmido. Está molhado de suor e desorientado. Parece muito decepcionado em estar aqui ainda.
"Você não conseguiu o que queria."
"Você fez isso de propósito." - Reclama, sentando na beirada do colchão. Isso me tira do sério. Pirralho ingrato, mas eu deveria estar feliz em vê-lo falando, reclamando de mim, me olhando com raiva... Não posso começar uma discussão agora... - "Não bata em mim novamente, ou eu irei matá-lo. E coragem para isso não me falta."
"Eu sei que não. E nem para se matar." - Não tento ser delicado com ele. Ele foi forte para suportar aquela coisa, a serpente o envenenando, vai ser forte para ouvir umas verdades também... - " Você não pensou em nenhum deles? Você não pensou em Li e Tomoyo? Eles iriam sofrer muito se você morresse." – Ah, como se eu fosse uma pessoa que pensa nos outros!...
"A culpa é sua."
"Minha? Você deveria me agradecer!" – Estou irritado. Penso naquele beijo, na sua mão apertando a minha. Não é possível que tenha sido em vão e que ele não sinta nada por mim depois disso, a não ser raiva. Eu o salvei, mas é como se uma parte daquela pureza que ele tinha antes houvesse morrido definitivamente. Não quero acreditar nisso...
"É para poupá-los de tristeza maior que eu quero fazer isso." – Ele baixa a cabeça, olhando para as mãos no colo. – "Não adianta pedir, ninguém me ouve... Mas não diga a ninguém... Por favor."
Lembro quando puxei seu gorro, na tarde em que o conheci, e entrou num estado de nervos horrível só por isso. Ele está tão triste aí nessa cama de ferro, o cabelo encima do rosto, e tem tanta vergonha de se mostrar assim... Vou até o cabide da parede e procuro dentro dos bolsos do meu casaco. Como vou dizer isso? Não consigo nem sorrir para Saiyame, quanto menos tentar ser simpático com ele, ou pedir desculpas por qualquer coisa. Se ele chorar eu vou morrer, não agüento mais vê-lo chorar com aquela amargura toda...
"Er... O seu gorro... aquela noite... bom... eu... você... aí está." – Atiro essa coisa preta no seu colo. Agora, se já o conheço, vai pegar todo seu cabelo, enrolar, puxar para trás da cabeça, e enfiar o gorro encima, e lá se vão estes cachos perdidos na escuridão desse gorro. Poucos conseguirão reaver a liberdade escapando teimosamente para fora.
Em vez disso, ele olha para o gorro por um tempo e o deixa de lado, nem encosta mais nele. Ele não me engana mais. Por que me incomodo tanto se ele sofre calado desse jeito por alguma coisa? Queria ser menos orgulhoso para dizer que ele pode não estar feliz em estar vivo, mas eu estou, por não ter morrido antes de... Bom, se ele lembra do tapa, talvez lembre das besteiras que eu disse. Talvez se lembre do meu beijo. Queria poder beijá-lo de novo. Estou secretamente feliz, consegui esse beijo antes de Li! Talvez ele seja virgem, oh... Não é hora para pensar nisso!...
"Eu acho... que eu deveria agradecer. Mas se você soubesse o que fez... realmente, Hisashi... Você se arrependeria amargamente." – Saiyame diz, voltando a se deitar, exausto, tossindo como se o ar não fosse bastante para poder respirar. – "Eu quero morrer. Antes do inverno chegar."
Depois de mais ou menos dez minutos eu entendo o que essas últimas palavras quiseram dizer.
"O quê?"
Meu sussurro não chega a ser ouvido. Ele dorme. O cubro de novo com os dois cobertores e deito ao seu lado. A cama é larga, nem vai sentir que estive aqui. É uma pena que eu não seja canalha a ponto de beijá-lo agora...
x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x
Ele se recusa a comer ou descansar, no dia seguinte. Seu estado parece muito pior do que o de Li na última vez, Tomoyo telefona algumas vezes para saber como ele está, mandou até uma empregada trazer um bolo que a cozinheira fez, pois sabe que ele adora todo tipo de doces. Claro que digo que está tudo bem, ela já tem problemas demais sozinha sem saber que o coração de Saiyame (verifiquei seu pulso enquanto ele dormia) está descompassado, e ele quase não consegue andar sem ficar tonto. É um custo mantê-lo em casa, e quieto. Parece lutar contra o tempo, querendo arrumar a bagunça de coisas e livros velhos que há aqui, ou querendo saber se Tomoyo precisa dele.
Antes do inverno.
Já estamos no outono, e o que é até o inverno senão poucos meses? Descubro que tive tudo para notar seu secreto desespero há muito tempo, detrás da porta do quarto há calendários com cada dia, desde exatamente um ano atrás, riscados. Fazendo os cálculos, falta não muito para o que marca o ano inteiro, circulado com caneta vermelha. Não posso perguntar. Ele me evita, e nem quer falar comigo. Bastou poder se levantar da cama, naquela mesma noite e dormiu de novo no chão. Teimoso. Insistente. Irritante. Encontrar tantos defeitos nele é inútil, penso, quase me sentindo mais doente do que ele deve estar, agindo como está. Se ele dorme pouco ou não dorme, eu durmo menos ainda, tentando vigia-lo de perto. E conseguir isso me faz um mal pior. Olho de perto para seu rosto de anjo, com vontade de arrebentar seus lábios com tapas ou cobri-los de beijos. Suas respostas atravessadas me tiram do sério e me deliciam. Saber que nem em sonho posso ver novamente mais um pedaço de sua pele à mostra é mais devastador do que se eu o visse inteiramente nu. Esta cama é grande demais para eu ficar aqui sozinho... Saiyame volta para o quarto, exalando aquele frescor e simplicidade de quem acabou de tomar seu banho, já metido numa camiseta larga. Todas as noites ele faz isso: faz de conta que não estou aqui, entregue, na sua cama, eu aceitaria qualquer tipo de perversão que ele me propusesse, mas é encantador imaginar que ele seja virgem, às vezes vejo seu rosto ficar vermelho antes de me deixar falando sozinho, quando insinuo alguma coisa. Tenho olhos lindos, o resto também, muitos já se apaixonaram por mim somente por ouvir a minha voz em seus ouvidos, o que há de errado com Saiyame? Ele me faz sentir um nada, não como antes, mas como se eu fosse simplesmente nojento, sem atrativo algum... Ele nunca notou nada em mim?
"Você gosta de dormir aí?"
Ele pára de enxugar o cabelo, e olha com estranheza, como se eu fosse um alienígena na sua cama (diga-se de passagem, um belo alienígena, ou Saiyame é cego ou tem sérios problemas mentais para não notar isso, mas levando em conta o que houve entre nós naquela noite, depois do filme... acho que ele faz isso porque sabe que me irrita, mas me parece absurdo que não possa me desejar...).
"Como assim?"
"Você sempre dorme no chão, aí... perto da porta... Gosta de fazer isso?"
"Na verdade não. É o hábito..."
"Hábito estranho... Por que você faz isso?"
Antes de se sentar no lugar de sempre, demora uns longos tempos, até dizer que não é da minha conta. O convido para dormir aqui. Que mal há? A cama é larga, range um pouco (Mas eu adoro camas que rangem, os rangidos marcam o ritmo do sexo como nenhum outro som... e é lógico que não digo isso quando me afasto mais para o meio dela), mas não vejo motivo de não dormir aqui...
"Mas... a porta?"
"Você tem medo de que alguém entre aqui?" – Apesar de eu estar zombando, ele não hesita em acenar com firmeza. –"Deite-se aqui..." – Afasto a coberta para ele, no entanto, não tenho pretensão nenhuma de dividi-la com Saiyame. –" Vou chamá-lo se eu escutar algum barulho nela."
Ele levanta, desconfiado como sempre. Se ele tivesse uma cauda, ele a estaria balançando. Às vezes quando me olha assim, eu me sinto um canário numa gaiola, mas este gato nem de longe parece querer me comer... Tenho a idéia mais atrevida de toda minha vida, quando ele pára exatamente ao lado da cama e fica olhando para mim. Por que olha desse jeito? Ofendi seus brios quando chamei de covarde e acabei provando do meu próprio veneno. Quero me envenenar mil vezes mais...
"Vai fazer isso mesmo?"
"Vou."
"Promete?"
"Hã? Ah, sim. Claro..." – É evidente que ninguém entraria nesta casa... A idéia que tenho é cada vez mais tentadora. Estou quase inteiro embaixo de cobertas grossas, no mais vou ficar com um pouco mais de frio, se bem que eu gostaria de me esquentar de outra forma...
Não sei quando começo a perder a noção das coisas, devagar, escorrego dentro da malha velha da camiseta. Não sei porque estou vestido, normalmente não vestiria nada para dormir... Saiyame nem se move, olhando para isso, como eu gostaria ao menos que ele pestanejasse ou bocejasse, isso ia fazer com que me sentisse menos intimidado por sua indiferença. Não vou desistir fácil, se eu comecei, vou terminar. Estico um braço para fora da cama, e deixo a camiseta cair perto dos seus pés descalços. Como tenho coragem de fazer isso? Há duas noites atrás ele esteve à beira da morte, e estou tão excitado que vou matá-lo se conseguir o que quero, vou parti-lo ao meio, vou deixá-lo exausto... Sua língua, sua boca... O lençol esbarrando na minha pele me faz lembrar daquela carícia quase dormente... Minhas mãos soltam os botões que restam, fazem escorregar nas minhas pernas a calça do pijama... Estou me sentindo quente embaixo da coberta, me livro do resto da roupa e torno a deixá-la cair aos pés dele, com o movimento e de propósito, minha perna escapa do lençol, e ele mesmo escorrega com o peso, estou me mostrando quase inteiro, e eu sei, tenho certeza, o espelho nunca mentiu. Eu sei que sou realmente... Suculento. Estou ficando ofegante, como sempre que me excito a esse ponto, só de pensar, ele faz isso comigo. A respiração arranha minha garganta seca...
Ele somente olha, inexpressivo, frio. Desta vez, eu existo, olha para mim, mas olha como se eu não fosse nada. Ficamos nessa expectativa por uma eternidade. Não posso nem fazer menção de toca-lo, e desafia-lo parece ser o único modo de conseguir alguma coisa. Espero que não seja tão tímido, afinal, estou desse jeito, o coração aos pulos, na cama, esperando por algum olhar de cobiça ou curiosidade, minhas palavras morrem, fico mais calado do que nunca, e tudo o que tenho forças de fazer é gemer, e faço isso quando me mexo, e o lençol se mexe encima de mim, entre as minhas pernas, quando me coloco nos cotovelos, para encara-lo melhor.
São momentos de silêncio e calor, já estou quase suando, e Saiyame, seu rosto fica vermelho daquele jeito que vejo quando me insinuo. E tudo culmina em ele dar meia volta e sair do quarto!
Sento na cama no mesmo instante. Isso é um pesadelo, só pode! Arrasto o lençol comigo, me enrolando nele, para ir atrás desse... Desse... Nem sei mais por qual ofensa chamá-lo, já usei todas as que eu sabia e inventei mais algumas! Chamo-o. Vejo do alto da escada, ele já está nos últimos degraus, descendo. Está escuro no resto da casa, e um luar enorme e azul entra pela clarabóia do teto. Olho para seu rosto pálido através de meu cabelo, que cai em mechas grossas sobre meus olhos, e se gruda nos meus lábios, na pressa, cai nos meus ombros, lisos demais, leves demais...
"Saiyame!"
Ele olha para cima, para mim. Acabo de correr atrás dele, e eu nunca corri por ninguém. Se eu der mais um passo, pode ser que ele saia por aquela porta e nunca mais volte. Ele não precisa de mim, sempre disse que eu não significo nada para ele, por que ficaria? Para ele, viver e morrer não significa nada, só o que tem significado para ele é... São os outros, mas eu não. Ele quase não me enxergava. Agora me enxerga, mas não como eu quero. Por que não olha para mim com os mesmos olhos que sempre fui olhado por tantos e tantos?
"O que há de errado comigo?"
Ele me olha da cabeça aos pés. É um olhar longo, como se ele procurasse pela resposta.
Estou ficando desesperado com isso, começo a acreditar que o erro realmente está em mim. É horrível. Tenho vinte e cinco anos muitíssimos bem vividos, muitíssimos bem resolvidos, e ele está me deixando cheio de complexos... Não me olhe assim. Não sou louco. Louco é você que não vê o belo pedaço de carne que eu sou... Veja bem... Cobice-me, me deseje, Saiyame... O lençol que está em torno de mim escorrega das minhas mãos inertes. Estou tremendo, ele me faz tremer de raiva e angústia, me faz sentir um desespero tão genuíno agora como ninguém mais... Olhe para mim, é o que meu olhar diz, onde está a minha vergonha? A que ponto eu cheguei? Estou nu no alto dessa escada, sentindo seu olhar indiferente como beijos molhados sobre a minha pele. O lençol está todo embolado sobre meus pés. Deseje-me, me odeie... Mas não me ignore.
"O que há de errado comigo!" – Sinto minha voz mais alta e aflita, não controlo isso, como nunca controlo nada do que se passa comigo quando estou perto dele. – "Eu não sou um bagulho!... Porra, o que há de errado comigo!"
Sua cabeça loura se move um pouco... Estou louco. Nunca fiz isso antes. Nunca precisei me expor assim, tenho vontade de chorar de raiva, de vergonha...Meu rosto está queimando... Está olhando para mim de novo, de cima a baixo, com uma lentidão irritante, com uma calma desconcertante, como se olhasse atentamente cada centímetro da minha pele... Estou tonto e ele é um borrão pálido vestido de branco e azul no pé da escada. Como eu queria poder tocar nesses cachos... Tantas coisas que eu gostaria de tocar em você... Longe demais para qualquer coisa, alheio demais. Ele me dá as costas e desce o resto dos degraus, no mais absoluto silêncio.
Vai pelo corredor e escuto o clique a lâmpada da cozinha.
Não acredito que ele inventou de sentir fome justamente agora!
Estou com tanta raiva que eu iria embora agora mesmo, se estivesse vestido. Esse rapaz, esse garoto... Esse pirralho está sendo a minha ruína! Não vou fazer nada sem antes dizer uns desaforos para Saiyame, penso, enquanto me cubro de novo com o lençol e desço, pisando duro que as tábuas rangem. Quero ser o próximo pop star da folha policial de amanhã. Vou mata-lo, ou eu vou explodir. Quando chego na porta da cozinha, descubro que ele ainda é capaz de me surpreender: está de pé, encostado no balcão da pia, devorando uma grossa fatia do bolo que Tomoyo mandou ontem. Parece estar faminto, parece um... Uma lesminha comendo sua folha.
Pelo visto neste instante seu pedaço de bolo é a coisa mais valiosa do universo. Preciso berrar seu nome umas duas vezes até ele parar no meio de uma garfada e perguntar se quero um pedaço. Devo estar um monstro, descabelado e irado na porta da cozinha, de verdes, meus olhos já devem estar vermelhos... Olhe bem, Saiyame, olhe bem para o que você fez! Acabou com a minha noite, com a minha vida e com a minha auto-estima!
"O que há de errado comigo!" – Pergunto, muito baixo, muito nervoso, muito envergonhado do que acabei de fazer na escada. –"Deve haver algo de errado comigo, não é?"
Saiyame piscou algumas vezes, a ponta de sua língua aparecendo para lamber a ponta do dedo sujo do glacê. Por que fez isso? Agora não vou parar de imaginar coisas indecentes quando olhar para uma cobertura de bolo!...
"Nada."
Não acredito. Agora tenho certeza de que aos vinte e cinco anos estou no fundo do poço, depois de tanto desprezo! Tem de haver algo de errado, ou ele não teria me ignorado! Então...
"Então?"
Saiyame corta e espeta mais um pedaço de bolo no garfo. Como ele consegue pensar em comida em horas assim? Levanta o rosto para mim de novo e diz:
"Então?... Eu o acho bonito."
Por um momento o mundo pára. Tudo o que resta é essa cozinha antiga, de ladrilhos pretos e brancos, e até acho que eles se movem sozinhos agora. Eu ouvi o que eu ouvi? Ou já estou num ponto que, depois de acreditar em rituais absurdos de magia, ressurreições impossíveis, assombrações inexplicáveis e em mais algumas coisas bizarras, já consigo delirar mais outras para engrossar esse currículo do oculto? Mas esse sorriso doce de Saiyame é o que me salva de não achar que estou louco... Me acha... Ele me acha?... Eu ouvi mesmo?
"Quer dizer... Então você me acha?..." –Minha voz se torna um sussurro que nem eu escuto.
... Bonito?
Não termino de falar, ele enfia um pedaço de bolo na minha boca. Quase engasgo, mas... Ele continua sorrindo. Não acho que esteja mentindo. Estamos sozinhos, ele nunca sorriu assim, é apenas para mim, suas bochechas ficam róseas, e seus lábios se mexem no que quero acreditar que seja um "muito". Estou nas nuvens com o que acabei de escutar. Estou rindo só. Perco toda a ação, fico parado aqui, sentindo meus lábios se movendo sem que eu saiba o motivo. Estou sorrindo para ele, pela primeira vez, enquanto me sinto ficar tão doce agora quanto este pedaço de bolo...
CONTINUA
