Meu Destino é Pecar Capítulo 10

"Este é Yue, o demônio que roubou uma parte da alma de Toya."

Sua voz vem carregada de uma raiva surda, como se não conseguisse deter isso ao ver essa imagem branca.

Ele deixa o casaco marrom sobre o sofá do canto. Seus olhos escuros faíscam de um modo perigoso quando encontram os meus, irreconhecíveis, e se abrandam lentamente quando ele dá a volta na cama, sorrindo e se inclinando para trocar um beijo com Tomoyo. Estranho isso... É como se ele fosse outro, um total estranho quando está perto de Saiyame, nem consigo articular um pensamento sobre isso, sei que é perigoso, não sei a que ponto, de que modo, está começando a me assustar de um jeito que não gosto de estar, desconfiança. Aquele faiscar em vermelho, o seu ódio por mim... Mas ele não parece lembrar de nada ruim, quando está com Tomoyo, como está agora, deitado na cama, com a cabeça sobre as pernas dela, recebendo afagos e perguntas sobre como foi seu dia.

"Eu me sinto num harém!" – Tomoyo diz, daquele modo que faz qualquer um querer se enterrar de vergonha, natural, e tão cheio de malícia ao mesmo tempo.

Volto a olhar para a televisão, a imagem congelada na mesma pessoa... Então...

"... Este é Yue." – Li volta ao assunto, o fundo de seus olhos ficando escuros demais, e aquele lampejo voltando brevemente a eles.

"Onde ele está agora?"

"Yue está morto."

"E?..." – Não consigo completar. Nem tirar os olhos da imagem congelada.

"Quero acreditar que também esteja."

Ficamos calados, todos os quatro, por muito tempo. Li e Tomoyo trocam mais um demorado beijo, alheios a mim e a Saiyame. Desço da cama, e nem sei onde estou com a cabeça quando fico ajoelhado no chão, olhando fixamente para a imagem de Yue na tela. Yue... Este é o Juiz. O Guardião de Clow. Como uma criatura assim pode estar morta? Li disse que tanto as cartas quanto os Guardiões de Clow podiam atravessar o tempo, e vencer a morte... Ele é tão... Bonito.

"Ele é inacreditável, não acha, Hisashi?" – Li fala, creio que entredentes, talvez odeie o Juiz... Talvez odeie todos eles. Talvez odeie ter de estar com a vida presa a de criaturas que nem sequer parecem humanas. – "Não é a coisa mais linda que você já viu em toda a sua vida?"

Não sei o que dizer. Não sei se consigo negar. Estou confuso, confesso que estou sem ter o que dizer. Acho que a minha cara já responde por mim.

"É uma pena que Clow não tenha tido tanto capricho ao criar o Leão, ou pelo menos ele não teria feito aquele monstro..." – Tomoyo desliga a televisão, vindo tirar o cartucho do aparelho. Fica olhando distraidamente para as outras fitas numa caixa de sapatos, e eu penso no tal Kero, o apelido de Cerberus, não cabe na minha cabeça que o Leão possa ser como Yue, o que eu vi na fita era um animal falando.

"Você tem toda razão." – Se era para Clow ter criado isso... – "... E ainda por cima aquela coisa fala."

Escuto um baque no chão. Mais o impacto do que o som, e ninguém se importa. Nem eu. Olho rapidamente para trás, vendo que Saiyame acaba de pular da cama, daquele jeito assustador e sair do quarto, sem falar com ninguém – sem olhar nem para mim. Fico pensando o que deve estar se passando por sua cabeça. Fico olhando Tomoyo me mostrar outras fitas, perguntando se quero ver mais. Acho que não, respondo, sem graça. Ela sorri, compreensiva, e pede que eu não comente nada com ninguém sobre o que acabei de ver. Nem precisa pedir...! Ou o próximo interno da psiquiátrica serei eu!

Volto lentamente à órbita do planeta quando Li escorrega por cima da colcha, descendo da cama, e vai para a direção da porta, saindo do quarto. Isso me deixa com uma sensação de engasgo. Não gosto de vê-lo com esse olhar. Vou lá agora mesmo... Tomoyo encosta a mão no meu braço e me pede para fazer justamente isso. Ela diz que eu devo ter cuidado, por ele e por mim, é muito séria quando me manda apressar em ir ver o que está acontecendo.

Ela tem razão, sei que todos estamos assustados com as mudanças bruscas de Li quando está perto de Saiyame. A casa toda está escura e silenciosa. Como vou achar Saiyame nesse labirinto? Tanto faz... Não sei por que raios ele saiu do quarto daquele jeito. Normalmente é tão educado, nunca agiria desse modo... Corro por mais um corredor e escuto a voz de Li, vindo de uma das portas entreabertas, uma sala que dá para o jardim, mas não por isso menos escuro do que o resto dos corredores e cômodos. Quase caio na tentação de entrar com tudo e acabar com Li, e paro no mesmo lugar, entre aterrado e desconfiado quando escuto o meu nome na conversa.

Li pergunta baixo o que há entre nós. Não há resposta. Se pelo menos eu visse o que está havendo aqui! Saiyame, sua voz rouca sussurra que eu não me importo com nada que diga respeito a ele. Empurro um pouco mais a porta, indo para detrás da parede, entrevendo-os. Saiyame está de costas para Li, cabeça baixa, olhando pelo vidro do janelão fechado, a luz turva e pesada nessa faixa onde estão. O resto do janelão é coberto pela cortina, e nenhum deles me nota, ou olha para o lado da porta. Estão conversando, mas a proximidade de Li... Estou ficando aflito... Quem me visse assim poderia achar que estou com ciúmes. Não estou. Só não admito esse sujeito perto de Saiyame, sabendo que por muito pouco não o beijou antes de mim. Eu não estou com ciúmes! Não estou!

"Se ele não se importa com você, por que Hisashi o segue a toda parte?" – Ele está encostado no vidro da janela, olhando diretamente, unicamente para Saiyame, os braços cruzados, muito sério, sua voz também muito doce... Seus olhos parecem tão escuros, ele parece outra pessoa. – "Você dá esperanças a ele?"

Novamente Saiyame não diz nada. Desgraçado, se ele disser uma única vírgula eu juro que vou lá joga-lo por essa janela! Vai ficar dando mole para esse Siaoran? Vai dizer também que está me fazendo um favor me aturando na sua casa? Por que estou tão preocupado? Até eu vou achar que estou com ciúmes dele! Maldito! Está deixando Li chegar mais perto? Vamos ter uma séria conversa quando chegarmos em casa! Até me chutar você me chutou e agora deixa Li passar essa mão imunda pelo seu braço. Sobe do pulso até o ombro, por cima da camisa, de um jeito que achei que o único que podia fazer era eu! Eu vou chorar, meu Deus! Não vou agüentar ver isso! Continuo calado e incrédulo. Melhor que Tomoyo não esteja aqui, realmente.

Li fala bem baixinho que eu não dou valor ao que eu tenho. Filho da... Vou fingir que não escutei nada. Saiyame olha para ele, demoradamente. Então os dois ficam em silêncio, como está todo o resto da casa, e esse silêncio martela nos meus ouvidos. Os vejo claramente. Eu veria até através de uma parede Li apertar delicadamente o ombro de Saiyame sobre a camisa, tocar o outro, fazer com que ele fique de costas para o vidro, quase de frente em relação a onde estou. Está com o rosto vermelho, imóvel, quieto e ofegante, nem parece ser o mesmo que me agarrou na soleira da porta dessa casa, também não parece ansioso, nem excitado, quando Li segura seu queixo, corre os dedos por seu pescoço, e toca seus lábios com os dele.

Onde eu acho um revólver? Vou matar esse desgraçado! Vou Matar Li! Vou matar Saiyame! Depois vou me matar, por que acho que não posso viver sem esse garoto... Não estou com ciúmes, só não suporto a idéia de mais alguém pôr as mãos nessas carnes brancas e... Virgens!

Pestanejo, engolindo em seco, vendo que Saiyame de modo algum correspondeu a este beijo que foi mais um esbarrão do que um beijo de verdade. Ele apenas se deixou beijar, e baixa a cabeça, um pouco triste. Ele não gostou. É só olhar como mexe as mãos, como se quisesse esfregar os lábios, não o fazendo por pura educação. Se Li insistir, é sinal de que realmente não está no seu juízo.

Estou ficando bom em adivinhar as coisas... O que me parece agora é como se estivesse se dando à vontade de Li por algum tipo de conformismo, não está se vingando de mim – Talvez ele tenha ficado com ciúmes, quando me viu tão apalermado pela imagem de Yue na tela da televisão, sinto-me mal imaginando que tenha ficado triste por minha causa... – está apenas cedendo a tudo que Li quiser, cada capricho, mesmo que cruel, e nem protesta, apenas aperta os olhos, quando se chega mais a ele, com um riso baixo, meio triunfante, beijando-o de uma forma totalmente diferente, profunda e agressiva. Não tenta afasta-lo e nem o abraça, seus braços estão inertes, e Li... O desgraçado está se aproveitando da situação. Não vejo de outra forma, e vejo muito bem suas mãos irem andar por todos os lados do corpo de Saiyame, que apenas se encolhe, como se não tivesse vontade, agora. Por que não reage? Você não gosta disso, seus punhos estão cerrados com força, e está segurando a respiração. Está assustado... Li o está assustando... Eu também estou. Não é mais Li quem está aí, e por um segundo a lembrança da história que Saiyame me conta volta com toda a carga, e a imagem que se formou daquele tal Lead, cruel e insensível, ganha o rosto de Li Siaoran.

Empurro um pouco mais a porta, vendo-os por inteiro. Eu sei muito bem o que você quer. E você não vai ter antes e nem depois de mim, seu filho da mãe abusado! Já não sabe que eu sou o único que pode ter essas liberdades com esse garoto? Saiyame me marcou, é só olhar para o meu pescoço para saber isso, estou marcado para o resto da vida, por ele e para ele. A dobradiça range baixo, o suficiente para que eu note as costas de Li ficarem tensas... Ele olha para mim sobre o ombro, com olhos estreitados de raiva, completamente negros e faiscantes, seu rosto está diferente, ele parece mais velho e alheio. Um estranho. Suas sobrancelhas marcantes se aproximam, perigosamente, e nem me lembro de que Tomoyo disse que ele poderia matar com uma palavra. Antes de abrir a boca vou ter feito picadinho desse degenerado, esteja possuído por alguma coisa ou não!

Eu sei que não devo estar menos furioso, que não fico nada simpático quando estou furioso, e agora, estou com muita vontade de mostrar com quantos socos se faz uma expulsão de faculdade e cinco demissões.

"Solte-o."

Li passa a ponta da língua pelos lábios, como a me dizer que cheguei tarde demais, e Saiyame recua quando as mãos dele saem de sobre seu corpo, baixando a cabeça, aturdido.

"O seu tempo acabou, Siaoran Li."

Estreita mais os olhos, dando um passo na minha direção. Tanto faz. Eu não tenho medo de você, seu degenerado. Não gosto de dividir nada do que me pertence. Trocamos um olhar muito mais do que apenas hostil, ele me mede dos pés á cabeça, e sorri, mostrando dentes brancos, com um tipo de sarcasmo cruel e torpe, e ao tempo que eles me parecem afiados, também me parece que estou falando com outra pessoa. Se a carta da Destruição estava dentro dele , o que impede que haja mais alguma coisa? Algo mais forte, mais permanente, como se fosse uma marca, como se estivesse em seu sangue? Ele disse que era da descendência do mago Lead Clow, que criou as cartas e Guardiões, e Saiyame me havia dito que a magia o corrompeu profundamente...

"Acabou-se mesmo o meu tempo?" – Olha para Saiyame uma última vez, e passa a ponta da língua por sobre os dentes de cima, como a recordar o sabor de seu beijo. E deve ter adorado isso, porque sei que o beijo de Saiyame é a coisa mais adoravelmente selvagem que já experimentei. – "É. Talvez tenha razão."

Ele sai passando bem ao meu lado, nossos olhares se encontrando e nossos ombros quase se esbarrando. Se esbarrassem, eu voaria encima dele. Quando ele passa por mim, sinto alguma coisa fria como se o acompanhando, como se um vento glacial seguisse logo às suas costas e ao redor dele. Arrepio, de raiva e de um nojo que sobe de repente por mim, com esse frio inexplicável.

Agora, é entre nós, Saiyame. Apenas entre nós.

"Muito bem, Saiyame... O que foi isso?" – Pergunto, me aproximando bem dele.

"..." – Ele fica me olhando, calado, imóvel, sua testa está úmida e a cor de sua pele volta lentamente. Espero que tenha detestado o beijo de Li, assim vai dar valor ao que tem em casa! O que pensava que estava fazendo, pergunto, tentando não mostrar como me afetou ver aquilo, ou ele pode achar que estou com ciúmes. E eu não estou! – "Ah..." – Ele suspira, um tanto exasperado de mim, sem dar uma resposta que justifique. Quer saber, digo, pensando se isso teria acontecido se eu não estivesse babando por aquela assombração no vídeo, eu não quero saber. Tanto faz. Se queria se vingar de mim, se vingou, estou me sentindo o último dos últimos. Você está se saindo melhor do que a encomenda, Saiyame... E pensar que talvez eu tenha sido o primeiro a beija-lo, ainda não muito tempo atrás e já está assim... Dando mole para qualquer um.

"Será possível!" – Perco um pouco da paciência, se é que me resta alguma, segurando-o pelo braço, para que me olhe enquanto falo com ele. Que mania, fingir que não me escuta... Eu ainda sou o adulto daqui, sabia? – "... Eu demorei tempos para conseguir beija-lo e já quer fazer comparações!" – Não há outra explicação...

Ele se encosta no vidro, como estava antes, pensativo e sério. Quando olha para mim, quase me arrependo do que disse. Deve achar que estou com ciúmes, agindo assim. Eu nunca fui fiel a nada, e não pretendo começar agora. Também nunca esperei fidelidade de ninguém e... Está bem, eu confesso, penso, afastando algumas mechas de cabelo de cima desse rosto arredondado e bonito, não quero ver você perto de Li e nem de ninguém que queira tira-lo de mim. Mas eu não estou com ciúmes!

"Hmm... Talvez." – Ele diz baixo. Tenho arrepios com essa voz de adulto que ele tem, sempre sonho com o dia em que escutarei meu nome gemido com essa voz.

Baixa os olhos por um momento, sua mão vindo para tocar no meu cabelo. Garoto atrevido... Diz isso na minha cara: que estava vendo se Li beija melhor do que eu!... Vai me deixar doido... De raiva! E ainda está fazendo esse carinho no meu cabelo que você não me deixa mais prender? Está fazendo aquilo de novo... Passa um dedo por detrás da minha orelha. E me beija. Deve ser o fim do mundo. Saiyame nunca me beijou. Sempre sou eu quem toma a iniciativa! Sua mão se fecha no meu cabelo e puxa um pouco, até que fico bem perto, me derretendo, sendo mordido de leve pelos lábios, sentindo a sua língua na minha. Sua outra mão vai certeira no meu quadril... Seu... Seu... – "Mas eu prefiro você."

Eu sei que devo estar vermelho feito um tomate depois de ouvir isso, quase flutuando de tão vaidoso, aliviado, e acima de tudo, ofegante depois de ser beijado desse jeito. Não vou lhe dar o gostinho de me ver delirar por você, seu...

"Hmpf! Mas tome cuidado com ele, de qualquer forma... Se ele tentar alguma coisa... Me chame."

Ele faz que sim, levemente, e encosta a testa no meu ombro, se soltando nos meus braços. Eu devia acabar com esse rostinho bonito que você tem depois do que vi, não consigo ficar com raiva, o seu beijo é uma delícia, dou razão para Li ficar perseguindo-o. Eu também fiquei, ainda estou. E estou tão feliz de ter você aqui, junto de mim, sua mão no meu cabelo... Que eu até esqueço do meu ciúme.

Oh, não... Ciúmes? Eu?

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Já vamos embora. Não quero arriscar perder Saiyame para aquele maníaco (vejam só quem fala!). Fico pensando na imagem de Yue na tela. Estranho que o Leão tenha aparecido daquela forma. Saiyame nunca se referiu a ele em sua história como se fosse um animal por todo o tempo. Estou meio decepcionado, eu esperava pelo menos um leão dos grandes, não aquela coisinha rechonchuda e amarela. E como Tomoyo pode achar aquilo parecido com Saiyame? Por falar nela, está nos chamando, quando já vamos indo rumo à escada. Eu nem de longe pretendia me despedir, estou ainda escaldado com o beijo que Li conseguiu roubar de Saiyame e estou com a sensação (e eu nunca tive sensações como venho tendo agora) de que esta pode ser a última vez que os vemos.

Ela diz alguma coisa no ouvido de Saiyame. Não consigo deixar de bufar com isso. Não gosto desses segredinhos.

Nos leva até aquela sala que eu vi fechada quando vim a esta casa a primeira vez, e ainda está lá, do mesmo jeito, o cadeado e a corrente intocados, por todos estes meses. Ela aponta para o cadeado e dá um sorriso de má intenção. No mesmo, Saiyame vai e segura a corrente, perguntando se é o que quer que ele faça. É a sala do piano, onde Tomoyo tentou se matar da última vez...! Eu deveria impedir isso, devia dizer algo como "só por cima do meu cadáver!", tentar fazer Saiyame parar de se meter nisso, mas a lógica fala mais alto. O que ele poderá fazer com essa corrente? Está certo que eu o vi fazer em pedacinhos aqueles tacos de madeira do chão da casa em que está morando, é antiga, o chão poderia estar podre...

Mas e a corrente? Tomoyo diz que quer seu piano de volta.

Ele prontamente segura as duas bandas do cadeado, a caixa e o aro e puxa cada um para um lado, torcendo, como quem torce um pedaço de tecido duro, e eu nem posso acreditar no que eu vejo bem debaixo do meu nariz, e que eu só vi antes nos filmes da televisão, quando era criança. Estou... Acho que vou desmaiar... Estou ficando tonto... Não tenho tempo de ficar tonto, os pedaços de ferro tilintam caindo no chão.

Ele... quebrou o cadeado com as mãos. Li tem razão, sempre teve. Saiyame nunca poderia ser humano fazendo as coisas que faz!

"Você...! Você quebrou!..." – Fico gaguejando feito um retardado, com olhos arregalados e sem sentir nem o chão que estou pisando. Não chego a ver a alegria de Tomoyo ao reencontrar seu piano, pois assim que passa por mim, Saiyame agarra meu braço, do jeito idêntico que faço com ele às vezes, e vai me arrastando para fora. Ignora solenemente todas as coisas que tento perguntar e que não passam de palavras soltas e inarticuladas.

Eu definitivamente preciso começar a fumar!

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Estou ainda em estado de choque, e já devo estar no terceiro copo dos grandes de água com açúcar desde que voltamos para casa. Saiyame está sentado do outro lado da mesa, como se nada houvesse acontecido. Como assim nada aconteceu? Eu vi mais coisas numa só tarde do que em todos estes meses! De uma vez eu descubro que você não estava delirando quando me contava sobre o Leão e sobre o Anjo, que Tomoyo não estava errada em dizer que Li é perigoso para você e para mim, e a pior parte de tudo, nada poderia ser mais aterrador: você fez aquilo com o cadeado.

"Você me assustou muito hoje. Quero dizer. Não apenas você." – Deixo o copo encima da mesa, colocando a cabeça entre as mãos, sentindo a chegada inevitável de uma martelante enxaqueca como há mais de cinco anos não me acontecia. – "Como vocês agüentam isso tudo? Você, Saiyame! Como consegue agüentar isso?"

"Eu fui criado para isso. A minha vida inteira." – Levanta junto comigo, me ajuda a ficar em pé. Você se importa comigo, não é? Eu estou com tanto medo das coisas que estou descobrindo. Você poderia realmente ter me degolado naquela tarde em que nos conhecemos?

"Você escolheu isso? Era o que você queria?"

"Não. Ninguém nunca quis saber o que eu queria."

"E como você agüenta?" – Pergunto, quando subimos as escadas, sentindo minha boca amarga e minha cabeça pesada. Essa dor de cabeça... Já anoiteceu há algum tempo, é só o que eu sei, uma vez que já perdi toda a noção de tempo que tinha. – "Isso não o assusta? Aquelas coisas... O Leão... O Anjo... As Cartas...?"

"Assusta, mas como eu disse: essa escolha não foi minha." – Ele anda bem ao meu lado, abraçado a mim e eu a ele, como se eu não fosse o único a precisar. Eu sei que não sou. E eu lhe prometi todos os abraços que nunca teve...

Você devia estar esperando que eu reagisse melhor, não é? Eu estava fazendo o meu melhor, mas agora estou cansado, Saiyame. Você não deve nem se espantar quando eu desabo na cama, louco para fechar os olhos e abrir achando que ver Yue na televisão era um sonho e que ver o Leão pequeno e amarelo falando era um pesadelo. Nada mais de copos andando sozinhos, brisas geladas e meninas de pijama sujo, por favor, só fique aqui... Está bem? E nada de segredos. Ele coloca a mão sobre a minha testa, não faz a dor de cabeça piorar, longe disso... Começa a dizer alguma coisa que não entendo, palavras soltas, como vou saber se fala comigo? Saiyame costuma falar sozinho, acha que ninguém nunca vai escuta-lo, e agora estaria com razão, sua voz rouca e baixa acaba me fazendo dormir, a dor indo embora, o medo também...

Quando abro os olhos, é porque ele acaba de pular encima da cama. Não me lembro nem de como cheguei aqui, estou descabelado e zonzo. Droga, era algum tipo de vodu para me fazer dormir assim? Bom, apesar de não estar no meu melhor humor, a dor passou... Obrigado. Ele não se incomoda por eu dizer que era obra de feitiçaria, e baixa os olhos quando agradeço. Não fique assim. Acaricio seu cabelo, seu rosto pálido. Você parece ter estado o dia todo escondendo alguma coisa de mim.

"E se eu estiver?"

"Poderia me contar."

"Você nunca entenderia, Hisashi." – Se estica na cama, deitando sobre o lugar onde eu estava antes. Acabou de tomar banho, está em outras roupas, as pontas de seu cabelo estão molhadas pelos respingos do chuveiro. – "Nem acreditaria."

"Foi por causa disso que você não queria que eu fosse? Ou era por que não queria ninguém para atrapalhar o seu encontro com o Siaoran Li?" – Ele fica um pouco vermelho com a pergunta, não estou falando sério, eu vi quem forçou a situação. – "Por que deixou que ele fizesse aquilo?" – Pergunto, ajoelhando na cama, esfregando os olhos, estou quase certo de que o fato da minha dor de cabeça ter passado tão rápido foi um milagre, como os muitos que o vi fazer... Tudo está se acomodando logicamente na minha cabeça, os fatos, as palavras, as descobertas...

"Eu devo isso a ele." – Olha por entre seu cabelo desalinhado. Onde está o meu relógio? Para que eu vou querer saber as horas com Saiyame na minha cama? Ah... espero que a água do chuveiro esteja bem fria hoje... – "Devo muito mais... Eu não posso negar nada a ele."

Eu estou escutando isso? Engulo em seco, isso não é normal... Quer dizer que se eu não chego mais rápido naquela sala...

"Você não tem de fazer nada que não queira. Não pode deixa-lo fazer o que bem entende a você. Você viu que ele não estava bem..."

"Nada do que ele pode me fazer agora é pior do que eu já fiz."

"Está me assustando, Saiyame..." – Desvio os olhos dos seus, lembrando que não foi um sonho ter visto o cadeado se desmanchar nas suas mãos. Que perigo estou correndo todos estes tempos... A qualquer momento, poderia ter acabado comigo, e saber que estou de certa forma dependendo da sua vontade, com a minha vidinha medíocre nas suas mãos, é excitante e apavorante...

Ele também se ajoelha na cama, encima dos calcanhares, balançando o cabelo para tira-lo de seu rosto. Seu olhar me desconcerta, estou começando a descobrir o que é timidez quando ele me olha assim. Me fazendo passar vergonhas por aí... Diga que gosta de mim e não vai me matar, está bem? Quem mais vai fazer leite com açúcar queimado para você se eu morrer? Tiro a camisa e deixo cair do lado da cama. Por que os seus olhos são tão amarelos assim no escuro? Estendo um braço para ele, e Saiyame vem, me abraça e diz que não queria que tivesse acontecido aquilo na casa de Tomoyo. Toca os meus lábios, impedindo que eu fale alguma coisa, e diz que assim como ele não pode negar nada a Li, Li não pode evitar as coisas que faz perto dele.

"Até me odiar?"

"Ódio é uma coisa muito fácil de se sentir para ele." - Ele olha para os meus ombros, esfrega a ponta dos dedos encima das minhas sardas.

Não vou mais falar do assunto, fique com os seus segredos, nem quero saber como você fez aquilo com o cadeado, e nem porque Tomoyo agiu tão naturalmente. Se você só tem até o inverno, vou fazer deste outono o melhor da sua vida. Ele dá uma risada baixa quando eu digo isso, depois sua risada se torna um sorriso triste e conformado. Que olhos bonitos você tem... seu nariz arrebitado... seus lábios pequenos... esse rosto oval... parece uma fera. Não quero acreditar que você não seja humano, assim como o tal Yukito da fotografia. Me disseram que Yukito era Yue. Eu vi Yue. Sei que é verdade. Se você for como ele... Pensando e olhando bem, nem precisa ser como ele para não parecer ser humano.

Saiyame olha as minhas sardas. Que espanto... Nem parece que já deve estar enjoado de me ver sem camisa. Sempre tive sardas nos ombros, nunca havia notado? Você deve ter as suas, tendo a pele tão branca assim, e trabalhando ao ar livre na primavera e certamente também no verão... Afasto um pouco a gola da sua camisa larga e velha, descobrindo seu pescoço liso, enquanto com a outra mão vou subindo por suas costas, notando a diferença da cicatriz. Não gosta que eu a veja, mas se arrepia todo quando a toco...

Meu Deus, Saiyame tem a pele lisa como nunca vi, ele não tem mancha alguma!

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Volto do banho ainda sem imaginar que horas podem ser agora, e nem me espantam os estalos misteriosos da madeira dilatando com o frio, nas escadas, e nem o ruído dos ratos no forro da casa. Sou capaz de encarar qualquer coisa com normalidade a partir de tudo o que aconteceu hoje. Ele ainda está na minha cama, cochilando, assim inquieto, tenso. O que está escondendo? Não sabe mentir... Por que não confia em mim a ponto de me contar? Empurro sua perna para que afaste para o lado, estou com frio, nada melhor do que me encostar nele, sempre tão quente, para me esquentar. Pena que você não vai querer fazer mais nada. Sento na cama, sem acreditar no alívio de não tê-lo perdido para o Li. Você está ficando importante para mim, sabia? Nem eu acredito. Você acredita? Minha mão não sai de sua perna, sentindo como essa carne é macia debaixo da sarja. Subo mais um pouco, e paro encima de sua coxa. Está acordado. Ia deixar se eu continuasse? Ia reclamar se eu soltasse o seu botão como naquela manhã? E quem sabe o seu zíper? Pare de me olhar assim, eu nunca tive neuroses sobre estar sem camisa na frente de ninguém, e já são demais os complexos que você conseguiu colocar em mim.

Se você não quer mais nada de mim, vou ter então de tomar muitos banhos frios, até que resolva me mandar embora. Mas se mandar, eu não vou. Pergunto se estava me esperando. Faz que sim. A sua sinceridade vai acabar comigo... Saiyame levanta, com gestos flexíveis que nunca havia notado, felinos, e me faz deitar, ficar debaixo dele, do jeito que sei que gosta, me força a fazer tudo o que quer, até que eu não tenha vontade de mais nada, só obedecer. Aí, coloca a cabeça encima do meu peito e fecha os olhos. Nem pense em dormir aí, digo, você pesa toneladas quando dorme.

Ele ri. Que riso lindo... Essa voz rouca... Depois, fica calado, e quase sinto aquele silêncio entre nós de novo, crescendo como um muro invisível.

"Não faça isso, ou vou achar que a culpa é minha se você está triste por alguma coisa."

"Você já fez isso."

"Está falando de Yue..."

"Ele não está morto." – Diz, passando as unhas sobre o meu braço, enquanto vem falar bem perto do meu rosto, como um rugido baixo. – "... Mas eu não o culpo. Todos o amavam."

"Como você pode saber tanto sobre eles? Você sempre soube tudo sobre cada um deles... Não apenas os servos."

Seus olhos se arregalam, e Saiyame vira o rosto para o lado, se afastando de mim, parecendo, quando faz isso, terrivelmente velho e cansado. Mas é o mesmo. Tomo coragem de perguntar de uma vez por todas quem ele é realmente. Não responde. Pergunto por que ficou tanto tempo junto de Li, Tomoyo, Kinomoto, e sabe Deus quantos outros, consertando as vidas de toda essa gente enquanto a sua era tão confusa e triste, consolando a tristeza de todos menos a sua própria.

"Eles não precisam mais de mim. Talvez nunca mais eu os veja. Talvez eu nunca mais o veja, Hisashi."

"Não comece..." – Ouvir isso me preocupa. Você me prometeu que não ia mais tentar se matar. Nunca mais falamos do assunto, no entanto...

"E eu nem vou terminar..."

"Não faça assim..." – Passo a mão por seu rosto pálido e frio. Estou tremendo. Não consigo pensar em perder você para a morte ou qualquer coisa, que começo a entrar em pânico. Estou preocupado. De verdade. Ainda que me pareça indestrutível, ou que pareça mesmo ter mais de duzentos anos de idade.

"Não posso evitar. A culpa também é sua. Você não deveria ter me impedido. Agora, não sobrou muito tempo para mim... Eu só tenho até o inverno, está vendo? E falta muito pouco para o inverno." – Lamentou, chegando-se mais a mim e continuou, com um olhar completamente desolado e desalentado: - "Veja o que fez comigo. Maldito... Maldito seja você, Hisashi Wakai."

"Eu sou. Sou a maldição da sua vida."

Não entendo que mal tão grande que lhe fiz. Eu só queria ajudar. Só não queria perde-lo, na verdade nunca levei muito à sério nenhum dos seus medos. Sabia que não deviam ser à toa. Tem algo a ver com esse seu segredo, com aquelas coisas que você tenta sufocar o tempo todo, engolindo, sofrendo, se machucando?

"Machuque então a mim. Faça-me sofrer. Mas não sofra mais."

"É tarde demais para qualquer coisa, Hisashi."

"Não." – Digo em seu ouvido, e logo não resisto a beijar seu pescoço. – "Enquanto eu for a maldição da sua vida, não vou deixa-lo em paz."

Escuto um soluço estrangulado e sinto o cheiro salgado de suas lágrimas.

"Não chore. Vai me fazer chorar também." – E eu fico um horror quando choro. Se eu aparecer assim para você, nunca mais vai me deixar chegar perto.

Saiyame é só um garoto, deve estar cheio de medos, devo amedronta-lo com a situação que deixei se formar. Não sei como isso aconteceu. Eu nunca me senti assim, e tenho certeza de que não estou apaixonado. Você sabe disso, não? Não tenha esperança alguma de me ver apaixonado por você.

Está imóvel, indiferente à única lágrima que cortou seu rosto. Não gosto disso, me deixa triste, ver a sua tristeza me faz pensar nas minhas, nas mágoas que finjo não ter, no canalha que finjo não ser. Não quero agir mal com Saiyame, mais do que venho agindo até hoje, pior do que agi quando tudo o que eu queria era machuca-lo. Não chore... Beijo a sua lágrima, amarga e insuportável. Não tente suportar sozinho um peso tão grande. O adulto aqui sou eu, não você.

"Eu vou cuidar de você. Eu já prometi que vou lhe dar todos os abraços que nunca teve." – Beijo seus lábios, com cuidado, com mais carinho do que nunca pensei que um dia fosse querer beijar alguém. Muito menos ele. Faça tudo, penso e acabo tocando sua cintura, enlaçando-a devagar nos braços, ajoelhando também à sua frente, mas jure por tudo de mais sagrado que nunca mais vai se esconder naquele gorro.

Ele corresponde ao meu beijo de um jeito muito doce, muito lento e quente. É delicioso e tem o gosto de alguma coisa tão selvagem quanto uma força da natureza. Suas mãos estão no meu peito, mornas, ávidas. Não sei o que você quer, se nunca quis ou deu a entender de querer mais. Eu sei o quanto lhe feriram, o mal que lhe fizeram, e eu não quero ser mais um. Quero ser o primeiro (eu sou? Alguém o beijou assim antes de mim? Tocou seu corpo como eu toquei quando descobri que você não usa nada por baixo da roupa? Pelo menos poderia me dizer se é virgem como eu me convenci de que é!) e quem sabe o único. Se puder, quero ser o último.

Sua língua... Sua boca se separa da minha e entre elas, somente um fio de saliva, imperceptível. Meu rosto está quente e meus olhos estão úmidos. Saiyame também está assim, tenho certeza de que está excitado, sempre sei quando está, como o seu corpo responde ao meu, e eu fico sempre tão ansioso que tenho de ir correndo tomar um banho frio.

Não há tempo agora. Saiyame, humano ou não, já sabe que pode fazer de mim o que quiser. Dá uma dentada leve e deliciosa, um encharcado beijo encima da minha garganta... Se ele é virgem como eu quero acreditar, então tem pelo menos uma perfeita idéia do que é dar e receber prazer, seu corpo diz isso, se esfregando devagar e quente, ardente, no meu.

"Se não quer ir até o fim... Não dê o primeiro passo, Saiyame..." – Arquejo, com um resto de auto-controle que não sei se quero manter, sentindo sua boca descendo por meu pescoço, e seus dedos firmes nos meus ombros. Penso naquela noite, quando o peguei assistindo aquele filme, num dos quartos da casa de Tomoyo, quando ele me...Mostrou sua coragem. Ele quer mesmo isso? Sinto sua língua e não contenho um gemido, e tudo ficando cada vez mais escuro à minha frente, como se eu estivesse brincando com a morte, apostando alto e perdendo. É a morte que está me beijando e mordendo, estou apavorado...

Está me deixando excitado, e com todo o ardor que venho tentando controlar, todo o desmedido desejo, essa fome animal de prazer volta e eu não sei se quero conter. Não, não faça o mesmo que fez naquela noite!... Por favor, não faça isso!... Posso ter um orgasmo se você fizer isso, se você se esfregar um pouco mais forte em mim, se sussurrar alguma indecência no meu ouvido. Sim, até se Saiyame fizer isso e apenas isso, eu não vou agüentar, me sinto quente e febril, debaixo desses beijos. Não posso ceder. Não posso! Não sei se é o que ele quer... Não sei nem se é o que eu quero! Ele tem tanto fogo que chega a me assustar quando eu...

"... Saiyame!"

Sua língua... Sua boca! Estremeço com tanta força que fico estirado, derrotado, quase morto de prazer e entregue, sobre a cama, sentindo que Saiyame passa a língua, somente esbarrando sua ponta úmida e aveludada em meus mamilos, seu corpo estendido encima do meu e uma das suas pernas longas entre as minhas. Isso não se faz, Saiyame!

"Pare... Saiyame!" – Suspiro, apavorado com o tamanho da minha excitação. Devo estar completamente louco, afinal de contas, eu nunca hesitei em um momento assim. Se os tempos fossem outros, e se eu não me sentisse tão estranho a ponto de nem me reconhecer, seria ele quem estaria...

"Saiyame, não!"

Não acredito nos meus próprios gemidos de prazer e muito menos no que ele está fazendo. Está... Oh, Saiyame, quer me deixar doido... Está com a ponta de um dos meus mamilos entre seus lábios molhados, esfregando insistentemente a sua língua. Nunca mais vou brincar com você... Não está me ouvindo? Pare, por favor! Você quer ir até o fim, mas eu não! Não agora, não assim! Eu quero que você enlouqueça de prazer nos meus braços, como estou enlouquecendo na sua boca.

Não...

Escuto meu grito engasgado, chamo seu nome como se quisesse que o mundo todo soubesse que ele está me fazendo experimentar todo o medo e o desejo que nunca imaginei em toda a porcaria da minha vida. Saiyame aperta a ponta do meu mamilo entre sua língua e seus dentes de cima... Isso quase me faz desmaiar.

"Ah! Pare... Pare!" – Me escuto gemer, quase às vias de ter um orgasmo intenso e inesquecível. Inevitável.

Ele se ergue, lentamente, corado, travesso, um pouco perverso (talvez feliz, me fazendo sem querer provar do meu veneno...), os lábios úmidos e seu rosto não nega que ele também está muito excitado.

"Eu já parei." - Diz, simplesmente. Esse garoto... Atrevido... Quer ver até onde pode me levar fazendo isso? Você sabe muito bem o que está fazendo, eu fui um estúpido imaginando que você não tinha malícia alguma, penso, ofegante, tonto, levantando da cama e correndo para o corredor, e, ainda vestido, para debaixo do chuveiro.

Se eu não fosse tão orgulhoso e cabeça-dura, não precisaria desse banho gelado para me acalmar. A natureza me deu duas mãos para isso, não é?

Todavia, Saiyame, da mesma feita que eu, sabe que só vou querer por um fim nesse inferno de água fria ao lado dele. Com ele.

Espero que ele não pense que eu estou apaixonado...!

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Cerca de uma hora depois, mais calmo e certamente com um começo de hipotermia, volto para o quarto, enrolado na toalha. Agradeço aos céus ele estar dormindo tão pesado que não acorda quando puxo as gavetas para pegar uma muda de roupas.

"Como consegue ficar tão calmo?" – Pergunto, alto, querendo que Saiyame acorde para me contar seu segredo. Ele nem se move. Parece uma pedra, o rosto enterrado no travesseiro que eu mais gosto.

Vou ter de dividi-lo com ele, resmungo, deitando ao seu lado. Estou sentindo frio até nos ossos. Comporte-se dessa vez, não acorde e nem tente nada!

Muito lentamente, seu calor chega em mim, pelas roupas, e depois, mais forte, quando me lembro de que sou mais velho e tenho de tomar as rédeas dessa situação, e sinto uma nova coragem para desafiar o perigo.

Me sentindo extremamente seguro e audacioso, seguro a sua mão. Afinal, a minha coragem não é tão grande assim.

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Acho que estou ouvindo alguma coisa. Parecem rodas... Deslizando no chão. Começa longe e termina tão alto que abro os olhos. Acordo. Era um sonho. Está tudo calmo e frio, uma chuva colossal ameaça cair, e pela direção do sol na janela do quarto que ocupo, já deve ser perto de meio-dia, se não for mais. Fico com a mesma sensação de quando dormia a sono-solto, depois de sair de um plantão de trinta e seis horas do hospital. Totalmente descansado e completamente desorientado. Em horas assim, eu não saberia dizer nem se fechei o gás do fogão ou se tirei o ferro de passar-roupas da tomada.

Minha referência de onde estou é o teto de madeira corrida, pintada de branco, e o lustre em globo, branco também. Além disso, tem o cheiro de Saiyame na grossa coberta encima de mim. Madeira e algo de almíscar, muito fino. Também sinto frescor de alecrim. Como se a coberta houvesse sido guardada por um tempo em gavetas antigas perfumadas de alecrim, e ainda tivessem o calor de terem sido secas ao sol. Tudo isso é você... Me faz sorrir e eu nunca sorri tão logo que acordava! Onde você está? Não está comigo.

A cama está vazia. Parece enorme sem seu corpo comprido ao lado do meu. Fria.

Chamo por Saiyame, levanto e procuro em vão o relógio.

Não sei porquê, sinto um começo de desespero, aflição. Fico lembrando insistentemente das coisas que ele costuma dizer, sua fixação na morte, sua eterna vontade de ficar só, pensando besteiras que me assustam principalmente porque sei que são mais reais do que eu gosto de admitir, por mais loucas que sejam. Talvez esteja triste ainda, como notei que tentava esconder. Talvez esteja triste comigo, pelo que fiz ontem... Ou ainda, pelo que eu NÃO quis fazer.

Chamo baixinho por ele, quando descerro a porta para o corredor, e escuto de novo um distante barulho de rodas pelo chão. Mas o que está acontecendo? O som é real, e não estou delirando nem dormindo. Saio do quarto e olho para o fundo do corredor e para o outro lado. E então eu vejo. É uma coisa um pouco absurda, mas perfeitamente real. Não é delírio, é apenas uma menina, mas como ela entrou sem fazer barulho? É uma menina de mais ou menos dez anos, baixinha e risonha, de uniforme de colégio, laços no cabelo e... patins. Por isso o barulho. Não se assusta ao me ver, e nem diz nada, rindo, tentando dar um giro em si mesma, mas acaba tropeçando, e cai sentada, rindo ainda.

"Não deveria estar na escola, menina?" – Ela é tão engraçada, dá vontade de rir também, vê-la tentar se equilibrar nesses patins maiores que seus pés. O que ela está fazendo aqui? Tem laços cor-de-rosa no cabelo castanho, mas o corredor está claro, por que não consigo fixar a vista nela? Estende a mãozinha para mim.

Seguro, e ajudo-a a se levantar, e ela se inclina, agradecendo, espanando a saia. Esse uniforme...

"Quem é você?..." – Não estou irritado por encontra-la aqui. Adoro crianças, eu jamais me irritaria com uma. Me lembro que meu primeiro estágio em enfermagem foi num berçário, onde tive de aprender a colocar bebês para dormir, dar mamadeiras, trocar fraldas e manter todos calados, numa única noite...

Ela dá meia-volta e vai pelo corredor, deslizando lentamente no patins, dando a pirueta que tentou pouco antes, sorrindo para mim, através de mim... Acho que a conheço, esses olhos claros, os laços... Está indo pelo corredor, sem pressa nenhuma, olhando para trás. Eu a conheço, não sei de onde, mas a conheço. Vou andando atrás dela, tentando lembrar onde já vi esse riso, esse jeito de cerrar os olhos quando sorri, e ela vai acenando, e indo... O barulho das rodinhas de seus patins ficando alto, ao mesmo tempo que distante, palpitante... É meu coração que está disparado. Eu sei! Que coisa mais louca! Eu sei quem é você, digo a ela, e a menina entra por uma das portas entreabertas do corredor, sumindo, seu uniforme esvoaçando, seus olhos brilhando... Os olhos dela são verdes, ela é Sakura! Mas é uma menina! Vou seguindo-a, tudo que eu encontro é o vazio, num quarto.

É o quarto de Saiyame. Aquela bolsa de couro continua aberta encima de uma cadeira, o casaco de camurça preta, pendurado no gancho da parede. As cortinas estão fechadas. Aqui é quase mais cinzento e assustador do que o escuro corredor onde acabei de ver o fantasma de Sakura. Esse é um dos piores sustos que eu poderia ter tomado agora. Eu a toquei, escutei, eu a vi, bem na minha frente como se fosse tão real quanto qualquer outra coisa! Era tão real quanto eu, e eu a toquei, segurei sua mão... Mas estava tão diferente da Sakura que vi na casa de Kinomoto. Uma sensação de irrealidade toma conta de mim, e olho ao redor, procurando alguma coisa que me dê segurança para não ceder à tentação de gritar, como se estivesse sufocado. É o quarto de Saiyame, sem dúvida, e ele está deitado na cama, de costas para onde estou, e nem parece ter notado que entrei. Não acredito nisso... Eu o conheço já o bastante para saber quando está fingindo que não me vê ou me escuta. Porque o fantasma veio para cá? E porque estou com medo? Talvez sendo apenas um fantasma, não há mal que possa nos fazer. Saiyame fala de Sakura, da pequena Sakura, talvez tenha sido do modo que a vi que ele se lembra dela, talvez ela gostasse muito dele... Talvez ela esteja sempre perto dele... Lembro de repente da menina que lhe entregou aquele doce na tarde em que o conheci, e caio em mim de que poderia ser ela ali. Se ele pode vê-la... Por que ela o cerca se quando ela morreu ele não devia ser mais do que uma criança?...

"Saiyame?..."

Ele continua quieto, está com os olhos abertos, e está me escutando muito bem. Não comece com essa birra idiota, eu não fiz nada para você estar assim. Tento chamá-lo de novo, e chego mais perto da cama, na verdade, nos pés dela, vendo que ele tem as mãos juntas na frente do rosto. Não responde, mas aperta os olhos, como se sentisse alguma dor inexplicável, e essa dor é verdadeira.

Olho para ele, alto, comprido, esguio, grande demais e é, pensando bem, só um garoto, não tem nem dezoito anos ainda...perdido no meio dessa cama grande de lençóis brancos e colcha de retalhos. O que você tem, afinal, além da sua dor e do que não está naquela bolsa na cadeira? Tem a mim. E eu não sou nada para você. E você não é nada para mim. Mas tem a mim.

"Saiyame...!"

De repente vejo alguma coisa nas suas mãos, não por estar olhando para elas, mas por notar, enquanto olhava para seu cabelo sobre a colcha escura, algo de errado nelas. Sempre são tão brancas, mas desta vez eu as vi vermelhas. Eram de um vermelho intenso e escuro, como o sangue que estava manchando o pijama de Sakura naquela manhã que a vi. Meu coração não consegue desacelerar, é como se eu houvesse corrido muito, ou estivesse querendo fugir. E estou. Estou sentindo medo. Medo de tantas coisas, a maioria delas, eu nem sei se posso levar a sério, mas agora elas são todas importantes e vitais. Suas mãos brancas e longas estão manchadas de sangue. Mas não há sangue na colcha, e penso na sua incontrolável vontade de morrer, aquela paixão pela morte quando seu amor pela vida deveria ser maior que tudo, e isso me deixa alarmado.

Quando olho novamente, chegando mais perto, descubro que estou vendo coisas. Não há sangue. Estão limpas, brancas e bonitas como sempre, como eu as adoro. Como eu queria beija-las... Olho para as minhas próprias mãos... Sinto-as sujas de repente... Sinto-me tão sujo de repente, corrompido, pequeno, mentiroso... De repente é como se houvesse mentido para Saiyame, em alguma coisa, como se fosse minha culpa ele estar assim, triste. Mas o que foi que eu fiz, se nem eu sei? Alterno um olhar entre as palmas das minhas mãos e para ele, olho por um momento o dorso delas, e tenho a impressão de que estão manchadas. Não, não são manchas. São desenhos, são estrelas. Quê é isso? Olho de novo e elas sumiram.

"Saiyame, por favor..." – Sinto uma nota de desespero na minha voz.

Ele não olha.

Aquelas coisas que Li dizia sobre ele fazem mais sentido do que nunca. O cadeado, o chão, o ritual do sótão... A história... O que ele mesmo dizia... Não quero ter de dar razão àqueles absurdos. Não é possível que algo, uma mínima parte daquelas loucuras seja verdadeira. Eu o beijei, dormi ao lado dele, não é possível que eu não saiba ao lado do quê eu venho dormindo... Como você mesmo disse: eu não o conheço para julga-lo. Mas eu provavelmente já o conheça o bastante para exigir uma verdade sobre esse segredo que o cerca, essa coisa escura e maldita que existe na sua vida... A morte... Nem posso dizer que a morte o persegue, pois quando penso nela, só consigo pensar em você.

"... Quem é você?..." – Perdi a conta há muito tempo de quantas vezes eu já fiz essa pergunta. Neste momento, falo tão baixo que imagino que ele não me escute, que vai me deixar sem resposta, ou que mude de assunto para não ter de mentir. Ele não sabe mentir, e isso me assusta, a sua sinceridade.

Tenho a impressão de ver seu corpo estremecer na cama. Ele me mexe, se apoiando nas mãos sobre o colchão, e mais uma vez tenho de olhar para elas com atenção, para ter certeza de que não estão manchadas de sangue, como tenho a impressão de estar vendo o tempo todo, desde que vi o fantasma de Sakura entrar neste quarto.

Saiyame se coloca primeiro nos cotovelos, rolando devagar e um tanto preguiçoso na cama, o rosto encoberto por seu cabelo solto, cheios, pesados... Há muito que não me lembro de que muitas vezes ele fica mesmo parecendo ser uma fera, com essa juba loura, com esses olhos estreitos. Não consigo ver seus olhos daqui. Me aproximo, hesitante, somente um passo, e ainda me parece muito, subitamente perigoso. Saiyame está olhando para mim, os lábios entreabertos e úmidos, rosados... Ao redor dos seus olhos também está um pouco avermelhado, tenho certeza de que esteve chorando, e isso me aperta o coração. Seus olhos... o cabelo escorrega para o lado, e os vejo. Olho para ele como deveria ter olhado desde a primeira vez, como nunca me atrevi a olhar, como nunca olhei para os olhos de ninguém. Fixo a vista neles, e me esqueço até de respirar, por um único segundo, talvez mais, nunca vou saber. Olho para eles, não para o que me parecem ser, mas para o que está atrás deles, e de repente, como numa placa de vidro, o que está por detrás deles se torna tão evidente, que qualquer um poderia ver... É como se tudo que estivesse do lado de fora fosse uma ilusão, é como se eu pudesse ter visto isso a qualquer momento.

Saiyame não é, e nem nunca foi humano, se é que algum dia o foi. Nem de longe parece ter sequer uma aparência normal. Ele é mais do que estranho, mais do que estrangeiro. Mesmo que não seja nada oriental na aparência, também não me atrevo mais as dizer que seja ocidental. É como se ele não pertencesse a lugar algum. Seus olhos são intensamente amarelos, quase transparentes, como olhos de vidro de uma boneca antiga, e por debaixo dessa transparência toda, sua íris faísca em dourado, intensa, agitada. Não tenho coragem de desviar os olhos dos dele, e ele sabe o motivo do meu assombro: suas pupilas são verticais e escuras, fundas como se fossem os olhos de uma serpente ou de um demônio...

Era disso que Li estava falando o tempo todo... Ele sempre soube, ele, Tomoyo, e quem sabe todos os outros sabem que Saiyame não é como nós. Ele me causa muito mais o assombro e o medo que me causaram ter visto o inumano Yue na tela da televisão, naquela fita. O semelhante mal estar...

"Satisfeito?"

Sua voz profunda ecoa no quarto, que agora mergulha num silêncio impenetrável, que eu não posso quebrar. Respiro fundo, tentando lembrar de manter a coragem, não fugir dele, não ter medo ou nojo. Não tenho nojo, não me arrependo de nada. Só não entendo como eu nunca percebi... Não estou feliz, e nem estou com raiva, não sei o que estou sentindo, mas é como se meu mundo houvesse caído, ou melhor, na verdade é como se ele nunca houvesse existido além da ilusão, a mesma ilusão de normalidade que sempre tinha ao olhar para os olhos de...

"Saiyame..."

"Este também não é o meu nome. Não posso dizer qual é o meu nome, pois aquele que eu era está morto. Este que eu sou, é este que você vê. E este nome, Saiyame, é só uma lembrança de uma vida que nunca me pertenceu, e que me foi tirada, porque eu nunca fui dono da minha vida..."

"Não... Não diga isso..."

"... Porque ela valia muito pouco. Eu nunca fui dono do meu destino. A não ser agora. E estou preso, ainda assim..."

"Do que... do que você está falando?..."

"O seu ceticismo não o deixa ver o que está acontecendo? Você me vê agora como eu sou. Olhe nos meus olhos..." – Saiyame se senta na cama, imóvel como um pedaço de madeira, nem sequer pisca, e mal move os lábios, e eu nem sei se os move. Está fazendo aquilo... Falando através de um silêncio total. Uma imobilidade, como se o tempo estivesse parado ao nosso redor e mais ainda ao redor dele, como se ele pudesse ser o mesmo por anos, por décadas, atravessando séculos... atravessando a morte. Como nunca acreditei, eu o vejo adquirir uma aparência de algo tão mais velho que esta época, como... Li tinha razão... Como se ele tivesse duzentos anos de idade. Talvez tenha. – "... Se você acredita, eu não me importo. Mas é um direito seu saber. Você me recusou esta noite. Eu faria o mesmo..."

"Você é...?"

"Você sabe. Basta que somente você saiba."

Ele, não sei mais como chamá-lo, por qual nome, se é que o tem, ergue uma das mãos, cerrada, não com força, mas como a me dizer algo com este gesto.

"Está vendo esta mão?... Olhe para ela. Olhe para mim..." – De resto, ele é tão imóvel e hipnótico quanto uma mórbida estátua de louça, pálido e louro, com seus olhos de fera. Ele me assusta... Era assim que eu via seus olhos nos momentos de terror quando o vi morto no sótão. – "... Com esta mão, Hisashi Wakai... Com ela eu matei muitos homens..." – Cada palavra... sincera, crua, direta. Ele nunca vai tentar me fazer crer nas coisas melhor do que elas são, pois ele não sabe mentir e isso deixa tudo o que diz mais terrível e horripilante ainda. E a sua voz é tensa, mas não hesitante, e se ele sente alguma culpa por isso que diz que fez, não demonstra. – "... Alguns, muito melhores do que você."

Eu deveria ter confiado nas minhas impressões, penso, vendo-o abaixar a mão, olhando-a, esfregando a palma para limpar uma mancha de sangue que ele também pode estar vendo, ou pode estar só na minha imaginação, e que eu sei que não está lá. Ele olha para mim então, por muito tempo, em meio a imobilidade do tempo e de si mesmo, ao nosso redor, e meu coração aos pulos, bate com tanta força que imagino que até ele possa escutar. E isso me apavora, e sinto minha garganta seca quando ele a estende na minha direção, mostrando-a, a palma voltada para cima.

"Mas... Foi segurando esta mesma mão que você me trouxe de volta."

Sua mão continua estendida na minha direção. Esperando pela minha? Como posso saber? Talvez ele queira saber se ainda quero estar com ele depois do que soube... depois dessa confissão. Ele confia em mim? E eu posso confiar nele, que só se parece com um de nós na aparência, e eu nem sei o que é de fato?

Descubro que não me importo com absolutamente nada disso, nem com o fato e muito menos com as conseqüências.

Abro a boca para falar alguma coisa. Falar o quê? Não importa. Eu não me importo. Simplesmente não me importo.

Vou na sua direção, ajoelhando sobre o colchão, sem conseguir desviar os olhos dos dele, e no entanto, vendo-os assim assustados, me parecem mais bonitos do que nunca.

Tomo sua mão na minha. Talvez por reflexo – ou algo maior, que eu não sei ou não quero ter de explicar – a minha mão que vai e envolve a sua é a mesma, que, como ele me fez lembrar, como quando me recusei a deixá-lo ir embora. Está fria. Você apostou alto... Você contou com uma sorte que podia abandona-lo exatamente agora. Eu poderia ter ignorado você, os seus olhos, a sua voz, eu poderia ceder ao meu medo – quase pavor, mas não horror, este medo se mistura ainda a uma morna ternura que nunca senti, e eu não entendo porque tenho mais medo de ir embora do que de ficar. – e em vez disso... Você me desarma com a sua entrega, e eu... Afago a sua mão, com medo – verdadeiro, autêntico, inexplicável – de machuca-lo.

Estou perplexo e assustado, seja com a verdade que você joga na minha cara, ou com o que você é, seja o que for, mas não... Não vou fugir de você. Se você é o monstro que disso que é, saiba então, penso, sentindo nossas mãos se apertarem fortemente sobre a colcha, nosso olhar encontrado, saiba que nunca conheci um monstro com um beijo mais delicioso.

Eu deveria fugir desse monstro...

Ele tem a morte nas mãos, é a própria morte: um anjo que eu vi vestido de negro com uma foice na mão. Que já matou muitos, e... Ele é tão jovem.

"Você é só um garoto." – digo, como se tentando negar pelo menos mais uma vez, tudo o que sempre esteve à minha frente e que eu não conseguia – ou não queria? – ver.

"Eu não sou. E você sempre soube disso. Pare de tentar se enganar." – Ele pisca, de um modo que nunca notei, suas pálpebras se tocam lentamente, encontrando-se num gesto felino e selvagem. Engulo em seco.

"Eu vi Sakura. Acabo de vê-la entrar aqui. Você era uma criança quando a conheceu... Eu sei disso... Pelo tempo... Há dez anos atrás, você... Você deveria ter quantos anos? Quantos? Sete? Oito? Não sei... Mas é impossível que não tenha sido assim... Impossível." – Minhas palavras são confusas, assim como meu pensamento. Digo coisas soltas, explicações possíveis, para justificar o que ele quer que eu acredite. Eu tento de todas as formas fazer parecer que o que ele diz é mentira. E eu sei... Que não é.

"Quando eu conheci Sakura... Eu realmente fui uma criança. Para ela. Apenas para ela. Mas eu não era: eu sou como você me vê, Hisashi, mas Sakura... Sakura era... apenas uma menina. E para ela eu fui uma criança, sem culpas ou recordações.De outra forma..."

"Impossível..." Eu fico repetindo, somente comigo, baixo e tenso.

Pela primeira vez, Saiyame dá mostras de impaciência, balançando os longos cachos de cabelo, quando ele respira fundo, e apontando para si mesmo e para o espaço ao seu redor, me diz, como se achando um teste para sua paciência a minha resistência em aceitar o que ele fala, apesar de todas as evidências:

"Se isto, se eu... se tudo o que há ao seu redor é impossível, Hisashi Wakai... Então o que é isso no seu pescoço? Você não deveria ter se envolvido nisso..."

"A menina... no jardim..." – Eu me sinto tão idiota, de repente...

"Sakura."

"Você pode vê-la?" – Pergunto, olhando-o com olhos quase tão arregalados como os de um pombo.

"Eu só a vi duas vezes." – Seus olhos tão dourados e ardentes brilham, úmidos como se fosse chorar... – "Quando um anjo pôs uma flor na minha mão... E ninguém nunca me havia dado nada... E naquele jardim."

"O Anjo... É?..."

"Yue. O Juiz. Ele não está morto. Quase nada, e nunca a mão do homem, poderia mata-lo." – Ele umedece os lábios, contendo um sorriso amargo. – "O ingrato Yue. Não sei... O belo Yue. O Juiz Yue."

"Então...?" – Penso na imagem de Yue na televisão, branco, lindo... e impossível. Pelo menos na minha lógica, a existência de um ser como ele... é impossível. Quando a mão de Saiyame aperta a minha por um breve instante, eu penso em uma única criatura que me assustou naquela fita, mais do que o Juiz... – " Se Yue é o Juiz... Então aquele..."

"... É o Carrasco."

Sua voz rouca engasga, embargada, ele sabe de quem estou falando. Respira fundo, de uma maneira dolorida, e não solto sua mão. Avalio seriamente o que estou fazendo e sei que é loucura. Todavia não me importo. Eu sei a mão de quem estou segurando.

Estou segurando a mão da morte.

CONTINUA