Acho que estamos namorando.
Não sei se é um namoro, pensando seriamente, mas eu sinto sua falta. Não temos para onde ir, por que ele não amanhece ao meu lado? Levanto tarde, na metade da manhã. Dormi pesado e não tive sonhos. Olho pelos quartos, pelos corredores e vou procurar por ele até nos cômodos de baixo. Está na cozinha, sentado numa das cadeiras, olhando para a fumaça que sai em espirais do bico do bule. Aponta uma cadeira para mim. Diz que espera ter acertado no jeito que gosto do café, Saiyame diz ainda que não gosta de café, que de amarga e escura basta a sua vida. Talvez tenha razão... Passo a mão sobre seu cabelo e ele quase pula da cadeira com isso, assumindo afinal a tristeza que não o abandona, se encolhendo, tímido.
"Ainda está pensando naquilo? Você me disse que não ia insistir naquela idéia estúpida."
"O que mais você quer? Estou aqui, não estou? Mas não me peça para estar feliz por isso."
É, não posso pedir mesmo. Posso ao menos tentar fazer alguma coisa para alegrar você? A sua tristeza impregna tudo ao redor, e até eu já me sinto triste por ver você assim, digo, servindo a minha xícara...
"Pare de se incomodar comigo." – Ele baixa um pouco a cabeça. Se chorou esta madrugada, eu não sei, nem preciso perguntar, tanto faz se chorou, está tão triste que eu também começo a me sentir triste. – "Você não tem de passar por isso. Não é um assunto seu."
"Agora é." – Levanto no mesmo instante, engasgado com o café. Nunca me pareceu tão amargo, parece fel...
Lembro de quando era criança e estava doente. Talvez a doença de Saiyame seja essa tristeza, e quando eu era criança, a minha avó sabia me alegrar. Será que ele vai entender? Pego a garrafa de leite que está encima do balcão. E ponho uma panela do escorredor de pratos no fogão, com açúcar.
"O que está fazendo? O café está do seu gosto."
Por que vou perder meu tempo discutindo com ele? Se pelo menos ele sorrir...
Leite com açúcar queimado. Eu gostava muito disso quando era criança. Me fazia ficar sonolento e risonho. Então eu cresci e virei um monstro que bebe café amargo. Talvez eu mesmo tenha ficado amargo. Saiyame olha com desconfiança para o copo que ponho na sua frente, com leite e caramelo. Diz que não quer, agradece. Eu sei que está sem comer nada desde ontem... Quase suplicando, peço que prove, que faça isso por mim.
"Só um pouco." – Ele diz, muito baixo.
"Claro. Só um pouco." – Ouvi-lo ceder, desconfiado, olhando para mim com aquele jeito de quem vê um alienígena, me esquenta por dentro, me enternece. É como quando ele enfiou aquele pedaço de bolo na minha boca... Estou me sentindo ficar tão doce, que eu poderia sorrir para as paredes.
Ele prova, um gole, outro, o copo todo, e fica rindo, de repente.
"O que houve?"
"Sakura fazia isso para mim... Quando eu fazia birra de não querer comer..." – Ele diz, sua voz um pouco menos rouca, seu sorriso aberto, iluminando seu rosto... Seus olhos... Até seus olhos estão sorrindo. E eu também.
"E a minha avó fazia quando eu estava doente." – Ficamos sentados quase um do lado do outro, trocando esse sorriso tão raro, tão bom quanto o leite com açúcar queimado. Então ficamos sérios de novo, os mesmos de antes mas um pouco diferentes, engulo em seco e olho para o café sem nenhuma vontade... Saiyame começa a tocar no meu cabelo, com dedos mornos e longos. Suas pestanas espessas e escuras pesam. Diz que está com sono e que vai para o quarto. Com esse jejum longo, o leite não poderia ter outro efeito.
Estou sozinho na cozinha. Mordo uma bolacha, me sentindo ainda engasgado com o amargo do café e de Saiyame logo que entrei. Não quero vê-lo assim de novo. E esse constrangimento entre nós, nossos sorrisos, é como se desnudar na frente de desconhecidos... Me sinto embaraçado e feliz não sei o motivo. Vontade de chorar e de rir ao mesmo tempo.
Olho para a minha xícara e nem lembro de mais nada antes de descer dentro dela duas colheres bem cheias de açúcar e o resto do leite que estava na panela.
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Achei que quando ele dizia que ia para o quarto, iria para o seu, porém chego na porta do em que estou e o encontro dormindo, jogado, os lábios entreabertos num sono muito pesado. Agora está enfiado dentro do meu suéter, agarrado nos travesseiros, de bruços. Não tenho para onde ir, e estou cansado. Me sinto assim freqüentemente desde quando o conheci, ouvindo tantas coisas, e tem acontecido tantas estranhas... Até isso, esse... Nem sei o que há entre nós, está indo um pouco rápido demais. Eu lhe tinha tanto ódio, e agora quero cuidar dele e fazer com que entenda que não está sozinho. Deito a seu lado, e passo um braço em torno de seu corpo. Imagino que tenha acordado o bastante para me reconhecer, nem volta o rosto para o meu lado e se acomoda. É tão quente... Penso em seu beijo... Acabo dormindo também.
Tenho sonhos tão quentes quanto a pele dele. Não saberia contá-los, no entanto a sensação que deixam é uma delícia. É tão bom quanto estar com ele por perto. Não sei que horas são, mas dormi por um bom tempo. Agora a cabeça de Saiyame está encima do meu peito, parece que não gosta de ficar por baixo... Sempre me empurra para onde quer. Tímido como seja, isso esconde alguma coisa que pode ser linda, ou pode ser tão assustadora quanto vê-lo quebrar o chão com as mãos.
Faço com que escorregue para o lado. Como seus cílios podem ser tão escuros? São longos e escuros, quando ele está acordado é quase impossível deixar de olhar em seus olhos, de tão destacados no seu rosto branco, e a cor deles não ajuda. Já vi passarem de castanhos a amarelos, e já os vi dourados no delírio que tive no sótão, durante o ritual das cartas. São cor de mel quando ele descerra os olhos. Espero que reclame, ou me empurre, mas Saiyame fica quieto, me olhando, umedecendo os lábios como a pedir que eu o beijasse, se eu não fizer nada, vamos ficar o resto da semana aqui e nada vai acontecer. Por que não me beija? Eu sei que você quer, só faz alguma coisa se eu der o primeiro passo. Sabe que não vou negar nada. Está ficando calado de novo, se retraindo. Conheço isso, conheço esse olhar...
Digo em seu ouvido que não quero que fique assim... Faz que sim, e fecha os olhos quando vou beijar o canto do seu lábio. Vou levantar, está bem?... Move a cabeça um pouco para o lado e abre a boca. Só um pouco, só o bastante para este beijo ser profundo como o desejo que me causa.
Fico louco de vontade de perguntar se aquele, ontem pela manhã foi o seu primeiro. Tenho quase certeza que não. Se não fosse essa timidez tão grande, esse quase não existiria.
Me sento, e ele fica onde eu estava antes. As mãos fechadas nos travesseiros, e seu peito subindo e descendo debaixo do suéter (temos a mesma altura, mas Saiyame se perde dentro da malha, que fica mais larga ainda nele do que em mim, e os braços, ficam longos, no seu corpo esguio...)... Ah, quando ele crescer... Não usa nada por baixo dessas calças de sarja marrom, céus!... Quero estar vivo e bem perto dele para ver como vai estar daqui uns três anos... Mesmo que não seja, não paro de pensar que é virgem (acredito nisso e pronto, dane-se se não for, na minha cabeça estou convencido disso...!), enquanto desço da cama.
Minha perna esbarra em alguma coisa que está debaixo dela. Olho. Jornal. Rasgo e encontro um espelho deitado. Moldura descascando, o metal está gasto... Dou a volta na cama e puxo pelo outro lado. Saiyame, este pelo visto foi escondido de você pelos fantasmas, ou estaria quebrado. Ele quebrou todos, este espelho é a minha vingança. É grande, tem quase a altura de uma pessoa, e o cordão de trás encaixa num prego da parede como se fosse ali o seu lugar. Graças a Deus! Quase choro de alegria em poder ter um espelho por perto! Penteio o cabelo com uma satisfação quase espiritual. Sem dúvida, o espelho é o meu melhor amigo. Sincero e calado. Diz a verdade porque me mostra que estou melhor do que nunca. Vejo Saiyame no reflexo, jogado na cama, se mexendo um pouco. É isso que ele está vendo todos os dias? Meus olhos estão brilhando no reflexo desse espelho velho. É isso o que você está fazendo comigo? Quem me ver assim vai achar que estou apaixonado, e tenho certeza de que não estou, porque nunca me apaixonei por nada e nem por ninguém em toda a minha vida. Que ridículo... Me sinto um adolescente.
"Hisashi..." – Sua voz grave e sonolenta me chama, ele está se mexendo.
Vejo-o esfregar os olhos, deitado, preguiçoso como um gato. Se eu lhe der um novelo de linha, você vai brincar com ele? Puxo-o pelos braços, e ele os deixa assim, somente em torno do meu pescoço. Bem que poderia me abraçar também, me beijar e retribuir o milésimo de sentimento que tenho por você, não é? Ingrato... Vai ter todos os abraços que nunca teve, digo em seu ouvido, e logo depois, devagar como tenho de me acostumar a fazer tudo com ele, o beijo. É tão lento, é como a primeira vez ontem, e agora me sinto perfeitamente capaz de matar alguém se escutar batidas na porta. Suas mãos puxam o meu cabelo, me fazendo ficar mais perto, e fica mais profundo, como ainda há pouco, e termina com nós dois sufocados, passo um dedo por seu queixo trêmulo, e digo que ainda vai me deixar doido. E estou falando muito sério.
"Eu sou a maldição da sua vida, entendeu? Não vai se livrar de mim..." – Saiyame quase sorri quando escuta isso, e aceita que eu faça carinhos em seu rosto, com o dorso dos dedos. Me derreto quando ele fica assim, com as bochechas coradas... Talvez eu esteja apaixonado... Melhor não pensar nisso, ou vou começar a rir da minha própria piada. Faço com que entreabra os lábios, e vejo a ponta de sua língua perto dos dentes brancos... Oh, vamos ver se ele sabe usar esta língua... Vou beija-lo, mas suas mãos ficam tensas, fechadas, e puxam a minha camisa até que eu me afaste. Não está olhando para mim... Que?...
"..." – Ele faz tudo quase que ao mesmo tempo. Vai se afastando, esticando o braço para fora da cama e se senta na beirada, e fica em pé com alguma coisa na sua mão, o braço se levanta num arco, como se fizesse por instinto.
Tenho de segurar seu braço com força, pedindo para não fazer isso. Ele está com um livro pesado na mão e ia acertar com ele em cheio no espelho! Assim vai me fazer ter um infarto antes dos vinte e seis!
"Por que você gosta tanto de fazer isso?" – Pergunto, embora não esteja pensando mais nele do que na minha dificuldade de pentear o cabelo de manhã. – "Pode se machucar, sabia? Se você tem algum problema, com certeza o espelho não tem culpa disso!" – Consigo faze-lo soltar o livro. Está um pouco alterado, seus olhos ficaram mais claros e quase irreconhecíveis. Vai sair do quarto. Evidente que assim que eu der as costas ele vai quebrar esse espelho e nunca vai me dizer o motivo! Vou ficar doido mesmo...
"Fique com ele, então."
"..." – Seguro seu braço e o trago para perto do espelho, mas acho que isso só piora tudo. Saiyame nem levanta os olhos, e fica com muita raiva, me empurra e fica longe, os braços cruzados no peito, resmungando uma coisa que escutei naquela história que me conta, e que agora faz sentido totalmente:
"... Aberração..." – Ele diz, me olhando, ressentido, magoado. – "... Quer zombar de mim..."
"Não! De onde você tirou isso?" – Fico em pânico com o que escuto. Que juízo ele faz de mim? Eu... Eu não presto, mas jamais faria isso. E você não é uma aberração. Digo isso com toda a sinceridade. Ele ri, amargo e breve, acaba com uma palavra que eu já escutei, e que me fez desesperar naquela noite e agora de novo:
"Mentira."
Não, eu não estou mentindo, mas que droga! Por que ele se acha essa aberração? Lembro dele tentando esconder o cabelo, quebrando os espelhos, jogando-os pelas janelas ou quebrando-os com chutes e livros atirados contra eles. Alguém lhe disse que era uma aberração? Você não é... É lindo e selvagem, mas não é. É só um garoto, está longe de ser um monstro. Eu não mentiria para você, eu nunca menti, apesar ou por tudo, até quando eu queria quebrar a sua cara, eu nunca menti. Estou fazendo você se lembrar de alguma coisa? Não quero fazer você chorar...
"O que acha que há de errado com você?" – Vou até Saiyame e ele fica quieto e amuado como uma criança, de cabeça baixa, sem querer me encarar.
"Tudo. Está tudo errado. Eu nem deveria estar aqui." – Seguro seu queixo e faço me olhar nos olhos. Ele acredita no que está dizendo. Deve ter ouvido isso a vida inteira...
"Não há nada de errado. Você não é um monstro."
"Eu sou." – Se ele dizer isso só mais uma vez, até eu vou acreditar, de tanta convicção que coloca nessas palavras.
"Não é. Se for, pelo menos, para mim não é." – Estou sendo sincero. – "Alguém disse isso a você?"
Ele faz que sim, suas pestanas escuras tremendo. Ele me sussurra que quem disse isso o conhecia muito bem e não mentiria sobre isso... O que fizeram com você?... Você tem coragem de enfrentar tudo, menos o seu reflexo? Seguro a sua mão, escondida pela barra do blusão. O trago comigo, para perto do espelho, e nem preciso dizer mais nada. Dizer o quê? Ele não vai acreditar que não é um monstro, e mesmo que fosse... Não sei se eu iria me importar com isso. Acho que não, ainda me excito perto de você e eu mal vi seu corpo, e tão pouco e tudo me parece muito ou demais. Agarro Saiyame para beija-lo do jeito que sempre quis: segurando firme em torno de sua cintura, suspendendo-o do chão e fazendo-o ficar tonto. Fico tonto, os lábios e os olhos ardidos. Esse monstro beija muito bem. Nos soltamos e o deixo sozinho onde está, justamente de frente para o tal espelho. Abraço seus ombros, e digo mais uma vez que ele vai me deixar doido... Estou doido por me importar com ele e nunca me importei com ninguém, muito menos com os sentimentos de alguém. Isso eu não digo, pela simples razão que estou assustado demais com o que sinto.
Saiyame tem muita altura, muito tamanho, mas não tem corpo... Sabe lidar com coisas extremas, é muito adulto para coisas adultas, mas não sabe lidar consigo mesmo, olha seu reflexo por um tempo e vira o rosto, enojado. Repete que á uma aberração.
"Não é. Onde está? Não estou vendo." – Olho para o reflexo dele por muito tempo. Nas histórias de bruxas os monstros não se revelam pelo reflexo? É o mesmo Saiyame de antes, não é nada disso, e até Li deve ter se enganado dizendo que ele não é humano. É humano até demais, abraçar este corpo me diz isso, o modo como o meu reage também e eu não costumo me enganar em julgar o que se esconde debaixo de roupas grossas... – "Não vejo nada assustador... Nada feio..." – Está tudo tão quieto entre nós, adoravelmente tenso, e só consigo falar perto do seu ouvido, colando os lábios na sua orelha, sentindo o cheiro de seu cabelo. Ele não exala nenhum perfume, só um frescor de almíscar e madeira, que está me deixando quente e com a sensação de que não estou pisando no chão... – "Olhe... Olhe só um pouco. Eu estou aqui, está bem?... Olhe... Por favor... Por mim, Saiyame!... Por favor..." – Vou dizendo, palavra a palavra, tão devagar e baixo que parecem palavras indecentes. Indecente é como estou excitado, enchendo as mãos com esse cabelo macio e sedoso que cai até a metade de suas costas, subindo por elas até sua nuca, apertando um pouco, fazendo Saiyame se torcer levemente, suspirando. – "... Olhe... Por favor..."
Ele descerra os olhos, e eu aqui, olhando por cima de seu ombro, soltando sua cintura devagar, escapando dos seus dedos que já estão no meu cabelo. Está vendo o que? Eu vejo o rosto rosado, de quem acabou de suspirar. O meu desejo o faz a coisa mais linda... Não é um anjo nem nada transcendental. Está aqui, na minha frente, nos meus braços, é quente e ardente. Eu sei, ninguém me disse, e eu acredito. Beijo atrás de sua orelha, olhando sem hesitar nem piscar, no reflexo, nos seus olhos claros e brilhantes. Está tão quente aqui, abafado e numa penumbra amarela que só me traz maus pensamentos e lembranças do seu corpo dourado ontem, mas minhas mãos...
Estamos nos olhando pelo espelho, Saiyame se encara, talvez pela primeira vez na vida, sem medo, não tenha medo...
"Não há nada feio aqui. Pelo contrário. Olhe-se, eu vejo uma coisa de que não vou me esquecer." – Deixo que se veja sozinho, como nunca se viu, e sim como eu o vejo. – "Para mim, é bonito como um amanhecer..." – Beijo sua nuca, a curva de seu pescoço tenso... Não acredito nas minhas palavras, eu nunca disse coisas assim a ninguém...! E o mais assustador é que é tudo verdade... – "... e dourado como um."
Será que ele imagina que este corpo quase inteiro esteve nas minhas mãos, até o que eu não esperava? Ele arrepia, estremece e dá um tímido, imperceptível sorriso. Me encara de um jeito que causa arrepios de prazer pelo meu corpo inteiro... Ah, céus, se soubesse que acender este fogo seria assim nem teria começado... Estou assustado e fascinado. Passa a língua nos lábios rosados, olhando para mim como se eu fosse o canário e ele o gato. Está corado de vergonha, mas está excitado, acho, ou nervoso... Ou tudo, como eu. Me afasto, e não sei como tenho coragem de pedir para que ele se mostre para mim. Apenas isso. Somente isso...
"Não...!" – Ele diz, tímido, sem soltar as minhas mãos quando me sento na cama. Estou me sentindo tonto demais, e não consigo parar de olha-lo com adoração. Se é isto estar apaixonado, espero que ninguém me veja desse jeito. Estou sentindo o rosto tão quente...
Quase imploro que tire o blusão. Outra negativa. Apenas isso e não peço mais nada, Saiyame...
"Você me viu ontem. Quando acordei, você havia aberto a minha roupa... Viu até demais." – Vira um pouco o rosto, corando.
Somente o suéter. Suspenda então... Só um pouco, só quero ver. Só um pouco... Saiyame fica indeciso e se afasta de mim. Não seja cruel comigo. Você estava dormindo ontem... Por favor... Não tenha vergonha de mim... Não se esconda de mim... Só um pouco... Levante um pouco o suéter e eu fico feliz... Você não quer me ver feliz?
Saiyame morde o lábio, corando de novo... Passa as mãos brancas sobre a barra da roupa, segurando, me fazendo repetir que só um pouco. Estou quase com mais vergonha do que ele, tenso e ansioso, excitadíssimo, precisando com urgência de todo o gelo que puder encontrar! Mas não há tempo para gelo, nem quero nada que esfrie a minha urgência. Vejo sua barriga lisa e reta aparecer debaixo da barra preta da malha. Seu rosto está cada vez mais corado... Não resisto de sorrir para ele, exultante, me sentindo cheio de alguma coisa boa e quente, que me faz ter vontade de gritar, um tipo de alegria tranqüila, deliciosa, que fica maior, irresistível, quando estou perto desse garoto. Sim, é um garoto... Mesmo desperto seu corpo é esguio, adolescente. Resolve ceder aos meus pedidos, e vai muito devagar puxar a malha por cima da cabeça, deixa cair no chão, perto dos seus pés descalços e pálidos. Oh, quando você crescer, Saiyame, eu...
Estou por conhecer alguma coisa que se compare ao que eu vejo.
Está ofegante e vermelho de vergonha, de pé, o peito nu, os braços soltos ao lado do corpo, resplandecendo em branco e um distante dourado, na quase escuridão do quarto... Nunca vi algo assim, como esse cabelo caído encima dos ombros, esses lábios frouxos e avermelhados... Saiyame diz meu nome, como a ter certeza de que estou prestando atenção nisso. Vai durar pouco, eu sei, está tão envergonhado, eu queria ver mais, por inteiro, mas foi o que eu disse: que apenas tirasse o blusão. Ele tirou. Ele é estreito e frágil como qualquer adolescente, só que alto, com ossos que prometem força... E... É todo liso, tem músculos suaves que não são de adulto, formas que encaixam nas minhas mãos, nos meus braços, eu sei. O pior é que eu sei... E já o toquei, já deslizei a mão por esses mamilos de coral, por esse pescoço longo, e até por essa barriga reta, por entre o cós e...! Maldição, o cós! O cós... Não sei a quem mais desejo, se a ele ou ao cós de sua calça de sarja... Qualquer cós de suas calças sempre me lembrará daquela promessa do botão solto, a minha mão por este corpo lindo, quase maduro que ainda tem o delicioso azedume de uma fruta que ainda não está pronta para ser comida... E é para ser comida com delícia, para escorrer pelos lábios, pelo queixo, pelas mãos... Para saciar e para despertar mais fome... E esse corpo, esse garoto... Saiyame por mais que seu sorriso seja um silencioso e indeciso convite, que me deixa louco de raiva e excitação... É virgem!
"Não me olhe assim..." – Estremece, sua voz rouca me tira desse delírio de adoração que estou experimentando, e sinto que estou sorrindo largamente, corando, e não sei de que modo estou olhando para ele, que sorri, tímido, retraindo-se como se estivesse com um frio súbito, cruzando os braços, dando as costas para mim. E não deixa de ser uma bela visão... – "Veja as besteiras que me convence a fazer..."
Acho que já sei por que Saiyame está desse jeito, rindo, envergonhado. Levanto e me vejo no espelho, estou irreconhecível, talvez eu esteja a ponto de me ajoelhar a seus pés. Talvez eu devesse beija-los. Talvez eu devesse beijar seu corpo inteiro, tomo coragem de dizer em seu ouvido quando o abraço com força, sentindo o contato das suas costas nuas e quentes contra o meu peito, através de seu cabelo solto e encorpado. Seu corpo estremece de novo, sinto-o arrepiar, está constrangido como se estivesse nu, e de certa forma está, se mostrando como ninguém nunca o viu, confiando em mim... Está úmido de suor, trêmulo, e seguro firme seu corpo perto do meu, nosso calor fazendo o ar ficar abafado. Aponto para o espelho que está na nossa frente, manchado de pó e velho, que é a testemunha muda de que estou fascinado, encantado, pois mostro a ele algo que nem eu havia visto... O quanto é bonito. E quente.
"... Viu como você é bonito?"
Seu sorriso se alarga, vejo pelo espelho, toca o próprio rosto, encabulado... Aperto-o mais no meu abraço, maravilhado com seu prazer de se ver pelos meus olhos. Vaidade. Beleza. Essa timidez, a selvageria do seu olhar... Ainda tenho tanto medo e desejo por você.
Passo a mão por sua cintura, arrepia quando arranho suas costas perto do (meu amado) cós, sinto o suor fino nelas, umedecendo seu cabelo louro, e vou subindo, desejando descobrir esses ombros. Fica todo tenso, afasto seu cabelo de cima das costas, querendo beijar sua nuca. Abro a boca para dizer palavras tão quentes quanto me sinto, mas as palavras somem com o que eu vejo nas costas dele.
Disso eu também não me esquecerei...
São cicatrizes que vão de cima dos omoplatas até onde o cabelo dele alcança, ou seja, até quase sua cintura. Engulo em seco, porque tenho experiência suficiente para apostar que algo foi cortado fora, como uma cruel amputação, mas a marca parece rente, e não muito cicatrizada... Talvez seja recente. O tempo pára enquanto não consigo desviar os olhos delas, e não é apenas uma, são um par, exatamente iguais, uma a cada lado, e por perto músculos tensos, que parecem ter sido muito fortes algum dia. Isso deve doer... Deve ter doído muito e ainda deve incomodar e doer até agora... Afasto as mãos, tentando imaginar o que poderia ter causado isso. São iguais! São fundas, mas as cicatrizes parecem rentes! Quem fez isso com você? Saiyame não me responde, baixa a cabeça, cruzando os braços com força e tremendo, seu sorriso sumiu, só resta uma vergonha igual ao desespero de ser ver sem seu gorro, quando o conheci.
"O que é isso, Saiyame?" – Minha voz quase não sai, engasgada. Já vi coisas piores, porque isso me afeta tanto? Talvez sinta dor ainda, talvez eu o faça sentir dor quando o toco...
"Cicatrizes."
"Cicatrizes do quê!" – Minha voz está mais alta, estou abalado e um tanto nauseado de imaginar o que poderia ter acontecido para ele estar marcado desse jeito... Sua vergonha, toda aquela reserva, está justificado, bem na minha frente, então... Você não é um monstro. Não é.
"..." – Fica calado por muito tempo. Nunca vai me responder, mas se houver um culpado por isso... Penso no homem que ele chamou de Lead na história que me contou. Ele fez isso com você? Como saber? Saiyame diz, entredentes e hesitante: – "Não conte a ninguém... Por favor."
"... Saiyame..." – Não sei como começar, ou terminar de uma vez com isso que era tão completo entre nós. Estraguei tudo... Sempre estrago as pouquíssimas coisas boas que existem entre nós. A cicatriz é somente um pouco mais escura do que sua pele, deve ter doído demais... Por que alguém faria isso com você? Um acidente não seria tão preciso. – "... De onde essas cicatrizes vieram?"
"Não me pergunte. Eu não posso responder. Não diga a ninguém. Por favor."
Tenho medo de toca-lo de novo. Fica quieto, olhos fechados, como se esperasse que descesse sobre ele as coisas horríveis que ele sabe muito bem que posso dizer. Um silêncio profundo volta a reinar entre nós. Não vem dele, e sim de mim, do meu medo de machuca-lo, da minha vontade de fazer em pedaços quem o machucou assim. Tenho certeza de que alguém fez isso... Sua voz quebra essa quietude amarga, baixa e rouca:
"... Agora eu não sou tão bonito quanto você dizia, não é?" – Ele dá algo como uma risada baixa, evitando meu olhar e adivinhando como nojo o meu medo de toca-lo. Por que nunca nos entendemos? – "Se eu não era uma aberração... Agora eu sou, não é, Hisashi?"
Estou agindo mal com você. Sempre faço isso, faço mau juízo, trato mal... Posso ter machucado você mais ainda, nas vezes em que brigamos, sacudindo-o como um boneco de pano, batendo suas costas nas paredes, naquela árvore do jardim do hospital, maltratando-o... As cicatrizes são suas, porém eu me sinto marcado pelas coisas horríveis que lhe fiz. Você não é uma aberração, pare de dizer isso... Eu queria dizer muitas coisas, mas tudo o que eu lhe faço é mal... Eu... Sou um covarde. Eu não o mereço, tinha ódio de sua frieza, mas eu estou me saindo pior... O monstro aqui sou eu. Sou o monstro de olhos verdes e cabelo escuro, que não consegue esconder as cicatrizes no pescoço, que olha para mim no espelho, sem acreditar que vou fazer Saiyame chorar.
O que mais posso fazer? Caio de joelhos a seus pés, me deixo derrubar por alguma coisa que não tenho forças para conter e nem quero, e assim, lentamente, calorosamente, entrego o mais delicioso dos beijos sobre estas cicatrizes. Para mim, Saiyame é menos do que sagrado e mais do que humano, e por isso é profano e tentador. Eu sinto, não sei o motivo. Não entendo. Me perdoe, por favor. Me desculpe por eu não entender você e nem o que se passa comigo. Só sei que quero me afogar nessa escuridão que cerca a sua vida, porque sou a sua maldição, e você, é a minha. É tudo o que eu queria dizer, e meu beijo o diz por mim.
E se ele me perdoa, entende esse dito pelo não dito, a resposta é tão intensa quando a pergunta.
Saiyame suspira pesadamente quase gemendo, arrepiando, estremecendo, se entregando ao meu abraço com a mesma confusa emoção que está me enlouquecendo. Ele está com o corpo todo sensível e arrepiado, inflamado, sinto que estremece a cada toque, arde e queima, e sua língua também queima, quando toca a minha, quando o beijo e acaricio suas costas, suas cicatrizes...
Acho que sem querer descobri a pólvora...
x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x
Não aconteceu nada.
Ainda.
Acho que as coisas estão indo rápido demais.
Estou assustado com o que estou sentindo, e com a intensidade do calor que eu nem imaginava que repousa no corpo intocado (eu acredito nisso e ponto final) de Saiyame. Troquei este calor e este desejo por mais um adorável banho gelado. Será que eu vou conseguir sobreviver até o inverno?
Não aconteceu nada.
Ainda.
x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x
Durante este e os quase três dias seguintes, ele se manteve ocupado, carregando pilhas de livros dos cômodos de cima para a sala, dividindo tudo, amarrando com corda, e logo quando terminou de fazer isso, uma pequeno caminhão da biblioteca da universidade em que o pai de Sakura é reitor veio buscar tudo. A casa parece ter o dobro do tamanho sem todos aqueles livros. Parece que seu trabalho aqui está terminando. Ele passa algumas silenciosas horas arrancando o papel velho das paredes, depois de ter aceitado a minha ajuda para limpar e livrar de quaisquer indícios de ritual o sótão, que foi fechado (espero que definitivamente). Falamos pouco, seu olhar claro me diz tudo que preciso saber e até em que assunto não tocar. Não me contou mais nem uma parte daquela história. Acho que ela chegou ao seu fim. E nós chegaremos ao nosso em breve, pensar isso me faz querer chorar e nem sei o motivo. Continua marcando datas naquele calendário detrás da porta de seu quarto, e sempre que não estou olhando ou por perto, aquela sombra de tristeza volta ao seu rosto arredondado e aos seus olhos de fera..
Evito falar sobre aquelas marcas, e sobre qualquer outra coisa que possa deixá-lo aborrecido. Mas Saiyame não é como antes, agora permite que de alguma forma, me inteire de seu mundo, olhe de perto sem interferir ou fazer parte.
A casa está quase toda arrumada. Com a missão cumprida, ele diz que vai sair. Estranho é que nunca diz aonde vai, está na minha frente, enquanto estou tentando prender o cabelo, no quarto – no meu, ele quase não fica mais no seu, e isso me deixa secretamente feliz – e escuta-lo me dizer isso... Será que sabe que eu me preocupo ou só quer ver até onde me importo? Como não me importar? Não quero nem sonhar que vai à casa de Tomoyo, com o risco daquele degenerado do Li estar lá. Não sou o mais indicado para chamá-lo de degenerado, mas não me acostumo a lembrar do que vi no hospital, e nem de saber que Li queria estar no meu lugar, quando sinto a mão de Saiyame puxar o elástico que tanto tive trabalho para deixar firme no meu cabelo, soltando-o.
Está me agradando para que eu não reclame? Você é bem inteligente para quem mal correspondia aos meus olhares e parecia tão inocente no começo...
"Aonde você vai?"
"Que pergunta... à casa de Tomoyo."
"Vou com você."
"Você não tem nada para fazer lá. Fique e faça o jantar." – Rapazinho autoritário. No que está se confiando? No seu tamanho? Eu ainda sou o adulto dessa casa, sabia? Não sei onde estou que não mando você para a cozinha, mas Saiyame sabe me fazer derreter. Seu dedo passa por detrás da minha orelha, me fazendo arrepiar. O quanto mais você vai me fazer arrepiar, quando nós?...
"Vou com você." – Pego meu casaco que está encima da cama e vou levando-o comigo, até a porta da casa. Aperto-o com força, conseguiu me deixar de mau humor, onde já se viu me mandar fazer o jantar? E tentando me chantagear com um carinho bobo (que ele já deve saber que adoro...)... Espero que você não esteja querendo me largar para ir atrás do Li. Ele não tem olhos verdes como os meus, pense bem. Antes de sair, digo com irritação (exagerada para que tente me levar à sério): - "Não quero ver você perto daquele filho da mãe do tal Siaoran."
Vai andando na minha frente, meio emburrado, pelo caminho inteiro, e não quer falar.
Enquanto já estou apertando a campainha da casa, aproveito para olhar ao redor. Nem sinal da Harley de Li, que bom... Venha cá. Não tem ninguém por perto... Ele dá uma risada baixa quando acerto seu pescoço com um beijo e uma mordida de leve, se torcendo. As empregadas sempre demoram tanto a atender essa porta. O jardim não deixa que ninguém nos veja de longe. Rimos juntos por um tempo, só Saiyame consegue me fazer rir assim, feito um tonto...
Fique mais tempo comigo, sim? Não tente se matar de novo e nem fuja. Nós nunca sequer passamos perto de fazer algo mais do que dormir na minha cama... Você não sente falta de nada? Não sente isso? De vez em quando você parece que é só tamanho e falta de juízo, como se não soubesse até onde esse arremedo de namoro vai nos levar. Timidamente me abraça, na soleira da porta, beijo a ponta de seu nariz e em troca ele me dá um no centro dos lábios. Tenho até medo da encrenca que posso arranjar provocando-o. Dezesseis anos de tamanho e segredos. Você tem duzentos anos quando me abraça, e o dobro disso quando enfia sua língua de repente na minha boca, me faz gemer de surpresa e arregalar os olhos. Não se atreva a fazer isso, seu...
Ele faz, agarra com as duas mãos as minhas nádegas e aperta por cima do meu jeans, com força, me suspende e me aperta de encontro a seu corpo esbelto. Me larga de um jeito que eu quase caio no chão, no mesmo instante em que a porta se abre. Estou tão desorientado que nem sei quem está aí até dar com Tomoyo, que se joga nos braços de Saiyame, ignorando de propósito, por seu olhar, o assunto daquele vidro de sedativos. Ela ri apontando para mim, que me seguro no umbral, o cabelo em desalinho, os lábios inchados, vermelho e transtornado, excitado e envergonhado do que essa pobre garota acabou de ver. Ele quer me deixar maluco...
"Eu disse para não vir... Você insistiu." – Saiyame diz por cima do ombro, com um risinho maldoso, uma satisfação infantil e cruel de me envergonhar... Você vai ver... Quando eu puder ir além daquele cós...!
Não há tempo para ficar com esse constrangimento todo. A mãe de Tomoyo aparece no fim da sala, de malas prontas, e pára para falar conosco, enquanto um táxi começa a buzinar do lado de fora. Belisca as bochechas de Saiyame e me avisa que o meu pagamento já está no banco – Não sem antes de me presentear com o olhar clínico daquela tarde de seu escritório. Dá recomendações às mulheres de preto e a Tomoyo.
"Sonomi!" – Senhor Kinomoto?
Será? Esse romance é sério mesmo? Eles se odiavam... Olho perplexo para Saiyame, depois que Sonomi passa por mim piscando um olho. Esse garoto andou fazendo milagres na vida dessa gente maluca... E na minha também. Eu acho.
Olhamos pela porta aberta, enquanto ela se apressa pelo passeio do jardim. Não é um táxi, é o reitor da universidade mesmo. Tomoyo nos manda entrar, nos arrasta para seu quarto e diz que vai começar no conservatório na primavera. Diz que está se sentindo magra demais... Pergunta o que eu acho, enquanto subimos as escadas. Bom... Nada mau. Esse seu vestido curto azul marinho é bem generoso, e as meias grossas e pretas que vão até a metade de suas coxas não disfarçam nada. Li é outro que não tem do que se queixar... E eu também não. Olho para Saiyame, que sobe arrastado pela mão, ao lado de Tomoyo. Ah, como a vida pode ser generosa...
"Eu queria ter falado com você antes... Não fui até a sua casa por dois motivos. Na verdade três. Primeiro, eu achei que você pudesse estar ocupado... Depois, quem ficou ocupada fui eu. E..." – Ela sorri maliciosa, abrindo a porta de seu quarto e nos empurrando para dentro. – "... Eu não queria atrapalhar nada!"
Agora há uma televisão, um aparelho de vídeo e umas poucas fitas espalhadas na cama, encima da colcha estampada. Nos diz que reencontrou algumas coisas de quando Sakura estava viva, mas não tinha certeza das coisas que havia gravado, pois sempre esquecia de colocar as etiquetas. Empurra um prato com pudim na mão de Saiyame e outro na minha, assim que a empregada aparece no quarto.
"O que é isso?" – Pergunto, apontando para umas cenas desfocadas de calçadas e movimento e sarjetas.
"Eu estava ajustando a lente no carro! Estava indo à casa da Sakura. Olhe só!..." – Ela dá uma pausa na fita e se joga na cama, me fazendo sentar ao seu lado e me usando de encosto. Aponta para a casa e diz que era lá que Sakura morava, e que o quarto dela era o da janela do canto. Isso eu já sei, já estivesse nessa casa, quando descobri que Saiyame estava limpando o quintal do senhor Kinomoto. Parece que Tomoyo não sabe disso, e por mim é que não há de saber... – "Eu adorava essas coisas... Veja só que eu fazia! Eu olhava tudo por uma lente..."
Olhava mesmo, filmou de uma forma bem subjetiva, filma quando se despede das mulheres de preto, quando vai pelo passeio do jardim da frente da casa. É engraçado ver Tomoyo se filmar no reflexo do vidro do carro, ela já parecia uma boneca de cabelo preto. Saiyame não vai dizer nada? Olho e ele está muito entretido comendo esse pudim. Termina o seu e pega o meu, sem me pedir licença, não que eu me importe, mas a quantidade que ele come às vezes me assusta.
"Esganado..." – Resmungo, e me ignora. Tomoyo pára a fita de novo e olha, sorrindo daquele jeito encantado, como se visse a coisa mais fofa do mundo. Talvez seja.
"Não fale assim... Não dê ouvidos a esse enfermeiro rabugento, Saiyame! Você está em fase de crescimento, não é? Vou por um laço no seu pescoço qualquer dia...!" – Ela pega o terceiro pudim da bandeja e corta um pedaço, dando na boca de Saiyame, que apenas sorri em ser mimado desse jeito. Acho que quer me fazer ciúmes, ainda estou devendo aquela da soleira.
"Afinal, por que você vive querendo colocar um laço nele?"
"Não precisa ter ciúmes!" – Ela me faz uma careta, divertida, e aperta o controle remoto para a fita continuar. – "É que ele me faz lembrar um gatinho de quem a Sakura cuidava..." – Tenho vontade de protestar que não estou com ciúmes, e não estou mesmo. Isso é besteira. Eu nem sequer gosto tanto assim dele e... – "Olhe só! O Toya!"
É o mesmo rapaz da fotografia, filmado de baixo para cima, quando ele vem pela porta da frente da casa, cruzando com Tomoyo. Ela aproveitou-se bem da situação: filmou-o dos pés à cabeça, bem devagar, enquanto ele lhe perguntava, de um jeito meio duro que faz lembrar o de Li o que ela estava fazendo. Ele aponta e diz que Sakura está na cozinha e manda parar de filma-lo daquele jeito ou vai contar para a mãe dela. Como se isso fosse adiantar alguma coisa. Ele estava com um uniforme de colégio, e com os aparentes dezesseis anos com que aparece na fita... até eu olharia daquele jeito. A pequena Tomoyo filma os próprios pés, pequenos em sapatos tipo boneca e meias brancas. Um mimo de diabinho pervertido... Ela vai entrando na casa, anunciando a entrada, pedindo licença, e uma voz de menina manda que entre até a cozinha. É o mesmo cenário que eu vi quando estive lá, a casa não mudou nada, talvez uma pintura ou outra, um móvel ou outro, mas foram mudanças leves em relação ao resto... É estranho ver essa menina... Sakura aos doze anos, baixinha e infantil, de pé num banquinho para alcançar as prateleiras de cima. Sorri quando vê Tomoyo e sua câmera. E pensar que eu a vi... A líder de torcida da fotografia... O fantasma de peito manchado, na casa do senhor Kinomoto. Arrepio e me dou conta do susto que levei, tanto que minhas mãos esfriam agora, penso que tipo de coisa ainda posso ver por aí, quanto mais perto deles, que têm tantos segredos e um passado nebuloso e trágico. Se algum dos meus colegas de hospital escutasse as coisas pelas quais tenho passado, eu provavelmente voltaria para lá: como paciente interno.
Na fita, elas conversam sobre as cartas, sobre provas de colégio, sobre garotos, e Sakura parece muito mais inocente do que a amiga. Conversam sobre o almoço que ela está fazendo. Por fim Tomoyo filma ao redor, pela cozinha e até debaixo da mesa, e pergunta por um certo "Kero". Nome estranho. Será esse o tal gato? A amiga responde, deixando as luvas de lado, com um grito, chamando-o. Achei que gatos não obedeciam a ser chamados assim...
Mas este obedece.
Simplesmente por que não é um gato comum.
É aquela coisa amarela que aparecia no colo da pequena Sakura da fotografia da cômoda de Tomoyo.
"Meu Deus... Isso anda sozinho! Não é um brinquedo!" – Me endireito no mesmo instante, pulando na cama. Estou chocado, quase enojado e com a impressão que isso é um sarro que estão tirando com a minha cara. Saiyame sabe o que está acontecendo? Ele já viu essa fita antes? Ele ainda está ocupado demais com o pudim para que eu saiba o que ele acha disso... E eu preciso que alguém me confirme que não estou vendo coisas.
"Não, Hisashi. Esse é o Kero. Kero para os íntimos. O nome dele era Cerberus. Mas fingia ser um bichinho de pelúcia como ninguém..."
Mas... Mas...Tenho um milhão de perguntas para fazer e nenhuma coragem de abrir a boca para algo mais que observações estúpidas:
"Não é um brinquedo? Essa coisa estava viva?" – Aponto, sentindo a minha cabeça dar voltas e girar, meu estômago dando um nó, e eu ainda sem entender que circo está armando-se nesse quarto, onde o palhaço sou eu, pois devo ser o único que não se acostuma com as coisas desse picadeiro mórbido e por vezes aterrorizante.
Na fita, o gatinho chamado Kero não é como um gato, é sim como um filhote de leão. A voz de Li faz um eco interminável nos meus ouvidos, quando ele me falou sobre os guardiões do mago Clow, o nome era esse? Quanto tempo?... Duzentos anos. Como um animal lendário poderia estar aí ainda? E... que horrível, ele está sorrindo. Não que seja algo feio de se ver, mas é assustador, ele tem uma expressão tão... humana. Ele pula do chão para cima da mesa com facilidade, e Tomoyo o filma, enquanto arranha a sua barriga, fazendo-o dar voltas em si mesmo.
"Está vendo, Sakura? A Tomoyo sabe cuidar de mim, enquanto eu é que tenho de cuidar de você!"
Estou tendo um enfarto... Se eu fumasse, acredito que seria essa a sensação de precisar urgentemente de um cigarro. Acho que vou tentar começar a fumar. São coisas demais para mim. O café não vai ser o suficiente para suportar tudo isso... Vou começar a beber e a fumar... Talvez até me drogar! Com certeza drogado não vou ver e nem escutar coisas tão impressionantes quanto esta!
Essa coisa fala!
"Essa coisa está falando!" – Dou um salto da cama, dizendo que isso só pode ser uma piada de mau gosto de Tomoyo, que não tem graça nenhuma e que estou ficando assustado. Tenho certeza de que não é uma montagem. A coisa está falando! – "Isso não pode estar falando! Isso não é humano!"
"Eu não disse que era..." – Me puxa de volta para seu lado e diz que a fita ainda não acabou. – "... E o Kero falava muito se você quer saber. Nesse dia ele estava até comportado! Olhe só... Ele era uma criança...! Perto do Yue, ele era muito mais fácil de lidar... Pelo menos para nós, naquela época."
"Yue?..." – Tento localizar o nome, lembrando que se aquela história aconteceu nos sentidos mais literais, então deve ter sido há mais de um século, e ela age como se fosse normal filmar criaturas que não são humanas, como esse... Gatinho equilibrando uma pêra na cabeça e sorrindo para a câmera. Li disse que Yue e Cerberus eram demônios, o Anjo e o Leão... Se eles foram filmados, como esse gato amarelo mostra que sim, então... Talvez eu esteja esbarrando numa coisa muito grande, muito maior do que eu sempre desconfiei. – "Tomoyo, essas coisas não podem ser verdade. Quero dizer... Estou vendo... Mas não estou acreditando... Essa coisa... Eu nem sei se isso é um animal..."
"Não é!" – Escuto bem baixo a voz de Saiyame, que já não deve estar tão interessado no seu doce, mas não levo em conta o que ele diz, e nem entendo...
"...Ele está pulando encima da mesa... Essa coisa tem asas, meu Deus! E fala! Além de ser muito feia e cabeçuda!..."
"Não é, não!" – Saiyame protesta, não sei porque, do outro lado de Tomoyo, mas também não presto atenção nisso...
E a fita continua com as estripulias de uma coisa amarela com asinhas nas costas, sorridente e comilona, encima da mesa, pelo colo de Sakura e dela, por entre as folhas de uma planta num vaso, dando cambalhotas por cima dos sofás... Parece uma criança querendo atenção... Se faz lembrar Saiyame, como Tomoyo disse? Não sei. Acho que não, não vejo semelhança nenhuma além da loucura por doces e por comida. Todavia, se Saiyame tem os dezesseis, dezessete anos que julgo, nada mais natural que essa fome voraz.
A câmera de Tomoyo passa em torno dos cômodos, seguindo o vôo leve dessa coisa... Então, o Leão existe. O Cerberus da história... Então, realmente a maneira que Saiyame conta aquela história é uma forma de jogar para criaturas alheias certas coisas que se passaram com ele? Então como saberia tantos detalhes? Mentindo? Ele não sabe mentir. Inventando? Como saber? Será que essas criaturas ainda existem? Talvez eu pudesse tentar falar com algumas delas... Aquelas conjurações não devem ser tão difíceis de fazer... Oh, isso não é um livro de culinária! Isso é vida real!
Além do mais... Eu sempre imaginei que fosse um leão de verdade, e não um filhote. Será que é o mesmo? Aquele que devorou o coração dos inimigos de Clow? É tão pequeno e risonho... Não oferece nenhum perigo. Fica pendurado na lente, sua cara redonda e amarela, os olhos pequenos, esse riso quase assustador de tão inesperado. Parece um bicho de pelúcia. Tomoyo parece fascinada com esse bichinho falante. Ela ainda diz que ele era uma gracinha... Será que Li sabe disso? O que ele pensa sobre isso? Ele conheceu essa coisinha cabeçuda e amarela? Tantas coisas que eu queria perguntar e o que me resta de sensatez me impede...
Escuto a colher bater contra a louça do prato quando Saiyame coloca-o, vazio, na bandeja ao lado da cama, mas nem consigo desviar os olhos da televisão, não tenho forças de querer sair correndo daqui. Impressão minha ou todo mundo considera esse bicho falando algo cotidiano?
Escuto um ronco de motor do lado de fora, mas isso também não me faz desviar a atenção. A filmagem vai em gente, a conversa banal de Tomoyo e Sakura. Falam de garotos, falam mal de Li e dos professores, deixam escapar adoráveis palavrões quando falam do diretor do colégio, são meninas, são crianças... E esse tal Kero, tanto faz como se chame, ele me assusta, ele é o brinquedo delas. E da forma que filma Sakura, enquanto ela fatia um tomate, ela era a boneca favorita de Tomoyo. Agora as palavras de Li sobre a "obsessão" dela por Sakura fazem sentido.
Kero chama por Tomoyo na fita, pendurando-se no avental de seu vestido, querendo mostrar a ela uma tal última carta que Sakura pegou. E ela vai seguindo-o, da sala até a sala, com Sakura saltitando pelo corredor, exatamente do modo que a vi fazer, ou o seu vulto, na casa de Fujitaka Kinomoto, esse modo de estalar as sandálias... A imagem treme com o riso de Tomoyo, dando voltas pelos cômodos, seguindo o vôo dessa coisa roliça e amarela. Sorte que não comi o pudim, meu estômago está dando voltas só de ver essa coisa falar, se mover, e não ser um brinquedo.
"Espere!"
"O que foi, Hisashi?"
Não posso dizer a Tomoyo o que há comigo. Estou meio fora do chão. Acabo de ver uma coisa impressionante e quase mais do que o tal Kero-redondo-amarelo, é uma coisa incrível... e linda. Não sei o que era, mas era totalmente branco como uma estátua. Ela volta a fita. Um lampejo branco aparece de novo, de braços cruzados, e roupa branca e azul, no canto. Não sei quem era, ou o quê era. Mas está lá. Eu sei. Eu vejo. Vou me endireitando na cama, piscando várias vezes, para ver melhor. Que bonito... Que coisa mais... Linda! Aponto e Tomoyo pára a fita, numa pausa cuja metade da tela fica atravessada por uma linha de estática. Ele é muito alto, perto das meninas, e parece alheio a todo o resto. Tem cabelos quase brancos e a pele parece a de uma sinistra boneca de porcelana – Mais ou menos como me pareceu Saiyame no sótão, no ritual, com a serpente em torno de seu corpo – e está olhando para o chão, com um ar aborrecido e muito sério. Isso mesmo. Parece aborrecido, com os olhos muito azuis e claros voltados para o chão. Acho que...
"Quem é ele?" – Parece um anjo de gelo, não há outra forma de chamá-lo. Como nenhuma delas que estavam na sala se assustou com esse... essa... É mais do que um menino e menos do que um homem, é frio como um pedaço de gelo, como um fantasma, de uma forma que até eu percebo isso vendo-o aí, como se ele estivesse aqui muito próximo, como se fosse um vento frio de inverno fora de época. E eu nem consigo desviar ao olhos ou pensar em outra coisa. – "Você sabe quem é ele?"
"Ele é Yue." – Diz uma voz que não pertence a nenhum de nós três.
Olho para a porta aberta do quarto, ao mesmo tempo que Tomoyo sorri, radiante, e lá está Siaoran Li, alto, enigmático, e mais perigoso do que nunca o vi antes...
CONTINUA
