Quando penso no que escutei, tenho vontade de me desmontar inteiro, e resistir não é fácil. Não consigo mais dormir, olhando seu ombro, que às vezes se sacode. Como eu pude ser indiferente a isso? Esteve sempre bem evidente, estou dividindo uma casa e um quarto com esse garoto, não é? Já amanheceu e ele continua dormindo. Chorou por metade da noite, não vou acordá-lo agora. Está dormindo pesado e a única coisa que fez nas últimas horas foi rolar de costas. Agora vejo seu perfil desenhado tendo de fundo uma parede amarelo-claro, iluminada do sol que entra pela janela de cortina afastada. O tempo que ele dorme é o tempo em que estou acordado. Não penso mais em mim, no meu desejo, estou pensando apenas nele, em como talvez aquela história esbarre em algum tipo de verdade. Como? Nunca olhei para ele com a atenção que deveria merecer, até mesmo para a intenção que eu tinha. Tinha. Ainda o desejo, mas sei que não vou conseguir mais do que me destruir e acabar com esse delicado equilíbrio de temperamento que Saiyame tem.
Mexeu-se de novo. Seu rosto rola para o meu lado. Olheiras profundas e lilases. Ele dorme bem pior do que eu, e isso se arrasta há muito tempo, olhando atentamente. Droga, por que faz isso se não me quer? Vou embora dessa casa hoje mesmo, só estou ainda aqui por... Não há um motivo, eu nunca devia ter chutado a sua porta naquela noite. Que cabelo... Solto parece mais longo, mais cheio, mais louro. Se eu esbarrar um pouco ele nem vai sentir. Minha mão se enche com o cabelo dele, frio e sedoso. Espero que lamente muito quando eu for embora, porque então espero que ele veja a coisa maravilhosa que deixou de ter na sua vida (e entre as suas pernas...). Olho bem no seu rosto. Não acorda por nada nesse mundo, nem pelo carro que buzina na rua lá longe, ou pelos poucos passarinhos que piam no salgueiro. Nada. Nem se mexe. Eu poderia fazer quase tudo o que quisesse, mas não quero mais nada. Na verdade, eu queria... Nunca vi nem um pedacinho dessa pele além dos limites das roupas. Os botões de sua camisa são uma perfeita tentação, mesmo depois de mais uma noite em claro, e sabendo que não é hora para esse tipo de pensamento sujo.
Viro e estico um braço para cima dele. Apenas um botão. Ele não faz nada. Quem sabe outro? Não sei, não sei... Eu não deveria, ele pode ser tão perigoso quanto pode ser interessante. Bom, se eu morrer por isso... Mais um botão. E outro. Oh, a que ponto cheguei! E pensar que lhe tive nojo um dia... Agora arrisco literalmente meu pescoço para ver mais um pouco. É quase irônico, fiquei chorando aqui, me sentindo o último dos mortais e logo em seguida, isto: sua camisa com todos os botões soltos e eu sem coragem de olhar o há dentro dessa roupa larga.
Quero chorar de novo, mesmo com tudo o que se passa na minha cabeça, mas de alegria, porque seguro a ponta do tecido e arrasto para a esquerda, vejo metade de seu peito. Eu poderia berrar de alegria, sem dúvida alguma. Ele nem respira mais fundo. Queria retribuir aquele arranhão agora, intensamente, deixar lanhos profundos e vermelhos nessa pele branca e lisa. E muito quente, ele exala um calor tão intenso que me atinge a mais de um palmo de distância, brevemente morno. Queria retribuir o toque da sua língua aquela noite, se ele soubesse as horas de terror que passei debaixo de um chuveiro gelado!...
Saiyame não tem a idade que aparenta. Tem menos. A sua ossatura não é a de um adulto. Talvez tenha dezesseis anos, apenas, no máximo dezessete. Nunca mais que isso. E... Que coisa... Linda. Ele é lindo e feroz até quando dorme. Puxo mais o tecido e eu vejo então... Então, diante dos meus olhos, seu mamilo de coral está aí, nesse peito estreito e branco. Vou gritar. Não, não posso. Antes de gritar ou de lembrar que estou brincando com a morte, minha mão treme quando começo a toca-lo. Não é nada. Somente esbarro a palma da mão sobre seu estômago. Sempre quis toca-lo, vê-lo... Está dormindo, por que não vou me dar a este pequeno luxo? Impossível que acorde, eu estudei anos para tocar nos outros sem que sentissem, naquele treinamento inútil e absurdo. Me apoio num cotovelo, olhando bem para seu rosto tranqüilo... Cedo a esta curiosidade mórbida e minha mão vai descobrir por meus olhos o que a outra banda da camisa esconde. Vai entre a pele e o tecido. Quente... Ele é inteiramente quente agora. Treme? Não... Talvez esteja suspirando, escutar isso é uma delícia... Mexe-se um pouco e eu paro. Sua cabeça se acomoda mais no travesseiro, o rosto meio coberto pelo cabelo. Oh, eu não deveria estar me aproveitando da situação, mas antes de lembrar de qualquer senso de decência – como se eu soubesse o que é isso, hahaha! – deixo a ponta dos meus dedos trêmulos passarem sobre seu mamilo escondido pela roupa.
Saiyame entreabre os lábios no sono, apenas isso e mais nada. Sonhei com isso por semanas!... Ooooh, não acredito! Arrepia debaixo da minha mão, seu corpo todo freme bem devagar, quase não percebo seu mamilo de coral, claro e pequeno, enrijecer bem devagar quando esbarro a ponta de um dedo por ele. E pensar que é virgem... Meu Deus, como pude achar que é frio e insensível? Olho para seu peito quase todo nu, sua barriga lisa, seu umbigo e... O cós do jeans que tem povoado cada mau pensamento que tive (E tenho! Como tenho!). Toco perto de seu pescoço branco. Como eu quis ver estes ombros, o relevo das costelas... É melhor do que qualquer coisa que eu tenha imaginado: seu corpo todo é somente, e tão apenas somente, levemente aveludado de dourado.
Não vai sentir se eu... Minha mão passa encima de seu peito e encontra o outro mamilo. Não quero nem ver... Está exigindo um beijo, um carinho, não posso negar, mas também não posso ceder: minha unha passa sobre ele, provocando, depois o resto do dedo e da palma suada inteira. Saiyame se mexe, suspirando, respirando mais fundo que antes, suas bochechas ficando róseas... Se ele der apenas um gemido vou ter de beija-lo ou vou morrer de tanta excitação. Não, não quero que ele chore por nada que eu faça, mas não posso resistir, já não me importo muito com o peso da minha mão no seu corpo, ela simplesmente vai, e vai... No rumo daquele cós. O botão, eu tenho de soltar o botão! Assim... O barulho parece um estrondo nesse silêncio todo. Silêncio. Estou imaginando coisas...
Vejo agora definitivamente um caminho de pelinhos lisos e transparentes que vai para baixo. Estou louco de fazer isso. Sua barriga treme quando a toco, ele todo treme, está a um passo de acordar, eu sei, mas minha mão parece que não sabe de mais nada. Enfio os dedos por debaixo do cós, afagando os pelinhos louros que ele esconde, como é quente... em busca de sua roupa de baixo e...
Não tem nada aqui!
Quase engasgo quando minha mão esbarra justamente o que eu não estava procurando.
É bom demais para ser verdade! Me assusto com minha própria ousadia e tiro a mão na hora, com cuidado para que não acorde. Estou tão perturbado que acho que vou precisar de gelo para tomar banho de novo! Olho em seu rosto, sua boca rosada, trêmula... Não posso nem sonhar em fazer isso agora. E é virgem! Saiyame é virgem e não usa nada por baixo da roupa! Estou louco!
Está tudo tão quieto, não consigo parar de olhar para seus cílios longos e escuros, que marcam espantosamente o contorno de seus olhos rasgados... Vejo, imóvel e tenso, com a sensação de que o mundo vai acabar, seus cílios tremerem de leve, úmidos. Não tenho coragem de respirar, e nem de tirar minha mão de cima de seu peito. É tão bonito... Ele acorda, lânguido, respira fundo, aperta um pouco os olhos, e seu corpo todo fica tenso e rígido como uma tábua quando descerra lentamente os olhos e me vê tão perto.
Por favor, fico pensando, desesperado, não chore... Não chore, não grite... Não me odeie... Me bata, me mate, mas não me odeie!...Por favor, não fique triste comigo, Saiyame...! Quem vai chorar sou eu, vou chorar feito o idiota que chorou a noite inteira, sofrendo por me ver como o filho da mãe que sempre fui. Traí sua confiança agora. Não fique me olhando assim, eu só queria toca-lo. Estou quase sobre ele. O que vou fazer? Não vou fazer nada. Não vou dizer nada, porque nada do que eu disser vai fazer com que se acalme. Ele estica a mão para perto de mim e mexe no meu cabelo, daquele seu jeito, com curiosidade, concentrado em olhar. Está solto, ele enche as mãos, algumas mechas estão caindo encima de seu rosto, por seu ombro que está mais perto de mim... Ele gosta do meu cabelo? Desvia a atenção e olha para mim. Verdadeiramente, e apenas para mim. Escuto o silêncio de novo, enorme, opressor. Saiyame me olha nos olhos, de um jeito que me faz tremer de pavor, será que alguém algum dia lhe disse que tem os olhos de uma fera? Sim, ele os tem, me fazem estremecer, e seus lábios não se fecharam, úmidos e pequenos... Levanta os braços muito devagar, meio desajeitado, trêmulo e tão ansioso quanto eu, sinto pelo seu olhar, sua respiração oscilante... Não penso em mais nada. Os braços de Saiyame passam por meu pescoço, sinto o peso deles, e através do tecido das mangas de sua camisa, seu calor, sua respiração tão perto do meu rosto, nossos hálitos se misturando, nossos olhos se misturando, e tudo ficando escuro quando meu próprio cabelo cobre meus olhos, quando nos beijamos.
Nos beijamos.
Meu Deus...
Dura tão pouco, somente beijo de leve sua boca. É o bastante para meu coração disparar e fico tão nervoso como se fosse o meu primeiro. Talvez este seja o seu primeiro, Saiyame, mas eu nunca vou perguntar. Meu rosto se afasta do dele, estamos vermelhos e um pouco menos tensos, mas acho que está tão ansioso quanto eu. Esse silêncio vem de dentro dele, e ele cede aos poucos, até que consigo segurar seu rosto entre as mãos, e assim... Ele deixa que eu o beije de novo, e aí sim, descubro todo o sabor desses lábios pequenos apertados nos meus, sua saliva, suas mãos no meu cabelo, nos meus ombros. É tudo tão lento. Tão quente. Tão bom... Me afasto de novo e vejo seus olhos fechados, beijo de leve seus olhos fechados, querendo que isso dure para sempre.
Os sons retornam, ao redor, no quarto, em mim. Na casa também. Alguém está batendo na porta há não sei quanto tempo e nem escutamos. Dane-se, penso, quando Saiyame me encara novamente, mas a voz de Li faz eco na escada, ele dizendo que vai entrar. Mas que hora para visitas!...
Saiyame levanta da cama mais rápido do que qualquer coisa, amarrotado e constrangido, não damos uma palavra sobre o que acabou de acontecer e nem é preciso. Sai para o corredor e vou logo atrás, sem me dar conta que estou apenas enrolado no lençol, como tem sido estes dias – Não me acostumo a dormir vestido... – e quando chegamos ao alto da escada, poderia ser a minha vez de querer morrer. E passo perto de morrer mesmo. De vergonha.
Um flash de máquina fotográfica nos ilumina. Antes de eu descobrir o que nos atingiu, o riso de Tomoyo diz tudo. Ela veio junto com Li e trouxe essa coisa. E como nada podia ficar pior, parece que está escrito na nossa cara que esta foi uma noite daquelas. Saiyame, com os botões da roupa soltos, eu, neste lençol, descabelado, e ambos com olheiras. Não adianta tentar explicar que não aconteceu nada, vou ficar calado.
"Vocês dormiram... bem?" – Li pergunta, me fuzilando com o olhar. O que esse quer? Ele não está com Tomoyo? Que idéia é essa de ter ciúmes de Saiyame? Não vejo seus olhos, estão escondidos pelo cabelo castanho que cai sobre eles, displicente.
"Não sabe como." – Respondo, voltando ao quarto para me vestir. Se ele quer pensar coisas, vai ter muito que pensar...
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Tomoyo estranhou que Saiyame não tenha ido visitá-la, mais de uma semana depois do ocorrido no sótão. Por isso está aqui. Para ser gentil, trouxe uma caixa de chocolates para ele. Se eu soubesse que ele iria abrir um sorriso desses, eu mesmo poderia ter lhe dado uma. Quem precisa de uma é Li, com seu azedume. Ele está me olhando de atravessado e fica dizendo que a mãe de Tomoyo quer muito falar comigo e que ela está em casa agora. Não vou sair daqui. Acabamos nós dois, um de cada lado da sala, nos encarando, e Tomoyo fala das coisas que têm acontecido, fingindo não notar o clima de guerra que há ao redor, e inclusive, muito interessada no que está havendo.
"... Tomoyo, por favor... destrua a fita. É melhor assim."
"Mas, Saiyame...! Li!" – Tomoyo se vira para ele, tocando seu braço. – "O que você acha? Ainda não tínhamos pensado nisso! Com quem a fita vai ficar?"
"Com Hisashi." – Ele responde, seco como uma árvore desfolhada. – "Assim vai poder relembrar o instante inesquecível em que deu um passo para dentro do círculo. Passagem de ida sem volta para o inferno, meu caro..."
Ele tinha de tocar nesse assunto? Saiyame fica tão calado quanto a samambaia do canto e deixa a caixa de doces ainda fechada sobre a mesa do centro.
"Afinal, Li, o que quer dizer o fato de eu ter dado aquele passo para dentro quando as brasas ainda estavam acesas? Elas se apagaram quando eu entrei..."
"Eu quero dizer que para alguém que não acredita em certas coisas, que incluem um copo andando sozinho..." – Ele dá uma risada soturna, segurando a mão de Tomoyo em seu colo. – "... Você está digamos... Apto a estar metido na mesma loucura que nós, e talvez ter os mesmo pesadelos, que começaram até antes de Yukito ser assassinado."
"Li..."
"Me desculpe, Tomoyo. Ele tem de saber. Está nisso tanto quanto nós, agora. Ele não foi envolvido. Ele quer se envolver."
"Não conte sobre Sakura, seja o que tenha acontecido. Não me olhe assim, Hisashi, eu mesma não me lembro. Só tenho as marcas. Mas me recordo nitidamente do funeral de Yukito."
Saiyame está imóvel, escutando, mas quando escuta sobre o tal funeral, levanta e pede licença. Oferece chá. Vai para a cozinha, mas escuto seus passos subindo as escadas. Tomara que não aproveite nossa distração para fazer uma besteira...
"Ele morreu antes de Sakura. Três anos. Ela... nunca entendeu porque ele morreu daquele jeito. Não havia marcas, sangue, nada..."
"Mais uma coisa que eu quero saber. Você me disse que ele era o Juiz. Como poderia ser, se pelo que você disse, eles fora criados pelo tal Lead, e isso deve ter sido há mais ou menos um século?"
"Na verdade dois. Lead viveu entre nós há duzentos anos atrás. E Yukito não era o Juiz no sentido que você está imaginando... Ele era uma encarnação humana do Juiz Yue. Ele..."
Isso é uma piada ou o quê?
"Li, eu estou falando sério!"
"O que há com você? Tomoyo pode confirmar isso! Ela esteve no julgamento da Sakura! Vimos tudo! Se Toya estivesse aqui, ele também confirmaria isso!"
"Esse tal Lead é o mesmo Clow de todos me falam? Se ele viveu há duzentos anos como ainda pode haver algum servo vivo?"
"Os servos não são humanos, eles vivem indefinidamente, e se o corpo morre, eles renascem em outro!" – Li se levanta, confuso com as próprias palavras, e vem se sentar mais perto de mim. – "Assim eles atravessam o tempo! O Juiz deve ter feito isso não sei quantas vezes esperando que chegasse o dia de julgar o novo mestre! E... sim, ele se chamava Lead Clow."
"O Juiz era o Anjo que você citou. Digamos que isso seja verdade, e o que houve ao Leão? Como ele se chamava?"
Ecos vagos da história de Saiyame ficam martelando nas minhas têmporas. Estou cansado, e sem vontade de perder uma única palavra, receoso de dizer a Li o que escutei daquele garoto estranho. Se pelo menos eu soubesse até onde vai a verdade e onde entram os delírios desses tais magos...! Esfrego os olhos, tentando estar o mais lúcido possível quando escuto as palavras hesitantes de Li, que não pode mais fugir de nenhuma pergunta minha, afinal, eu dei aquele passo, eu mereço saber. Estou me sentindo dentro de um filme de terror.
"Li, pelo amor de Deus! Deixe esse assunto como está!" – Tomoyo está quase chorando, muito magoada por Li tocar nesse assunto. Ela está nervosa, aflita. Li silencia no mesmo instante. Eu também.
"Yukito, Yue, o Juiz... Não importa o nome. Aquele demônio está morto. E levou com ele uma parte da alma de Toya."
"O quê!"
A voz de Saiyame avisa que o chá está pronto. Tomoyo vai sem esperar por ninguém. Ficamos nós dois, nos entreolhando com reserva e desconfiança. Detesto chá, mesmo...
"A morte de Sakura tem relação direta com a dele, e você sabe que eu não vou dizer nada sobre isso. Mas precisa saber que Yukito, por mais humano que parecesse na frente dos outros, e na fotografia que você viu, debaixo daquela casca... era o Juiz Yue."
"E está morto agora? Definitivamente?"
"Esse seu tom de zombaria não me agrada nem um pouco. O corpo dele está morto, mas a alma é sempre imortal. Aprenda isso, agora que sua vida vai depender de qualquer conhecimento que puder acumular."
"Isso é uma brincadeira, certo?"
"Errado. Ver um copo andar sozinho encima de uma mesa é o melhor que vai ver a partir de agora. Talvez não tenha atentado para o fato, mas o passo para dentro do círculo pode fazer um tremendo estrago no sistema nervoso de alguém como você."
"Já faz mais de uma semana e eu não senti nada. Não vi nada."
"Tem certeza? Você não teria percebido o silêncio em torno de Saiyame se não fosse tão insensível a estas coisas. Sete dias depois do primeiro passo, a sua percepção vai começar a se abrir. Vai ser bem... dolorido. Em qualquer sentido, físico ou não. Eu nunca sofri com essa dor, mas você?..."
"..." – Os sete dias se inteiraram ontem. Talvez eu sinta alguma coisa por que estou tenso com esse assunto, essas coisas estão conseguindo me assustar. Aquela história que Saiyame conta para o nada é mais um elemento perturbador deste jogo. Penso no quanto aquilo que escutei essa madrugada me entristeceu, uma dor profunda e pungente, e não quero me sentir daquele jeito de novo, e não quero mais que Saiyame passe por aquela angústia tão dolorosa... – "E não há maneira de sair disso?"
"Talvez se você entregar uma parte da sua alma a um demônio como Yue. Mas Toya com certeza não teve muito sossego depois de fazer isso. E entregou a Yue justamente o dom da Visão, que estava com ele desde o nascimento. Ele olhava para Yukito e via Yue. Ele olhava para o nada e via coisas de dar calafrios até em mim."
"Isso poderia ser um lindo parágrafo de prontuário psiquiátrico. Já pensou sobre isso?" – Apesar do ceticismo do que eu digo, um arrepio corre por minha costa, quando lembro do fantasma de Sakura, vestido naquele pijama, o peito manchado. Uma moça morta com um sorriso lindo. Nunca sei se posso confiar tanto nas reações de Li a ponto de citar isso. Mais uma vez silencio.
"Na verdade, já. Eu e Tomoyo pensamos nisso por muito tempo. Por isso eu nunca disse a verdade à polícia e nem a ninguém. Tomoyo, por sua vez, preferiu esquecer. Ela tem vagas lembranças... Muito vagas mesmo."
"E cicatrizes."
"Todos temos cicatrizes. Onde as suas estão?" – Ele empurra o cabelo para trás.
"Aqui." – Não quero ver sua curiosidade ou seu escárnio quando puxo a gola da camisa e mostro os cinco riscos paralelos e cicatrizados que restaram do dia em que conheci Saiyame. Isso eu não sei explicar e levando em conta como as unhas de Saiyame não oferecem risco a ninguém, então, este pode ser um indício de algo sobrenatural, além do silêncio.
Li pestaneja e toca as cicatrizes do meu pescoço.
"São reais. Por isso seu pescoço estava enfaixado quando foi para a casa de Tomoyo."
"São. São bem reais. E os golpes se abriram mais de uma vez." – Não sei o que Li sente quando vê isso em mim, mas ele empalidece e volta a falar ainda mais baixo, como se não quisesse que nem Tomoyo e muito menos Saiyame nos escutasse:
"Quem fez isso em você foi Saiyame."
"Sim."
"Por isso estava querendo acabar com ele no jardim do hospital."
Eu não sabia o que eu estava acontecendo e nem imaginava que estas coisas existissem e houvesse gente que levasse tão à sério, e mais: eu nunca havia visto nada disso acontecer bem diante dos meus olhos. De que outra forma eu poderia reagir? O que posso fazer agora, que estou nisso e não consigo entender as coisas que escuto, embora saiba que elas têm alguma verdade em si?
"Por que você se sente tão atraído por ele?"
"Pela mesma razão que você. Quem não é insensível a isto pode perceber... Basta olhar nos olhos dele. Você já olhou nos olhos dele, Hisashi? Se quiser saber se alguém é humano realmente, olhe em seus olhos. Como nunca olhou nos olhos de ninguém antes e então verá."
Engasgo e tusso. Estou ouvindo mesmo isso? Ele fala com tanta naturalidade, tanta autoridade.
"De onde você tirou essa idéia! Ele é apenas um garoto!" – Sem querer desato a rir. Sei que meu riso é nervoso, porque sempre desato na gargalhada quando estou de frente para alguma coisa que me perturba mais do que gostaria, quando estou de frente para alguma coisa que não acredito, no entanto sei que não pode estar longe da realidade. E pensando bem, o que ele está dizendo faz sentido. Não sei como, de que modo é possível. Mas faz sentido. É assustador e real ao mesmo tempo, por que sei que isso não é um pesadelo e não posso me esconder disso por mais tempo. Eu dei um passo na direção de algo que não conheço e nem avalio o tamanho. Ele não acha graça, e o seu riso sinistro de antes parece nunca ter existido nesse rosto sério e fino. Estou me sentindo idiota e perdido, do mesmo jeito que me senti no dia da minha formatura...
"Eu teria rido assim quando Yukito estava vivo, antes de ver como ele era realmente, se alguém houvesse me dito." – Li se levanta e chama por Tomoyo, sem se despedir de nenhum de nós. – "Vou embora agora. Como eu disse e vou repetir agora: não sei quem é Saiyame, e nem sei se quero saber. Mas você deveria se importar. Está dormindo com ele. Não ia gostar de ter certas surpresas..." – Li escarnece, mostrando os dentes, num sorriso que pode ser diabólico ou simplesmente insano. Não se parece com o Li que conheço. Assusta-me quando faz isso, mostra algo de si que talvez a própria Tomoyo jamais tenha visto. Ele acha que eu e Saiyame?... Eu bem que queria que fosse verdade! Irrita-me a forma como ele diz isso, tão baixo que somente eu posso escutar, e ainda assim porque fico parado bem ao seu lado, quando ele está na porta da sala.
"Isso tudo me parece uma grande piada. Sinceramente. Parece que não suporta que eu esteja aqui, perto dele, quando era você que queria estar, já que não se conforma em estar com Tomoyo."
"Ela não tem nada a ver com isso."
"Ela gosta de assistir, ela viu quando você quase beijou Saiyame no hospital."
"Não se meta nisso, Hisashi. Eu estou avisando." – Li se volta totalmente para mim, aproximando o rosto do meu, e quase posso ver algo como um faiscar no fundo do castanho dos seus olhos escuros. – "Se eu não houvesse aberto mão da minha espada, você estaria morto desde o dia em que puxei você pelo cabelo... Agradeça a qualquer um que esteja lá no céu ou no inferno que seja responsável pelo seu destino."
"Meu destino, se eu tenho algum, está selado." – Aponto para meu pescoço, com um certo e desconhecido orgulho destas cicatrizes. Não sei... Sinto um prazer cheio de calor quando faço isso, me sinto marcado e preso indefinidamente a Saiyame através disso, e a sensação é perturbadora. Humano ou não, se é que isso é possível, estou por vontade própria ligado a ele, e mesmo se não quisesse, como o foi a princípio. Não sei por que digo o que digo, me lembro disso de repente, quando Tomoyo aparece no fim do corredor, terminando de abotoar seu casaquinho azul-marinho, não muito refeita de ainda há pouco, mas bem mais relaxada, e falando com Saiyame: - "Me diga, Li... Estas marcas não são parecidas com as marcas dos braços da sua Tomoyo?"
Ele ergue os olhos por um instante, como se acabasse de levar o maior susto de sua vida, muito pálido, muito lívido. Lembro que estava assim quando o encontrei no hospital, literalmente morto. Aquela fagulha de ódio que havia em seus olhos some e eles se tornam tão escuros que poderiam ser negros. Li é um mistério, pode ser tão doce quanto pode ser um fel... Ele agora parece a um passo de desmaiar, quando agarra com uma certa força o braço de Tomoyo, a leva consigo para fora da casa. Não sei o que eu disse de tão errado... As marcas são parecidas! Seria impossível que Saiyame as tivesse feito em Tomoyo, dez anos atrás ele era uma criança! Não era?
Tomoyo tenta protestar, mas tudo o que Li consegue dizer é que eles têm de sair daqui o mais rápido possível, não adianta que Saiyame venha de lá e pergunte o que está havendo. Quando olha para ele, o interesse de antes é substituído na expressão de Li por algo entre medo, surpresa e indignação.
Não sei ao certo que impacto minhas palavras tiveram, isso me leva a crer que esbarrei em algo perigoso e muito grande. Não entendo, e nem tenho como ou a quem perguntar. Li desaparece porta afora. Ficamos olhando para a porta fechada, sentindo um eco da pressa e do medo súbito que o dominou. Sei que Saiyame, no seu silêncio constante, me culpa pelo que houve. Estraguei tudo... Acho que agora tão cedo não vou conseguir outro beijo dele.
"O que você disse a ele? Por que ele olhou para mim daquele jeito?" – Todas as suas perguntas vem de uma única vez, e ele também, andando na minha direção enquanto tira o cabelo de cima do rosto. Vem de tal forma que esqueço que sou o adulto dessa e recuo no seu mesmo passo. – "O que você sabe que o deixou daquele jeito?"
"Ele está com ciúmes de você."
"Problema meu. Eu quero saber o que você disse a ele."
"Eu disse que ia ficar com você de um jeito ou de outro, que estava preso a você."
"Eu não sou sua propriedade!" – Acho que pela primeira vez eu o escuto gritar, Saiyame está novamente mais triste do que irritado. – "Eu já disse que você não é meu dono. E eu não quero estar ligado a você! Eu não quero a minha vida presa à sua."
"Que vida!" – Perco a paciência também. Se ele não me quer de jeito nenhum por que deixou aquele beijo acontecer? Por que me abraçou daquele jeito? E por que eu me importo tanto com isso? – "Você tentou se matar! Eu estive ali o tempo todo! Eu me importei com você!"
"Eu nunca pedi nada a você. Poderia ter me deixado morrer. Para você eu seria apenas mais um, como sou, afinal de contas." – Eu conheço esse soltar de ombros, esse ar magoado, essa voz baixa e rouca. Não, não vai voltar para aquele sótão e fingir que está morto! Fique vivo, entendeu? Fique bem vivo para ver o quanto eu detesto saber que Li está perto de você!
"Eu só não quero aquele sujeito perto de você."
"Não se meta nisso." – Chega aos pés da escada, e fica segurando o corrimão, enquanto olha para cima, e várias cores claras varam a clarabóia, iluminando os degraus. – "Não se envolva com nenhum deles, e nem comigo!"
"Você não é mais um! Me escute, que raio! Você gosta de Li ou o quê? Se disser que gosta dele, eu posso dopar a Tomoyo e vocês podem ser felizes para sempre, está bom assim? Mas eu não agüento ver Li perto de você! Tocando você!"
"O que você sabe? Hisashi, você não sabe de nada...!" – Vai subir e se trancar naquele maldito sótão de novo, me deixar aqui sozinho!...
"Eu sei que você tem um segredo! Eu sei que sofre com isso! E eu sei que tem algo a ver com a morte daquelas pessoas... Tem a ver com Li... E, Saiyame... Eu não quero que ele tente beijar você de novo." – Meu rosto esquenta na mesma hora. Estou cansado e devo estar confuso, apenas isso, com sono. Nos encaramos. Que pior jeito para ele saber o que eu vi no hospital?
"Não se preocupe. Ele não vai tentar me beijar novamente. E você também não. Nunca mais."
E não adianta que eu reclame, xingue, faça um estardalhaço ou tenha uma crise de nervos no pé da escada. Ele vai e some depois da curva do corredor. Sem olhar para trás.
Isso vai acabar mal...
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No fim da tarde escuto Saiyame descer correndo as escadas. Sei para onde está indo. Não tenho pressa de ir. A mãe de Tomoyo está me esperando lá também.
Ele conversou com Tomoyo, e ela estava meio incrédula, hoje pela manhã... E houve aquela saída estranha de Li. Adoraria saber porque ficou daquele jeito. Se ele estiver lá com Tomoyo, penso enquanto vou andando pela rua, me equilibrando na pedra da beirada da sarjeta, não vou perder a chance de atormenta-lo mais um pouco, até que ele desista definitivamente de Saiyame, não importa o que ele queira afinal.
Aperto a campainha, as empregadas já me conhecem, pode entrar, obrigado, no escritório, obrigado, já conheço o caminho. A mãe de Tomoyo fala em mais de um telefone ao mesmo tempo. A pilha de papel mudou de lugar, e parece até maior. Ela é muito direta comigo, e me fuzila com perguntas. Quer saber absolutamente tudo o que tem se passado. Por fim, satisfeita e talvez aliviada em saber que sua filha está muito melhor, embora tenha esquecido por vontade própria o que aconteceu na noite do assassinato de Sakura (Descubro por acaso, a mãe dela me diz quase sem querer, ao tentar me dar um referencial do tempo em que a filha esteve doente), ela pergunta o que sei sobre esse algo entre Tomoyo e Li que se alterna entre uma sólida e estranha amizade, uma vez que ele é bem anti-social e um ardente namoro. Claro que, como enfermeiro, eu digo que não sei de nada.
Mudando de assusto, ela desliga os telefones, tira o cabo de todos eles e relaxa na poltrona. Olhando com olhos pouco profissionais... O senhor Fujitaka Kinomoto está muito bem servido.
"Não sabe de nada, é?" – Sorri, mostrando que eu não enganei ninguém aqui. Acho que estou encolhendo nessa cadeira...– "Mas vamos fazer de conta que sabe..."
Ela cruza as pernas e tira uma caixa de dentro de uma das gavetas da escrivaninha. Abre e me oferece. Charutos. Essa mulher fuma charuto? Recuso, mas é bem... Diferente ver uma mulher tão fina acender um charuto cubano e fumar com tanta naturalidade. Realmente... O senhor Fujitaka Kinomoto não tem do quê reclamar. Depois de uma baforada em forma de anel, ela sorri de novo:
"... Faça de conta que sabe: se há algo entre eles, Hisashi, o que você acha disso?"
"Em que sentido? Profissional ou como amigo de Tomoyo?"
"Ambos."
"Eu acharia ótimo. Mas também acharia que Li tem coragem..."
"Está falando dos surtos, não? Ela não tem um surto desde que tentou suicídio pela última vez, e isso aconteceu há mais ou menos uns quatro meses..."
"Nunca se sabe quando vai ser o próximo. Talvez fiquem espaçados, até desaparecer. Se ela se ocupar em outras coisas..."
"Ela me ajuda nos negócios quando não estou em casa... Mas ela nunca gostou muito de papeladas. Tomoyo gosta de música, fotografia. Ela cantava no colégio, no conservatório, ela lhe contou? Acha que seria um bom sinal, profissionalmente falando, se ela voltasse a fazer as coisas que gosta? Não por Li, mas por si mesma?"
"Seria um ótimo sinal."
Ela estende a caixa de charutos para mim, e desta vez aceito por educação. Detesto essas coisas...
"Então fume comigo, Hisashi Wakai. Tomoyo esqueceu encima da mesa da sala uma partitura que está escrevendo..."
Ela joga o isqueiro para mim. Acendo e encho o peito de fumaça. Quente, forte... Como essa mulher agüenta? Se bem que é por uma boa causa. Tomoyo está escrevendo uma música, se está fazendo isso é algo para se comemorar até com fogos de artifício...
"E... ela esqueceu também outra coisa."
"O que?" – Pergunto, sentindo os olhos arderem. Tudo nesta sala está meio enevoado pela fumaça muito branca e pela tontura que o cheiro de tabaco me causa. O sorriso dela se parece com o da filha, e descubro da pior maneira que Tomoyo tem a quem puxar suas perversões:
"Ah, nada muito importante..." – Ela coloca encima da mesa um cartão de polaróide, com a face virada para baixo. – "Mas muito divertido de se ver... Eu não imaginava... Não o culpo, Hisashi, se eu fosse uns dez anos mais nova eu... quem sabe?" – Que mulher diabólica! Viro o cartão e quase me enterro de vergonha na frente dela. É a fotografia que Tomoyo tirou hoje pela manhã na casa de Saiyame, e nós dois, naquela situação horrível, de olhos arregalados, na escada. Por que essas coisas só acontecem comigo?
Ela continua sorrindo, me levanto e dou uma desculpa esfarrapada qualquer para sumir desse escritório. Agora ela me olha da cabeça aos pés, atentamente. Nunca pensei que ficaria tão envergonhado em ser olhado desse jeito... Essa mulher... Tomoyo não poderia ser diferente tendo uma mãe como essa!
Pobre senhor Kinomoto...
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Sei muito bem que ele está aqui, é como se eu estivesse seguindo-o pelo cheiro. Sei apenas, e isso é tudo. Vou andando pelos corredores, por onde minha imaginação fértil diz que Saiyame pode estar. Eu poderia encontrá-lo em qualquer lugar agora... E encontro. Não sei o que está conversando com Tomoyo, ele está ajoelhado no chão, e ela está sentada num pufe no chão da sala, perto da varanda do jardim de inverno, de onde se pode ver a piscina. Está anoitecendo e eles são duas figuras em negro num fundo violeta e laranja. Estão falando muito baixo, e a maior parte das coisas que Tomoyo diz são veementes negativas. Saiyame insiste em alguma coisa que ela não aprova, é claro. Estão falando de Li? De mim? De quem? Bato na porta aberta e Tomoyo me diz para entrar. Saiyame não ergue os olhos e nem fala comigo.
"O que houve hoje de manhã? O Li estava tão nervoso, mas não quis falar sobre isso." – Ela começa, fazendo um gesto para que eu me sente perto deles.
"Eu disse coisas que não devia."
"Isso é normal..." – Ela sorri, deixando aquela preocupação de lado, passa a mão encima da cabeça de Saiyame e ele cerra um pouco os olhos. Parece um grande gato vestido de preto nessa varanda. – "Sempre fazemos coisas assim. Você vai fazer muitas coisas que não deve, e até o que não quer. Sakura, quando se envolveu nisso tinha de se desdobrar em várias para dar conta das cartas... Éramos todos crianças naquela época. Eu, ela, Li, Eriol..."
"Ela buscou as tais sete cartas?"
"Naquele tempo eram bem mais que sete. No começo ela teve de rivalizar com Li, ele teria matado Sakura para conseguir as cartas. Não sei. Mesmo sendo Eriol quem é, ele nunca... Nunca teve a mesma obstinação de Li. Isso me assusta nele."
"Eriol?" – Já ouvi esse mesmo nome na boca de Saiyame. Mais um, e eu não acredito que estou discutindo esses absurdos com essa garota que o trata como se ele fosse um gato... Se ela lhe der uma bola ele vai correr atrás! – "Eu não acredito que Li pudesse ser assim. Quantos anos ele tinha quando isso aconteceu?"
"Ele tinha a idade daquela fotografia do meu quarto. Eriol, ah..." – Tomoyo dá um risinho e suspira. – "Eriol é um cavalheiro. Um canalha debaixo de toda a elegância. Ele é muito bem educado, muito... inglês, mas um canalha, afinal. E como todos os homens canalhas, Eriol tem encantos..."
"Você devia gostar muito dele..." – Depois de ter visto os olhos de Tomoyo brilharem tanto quanto quando ela está com Li, eu nem deveria dizer isso, deveria é ter certeza...
"Como não gostar de alguém que me ensinou a beijar de língua?" – E ela dá uma risada divertidíssima. Se eu não estivesse tão constrangido, riria também. Tomoyo não é tão inocente quanto eu imaginei... – "Ah, sim... Deixando a diversão de lado: éramos crianças, mas Li passou a vida sendo preparado para ser o mestre das cartas e perder para Sakura esse direito deixou uma ferida muito profunda no orgulho dele."
"E quando ela?..."
"Ele abriu mão do direito que tinha de ir em busca das cartas de novo, já que as outras foram destruídas, pelo que me contou depois. Mas como você viu, ele estava perdendo o controle sobre o próprio poder, por isso as coisas se mexiam sozinhas perto dele, por isso teve de mudar de idéia. E ele me disse que havia entregue a espada a Toya, antes de ele ir embora, anos atrás."
"Era uma espada de verdade? Para que? Ele está em busca das tais cartas, já conseguiu sete. E os outros? Eles também estão nisso?"
"Toya, eu não sei. Ele é irmão da Sakura, e ele sabia quem o Yukito era antes de todos nós. O senhor Kinomoto o expulsou de casa, você sabe... e ele não deu notícias nos últimos dez anos." – Tomoyo morde o lábio, com um sorrisinho travesso. – "... Toya era um sonho...! Eriol foi embora de volta para a Inglaterra e o Li me pediu o endereço dele há uns anos atrás, mas eu não sei se ele chegou a escrever. Eles nunca se deram muito bem... Por causa da Sakura."
"Li era o namorado dela."
"Eriol não era egoísta. Nada egoísta." – Tomoyo levanta e vai se encostar no ferro da varanda, está escuro ainda em quase toda a casa, e o jardim é sinistro assim. Tomoyo poderia ser mais uma assombração, mas é uma assombração muito bonita. Saiyame apenas escuta e a segue até lá, como se nada do que estivesse escutando fosse novidade. – "Venha aqui. Não quero que nenhum dos empregados escute sobre isso."
Obedeço e fico bem próximo dela, que olha disfarçadamente ao redor. Está segurando firme a mão de Saiyame, como a procurar nele algum tipo de apoio, como sempre tem acontecido, embora em certos momentos, mais parece que ele é quem precisa de alguém para ajudá-lo e consolá-lo.
"Li é um estranho até para mim, Hisashi. Quando ele quer poder, ele quer e pronto. Eu já o vi erguer a mesma espada que ele deu a Toya para matar Sakura, e éramos crianças! Ele esteve a vida inteira destinado a fazer qualquer coisa para recuperar esse poder. Até mesmo Sakura tinha medo dele. Toya nunca o olhou com bons olhos e Yukito..."
"Se vai dizer que ele era Yue, disso eu já sei."
"Sim. Justamente por isso ele se preocupava com Li. Ele sempre amou com a mesma facilidade com que odiou, entende?" – Ela sacode os cabelos no vento que sopra de entre as árvores, frio e cortante. –"Li se apaixonou por Yue, ao mesmo tempo que odiou Sakura. E amou Sakura ao mesmo tempo que passou a odiar Yue e qualquer um que estivesse perto dela. A espada não está mais com ele, mas a Mandala está, e eu acho que ele a está usando para conjurar o próprio poder. E em busca de poder... as pessoas mudam. Ele está ficando diferente. Não comigo. Mas com você."
Minha cabeça está começando a doer com tantas coisas acontecendo, tantas sujeiras saindo de debaixo do tapete. Isso é muito maior do que parecia no começo. Por que ele me odiaria? Eu nunca fiz nada? Eu apenas dei aquele passo!...
"Tomoyo, eu tenho de ir. Não posso esperar mais. Você vai me fazer aquele favor?" – A voz baixa de Saiyame interrompe a expectativa insuportável que surge entre nós. Ele não se surpreendeu pelo que escutou, e talvez saiba disso tudo mais do que demonstra. Tomoyo fica desconcertada com o que ele pergunta e eu não entendo afinal o que estavam conversando antes que a deixa desse jeito. Ela coloca a mão sobre o bolso do vestido, mas não diz nada em resposta, apenas um olhar perplexo e um sinal negativo com a cabeça. – "Nesse caso, eu vou saber o que fazer." – Ele diz, baixando os olhos e recebendo mais um afago sobre a cabeça. Se ele fosse tão doce assim comigo...
"Melhor que vocês saiam agora. Li vai me levar para jantar e como ele não está nada confiável..."
Ela tem razão. Estou praticamente jurado de morte por ele e até já disse com todas as letras que me odeia. Se ele for o mínimo ambicioso do que ela acabou de descrever, então tenho motivos de sobra para perder o sono. Uma espada de verdade nas mãos dele, e ele cego pelo poder... Ele disse que o poder poderia cegar alguém, e, no entanto ele mesmo se afunda nisso.
"Você não tem medo dele?"
"Li pode matar com uma palavra. E se você tiver algo que ele queira, ele vai passar por cima de qualquer coisa para conseguir. Eu não tenho medo, por que ele me deu um poder sobre sua vida, sobre seu coração que é tarde demais para me tirar. E temos um segredo em comum. E você, Hisashi, tem um interesse em comum com ele."
Está dito tudo. Com um olhar, ela diz que não pode dizer mais nada. Isso é tudo o que sabe, e assim já é suficiente. Estou quase tonto com tudo isso e minha cabeça está realmente doendo.
Olho para Saiyame vendo claramente que ele é o nosso interesse comum. Tomoyo sabe disso, e fala com tanta naturalidade, penso, ao mesmo tempo em que o agarro pelo braço e o levo comigo, tentando conter seus silenciosos protestos, ele tentando puxar o braço e eu quase tentado a arrastá-lo pelo cabelo. Maldito. Garoto atrevido... Faz isso de propósito, penso, por que deixou as coisas chegarem a este ponto? Faria diferença você ter recusado a proximidade de Li no hospital? Acho que não. Tomoyo diz um breve até logo, ela continua na varanda, ignorando o vento frio do outono e a chuva que está se armando no céu já totalmente violeta. Vamos logo, resmungo, quando abro a porta. Não sei o que Li viu em você. Pensando bem, nem eu sei o que vi em você.
Tomoyo chama por nós, pede para Saiyame esperar, e ela vem, correndo pelo corredor escuro e coloca nas mãos dele alguma coisa que não consigo ver e diz como se fosse algum tipo de senha: "três são o suficiente". Ninguém acendeu luz nenhuma nesta casa até agora. Não sei o que é, mas é pequeno, e ao olhar para o que ela lhe deu, Saiyame não agradece. Ele passa por mim correndo, e atravessa o jardim, os portões, no rumo da casa.
"Tomoyo, o que?..."
"Não importa. Li se sente atraído por ele pelo mesmo motivo que se sentia assim em relação a Yukito... Yue. Mas depois, se tornou uma raiva profunda. Não sei o que ele vê ou sente quando está perto de Saiyame, mas eu não vou mentir para você, Hisashi. Por amizade eu não posso mentir: pelo modo que Li está agindo, talvez Saiyame não seja o que aparenta. Do mesmo modo que Yukito."
"Eu não sei se acredito nisso."
"Acreditando ou não, se Saiyame não for apenas um rapazinho calado, você está envolvido demais para sair. Mais do que eu. Mais do que Li. Apenas cuide bem dele."
"Cuidar dele? Acha mesmo que ele precisa de mim?"
"Vá de uma vez. Cuide dele, está bem? Até logo, Hisashi." - Tomoyo vai para dentro da casa, sumindo no escuro da sala e do corredor. Agora está um breu aqui dentro e um arrepio sobre por minha nuca. Estou me sentindo estranho. Acho que é aquilo que chamam de mau pressentimento, mas eu nunca acreditei nisso. Vou acreditar, então, que apenas estou desconfiando que Saiyame vai fazer alguma idiotice daquelas que só ele é capaz de fazer. Ela me disse bem mais do que eu achei que sabia.
E eu tenho de correr para casa bem mais rápido do que achei que pudesse, como se houvesse alguma coisa correndo atrás de mim, e eu sei que não é nada, só essa sensação de medo, de vazio. É isto um pressentimento? Se o tive antes eu o curei com uma aspirina, mas agora minha cura é Saiyame, e a minha febre é tudo o que Tomoyo me disse.
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Chego e aqui também está escuro e abafado, embora frio. Saiyame não fêz nada, ele está obedientemente sentado nos degraus, ainda com o casaco, olhando para o vazio e nem se mexe quando entro ofegante e meio desesperado. Ele não se afeta com nada? Afetou-se hoje de manhã, quando toquei seu corpo e algo me diz que estive muito perto de acender algo nele que nenhuma outra pessoa conseguiu acender. Olhe para mim, eu digo, e ele me diz que o jantar está pronto.
"Não entendo você..."
Chego bem perto de Saiyame e ele levanta o rosto impassível, colocado entre suas mãos brancas. Não faça assim, não me olhe como se eu não fosse nada ou como se olhasse com mais interesse para a parede atrás de mim. Não, Saiyame... Não digo nada. Tenho de cuidar dele. Mas como? Não consigo cuidar nem de mim, ou não teria feito a loucura de entrar na sua vida literalmente pondo a porta abaixo. Consigo passar a mão em seu ombro, ele permite, consigo segurar seu rosto e suspender seu queixo. Que olhos bonitos e claros você tem... Não vejo nada de errado com seus olhos, como Li me disse que veria... Você não é nada de anormal, é só um rapaz grande demais para a idade, sério, desconfiado. Devia sorrir mais, eu sei que o seu sorriso é muito bonito. Você deve ter sido uma criança linda e em uns cinco anos vai ser um adulto mais lindo ainda. Só tem de sorrir mais. Estendo a mão para que ele se levante e venha comigo. Só não quero ficar sozinho, com essa sensação de engasgo e tensão que não passa, só aumenta e piora perto dele, mas Tomoyo me mandou cuidar de Saiyame. Ela sabe de alguma coisa que eu não sei, e deve ter algo a ver com aquilo que estava no bolso, mas nem imagino o que seja, qual seja a sua próxima loucura.
Vamos para a sala de jantar em vez da cozinha. Lá está o meu prato arrumado. Apenas o meu.
"Você não vai jantar?"
"Não. Não estou com fome."
Deve estar se sentindo mal. Normalmente ele come bem até demais, já o vi comer o que seria suficiente para manter alguém com o dobro de seu peso. Fase de crescimento, nunca estranhei, mas agora isso?
"O que está acontecendo?"
Ele olha com estranheza. Não responde, não se senta, e nem deixa que eu me aproxime. Ele arrumou os bolinhos de arroz no prato, e parecem ótimos, ele sabe cozinhar muito bem, apesar do tempero forte demais... Não quero estragar algo que ele fez por gentileza com a minha neurose. Aceitando essa situação que me cheira a algo de podre, puxo a cadeira e me sento. É tudo o que ele quer. É inocente, tão inocente que corre na mesma hora em que me sento, vara o corredor e segue escada acima.
Eu sabia que havia algo de errado! Vou atrás, estava bem debaixo do meu nariz e eu não quis ver. Não perco meu tempo chamando-o. Vou deixando o casaco em algum lugar do chão no caminho. Por que não fui embora de uma vez? Estou quebrando a promessa que fiz a mim mesmo. Não consigo sentir mais raiva de Saiyame. Estou somente triste e quase resignado, quase tiro meu ombro do lugar ao arrombar a porta do sótão, e o vejo pôr alguma coisa na boca. Grito seu nome e ele não me escuta, está tentando engolir, mas talvez esteja tão nervoso que não consegue, sentado nos tornozelos, no meio dessa confusão de riscos e cinzas no chão coberto de poeira. Agarro seus ombros e ele deixa cair no chão um vidro de remédios amarelo, de tampa branca.
Conheço essa medicação. É o sedativo mais forte que Tomoyo tinha, ela teve de tomar nos tempos dos surtos, antes da última internação. Cuspa, mas que inferno! Bato com força na sua costa, tentando fazê-lo cuspir os comprimidos. O frasco não está vazio, e nem é preciso, com três ele pode conseguir uma parada respiratória irreversível em poucos minutos.
"Que besteira você quer fazer? Cuspa isso de uma vez!" - Ele tenta me empurrar e consigo derrubá-lo de quatro no chão, e bato na sua costa com tanta força que ele perde o ar. Enfim, dois comprimidos estão no chão, e o terceiro volta com a tosse que a falta de ar provoca em Saiyame.
Faço com que levante o rosto, está gelado, sem ar. Bati com muita força, e ele ainda me empurra, me amaldiçoa, me diz coisas horríveis, e me manda embora. Não vou, respondo, você sabe que não. Vai pegar o vidro que está no chão, e aí nos lutamos, não brigamos, mas tenho de usar de força para fazer com que Saiyame não tente de novo. Agarro seus braços e os forço para trás, ele está cada vez mais frio, mais arquejante e pálido... Afrouxo um pouco as mãos em seus braços e acabo tendo de segurá-lo para que não caia. Bati mesmo com muita força...
"Respire devagar... " - Mas na verdade eu queria pedir que ele não me olhasse desse jeito, como se fosse traído, como se eu fizesse isso de propósito... Não posso evitar, Saiyame, você mente muito mal, não sabe mentir.
Ele não consegue se apoiar, mesmo tentando se escorar na parede, e quando tenta me empurrar de novo, acaba caindo, e tenho de cair junto para que ele não se machuque tanto, e escorrego para junto da parede, ele sobre mim, ainda arquejando palavras iradas. Está imóvel. Tomara que tenha desmaiado. Bati com a cabeça na queda, e não posso cair no sono agora. O vidro amarelo ainda está ali, tão longe e tão perto, posso alcançar se o largar aqui, mas ele está extremamente pesado. Se ele conseguiu engolir um comprimido só vai dormir por umas trinta e seis horas, no mínimo, se estiver em jejum, e acordar enjoado, mas se acabou de engolir dois ou mais, além daqueles que o fiz cuspir, acho que é a última vez que o vejo com vida.
"Por que você faz isso? Você sempre decepciona as pessoas que gostam de você?... Pense em Tomoyo... Ela sabia para que você queria essa porcaria?"
Silêncio. Ele está jogado no chão, meio de lado, entre as minhas pernas, o jeans manchado da poeira, a camisa suja de pó. Eu devo estar imundo também. Sua cabeça loura está no meu colo, e suas costas estão encostadas na minha coxa. Com tantas coisas para fazer, você tem que justamente querer morrer? Você salva a vida dos outros e não quer salvar a sua? Salve a minha então, raios, ou vou morrer de aflição se você conseguir o que deseja, pois aí eu é que não vou conseguir o que quero. Agüento tudo, só não agüento que você morra antes de ir para a cama comigo. Por que disse que eu não irei mais beijá-lo? Estava falando sério mesmo? Se esta situação fosse outra, e se você estivesse entre os meus joelhos como está agora, Saiyame, só precisaria se virar um pouco e teria muito com o que se divertir... Ah, a sua boca, a sua língua... E que hora para pensar em coisas assim...!
"Ela sabia, mas achou que eu fosse desistir. Tinha certeza disso." - Ele responde, baixo e devagar. Talvez esteja chorando. Sua voz está mais grave. Afago sua cabeça, ele se encolhe, aceita que eu faça isso. Desistiu. Não vai mais lutar, talvez tente de novo, todavia, vai ter de me amarrar no pé da mesa para isso. - "E você continua se metendo onde não é da sua conta. Desista de mim. Não guarde lembranças de mim."
"Como pode querer que as pessoas se esqueçam de você? Deve ter alguém que se lembre, que goste de você... A sua família, os seus amigos... "
"Não tenho nada disso. Quem sentirá a minha falta, se eu já fiz a minha parte e eles já tentam ser felizes por si mesmos? Cada um deles já consegue olhar para frente e ver alguma coisa. E você vai ver bem mais do que a maioria deles."
"Não pode entrar e sair assim da vida das pessoas."
"Você faz isso."
"Mas eu sou mais velho!"
"E eu sou mais velho que vocês todos."
Há uma amargura tão grande no que ele diz, de tal forma assustadora, que quase acredito nisso. Não acredito, como não acredito na maior parte das coisas que escuto dessa gente, mas é algo que me perturba, me incomoda, e aquele aperto no peito de antes volta quando Saiyame fala de sua idade. Ele é só um garoto. Lembro imediatamente que Li disse que às vezes ele parece ter duzentos anos, e neste momento, parece ter até mais. E ao mesmo tempo, com um ar de quem viu séculos e séculos se passarem ante esses olhos de cor estranha e clara, ele move seu rosto na minha direção, como a levantar uma bandeira branca. Começa a se mexer, as mãos no chão e na beirada das caixas empilhadas ao nosso lado, e finalmente se coloca de joelhos na minha frente, tomando fôlego para levantar. Você venceu, eu desisto, diz sua tristeza ao me olhar.
Ele está tonto da falta de ar, acaba ficando no mesmo lugar, sobre os calcanhares, respirando fundo, e cada vez mais.
De repente ouço sua voz. Ele começa a falar...
CONTINUA
