Capítulo 06
Aquela frase pequenina ainda fica ecoando nos meus ouvidos, e quase esqueço do resto. Se ele não fosse arredio, calado, complicado, eu já teria saltado sobre Saiyame, mas o pior é que eu sei... Ele não é do tipo que sai rolando no chão com qualquer um. Acho até que com nenhum. Talvez ele seja virgem (Tenho de parar de ficar pensando nisso...)... Ele ainda não pode sair, não deixo, mas se o mando ficar parado, desobedece porque não admite ordens de ninguém. Se deixo a porta aberta e digo para fazer o que quiser, vai para o sótão e fica andando entre a bagunça que restou por lá. Fica cada vez mais calado, e mais tempo ali, janelas fechadas, pisando na poeira, passando a ponta dos dedos pelo giz queimado. Uma tarde eu o vi deitado onde havia caído, uma replica daquela cena. Saiyame me assusta com essa silenciosa fixação na morte. Escuto ruídos à noite, não sei se é o vento, ou se é ele chorando. Se ele fosse mais velho, eu diria que traz uma culpa muito pesada em si. Assim o tempo passa. Somos nós dois na casa. Quase não acredito quando o vejo pegar no telefone e discar.
"Alô? Senhor Kinomoto? Sim. Sou eu."
Saiyame mantém a voz tranqüila, sentado no pé da cama, mas a maneira que esfrega a palma da mão livre contra os joelhos trai uma tensão insuportável... Não posso perder isso por nada. Largo no mesmo lugar as roupas que acabo de tirar do varal da área de serviço, e corro pelas escadas, procurando a extensão da linha que está na sala de baixo.
"... não precisa me agradecer, Senhor Kinomoto. Foi apenas uma sugestão..."
"Não diga isso. Sabe há quanto tempo eu queria falar com ela? Eu estou há uns bons quinze anos tentando fazer aquela mulher parar de gritar comigo!..." – A voz de Fujitaka Kinomoto é entrecortada de um riso satisfeito. – "... Como eu não notei antes?"
"Acontece. O Senhor vai... vai precisar de mim para varrer as folhas de novo?"
"Que hora para falar de folhas, Saiyame! Fique na sua casa, eu soube que está doente... Procure se divertir, você é tão sério. Não perca seu tempo comigo..." – Esse homem está mesmo feliz... – "... É a mãe de Tomoyo quem vai fazer isso agora! Ora..."
"Me desculpe, eu não deveria tê-lo incomodado."
"Não é isso... é que... Como você vai entender? Você é tão jovem... Minha Sakura tinha pouco menos de idade que você quando... Bom, você acha que ela aprovaria o que está acontecendo? Ela gostaria de me ver apaixonado por outra mulher que não Nadesico? Desculpe, eu não deveria estar falando essas coisas com você..."
"Ela... Sakura deve estar muito feliz pelo senhor... Ela deve saber que gosta da mãe de Tomoyo de uma maneira diferente..."
"Sim... sim, você tem razão." – Ele fica algum tempo calado, antes de prosseguir. –"Saiyame..."
"Sim, Senhor Kinomoto?"
"O quarto de Sakura ainda está do mesmo jeito. Você sabe que sim, eu lhe mostrei. Por que eu tento me convencer de que ela ainda vai voltar? Eu tenho de dizer a verdade ao menos uma vez, Saiyame: minha filha está morta..." – Ele está chorando. Está rindo e chorando ao mesmo tempo, no telefone... – "... E o meu filho ainda está vivo. Por que eu não fiquei do lado dele quando as coisas ruins aconteceram?..."
"Há tempo. O senhor tem tempo, Senhor Kinomoto."
"Será? Certa vez você me disse que algumas pessoas estão sempre no inverno da vida: cedo demais para morrer e tarde demais para amar..."
"Ninguém nunca me escutou, Senhor Kinomoto. Faça o seu melhor. Ainda há tempo."
"..."
"..."
"Obrigado, Saiyame. Vou me lembrar das coisas que me dizia quando conversávamos."
"Não guarde lembranças de mim, Senhor Kinomoto. Apenas tente ser feliz de novo."
Ele se despede com palavras curtas e secas. Acho que Saiyame não vai voltar a procura-lo. Escuto o clique do telefone, o segundo de silêncio e o ruído monótono da linha caída. Estou ouvindo conversas dos outros, estou tão curioso por saber a raiz da amargura que envenena Saiyame mais do que o veneno da serpente... Envergonho-me do que faço. Se ao menos consentisse conversar. Mas eu nunca conseguiria conversar com ele... Largo o telefone. Deixei as roupas encima de qualquer coisa no corredor dos quartos, tenho de ir antes que desconfie. Conversa estranha. Então foi ele quem provocou esse romance do Senhor Fujitaka com a atarefada mãe de Tomoyo? E quer sair de cena assim, sem deixar rastros?
Dou com Saiyame quando estou chegando na porta da sala. Ele surge do nada, aparece e pronto. Como chegou aqui tão rápido? Acho que na verdade é ele quem está me vigiando...
"Eu disse para ficar fora disso."
"Esse homem está vivendo de novo, pelo visto graças a sua presença. Por que está fazendo essas coisas com a vida das pessoas? Você as salva de si mesmas, e quando elas podem andar sozinhas, por assim dizer, você começa a abandona-las."
"Não me julgue."
"Por que você dá tanta esperança, palavras de conforto, alegrias pequenas e essenciais...? Olhe para você. Você tentou se matar."
"Se você soubesse..." – Ele faz uma negativa leve, está triste, seus olhos estão sem brilho algum, é aquele anjo cheio de força que é capaz de consolar a qualquer um... Menos a si mesmo.
"Eu dei o passo para dentro do círculo. Eu quero fazer parte disso. Da sua vida. Da sua maldição."
"A minha maldição é ter você grudado em mim." – Sua resposta é a mais seca possível, a mais direta e aborrecida, mas não me encara.
E adivinhe o que ele faz agora? Nada disso. Ele cruza os braços sobre o peito, as mãos sumidas nas barras da camisa e pergunta se eu quero café...
Ele não pode ser humano...!
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Ele telefona, desta vez para a casa de Tomoyo. Antes de discar manda que eu fique ao seu lado, na sala. Assim escuto tudo. Tudo mesmo. Ela pede que assim que ele se sinta melhor, vá visitá-la, e manda o recado de que sua mãe quer falar comigo. Temos a notícia que Li sempre está com ela, e que ele está cuidando para que o resto de suas coisas venha de Hong Kong para cá. Definitivamente. Mas resumindo tudo, ela poderia apenas agradecer Saiyame por não tê-la deixado morrer de tristeza, mas não precisa mais dele porque descobriu que tem um homem pelo qual foi durante anos apaixonada ao seu lado, mas não assumia este sentimento por medo de ferir a lembrança da amiga morta, e, no entanto, apesar de tudo o que Saiyame fez de bom, não quer vê-lo tão cedo, afinal... Está amando e é amada, e quer ficar com Li. Cruel, mas verdadeiro. Claro que não usa estas palavras, mas dá a entender de que já está caminhando sozinha. Ou pelo menos ela e Li caminham um ao lado do outro.
Quanto tempo Saiyame esteve cuidando dela, afinal?
Ele coloca o fone no gancho, com o olhar baixo e um misto de alegria e tristeza em seu rosto que não entendo e me perturba.
"Eu a visitei pela primeira vez dois meses antes daquela tarde..."
"Quando eu o conheci?"
"Você pergunta demais..." – Ele se encolhe no sofá, parecendo tão velho quanto estava casa, talvez mais, mesmo com roupas tão contemporâneas quanto as minhas. Apesar de estar tentando fazer aquilo, conter uma avalanche que corre dentro dele, por detrás desses olhos claros e doces, ele deixa transparecer uma angústia profunda e permanente.
"Você cuidou dela, de Tomoyo, todo este tempo? Por que?"
"Por Sakura. Por... não importa."
"Foi por isso que também fez amizade com o pai dela?" – Estou ficando incomodado de estar de pé, no meio dessa sala, fazendo perguntas que meses atrás eu não faria, não por achar absurdas, mas por não terem o mínimo de lógica. – "Ela pediu isso a você? Mas... Se você a conheceu, quando estava viva... Isso foi há uns dez anos, quase onze, acho... Você era uma criança."
"Ela não pediu, mas acho que gostaria que eu fizesse... Isso nos faz a todos mais leves. Eu tento fazer a minha parte. Talvez eu tenha conseguido. Eles estão felizes, parecem estar..." – Ele esfrega os olhos, como se estivesse com sono, ou tentasse secar as lágrimas antes de caírem por seu rosto. – "Talvez eu tenha conseguido, mas posso ter errado de novo... Eu tenho medo, Hisashi!..." – E olha para mim. Apenas para mim. Está implorando por uma ajuda que não sei se posso dar, ele quer pelo menos que alguém o escute, mas eu nunca escutei ninguém. – "O tempo está acabando..."
"Se você queria conforta-los, conseguiu. Não há..."
"O tempo..." – Ele, num instante está de pé. Impressão minha ou em vez de se levantar, saltou do sofá, como um grande gato? Está na minha frente, como se o que fez fosse muito normal, a mesma simplicidade de quando o vi arrebentar o chão desta casa com as mãos limpas. – "... está acabando... Li já conquistou sete cartas. Na Inglaterra, Toya deve estar conquistando outras sete. Em algum outro lugar do mundo, Eriol Hiragizawa está fazendo o mesmo."
"..."
"As vinte e uma cartas devem pertencer a um só mestre, e elas deverão ser seladas juntas em um livro cujas folhas sejam cobertas de conjurações de isolamento... Este livro será fechado, e junto com o que há dentro dele, em um dos três selos de sua capa, haverá um guardião."
Engulo em seco. Então, há mais gente metida nisso do que apenas um universitário mau-humorado e um garoto viciado em doces? Toya, o irmão de Sakura está nisso também?
"Ela foi a mestra das cartas antes que elas fossem destruídas... Ela tinha o poder da Estrela."
"Assim como Clow tinha o poder das Trevas, como você disse no sótão? Você me disse que também era esse o seu nome."
"Toya tem a Estrela Invertida. Eriol é aquele que reza para não ter de encontrar comigo novamente... E Siaoran Li é um mago puro, está no sangue dele, ele tem o sangue de Lead."
"Você não me respondeu."
"Eu não tenho um nome. Eu não tenho um lar. Eu não tenho um passado. Eu não tenho nem paz com você me enchendo de perguntas..."
"..."
"Esse nome não me pertence. Pertenceu àquele que me criou."
"Seu pai?"
"..." – Ele parece confuso por um momento e diz que de certa forma aquele homem foi seu pai, sim. Por breves momentos, mas o foi.
Saiyame, depois de semear uma tonelada de sementes de dúvida encima de mim, vai varrer as folhas de seu próprio quintal, e aparar a grama queimada pelo frio e pelo vento do outono. Faz seu trabalho de maneira concentrada, vê-lo daqui da janela é uma cena estranha. Faz isso com uma foice, com raiva. A última vez que vi alguém comentar de ter visto a grama ser aparada assim foi meu avô, falando dos tempos do Imperador, em épocas bem antes da dele. Parece a morte em pessoa com esse casaco preto e essa foice na mão...
Se Lead criou as cartas, e é dele a história que Saiyame me conta, então por que fala dele como se fosse uma pessoa não tão distante? E afinal, quem é Clow? Ele é o mesmo Lead? Parece que sim, então por que Saiyame usa o nome dele e diz que é o nome de quem o criou, e pelo tempo jamais poderia tê-lo conhecido? Olho para a foice cortando o capim seco com precisão, bem na metade, espalhando as pontas pelo gramado ao redor da casa, e penso no Leão dos Olhos Dourados que Li disse que devorou o coração dos inimigos de Clow. Esse cabelo, esses olhos... Poderia ser inglês, nem de longe é mestiço... Não tem nenhum parentesco com Li, então como conhece a história daquele mago e usa seu nome? Diabos, eu dei um passo para dentro do círculo, mas parece que do lado de dentro tudo fica mais confuso...
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À noite é sempre pior. Não toco mais no assunto e nem tento mais nada com ele. Saiyame agora dorme ao meu lado, na cama, encima das cobertas, e dorme leve, escuto sua respiração se agitar, o sinto se sentar na cama e ir para o chão de novo, dormir no pé da porta. Não quer ser tocado, e menos ainda com a minha intenção. Olhar também não é muito útil. Não há um único espelho nessa casa, ele quebrou todos no dia em que me distraí, ou eu deixaria um para olhar seu reflexo e me deliciar com o que não posso ver de perto. Nem no banheiro há um espelho... Creio que deve estar se sentindo só, seus... Amigos... Não precisam mais dele, está visivelmente aliviado, mas ao mesmo tempo cada vez mais tenso.
Tanto faz. Acha que ninguém vai escuta-lo, e tem razão, estou muito cheio das minhas neuroses para prestar atenção nas dele. Já bastam as que consegui nestes meses convivendo com essa gente... Durmo sem nenhum pesar, e ele se debate em seus pesadelos. Tenho pesadelos demais sozinho, e você, Saiyame, é o mais assustador e sensual de todos eles. Sensual sem nunca expor um centímetro de carne, ou um milésimo de sentimento. Em cada sonho você está lá, mesmo que seja me chutando, arranhando o meu pescoço até quase me degolar, me exorcizando feito o anjo que eu vi exorcizando uma serpente negra... Estou ficando maluco como eles... Estou até ouvindo coisas... Se for uma assombração, dane-se, estou com sono, quero dormir. Deve ser o vento, penso sem abrir os olhos. O vento nas folhas do salgueiro faz os galhos baterem na parede de fora da casa. O vento faz alguma janela aberta bater, talvez a do sótão.
É o vento que está falando? Abro os olhos na mesma hora. Nem tenho coragem de me mexer, estou muito confortável, estava dormindo tão bem... É a voz de Saiyame (como eu gostaria de escuta-lo gemer algum dia, com essa voz rouca...), falando alguma coisa, muito baixo. Estico um braço para o lado e não está na cama. Resolvo me sentar para olhar. Nada no chão. Está escuro... As cortinas do outro lado do quarto, da varanda, estão sacudindo. Por isso está frio: as portas estão abertas, e uma das bandas bate contra a parede, com o vento que entra. No escuro, vejo Saiyame na cadeira, de frente para a varanda aberta. É esse o barulho que escuto todas as noites? O luar azul é tudo o que o ilumina, ele está abraçado aos próprios joelhos, encolhendo-se na cadeira. É uma visão incrível, seu cabelo se mexendo no vento, ele está quase de costas para mim, com se estivesse empoleirado. Continua falando, ainda não consigo entender... De vez em quando gesticula, fica em silêncio e parece esfregar os olhos.
Está chorando? Está falando sozinho? Fala novamente, é como se estivesse falando com alguém, fazendo cruas e íntimas confissões à lua. Ele está falando com ela? Todas as noites? Como alguém pode viver assim?...
Hisashi vai escutar de novo. Saiyame continua a contar sua história. Sua. Somente sua. Conta para o nada, para a lua lá fora, como quem conta a um querido e ressentido irmão. Hisashi não faz idéia da dor que o acompanha, mas escuta assim mesmo. Saiyame nunca teve quem o escutasse, por mais alto que gritasse...
O Mestre nunca soube que eles haviam fugido aquela noite. Ou nunca demonstrou saber, pois ambos estavam lá no dia seguinte, Yue subindo encima da cadeira, ignorando Cerberus manda-lo se comportar, para receber o beijo do Mestre em sua testa, sobre a franja, e ele mesmo, Cerberus, esfregava o chão. O Mestre olhou suas crianças, e disse que estava sendo o melhor mestre que elas jamais poderiam ter, e disse que qualquer outro seria igual a ele, se não fosse pior. Yue não entendeu, mas Cerberus compreendeu perfeitamente aquelas palavras, a mão atrevida de Lead passando do lado de seu corpo adolescente acentuava o significado.
O Mestre, tempos depois, mandou que os empregados arrumassem seu salão de festas. Ele queria dar um pequeno baile, uma ceia a seus amigos. As empregadas mais antigas sabiam o que ele queria dizer com aquilo. Alguns criados temporários foram chamados, e o alfaiate também. Fez para Lead uma casaca na melhor moda que se usava na Europa, e totalmente azul e escura, profunda como a cor do mar. Terminou de se vestir, na noite da ceia, alguns amigos – era assim que ele se referia até aos desafetos, e aos amantes – já o esperando no salão (Ele havia dito aos criados que mantivessem as taças sempre cheias...), ele adentrou a biblioteca, onde seus servos ficavam à noite, estudando, esperando a hora de ir para a cama. Ele perguntou como estava. Não era preciso, era um homem muito bonito, quando se vestia como um inglês, em modas da Europa, com as meias brancas, os sapatos de fivela e culotes, se tornava um ocidental perfeito e elegante. Chamou pelos dois, e disse muito seriamente que não deveriam sair daquela sala enquanto a festa não terminasse, e se saíssem, que não o fizessem sem uma das criadas por perto. Yue pediu para ver a festa, dizendo que nunca havia visto mais ninguém de fora. Ele recebeu um olhar indulgente e um suave não, e Lead ainda alertou que nenhum deles se aproximasse do salão, nem dos corredores que davam para aquela direção.
Ele foi para o salão e ninguém voltou a vê-lo aquela noite. Entre as criadas mais jovens, os servos escutaram breves comentários de que Lead estava cortejando a amante favorita de um rico comerciante da cidade, uma mulher conhecida por ser chamada de bruxa, seu primeiro marido havia morrido de uma maneira misteriosa (amanhecera certo dia morto, sua boca cheia de vermes fétidos), e o Mestre sempre gostara de conquistas perigosas. O nome dela era Chen Li. Li era o nome de seu primeiro marido. Seu amante atual a cobria de jóias, mas Lead, escutaram, queria cobri-la de feitiços de amor.
Mas eles eram crianças, Yue então... Ele brincava de desenhar cavalos e pássaros como os dos quadros da biblioteca, e Cerberus estudava novamente sua lição, não por dedicação, mas por não ter mais o que fazer. Dalí, a única coisa que dizia que havia uma festa eram as músicas chinesas, cadenciadas, e os risos... E também havia gritos, risadas altas, e depois os sons, distantes, eram os sons de uma orgia, gemidos, urros, sussurros. Cerberus dissimulava sua preocupação e seu medo para não assustar Yue, mas era como se estivesse vendo a qualquer momento um dos convidados bêbados invadir a biblioteca, que não ficava distante do salão, para fazer mal às criadas...Estavam sobre o grosso tapete escuro, e ficaram ali mesmo até Yue ter sono.
"Quero dormir, Cerberus."
"A criada levará você. Veja, elas estão saindo para o corredor, podem levar você para o quarto."
"Você não vem?"
"Vou arrumar os livros, não vou demorar." – Seu coração inumano se agitou, temeroso agora por si mesmo. Se o Mestre voltasse? Não quis pensar nisso.
"Está bem." – E ele foi, sem dar uma palavra, segurar na mão de uma das criadas que estava indo, acompanhando a outra para fora. Cerberus já tinha autorização de se dirigir a elas para dar ordens, aos treze anos, mas nenhuma delas tinha permissão para falar com ele. A mesma lei de silêncio que era imposta a ele quando criança valia para Yue agora. Ele ordenou a empregada que ela voltasse depois de deixar Yue no quarto.
Tenso, arrumou os livros no lugar e recolheu os desenhos de Yue do chão, colocando os lápis e as penas no jarro de cerâmica que deveria ficar ao lado dos outros, no console ao lado da porta. Quando colocou o jarro ali, não sentiu seu braço esbarrar no que estava ao lado, e assim, os pincéis de caligrafia rolaram pelo chão e o pote tombou sobre o tapete. Começou a juntar tudo. Já não era tempo da criada retornar? Quando estava com todos os pincéis em ordem de novo no pote, escutou a porta abrindo, e não olhou, porque achou que era ela. Mas a presença era diferente, estranha. Cerberus não era humano, por isso sentia. Na biblioteca estavam os livros de magia que Lead escrevia de seu punho, estavam seus grimórios, autênticos tesouros, e muitos de seus convidados eram iniciados em diferentes artes de magia, se um intruso fosse roubar os segredos do Mestre... Ele era um servo, faria sua parte.
Enquanto se levantava, voltou-se para olhar quem era. Antes de dar um passo para dentro da biblioteca, Cerberus já sabia que não era o Mestre, e ninguém que costumasse visitar a casa (embora ele nunca aparecesse na frente das visitas, afinal, ele era uma aberração...). O homem (nunca soube seu nome, e isso nunca fez diferença alguma) olhou para Cerberus com alguma surpresa, encarando-o de frente, como se não estivesse vendo a aberração descrita por Lead. Então, ele sorriu, brevemente, e disse que havia se perdido, que não tinha certeza de onde estava, qual corredor daria para o salão. Logo depois disse que a festa o estava aborrecendo, e que a verdade era essa. Perguntou a Cerberus quem ele era.
"Sou servo de Mestre Lead."
Os olhos estreitos e negros do homem se iluminaram. Ele vestia um sarongue muito rico, de seda negra, que quase esbarrava no chão, por cima de suas calças do mesmo tecido. Cerberus olhou atentamente para ele, sem tanta reserva quanto a princípio. Era bem mais jovem que Lead, seus cabelos inteiramente pretos, presos na grossa trança que caía sobre seu ombro, não tinham um único fio branco, e ele não devia ser mais velho que algumas das criadas mais jovens. Ele era alto, quase quanto Lead, e Cerberus ergueu seu rosto para olha-lo nos olhos.
"Como Lead é um homem egoísta..." – Disse, em tom de lamento.
"Como?"
"É uma grande maldade deixa-lo assim, trancado nesse lugar escuro. Ele deveria apresentá-lo a seus amigos..." – O homem estendeu um braço na sua direção, e pegou o pote de suas mãos, deixando-o sobre uma outra mesa, destinada a leitura de livros maiores, mais pesado, e que agora estava com alguns deles abertos sobre ela, um pouco mais atrás de Cerberus, estava entre o homem e esta mesa. – "... Você é um menino muito bonito para estar trancado nesse palacete poeirento..."
Essas palavras o fizeram corar. Ninguém nunca lhe havia dirigido um único elogio em toda sua vida. Por um momento achou que ser chamado de aberração era uma mentira, e a verdade era o que o estranho dizia. A mão do homem retornou por seu lado, viu que sobre ela havia o desenho de uma estrela de cinco pontas tatuada em negro, como as dos pentagramas, mas fora do círculo. Olhou para a outra mão dele e viu que a outra, em relação a esta, estava de cabeça para baixo. O homem tinha marcas de um praticante de magia. Ele sorriu quando Cerberus a apontou, curioso, e estendeu suas mãos para que ele as olhasse de perto.
Eram mãos brancas e macias, que podiam se misturar as suas próprias, se Cerberus não as tivesse com palmas ásperas pelo trabalho da casa... Aquelas mãos, poder toca-las, ainda com a sensação quase inebriante de ter ouvido que era um menino bonito... Ele tocou a fina tatuagem sobre o dorso da mão que agora se apertava delicadamente na sua... O homem emanava poder. E esse poder se estendia sobre seus sentidos. Aquele olhar, aquela tranqüilidade.
"Eu não posso sair." – Tentou sorrir para tentar ser gentil, mas não estava habituado à estranhos e não percebeu que sua mão acabou entre as dele, que a afagou de leve. – "Ele não permitiria."
"É realmente um servo. Em todos os sentidos. Até nos mais pessoais de Clow?"
"Não. Jamais." – Ele soltou sua mão e o estranho se aproximou mais. Estendeu a mão novamente, mas desta vez desfez o laço de fita que a criada havia posto em seu cabelo para prende-lo. O cabelo de Cerberus se espalhou nos ombros e o homem sorriu mais uma vez, mas seu sorriso não tinha aquele cinismo do sorriso de Lead, seus dentes eram graúdos e brancos, e seu hálito recendia a hortelã quando disse perto do rosto de Cerberus:
"Você tem os olhos de uma fera."
"Eu..."
"Você tem muito fogo..." – Ele mordeu o lábio, antes de continuar, mas silenciou, olhando-o desafiadoramente nos olhos, como nem as criadas se atreviam a faze-lo, sabendo que o servo não era humano além da aparência. – "Eu posso ver aqui..." – E tocou seu rosto e a ponta de seus dedos longos passou esbarrando os cílios longos e escuros de Cerberus, que sorriu e se encolheu naquele toque, sem perceber que o estranho o trazia mais para perto de si, pela mão.
Ele continuou, fazendo Cerberus fechar os olhos enquanto acariciava seus cílios. Disso que ele tinha lindos olhos de fera, e que nunca havia estado tão perto de uma. Ele se deliciou com cada palavra, e acreditou nelas. Sabia o que aquele homem queria, mas não pensou seriamente em resistir. Aquelas palavras o faziam alheio ao resto. Tentou resistir, mas recuar não adiantou muito, amassou a cintura à beirada da mesa alta e só conseguiu pensar no que aconteceria se Lead descobrisse que estava falando com um estranho. Quanto mais o que se estava permitindo a um estranho...
Ele desmanchou seu cabelo, com um toque leve e insistente, soltou o primeiro botão de seu sarongue e colou um beijo que não era quase nada sobre a curva do queixo de Cerberus, perto de sua orelha. Ele se permitiu isso, pois aquele homem não era Lead, sua voz era diferente, seu cheiro, seu cabelo na trança, na sua mão, se soltando, era diferente. Ofegou e se entreteve daquela sensação nova, tocando aquele cabelo preto que se desfazia da trança. Sentia seu corpo inteiro responder ao apelo do outro, tão perto, tão quente... Ardente.
Lead enlouqueceria, o mataria, mataria a ambos se soubesse...
"Você parece uma fera... completamente faminta. É um menino muito bonito, mas é uma fera, detrás desses olhos... Tenho medo que me devore." – Ele gracejou, passando a ponta de um polegar sobre o lábio de Cerberus, que o mordeu, não para machucar, mas para prender, e sorriu também, aceitando que outro botão de sua túnica fosse solto. E mais outro. A mão aparou todo um lado de seu rosto, e a sua foi fazer o mesmo naquele rosto estranho e encantador. As palavras, tão quentes, cada vez mais baixas, mais provocantes e inocentes ao mesmo tempo:
"Quero despertá-lo para mim... Nunca vi nada tão bonito quanto seu rosto quando beijo a sua pele." – E virou o rosto, o suficiente para que seus lábios fossem na palma da mão de Cerberus. E a beijou, deliciado, com se beijasse a coisa mais linda e sagrada de sua vida. Ele cerrava os olhos de uma maneira que dizia tudo, o que era, o que sentia e o que desejava. – "Desperte. Queime. Eu quero ver o seu fogo, minha linda criança..."
Cerberus sentiu ao mesmo tempo um prazer inacreditável por todo seu corpo. Aquele mero toque acendia em seu corpo uma brasa mais ardente do que nenhuma das carícias lascivas de Lead. O homem era um amante experiente, não foi indiferente aos olhos que se cerraram, o estremecimento que seu abraço ansioso e quente teve de amparar, e seu olhar úmido e em negro disse tudo aos olhos do servo, que assentiu, quando gemeu entrecortadamente em que os lábios do outro adentraram pela curva de seu pescoço, de uma maneira quente e muito sensual, intensa e impetuosa, como nem de longe poderia imaginar que aquele estranho tranqüilo poderia ser, e ele se descobria também ardente e cheio de avidez pelo sexo. Não sabia até onde aquelas delícias estranhas e maravilhosas o levariam, mas estava disposto a descobrir. Seu corpo todo respondia, ondulando, tremendo, sua garganta estava seca e a respiração, um chiado, e quase um grito quando o homem o ergueu pela cintura e, varrendo o que estava sobre a mesa com um dos braços, o deitou sobre a madeira negra, e acariciou o corpo todo de Cerberus com o seu, cujo calor atravessava a seda.
"Não há nada mais lindo que o seu prazer... que o seu corpo. Não tenha pudor de me mostrar a sua beleza... Se alguém lhe disse o contrário é louco. Cego." – Cada palavra era entremeada de um úmido e suave beijo que ele depositava na sua pele que se descobria do sarongue aberto de Cerberus. Ele dizia com voz baixa e quente que seu corpo era lindo, o corpo de um menino, mas essa beleza acendia o seu desejo, e ele queria acender esse fogo de paixão em seu corpo também, queria penetrá-lo, faze-lo suspirar mais profundamente, gemer, gritar, gozar... Enlouquecer de desejo e prazer ao seu lado... Queria ver toda a beleza de seu gozo. Cada palavra era quase mais poderosa que as carícias, as mãos soltaram os botões que restaram, e sem muita delicadeza, agarraram os lados de suas calças e num tirão, o livrou delas, e assim, aceitando todas as conseqüências do que estava fazendo, Cerberus sentiu e permitiu que o homem (seu rosto transtornado de desejo, seu corpo quente e o seu suor de água de colônia, ofegante, os olhos negros cerrados e inquietos, os lábios entreabertos, Cerberus também jamais vira algo tão bonito quanto o prazer daquele homem, seu desejo, desejo por ele e apenas por ele, naquele momento crucial...) estivesse entre suas pernas, ele soltando os botões de sua própria túnica, mostrando-se inteiramente, e Cerberus admirou sua força, sua beleza, seu desejo. Desejo por ele. Aquele desejo era mais forte que tudo, o envaidecia, o tornava pelo menos ali, somente carne, e apenas isso. Nem escravo e nem mestre. Apenas desejo.
O peito nu do homem colou-se sobre o dele, ele estremecia ao receber cada leve arranhão de Cerberus em sua pele branca, e devolvia essa carícia com beijos cada vez mais intensos sobre aquela pele virgem, beijava seu pescoço com gana, afastava mais o tecido de suas roupas abertas, e colocou-se pronto a penetra-lo, e sua voz não cessava, sedutora, quente, rouca:
"... Tão lindo... Tão quente... Como é doce... Vingar Lead com tanto prazer..."
Com estas palavras o encanto acabou-se. Desfez-se. O que era encanto e prazer tornou-se uma frieza tão grande que esfriou até sua pele, antes que ele terminasse de apreender o significado do que aquele homem disse.
Ele dissera o nome de Lead, estava se vingando do Mestre fazendo aquilo? Foi tão brusca a frieza que tomou conta de seu corpo que o homem recuou, perplexo. Tudo o que encontrou foi um olhar cheio de raiva e ressentimento. Cheio de lágrimas. Cerberus não sabia chorar, mas se sentir de tal forma enganado, traído... Ele soltou, naquele primeiro par de lágrimas de sua vida toda a ira de se ver uma aberração. Tudo o que escutara era mentira, o homem não o desejou, nem por um instante ele quis seu corpo, e tudo o que dissera era mentira. Mentira. Ele desejava atingir o Mestre. Cerberus então o matou. Mentira. Os gritos do homem quando Cerberus – O Leão – saltou sobre ele encheram aquela biblioteca como os gemidos de antes haviam feito um instante atrás. Mentira, a palavra ecoava na mente de Cerberus. Ele não matou aquele jovem bruxo por lealdade a Lead, mas por dever aquilo à sua dignidade. Ele acreditara e se via traído. Mentira, a palavra gritava na sua cabeça mais alto que os gritos do homem quando o Leão devorou seu coração.
Depois, tudo foi calmaria.
Ele se ajoelhou ao lado do cadáver, o sangue em suas mãos e em sua boca não aliviava sua dor. Ele então começou a chorar. Chorou talvez por horas, nunca soube. Chorou como sempre quisera chorar, de medo, de raiva, de culpa, chorou porque quase se entregara a quem o traía. Que o Mestre fosse para o inferno, tudo o que ele quisera era se sentir desejado, belo, ao dar e receber prazer de outro corpo, era maior que ele, estava na sua carne.
Nenhuma criada voltara. A madrugada se passou, a festa continuou, e quando o dia já amanhecia, os convidados se despediram, e ninguém deu por falta do estranho que estava morto, despedaçado, ao lado do servo ajoelhado. O sol entrava pela janela da biblioteca, ele olhou indiferentemente para o cadáver e sentiu mais nojo de si mesmo do que daquele homem. Lead então entrou na biblioteca. Pareceu um tanto chocado ao ver Cerberus sujo de sangue e muito pálido, e olhou para os livros espalhados no chão. Ele se aproximou e virou uma das mãos dele com a ponta de seus escarpins franceses. Então o Mestre disse unicamente:
"Ele era meu inimigo... A sua lealdade me serve de muito. Ele poderia ter roubado os livros se você não estivesse aqui." – Mas não agradeceu, disse uma palavras gentil, ou soube que na verdade Cerberus quase cedeu a outro o que Lead daria sua alma para ter conseguido. – "Fiz bem de mandar as criadas deixarem-no aqui."
O Mestre deu meia volta e foi para seu quarto.
Não soube o que houve com o cadáver depois disso. Ele se levantou e vagou pela casa vazia por muito tempo, olhando pelas vidraças, sem conseguir ver seu reflexo. Viu-se no vidro de uma cristaleira e viu uma aberração com rosto sujo, cabelos soltos, pescoço marcado dos beijos do homem que o enganara. Ele se lavou depois disso, muitas vezes, desesperadamente, tentando esquecer a delícia daquele toque, arrependendo-se de não haver entregado-se antes de saber a verdade, ou de não tê-lo matado logo que entrou na biblioteca. Ele não queria livros, ele queria atingir Lead, irá-lo. Apenas isso.
A noite, também se desesperava secretamente. Não era fácil mostrar a frieza de sempre para os outros. Mas à noite, no canto mais escuro do quarto, ele sabia chorar calado até dormir. Isso se repetia todas as noites, por muitas noites seguidas. Pensava no toque daquele homem e pensava no toque de Lead tentando violenta-lo. Diferentes, mas a lascívia de ambos era igual, se não fosse pior. Mas não pensava apenas em si. Pensava em Yue, que estava crescendo, estava com os onze anos de uma criança humana, e continuava atravessando-se no colo de Lead quando este o chamava. Pensava nas mãos de Lead tentando toca-lo quando ele tinha essa idade, seu ódio. Mas Yue amava o Mestre. Verdadeiramente. Não apenas lealdade, mas amor. E tudo o que Cerberus tinha pelo Mestre era nojo e ressentimento, que traduziam-se em ódio. Verdadeiramente.
Ele se lembrava de que jamais poderia atravessar a soleira, e conformava-se então, chorando sem Yue ver, sentir, na cama ao lado. Era assim que Cerberus dormia agora, aos quinze anos. Ele dormia sempre muito leve. Quando dormia sozinho no quarto, temia que o Mestre viesse encontra-lo, mas isso nunca aconteceu. Acontecia agora. Dormia cansado de chorar, e por isso mais pesado, demorou a escutar Yue o chamando. Ele abriu os olhos imediatamente, e ia olhar para a outra cama, mas antes de fazer qualquer coisa, seus olhos encontraram os de Lead. Ele estava de pé ao lado de sua cama, e na outra, e as costas espremidas na parede, Yue tremia, pela primeira vez com medo dele. Aquele sorriso poderia ter sido igual a tantos outros, se não houvesse algo de especialmente lascivo nele, zombeteiro. A mente de Cerberus era fechada para seu Mestre, por isso imaginava-se morto se algum dia ele soubesse a verdade sobre a biblioteca. Lead colocou um joelho encima da beirada do colchão, e o estrado cedeu com um pequeno estalo. Cerberus estremeceu, mas não desviou os olhos dos dele. Teria coragem de tentar de novo, na frente de Yue? Ele chegaria a tanto? Estava com medo. Iria matá-lo se ele encostasse um dedo apenas sobre o pequeno Yue para as suas perversões.
A mão do Mestre veio sobre seu peito e agarrou a beirada da coberta e a jogou no chão. Ele passou demoradamente os olhos sobre Cerberus, seu corpo escondido no camisolão de dormir, que era de algodão grosso e branco. Sussurrou que ele era uma aberração, mas seu sorriso se abriu mais.
As janelas daquele quarto tinham grades grossas, forjadas de ferro em frio, não poderia tentar fugir daquela prisão por ali, e descobriu do pior jeito, que nos últimos meses, Lead havia mandado selar com grades assim as saídas que davam para as varandas de cima e o terraço, e de quebra, a saída pelo telhado também estava selada. Parecia que o cerco de Lead sobre seus servos se fechava mais e mais. Agora ele também desejava Yue, com a mesma fome e raiva que desejou Cerberus sua vida toda. Mas aquele desejo se resumia a ódio igualmente.
Lead chegou-se mais, colocou o outro joelho sobre a cama e montou nos quadris de Cerberus, que não se moveu, não reagiu, e conteve a respiração, porque o perfume de Lead lhe trazia recordações tão más e vivas que o nauseavam. Agarrou com força as beiradas do camisolão que o vestia e rasgou, de alto a baixo, expondo seu corpo, o tecido se partindo causou um som que parecia um grito, e fez Cerberus ficar mais imóvel ainda. Yue o chamou, estava chorando. Ele amaldiçoou mil vezes seu Mestre por fazer Yue chorar. Sua vingança era não dar a Lead o gosto de ver em seu rosto nem uma única lágrima de raiva ou tristeza, ainda que ele o violentasse. Nem de dor e nem de medo. Lead não teria nada dele. Teria seu corpo, se quisesse, mas era apenas isso, porque aquelas alturas, para Cerberus isso também não tinha valor algum.
"Você vai ver agora quem manda aqui... Vou mostrar a você que sou seu dono... Seu mestre."
Lead se deitou sobre ele, afastando seus joelhos para estar entre eles, esfregando seu corpo todo sobre o de Cerberus, sua língua quente fazendo carícias por seu pescoço. Ah, se ele soubesse que outro por muito menos quase conseguira o que ele sempre desejou... Se ele soubesse que outro com carícias tão menos intensas despertou um fogo quase incontrolável em seu interior... Ele chegou a soltar o cinto, mas quando ergueu o rosto para olhar o de Cerberus, ele viu seus olhos fixos no teto, sem reação alguma. Aquilo feriu seu orgulho, e o encheu de repugnância. Seu sorriso desapareceu, seu rosto se torceu, irado:
"Frio...?"
Ergueu-se nas palmas, as mãos cedendo no colchão, quando ele se levantava, muito devagar, estarrecido com aquela indiferença tão devastadora, tão completa.
"Frio... Como um bloco de mármore. Tenho mais prazer se violar cadáveres do que me deitando com você."
Ele olhou por um longo tempo para o corpo nu embaixo do seu, o tecido de sua túnica se espalhava sobre aquela pele quase gelada de tão fria. Se não visse atentamente que ele respirava, poderia dizer que estava morto. E tudo o mais que reagia ali aquele quarto, era Yue, soluçando, apavorado, do outro lado do quarto. Não conseguia parar de se horrorizar com Cerberus...
"Aberração... Monstro... Frio como um bloco de mármore." – Ele cuspia as palavras como cuspisse uma maldição sobre seu servo. – "O seu corpo me causa nojo... Tenha vergonha da sua frieza. Tenha vergonha, sua aberração!" – Gritando isso ele se ergueu, fechando suas roupas, com o olhar de quem mataria Cerberus com mais prazer do que o deitaria em sua cama.
Ele se pôs de pé, e antes de chegar à porta, ainda sorriu, de uma maneira demoníaca para Yue, e disse alto, como a ambos escutassem e esperassem por este dia:
"Acostume-se com esta idéia, Yue. O seu dia está chegando."
E bateu a porta com um estrondo. Escutaram os servos os jarros do corredor se quebrando, as pragas que Lead gritava. Nunca haviam visto-o tão furioso... Foi apenas o tempo de ele sair do quarto que Cerberus ergueu-se, enojado, querendo ir lavar-se, mas sem querer deixar Yue sozinho. Ele estava chorando, e correu para abraça-lo quando pulou da cama. Cerberus se enrolou nas cobertas e foi se sentar aos pés da porta, tentando achar palavras para consolar Yue.
"Eu não quero, Cerberus! Eu não quero...!" – Ele chorava, desesperado, por um momento Cerberus pensou que ele não havia mudado muito da criança que lhe fora entregue para cuidar quando ele mesmo era uma criança e mal dava conta de si.
"Ele não vai voltar. Para saber se ele vai voltar, eu vou ficar aqui. Volte para a sua cama. Vou cuidar de você. Por favor, Yue, pare de chorar ou eu..."
... Vou chorar também, Cerberus pensou, mas não disse. Em vez de chorar, ele engoliu as lágrimas como sempre fizera na frente dos outros e não dormiu mais naquela noite, como não dormiu por muitas outras depois disso, sempre aos pés da porta, temendo que o Mestre retornasse.
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Quando ele silencia de vez, é porque está chorando muito para continuar, me dou conta de tudo o que tenho ouvido. Não importa se quem o criou foi o mesmo quem criou as cartas, ou se seu irmão se chamava mesmo Yue. Isso é apenas um detalhe. O mais chocante de tudo o que ele conta para o nada, falando sozinho nessa cadeira, é que... É tudo verdade. Ele engasgou várias vezes enquanto contava, e sempre deixava escapar um "eu", para dizer o que havia acontecido. Estou assombrado com tudo o que escutei. A verdade, se há alguma, estava o tempo todo aqui, na minha frente. Esse homem que ele se refere como Mestre, ou como Lead... É como se eu mesmo estivesse vendo, nele, as coisas que fiz a Saiyame. E eu me vejo, aqui, sentado na cama, me sentindo um nada no sentido mais real da palavra e um perfeito monstro, também e mais ainda, naquele homem que ele disse que matou, que devorou o coração. Uma metáfora ou não, eu me sinto esse canalha. Eu me vejo nele, no:
"Eu me senti traído...! Eu me senti sujo...!" – Que ele diz de vez em quando, falando sozinho.
Era isso que eu queria fazer. Não estava fazendo isso ao menos por achar que ele tem beleza – E tem, Saiyame é diferente... – e sim por vingança, por achar que isso ia remendar meu ego ferido, o meu orgulho besta. Meu orgulho não vale nada. Era alguém como eu que o deixou desse jeito, beijou sua mão como eu beijei naquela noite, nessa coincidência amarga para nós dois, para lhe dizer o que eu queria dele afinal. Agora só quero que ele pare de chorar... Saiyame passa um braço sobre o rosto, soluçando. Todas as noites... Meu Deus, ele chora assim todas as noites? Bem perto de mim e eu não noto nada? Não consigo piscar, nem pestanejar e nem me mexer. Simplesmente é chocante ver alguém tão perto de mim sofrer desse jeito. Calado. Não sente dor nem frio, não sente nada, porque não sobrou nada. E eu ainda querendo destruir o que resta? O pouco que resta?...
Eu poderia gritar, poderia pular daqui e abraça-lo do modo que certamente ninguém jamais o abraçou, poderia, sim... Mas não posso. Me sinto um monstro. Não há mais nada o que dizer. Tudo o que eu posso fazer agora é chorar, porque descubro que não presto.
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Se esta história na verdade é a sua, se o seu pai, ou seja lá quem foi aquele homem que o criou, então tudo é muito pior do que se você fosse louco. Antes fosse louco, mas você não delirou nada disso. Com olhos arregalados, eu choro, mas não por você, e nem por mim, mas pelo fato de que vi o horror que um ato egoísta como o meu, um desejo torto como o meu, pode causar. Eu o desejo pelos motivos errados, e não vi que o que tenho na minha frente é alguém como eu, que pode se machucar tanto quanto eu. Eu realmente queria muito pedir desculpas, Saiyame.
Sempre calado, sempre ferido, sem poder falar com ninguém e sem ninguém para ouvir... Isso é o inferno. Mas eu ainda o invejo, Saiyame. Seu pai, Mestre, Dono, tanto faz... Também devia ter muita inveja da sua integridade.
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O colchão estala quando faço menção de me levantar. Ele pára, fica imóvel, e se tivesse orelhas, elas se voltariam para escutar. Então, antes de voltar a me deitar, antes que ele perceba que não estava falando tão sozinho assim, ainda o vejo descer da cadeira. O mais impressionante, é que ele não desce, ele salta de cima dela. Como um grande gato vestido de branco. Não faz nem barulho quando fica em pé no chão, vindo na direção da cama. Nem chego a vê-lo fazer isso, sinto seu olhar, seus passos mudos no chão. Não quero que me veja assim. Ele se aproxima, mas não muito. Deve estar vendo se estou dormindo. Escuto seu respirar profundo e ruidoso, ele dar a volta na cama e seu peso fazer a cama ceder com um rangido baixo. É assim todas as noites? Ele não quer que ninguém veja isso?...
Quando já escuto sua respiração mais profunda e constante, percebo que ele dormiu. Dorme um sono pesado, e é quase certo que tenha pesadelos o tempo todo. Sinto pesar e alguma culpa por seus pesadelos. Queria poder abraça-lo agora... É bonito, mesmo no escuro, falando sinceramente. Sinceramente, eu não quero mais vê-lo sentir medo de nada, nem de uma porta. Tão íntegro... Tão puro... E é virgem!
Ah, raios, que hora para lembrar dessas coisas!...
CONTINUA
