Hisashi escuta duramente a verdade, crendo, apesar ou por tudo, e sentindo que sua alma é dilacerada a cada palavra. Aquele cuja mão está sob a sua, quebra uma promessa feita, e ousa dizer o que é, por isso ser um peso demasiado, um segredo insuportável, numa existência cheia de segredos, culpas, remorsos e mágoas, igualmente pesados demais, ainda que quem os carregue de alguma forma possua a eternidade. No entanto, a eternidade é um tempo longo demais para silenciar a voz da dor e do desespero. Assim, a história recomeça, encontrando no fim o que talvez seja simplesmente o começo de tudo.
Durou um único instante, em que sentiu suas mãos dormentes e não só elas, como todas as outras sensações do seu corpo eram fugidias e enganadoras. Ele se sentiu completamente arrancado da terra, e isso o assustou tanto que parou, sentindo o movimento do tempo voltar ao seu redor.
Cerberus havia se sentido completamente outro, outra pessoa, diferente mas ainda o mesmo. Outro aspecto de si mesmo. Era isso. Uma ausência. Por um momento ele foi o Carrasco. Sentiu-se aquilo que vinha sendo há anos: o executor, no direito e no dever. Olhou para suas mãos pálidas, e depois em torno de si. Estava exatamente no alto das escadas, seus pés descalços quase na beirada do primeiro degrau. Sentir-se o Carrasco, ver-se assim, era assustador e inevitável. Aquele era ele próprio.
Escutou um estalo ao longe, um rangido e um passo descalço. Ele mal se virou e ainda pode ver Yue desaparecer na escuridão do corredor, e um medo antigo palpitou no fundo do seu coração inumano. Gritou por ele instintivamente, de uma maneira misteriosa sabendo o que ele poderia fazer, no juízo em que estava. Ele gritou, chamou e pediu que não fizesse aquilo. E Yue ria, entre lágrimas, entre palavras de amor e ódio pelo Mestre, surdo aos apelos de Cerberus.
A veste branca esvoaçava na escuridão, ele, Yue, estava febril e desesperado, cheio de raiva e ressentimento por todos:
"Você! Você não me protegeu! Tenha ao menos piedade de mim e mate-me se um dia acontecer novamente!" – Ele arquejava, esmurrando agora as portas do quarto de Lead, abrindo-as com um rangido e um estrondo. – "E o Mestre! Ele dizia que me amava!... Ele nunca ergueu a mão para mim! E veja, Cerberus, o que houve por sua culpa!"
Yue tinha razão. Por culpa de Cerberus. Sem ter conseguido-o, Lead atingira-o através de Yue, machucando-o, decepcionando seu amor da forma mais cruel.
Cerberus estancou na porta, vendo um trêmulo Yue que mal se sustentava de pé puxar a cortina que cobria os livros na estante rés a parede, rasgando a seda estampada, derrubando os livros.
"Você me disse certa vez! Você me falou da carta que o Mestre esconde!"
"Não! Não!" – Ele gritou e implorou, então, que Yue não fizesse aquilo, e antes de conseguir vencer a distância que os separava, o livro onde a carta da Justiça era selada já caía no chão e ela estava nas mãos de Yue. Não foi preciso que ele soubesse exatamente em qual livro ela estava, seu poder, sua simples presença era magnética e irresistível sobre os servos. Eles poderiam ser tão sensíveis às cartas quanto o próprio Lead.
E Cerberus esteve a menos de um passo de distância, antes de vê-lo envolvido pela força da carta, que o abraçava até mesmo antes de ser partida, rasgada em duas, desaparecendo nas suas mãos, e Yue, também desaparecendo, como se fosse apenas um vulto na névoa, desfeito pelo vento selvagem.
Agora estava só. Como sempre soube que estivera. Ele e seu desespero. Ele e seu ódio. Não sabia ao certo o que acontecera a Yue, antes seus olhos, mas algo dizia-lhe que ele estava morto, matara-se, em meio aos pedaços de sua vida destruída. Esse mesmo algo disse-lhe que nunca mais voltaria a ver seu irmãozinho. E que a culpa de tudo isso ter acontecido era unicamente sua.
Aquilo o fez se envergonhar de sua vida e de tudo o mais. Estendeu suas asas na escuridão do quarto vazio (impregnado de uma maneira distante e suave do perfume do Mestre, tudo estava de tal forma arrumado e intocado como se não houvesse sido habitado. Ou que não voltaria a ser.). Cerberus olhou as plumas que se soltaram de suas asas quando as abriu, espalhadas, leves, distantes umas das outras, brancas, irreais, sobre o chão negro, na pesada e carregada penumbra. Ofegou, sem conseguir conter tudo o que se passava na sua mente.
Yue, o pequeno Yue... Perdido. Violado. Cheio de ressentimento e mágoa.
Sim, a culpa era dele.
Mas havia tempo de consertar isso, e então pelo menos um deles poderia ser livre. Antes de sumir no escuro do quarto, Cerberus estendeu o máximo que pôde as suas asas, lembrando da indescritível sensação de liberdade de quando fugira para ver o circo, e temeu por sua vida. Ele nunca havia sido livre, e nunca escolhera nada daquilo. Escolhia agora: mataria o Mestre.
Engolindo de atravessado, ele se permitiu engolir pelas trevas que o envolviam e pelas trevas que emergiam, inexplicáveis, do seu coração, afinal, o mal, a morte e a selvageria estiveram nele desde quando Lead o trouxera a esta existência.
Ele voltou a perceber um contato com algo físico quando seus pés descalços tocaram o frio de pedras e limo. Ele sentiu a escuridão ao seu redor como se fosse uma parte dela. Lentamente tirou as mãos com que cobria os olhos, sabendo onde estava, mesmo que houvesse anos que não pusesse os pés ali. Descer aos níveis mais baixos dos porões do palacete era com descer ao inferno de todas as suas recordações. Ele queria encontrar o demônio que regia a orquestra de terror daquela casa. Ele sentia Lead pela energia de sua magia, por sua presença, pelo imperceptível cheiro do seu perfume, que lhe nauseava apenas pelas recordações que trazia.
Cerberus teria aceitado e se conformado com qualquer mal que lhe houvesse sido feito, mas achava inconcebível e imperdoável que Lead houvesse de qualquer forma magoado Yue... Ele estava na metade das estreitas escadas que desciam para o labirinto sob a casa, o salão dos rituais mais negros, a cela, os grilhões onde ele fora acorrentado pela cintura e pelas mãos e pelo pescoço, onde Yue também experimentara a dor do peso da corrente e da fome e sede que se arrastaram por três dias antes de... E havia o pavor do cheiro fétido dos porões, da escuridão, dos insetos tentando devorá-los vivos, os ratos. Ainda lembrava da jaula onde estivera o leão que vira morto ao seu lado.
Sentiu o Mestre, mas não o viu em lugar algum. Entrou pelo corredor, passou pelas galerias de teto baixo e entrou para o lugar onde ele nascera para as trevas, e onde vira Yue nascer também. Não escutou o Mestre, escutou o tilintar da corrente, e com isso sentiu-se tão provocado que por pouco não cedeu ao impulso de caminhar como um leão, como a vergonha e a ira do que permitira acontecer exigiam. Foi para o fundo da curva, onde seus olhos inumanos divisavam, sabia do que se tratava, porém seu horror em descobrir era tal que não conformava-se.
Escutou o choro baixo, impotente. Lembrou-se de Yue, faminto e sedento, e apressou o passo, encontrando, presa à parede, uma criança, iluminada pela luz mortiça da lâmpada de óleo de baleia.
Ela parou de chorar por um momento, assustada talvez, com a sua silhueta recortada no umbral da porta. Cerberus olhou atentamente para a criança: era um menino que ele calculou ter menos idade do que ele se lembrava de ter quando viera para o palacete, e maior do que Yue (que era pouco mais que um bebê) quando foi entregue aos seus cuidados. Era um menininho bem nascido, não era uma criança de orfanato, suas roupinhas eram de bom corte e tecidos caros, estava descalço, somente nas meias brancas atadas nos joelhos, que ela abraçava nervosamente, antes de estender-lhe os bracinhos, as mãos pequeninas esfoladas do contato com a pedra.
Aterrado, Cerberus se aproximou até estar bem próximo, sabendo o que o Mestre faria de novo. Não entendeu o motivo, o que se armava ao redor deles... A casa vazia, os segredos...
"Estou com fome!" – O menininho falou, na língua dos ingleses, apontando para a lâmpada que estava no chão. Cerberus olhou e viu um prato ao lado dela, com os doces que ele reconheceu terem sido feitos pela cozinheira na noite anterior: pastéis portugueses, doces de nata e ovos, doces de açúcar branco e claras de ovos, balas puxadas de mel, e mais outros tipos de coisas que as crianças costumam adorar, pedaços de frutas passadas em calda de açúcar e creme de leite. Mas o prato estava longe demais do alcance dele.
"Me ajude!" - A criança gemeu, agarrando a beirada da túnica de Cerberus. - "Estou com fome!"
Sem pensar duas vezes, refeito do susto de imaginar que o mal seria feito a mais um inocente, e disposto a não permitir isso, Cerberus pegou o prato e trouxe-o para perto do menino, que começou a devorá-los com... com ... A avidez de mais de dois dias de fome... Ele olhou para o menino, sabendo porquê ele estava ali e a comida tão próxima e tão distante: pela mesma crueldade de Lead, que derramou a água naquele chão (que era enegrecido pelas marcas de sangue seco sobre as pedras).
Abaixou-se ao seu lado e segurou com cuidado o grilhão de seu pescoço, pedindo com voz suave que o menino não tivesse medo, que tudo ficaria bem. O grilhão partiu-se em dois somente com a força das suas mãos, e o menino sorriu aliviado, depois de ter acabado os doces do prato. Cerberus fêz o mesmo com o aro de sua cintura, tentando não machucá-lo mais ainda.
"Você é um anjo?"
Cerberus sentiu suas mãos perderem a força e deixou os pedaços de ferro caírem ruidosamente nas pedras.
"Não!..."
"Mas você tem asas! Me leve para a minha mãe!" - Ele se agarrou no seu braço e o servo afagou seu cabelo escuro e liso, enquanto escutava um "por favor" que não tinha fim. Como tirar o menino dali, sem que Lead soubesse? E quem cuidaria dele?
"Onde está a sua mãe?"
"Ele..." - O menininho arquejou, enquanto Cerberus soltava-o das correntes de suas mãos. - "... Ele me tirou dela! Ele disse que me daria asas de anjo! Você é um anjo?"
"Ele?..."
"O homem de chumbo! Ele me deu um pião e me prometeu asas!"
Ele estava falando de Lead! Cerberus cedeu sobre um joelho, e logo voltou a si, lembrando que não poderia permitir isso. De novo não! Já bastassem ele e Yue naquele inferno!
"O gato grande!" - Ele apontava para um canto que a lâmpada não conseguia iluminar, sua mão pálida e machucada, agitada com urgência. - "O gato estava chorando!"
Gato? Cerberus pestanejou, descobrindo nas palavras de uma criança de três ou quatro anos a verdade sobre o futuro que o Mestre planejava para ele. Ele o mataria agora, e criaria outro servo para defendê-lo, acabar com seus inimigos. Agarrou a alça da lamparina e segurou a mão do menino, trazendo-o para junto de si.
Aproximou-se do canto escuro e encontrou a antiga jaula, pequena demais para a pantera agitada em seu interior. Esse era o gato. O choro era na verdade um inquietante ronco que vinha da sua garganta, um som como o de um serrote, gutural e forte.
Era uma pantera, negra como um pesadelo, de olhos verde-amarelados, luminosos como vaga-lumes, fosfóreos.
Cerberus sentiu tanto temor pelo menino que se sobressaltou em que seu pé resvalou no pião de madeira esquecido no chão. Era idêntico ao que habitava algumas de suas lembranças mais distantes. Um dia, Lead também lhe dera um pião como esse.
Levou o menino até o outro lado do compartimento, e disse que ficasse ali, bem quieto, e que esperasse, pois ele voltaria para tirá-lo de lá.
"Me leve com você! Por favor! Me leve com você, anjo! Eu quero a minha mãe! Aqui é tão escuro!"
"Eu vou voltar! Prometo que vou tirar você daqui! Vou mandar o homem de chumbo embora!"
Ele não se deixou abalar pelo choro silencioso do menino, mas seu coração apertou-se. Precisava arriscar tudo agora, mais do que por ele ou outro, pela criança que lhe confiava sua vida, obedecendo, juntando as mãozinhas na frente do peito vestido com a camisinha adornada de renda, repetindo baixinho uma oração infantil.
O servo olhou uma vez ainda para trás, sua mão procurando e achando, nas dobras da túnica, as cartas cujas existências lhe davam a força do que eram, mais do que a carta do Sol, que fora rasgada quando ele fora criado. A carta do Fogo e a carta da Terra. Se as rasgasse... Se as rasgasse, teria poder para enfrentar o Mestre, mas teria para matá-lo? Rasgando-as, o último laço da forçada lealdade estaria desfeito dali para sempre, e o que haveria ainda, se houvesse, de humano em Cerberus, também. Suas lembranças, o modo que enxergava o mundo, a si mesmo. Ele mesmo. Ele se tornaria o Carrasco, deixaria de ser ele mesmo para poder enfrentar Lead, o homem a quem um dia ele acreditara poder chamar de pai.
Aquele menino inglês faminto e assustado já havia visto mais do que as crianças devem ver, e sofrera mais do que ninguém merecia sofrer com tão pouca idade.
O servo deu mais um passo para a negra atmosfera de fora daquele compartimento, onde o menino não poderia ver o que ele faria.
Então, com um gesto seguro e lento, percebendo a sensação da proximidade de Lead ficar mais forte, ele trouxe a carta da Terra para suas mãos e, cerrando os olhos na escuridão total, a rasgou. O poder se espalhou nele, em sua carne, como raízes de uma erva venenosa, e a sensação das bandas das cartas sumindo nas suas mãos era dolorosa. Agora, ele podia perceber cada mínimo movimento sobre a terra e abaixo dela. Os miseráveis seres que viviam nela, a forma que era depositada ali, que corria como veios por ela. Poder... Ele amaldiçoou esse poder que devorava as noções de humanidade mais singelas que possuía.
Sentindo-se a cada segundo mais irreconhecível, e mais parecido com o Leão que devorara o coração do feiticeiro, ele tomou a carta do Fogo nas mãos, escutando como se ela o chamasse. Fechou os olhos, sentindo a última lágrima do seu antigo aspecto descer por seu rosto, enquanto pensava com carinho no pequeno Yue, e entre seus dedos, a carta rasgou-se lentamente.
Calor.
Luz.
O poder da carta foi tão intenso ao tornar-se um com o poder da carta do Sol que habitava dentro de Cerberus, e com a da carta da Terra, que iluminou tudo, como se um poderoso Sol houvesse surgido naquele maldito porão.
Ele sentiu o corpo ceder sob o peso do poder e da dor, e caiu de joelhos nas pedras, e quando achou forças de se levantar, já não havia dor, apenas um desejo irracional de vingança, um talento para a matança e um prazer indizível pela chacina. Quem ergueu-se, a luz irradiada por ele avermelhando-se e sumindo como num crepúsculo, foi o Carrasco. Cerberus ainda vivia, não o mesmo, mas vivia, e era o Carrasco.
Ele pisava sem sentir o chão em seus pés, sem sujar suas palmas. A sensação de sua própria presença era que ele não tinha mais exatamente uma forma física. A forma que vestia era como uma ilusão, que podia ser desfeita à sua vontade. Não restou nele quase nenhuma recordação, sentimento. A emoção que tinha agora, avançando no rumo daquele encontro predestinado, era somente um reflexo das que ainda ecoavam nele: o desejo de matar o Mestre, proteger o pequeno, vingar Yue... Vingar a si mesmo.
Cerberus, o Carrasco, ergueu a mão à frente, e fez com um gesto simples o mesmo que fazia quando criança, para divertir Yue nas noites mais escuras: relampejou algo como um chicote de fogo, que iluminou tudo ao redor, e revelou o rosto perfeito, o sorriso de zombaria e crueldade de Lead, que espreitava logo ali, à sua frente, surgindo numa conjuração que ele terminava de pronunciar.
"Veio falar comigo, Cerberus?" – Lead agitou o báculo no ar, e numa lufada de vento, as tochas há anos, décadas apagadas em seus suportes nas paredes de pedra, acenderam-se, estalando, iluminando-os. – "Tem algo a me dizer?"
Ele não respondeu. Não com palavras diretas. Um olhar tão penetrante e terrível atingiu Lead de tal maneira que o seu sorriso desapareceu e no lugar dele, apenas uma expressão de asco.
"Aberração... Você veio para me matar... Você jamais desceria até este lugar por nada... Aqui eu lhe dei a vida. Aqui, você encontrará a morte!"
Atirou o báculo ao chão e invocou as trevas, erguendo a carta que regia todas as outras e que igualmente ele teve prazer em permitir que regesse sua vida: a Escuridão, que na forma de densas espirais negras, correram pelo chão como imensos vermes de olhos vermelhos e cegos, cercando Cerberus, que nada fez, somente via a escuridão em torno de seus pés, ao redor dele.
"Eu sinto poder em você, Cerberus... O poder das cartas que eu lhe dei um dia..." – Lead via que ele não oferecia resistência aos braços da escuridão que o cercavam, e assim imaginou que tudo encontraria seu fim antes do que qualquer um poderia prever. Era no que ele acreditava, pois o Mestre nunca admitiria ter num ser criado por ele um rival à sua altura, em poder e astúcia... – "... Eu coloquei esse poder nas suas mãos. Eu lhe dei o poder de um Sol... Eu lhe dei poder suficiente para me destruir... E sabe porquê, Cerberus!" – Ele gritou, afrouxando o nó do torçal que fechava o seu traje de ritual (a túnica de veludo azul escuro e dourado, ornado com o sol e com a lua) e que se espalhava até pelo chão, e erguia-se, quando ele estendeu os braços, as cartas repousadas no livro aberto no chão, elevando-se, uma por uma, agitadas pela invocação de Lead, cercando-o como pássaros furiosos, voejando ao seu redor.
O Carrasco nada fez para afastar a Escuridão. Ela o cercou, o envolveu, mas não o machucou, ela reconhecia poder ser destruída, e por isso, e com isso, com um lampejo incandescente e amarelo que irrompeu através do Carrasco, os vermes negros tombaram, pulverizando-se no chão, deixando seus contornos marcados nas pedras do chão. Lead sentiu esse poder, o ódio que era voltado contra ele, e assim...
"Eu lhe dei poder... Mas você não saberia o que fazer com ele, Cerberus! Você jamais se voltaria contra mim! Você jamais faria algo contra mim!" – Ele gargalhou, compulsivamente, estendendo mais os braços, sua magia, invocando os elementos, chamando cada carta por seu encanto, as mais mortíferas, as mais selvagens, pronto a se livrar de Cerberus. E ele ansiava matar seu servo tão ardentemente quanto sua vida toda ansiara possuí-lo. E seu corpo todo vibrava com a sádica alegria de preparar-se para matá-lo, como numa tensa antecipação de um êxtase de gozo. Ele dizia e acreditava, e repetia-o em seu riso, enquanto as cartas mais perigosas já se manifestavam na direção do Carrasco, e seus olhos de chumbo se tornavam quase azuis de tanto deleite:
"Você jamais teria coragem de fazer nada para me destruir!"
... E naturalmente ele estava errado. Por medo (que nunca deixou de sentir, desde quando viu Cerberus menino esmurrar o chão de mármore até quebrá-lo) ou por orgulho (ele o criara, mas nunca o conhecera no sentido mais essencial, ele nunca soube o que se passava em sua mente, no seu complexo e obscuro mundo interior, no seu silêncio... O silêncio que Cerberus fazia era tão cheio de mistério que até Lead intrigava-se. Mas ele nunca fez esforço algum para entendê-lo) o Mestre só pôde acreditar no que seus olhos e ouvidos lhe diziam depois que sua mais profunda percepção o fez sentir a magia das cartas no Carrasco. Era a Magia, depois foi o gesto, as duas mãos unidas como em prece na frente do rosto, os olhos fechados, o profundo silêncio em torno dele (o silêncio da morte?) e a Escuridão afastando-se dele, retornando para o lado do seu senhor.
Tão incrédulo, Lead não soube que aquele instante de calmaria predizia a tempestade. O Carrasco continuou imóvel, até que abriu os olhos, e então... Então Lead soube o quanto subestimara seu servo, o quanto ele mesmo estava errado em achar que nunca voltaria para ele o ódio que depositara na vida de Cerberus.
Quando os olhos do Carrasco se abriram, um estouro tão violento quanto súbito quase arrancou os pés de lead do chão, e as cartas que o cercavam colaram-se na parede atrás dele, enquanto uma cáustica luz o esmagava. Não era preciso dizer nada. Lead sabia porque aquilo estava acontecendo, ele não dava um único passo sem saber exatamente o que viria a seguir, mas neste momento, sentia que pisara em falso, que nunca imaginaria que Cerberus faria isso.
Sua segurança do princípio daquele confronto cedia perigosamente ao temor por sua vida, havia brincado com a morte por muitos anos. Era hora de pagar por seu atrevimento.
O Carrasco continuava com as mãos unidas na frente do rosto, e seus lábios agora se moviam sem som, e deles, proferida sem pensar estavam alguns dos mais poderosos encantamentos em latim, coisas que o Mestre nunca suspeitou que cerberus fosse capaz de aprender, que o dissesse de usar. Porém, como Lead havia dito, ele lhe dera poder. O que não previa era que ele o usasse. E usava. E sabia o que estava fazendo, o chão vibrava ali, naquele porão, entreabriam-se fendas finíssimas nas pedras escuras, e um rio de fogo corria sob elas.
Estavam em pé de igualdade.
Lead atacava-o com os ramos da hera, que desmanchou-se em fogo. A Água ferveu sobre as pedras e um vapor fétido com cheiro de enxofre encheu o ar do porão. E as Trevas recuavam respeitosamente. O Gelo simplesmente não reagia. Cada elemento, cada força da natureza, anulado, desfeito pela força das palavras que ele dizia no seu silêncio destruidor. As cartas que tinham a regência dos elementos da noite encontravam afinidade com as trevas que residiam no coração do Carrasco. E Lead via seu fim muito próximo, e no seu desespero de se encontrar vulnerável ao monstro que ele próprio criara, esmurrou o ar, gritando o nome de todas as cartas que tinha sob o seu poder, e a magia era tão intensa ao seu redor que elas, coladas ainda na parede de pedra, correram com vontade própria, cada uma tomando seu lugar na mandala que desenhou-se ali, e atacou o Carrasco com as mais atrozes ilusões e meios de distraí-lo, somente o bastante para tentar derrotá-lo.
Tentar.
Nada garantia que fosse conseguir.
E mais uma vez falhou.
As mais assustadoras ilusões não surtiram efeito, pois o Carrasco não conhecia o medo. As mais enganadoras ilusões também foram inúteis, afinal, o Carrasco não tinha desenhos. O medo e o desejo eram parte dos restos de humanidade que ele agora desconhecia. Tudo o que o Carrasco conhecia era a morte.
Se houvesse algo de humano nele, estava muito bem escondido.
Ele não cessava suas palavras, o chão esquentando, a pedra incandescendo e o limo do chão queimado, exalava um cheiro acre e fétido.
Lead sentiu-se em frente à própria morte quando o Leão deu um passo na sua direção, e ele conheceu a covardia, temendo-o tanto que não sentia-se capaz de enfrentar o Carrasco sozinho.
O Mestre, em desespero, fechou os olhos com força, chamando pela carta do Veneno e ela obedeceu. Uma serpente negra e reluzente em furta-cor escorregou da sombra de lead, que se projetava na parede atrás de si, com a luz intensa que o Sol que repousava dentro do Carrasco irradiava, e essa serpente tomou o rumo da parede oposta, correndo veloz sobre o chão escaldante, deslizando para a abertura do compartimento em que o menino estava, esperando por Cerberus, que prometera salvá-lo.
E então o Carrasco traiu-se, e mostrou o último eco de humanidade que restara em sua manifestação. Ele abandonou a palavra da invocação para voltar seu poder para a serpente do Veneno, detendo-a, esmagando-a, fazendo se retorcer, queimando. Aí, Lead encontro à fraqueza necessária para derrotá-lo.
Foi o que ele fez.
Ele não tinha poder para matá-lo, uma vez que embora tivesse muito poder e vontade, ainda era apenas um homem. Logo, a única saída seria aprisioná-lo. Não vendo outra opção, ele aprisionou-o no livro onde as cartas eram seladas, colocando tanta obstinação naquilo que esgotou-se totalmente, a força que fazia as cartas erguerem-se no ar cedeu junto com ele, que olhava, exausto, para a serpente que queimava, transformando-se na carta de sua natureza. Estava acabado, agora tudo era uma doce calmaria.
Se houvesse um mestre das cartas após ele, este então jamais seria como ele ou melhor do que ele o fora. Acreditava nas palavras que disse a seus servos um dia. Que Cerberus, se é que um dia sairia de sua prisão, que descobrisse isso com seus próprios olhos, que sentisse a falta daquele mestre que ele odiava e negava. E Yue... que o amor que o doce Yue tinha por ele fizesse deste incerto julgamento o resultado que o que se atrevesse a tomar o lugar de Lead, tivesse o fim que merecia. A morte. Como ele mesmo um dia tivera de morrer para entregar-se àquele poder. Morrer por dentro, para conquistar o poder da imortalidade de seu conhecimento. E o preço que ele pagou fora alto, mas pagaria-o mil vezes mais pelo poder que conquistara. Morte.
"Por que não dissimulou em desejo o ódio que sentia por mim?... Apenas uma única vez?..." – Lead suspirou, ligeiramente nauseado (pela tensão daquele momento onde vira-se ameaçado pela primeira vez em toda sua vida? Pelo medo de ter visto sua morte nos olhos do Carrasco? Pela culpa que também traiu-se nele quando enganou o Carrasco ao ameaçar o menino? Ou por que ele o fez ver o monstro que ele havia se tornado depois de todos aqueles anos?...), sentado na escuridão do porão, no silêncio quebrado distantemente pelo murmúrio da pantera na jaula da cela e pelos soluços do choro do menino cativo, e além disso, pelo gotejar da umidade, infiltrada nas pedras.
Ele apertou o livro entre as mãos, sobre seu colo, os olhos atravessando a escuridão e descobrindo os relevos cor de bronze da efígie do leão aprisionado ali. Qualquer um veria apenas um adorno na capa de um livro luxuoso, e nem teria poder para conseguir abrir seu lacre. Lead via Cerberus, não o Carrasco, aprisionado, todavia sabia que era melhor tê-lo morto. Quisera ser ele mais que um homem... Um dia, ele quisera ser um deus, por isso escolhera aquele nome para o seu primeiro servo, para ser um deus, como na lenda.
Mas a realidade lhe mostrara que ele ainda e inevitavelmente era apenas um homem.
Abriu o livro cuidadosamente, e no vão das folhas recortadas, achou as cartas do Fogo e da terra. Elas haviam retornado, assim, Cerberus jamais voltaria a ser o Carrasco (Lead não soube que essa manifestação era uma parte de sua natureza, e por isso o fato das cartas terem sido rasgadas não o haviam tornado o Carrasco, e sim, apenas feito aflorar livremente aquele estado de si. E Lead também não fazia idéia de que Cerberus, sua consciência adormecida, ainda era sensível ao que se passava a seu redor, e percebia cada movimento feito, cada vez que o livro era tocado, cada vez que um ser de poder sentia-se atraído por aquele livro misterioso e maldito.). Tateando as pedras ainda mornas do chão, catou as outras cartas caídas e juntou todas, colocando-as dentro do livro, e por último, a carta do Vento. Riu consigo. Fazendo aquilo, qualquer um outro que abrisse o livro além dele, veria-se numa bagunça inacreditável. Não esqueceu-se de proferir uma última conjuração antes de fechar o livro e estalar o fecho da capa. Isso ia garantir que o livro não fosse visto como o que de fato era , antes do momento certo (nem ele poderia dizer qual) e nem que outro além dele o tornasse a abrir, ou alguém com quem não dividisse seu sangue.
Abraçou o livro, enquanto se levantava, escorando-se nas paredes, tonto, surpreso com o que havia acontecido e consigo mesmo, sentia-se dono da situação e mais uma vez extremamente seguro de si.
Demorou longos momentos tocando com a ponta dos dedos o relevo do leão na capa do livro e finalmente, depois de tudo, encontrou-se encantado com o que via, e o que ele via não era a capa de um livro somente. Ele via seu servo tão à sua mercê que presenteou-o com um beijo, sua língua tocando o bronze como se tocasse a pele e o corpo de seu fetiche.
Mas ele continuava inerte e frio, vulnerável, porém tão indiferente que o enojava. Isso o revoltou, e ele largou o livro no chão, como se aquele objeto o queimasse, sentindo nojo de seu servo, e de seu desejo por ele, tanto que não resistiu, faltou-lhe o ar, o controle, e ele caiu no chão, vomitando. Depois de um tempo, tateou e encontrou um levou lampião caído e o acendeu. Viu que vomitara sangue. Havia se excedido para vencer Cerberus, e naquela luta certamente havia sofrido com os ataques do Carrasco.
Ele se levantou, buscou o livro e aprumou-se, ajeitando a túnica de veludo azul, passando as mãos suadas e trêmulas pelo cabelo e pelo rosto, sorrindo só consigo, recobrando sua tranqüilidade e sua frieza.
Meteu a mão entre as dobras da túnica e encontrou o cabo ornado do punhal. Seu sorriso alargou-se e seguiu em frente, para a alcova do porão, mal iluminada pela lâmpada de óleo, sem deixar de sorrir, para completar sua missão naquele negro subterrâneo.
Muito tempo depois, a porta da escadaria que descia para os porões da casa abriu-se, rangendo num lamento longo e agudo.
Pé ante pé, exausto, satisfeito, ainda com o punhal trêmulo e manchado na mão e o livro na outra, Lead a atravessou. Não se deu ao trabalho de fechar a porta, o peso dela a empurrou de volta, com um pequeno baque.
Lead ainda, como das outras vezes, sentia o eco dos gritos da criança nos ouvidos e nas paredes da casa. Mas aqui era tudo tão calmo e silencioso, e ele se sentiu terrivelmente solitário. Se no dia em que ele criara Cerberus, logo em seguida ele o via andando pela casa, confuso e obediente, desta vez, ele criara um servo semelhante ao Leão, porém nunca o veria como ele vira Yue e Cerberus. O servo que ele chamara então Spinel Sun – Uma criança vestida na pele da pantera, com o coração e os olhos daquele animal. Não lhe dera o poder de um sol, como a Cerberus, e sim, o de um raio de Sol... E por isso aquele nome. – dormia até que o momento certo – que o Mestre não sabia dizer qual, sua vidência se fechara para certas coisas em relação ao futuro de seus artefatos – de despertar. Ele não lhe deu poder, não como dera a Cerberus, e não proferiu nenhuma prece de lealdade sobre seu corpo. Que o próximo Mestre, se houvesse, e ele duvidava, de sua descendência ou não (que importava, pensando bem? Apenas os que dividissem seu sangue poderiam conquistar o poder que era dele, e assim viver com esta força, e até com as conseqüências terríveis dessa escolha), que descobrisse o melhor modo de conseguir a lealdade do guardião. Pensou em Cerberus, a lealdade imposta à força, e no ódio que havia sido cultivado nele por Lead contra ele próprio. Era como envenenar a própria bebida, ele sussurrou, lembrando que nunca vira Cerberus, nem quando menino, sorrir. Lembrou-se que ele só sorria quando estava cuidando de Yue. O pequeno Yue, que vivia com fome, descia as escadas se sentando nos degraus, e tinha medo de escuro...
Lead continuou andando, seus passos ecoando na casa vazia.
Os criados só voltariam na manhã seguinte, e lá tudo estaria bem. Sua sensação de solidão era apenas por, apesar de detestá-lo, que Cerberus sempre esteve por perto, assim como Yue. Ah, Yue... Ele ia pela casa, soltando os nós e botões que fechavam sua túnica, cuja frente, as barras das mangas e as beiradas estavam empapadas de sangue (do menino e da pantera). Ficou em mangas de camisa. Ela também estava suja, as rendas de sua camisa francesa estavam manchadas, o mesmo acontecera com suas meias de seda branca e o verniz de seus sapatos de fivela estava fosco.
Olhou para o chão que pisava. Era mármore rosa. Ergueu os olhos e viu-se nos muitos espelhos daquele lugar. Era o salão de festas, onde ele promovia as ceias e as orgias, e tudo o que normalmente era em cetim pérola – as cortinas, as forrações dos móveis – e um suave e quente tom de pêssego – a forração das paredes, e os adornos das almofadas – estava cheio de cor. Ainda era dia, e a luz do sol entrava pelos altos vitrais das paredes, clareando tudo.
Viu-se nos espelhos, um homem no auge de sua vida e sem nenhuma promessa de decadência. Seus cabelos totalmente negros, soltos, era um homem maduro, e seus olhos estavam claros e brilhantes. Engoliu em seco, sua beleza era manchada pelo sangue dos inocentes, e este seu sorriso de triunfo que os espelhos mostravam, era manchado pela dor daqueles que o amaram.
Yue.
Ele não o criou por que precisasse dele, mas por querer fazer dele um instrumento para atingir Cerberus. Alguém que o Leão pudesse amar, se fosse capaz disso, proteger e zelar. E Lead fora tão cruel com aquelas crianças... Ele começou a rir sozinho, em todos os sentidos. Repousou o livro sobre um dos divãs e riu com vontade, odiando não ter Cerberus por perto para zombar dele - Que falta fazia-lhe aquela silenciosa e dissimulada aberração... - ou Yue, para sentar-se do seu lado, exigindo atenção e carinho - Ainda que falsos, se Lead em algum momento chegou a amá-lo, deu-se conta disso tarde demais.
Onde ele estaria?
Respirou fundo e foi sentar-se numa das poltronas, e quando ficou de frente para o maior daqueles espelhos, ele viu o vulto branco refletido ali, logo detrás dele. Lead estreitou seus olhos de chumbo, sem acreditar que alguém atrevia-se a entrar na casa. Virou-se no mesmo momento, sem contar a irritação que aquela surpresa lhe causava.
"Quem é você?"
Olhou sentindo olhos profundamente azuis encontrarem os seus. Quem fosse, não era humano. Era quase tão alto quanto ele, e inteiramente branco, e nunca havia visto um rosto igual, que tivesse tanto poder sobre sua vontade a ponto de abrandar seu tom quando perguntou de novo:
"Quem é você?"
Aquele que o encarou deu um único passo, e logo estava bem à sua frente, olhando-o nos olhos, de uma maneira tão inumana que o fez se lembrar de Cerberus. Mas não era, não havia qualquer semelhança. esta assombração era tão branca que quase resplandecia, a túnica branca e azul, se arrastando no chão, assim como seu cabelo, também branco, solto, muito liso e irreal.
"Você não me reconhece?" - Ele perguntou, movendo seus lábios quase simétricos e a cada palavra, era como se uma porta fechada se abrisse cada vez mais, deixando uma fina corrente de vento passar. Era como um vento frio, que fez correr um doloroso calafrio pela espinha de Lead, e percebeu naquela frieza que ia até ele, a mesma magia que um dia viera, da mesma forma, ao seu encontro. - "Você dizia que me amava... Você dizia que eu seria apenas seu... Que nunca iria me machucar... Agora eu estou aqui para julgá-lo."
A carta! Lembrou-se imediatamente da carta que deixava escondida em meio aos livros em seu quarto! Aquele era um dos seus mais bem-guardados segredos! Como aquele estranho poderia estar dizendo absurdos como aquele e falando de coisas que ninguém poderia saber?
"Yue?"
"Ele não existe mais. Agora, eu sou apenas o Juiz. O seu juiz."
"Yue!" - Lead via á sua frente um Yue que em nada se parecia com o menino que ele violentara. Uma vergonha tremenda apoderou-se dele, e Lead não acreditava que o desprezo naqueles olhos tão azuis tinha tanta capacidade de feri-lo. O menino que um dia antes ainda se atravessava no seu colo manifestava-se totalmente inumano e frio (tão desprovido de qualquer tipo de emoção que um humano pudesse entender, assim como Cerberus, quando se tornou o Carrasco, que olhar em seus olhos era como olhar num abismo sem fim), as asas estendidas subitamente para trás, tão brancas quanto ele por completo, adulto, glacial... O Juiz. Lead nunca havia sentido tão intensamente o frio do pedaço de gelo que lhe dera no lugar do coração. Sentia agora, no olhar intenso do Juiz.
"Eu não irei condená-lo, Mestre." – Ele disse, voltando-se lentamente de costas, as asas leves, enormes, moviam-se e sua sombra era fria e impessoal. – "A sua condenação, a sua sentença, e a sua execução não devem vir pelas minhas mãos." – Sua voz era tão fria quanto a sua presença. Onde estava o menino que Yue fora um dia, aquela criança que Lead fizera se apaixonar por ele? Sim... não poderia esquecer, nunca poderia esquecer-se do seu erro fatal: ele matara aquela criança que o amava tão reverencialmente, com olhos de adoração e pura admiração. Amor. Nunca parara, em momento algum para refletir o que faria – E ele sempre soube que aquele era o rumo inevitável de tudo... - , ou o que sentia. Percebia agora, e somente agora, tarde demais... Não tinha força, tamanho seu choque em ver-se defrontado com a sentença pronunciada por sua consciência.
"Yue! Por favor, não vá! Eu... Por favor... Yue me..."
"Cale-se."
Lead silenciou.
Ele era apenas um homem. Yue era o Juiz. E Lead o amava mais do que nunca e percebia o mal que havia feito. Yue não era Cerberus. Ele acreditava poder viver sem o Leão, mas nunca sem o Anjo.
"A sua morte deveria ter vindo pelas mãos do Carrasco. Acredite-me, Lead, o Carrasco preferiu deixar-se aprisionar a ver mais sangue inocente ser derramado por você."
E Yue afastou-se de Lead, que só podia ver seu rosto perfeito e frio pelos vários reflexos dos espelhos do salão.
"Mas você nunca se importou em derramar sangue inocente."
"Isso é mentira! Eu não sou assim!" – Ele encontrou forças de gritar, esfregando as mãos e as rendas de sua camisa, tentando se livrar do sangue do menino que o manchava. – "Yue! Fique!"
"Eu não sou Yue. Não neste momento. Eu sou o Juiz." – Ele suspirou, tranqüilamente, olhando os pés descalços que surgiam pela beirada da túnica que esbarrava o chão. – "Você sempre machucou e afastou os que você ama e os que o amaram. Até mesmo a mãe do seu filho. Se o que você queria era estar só... Então fique."
E foi como Lead se viu, assombrado e chocado. Yue, o Juiz, desaparecera quando atravessara um dos raios de sol que vinham pelo vitral.
"A sua solidão é o seu tribunal."
Essa voz! Era a voz rouca de Cerberus! Mas ele o aprisionara! Lead virou-se bruscamente e quase conseguira fixar a imagem do vulto que surgira quase ao seu lado. Era Cerberus, o Leão. Lead nunca o vira nessa forma, ele era enorme e assustador, cor de bronze e dourado como o entalhe de uma moeda pagã.
Sumira.
Mas ainda era como ver um sorriso no espelho. Ele o quebrou, atirando uma das cadeiras contra ele. Os cacos espalharam-se no chão e em cada pequeno pedaço de espelho ele viu um escorpião cercando-o, e os chutou.
"Eu tenho poder! Não preciso de nada do que os homens precisam!" – Gritou consigo, vendo seus olhos de chumbo refletidos onde antes havia escorpiões. – "A solidão não será o meu tribunal!..."
Ele escutou um baque no chão, onde jurara ter visto antes o Leão. Um som seco correu sobre o mármore e Lead o seguiu com os olhos. Só divisou o que era quando bateu na ponta de seu sapato.
"Se não for o seu tribunal, será o inferno que sempre foi para mim." – Ele viu o menino aparecer, com o barbante na mão, juntar o pião e encará-lo com olhos de adulto e desaparecer num raio de sol. O uniforme azul do orfanato da missão inglesa, descalço... Era Cerberus menino, quando o viu pela primeira vez, encantado com o pião que Lead o presenteou. A solidão fora o seu inferno? Seria o seu também!...
"Não!"
"Arrependido?"
Virou-se, e recuou um passo, tombando sobre um dos divãs impecáveis. A mulher estava quase sobre ele, de tão próxima, e tão digna e inalcançável que Lead sentiu seu coração enternecer-se como nunca por ela. Chen Li, os cabelos soltos e nua como a via apenas na escuridão do quarto, e a barriga dilatada em nove meses de vida de seu filho naquele ventre antes seco...
"Meu filho... Chen Li...!"
Ela sorriu, e como já o havia feito antes, cuspiu nele. Lead fechou os olhos e quando olhou de novo, estava só no salão. Escutou um riso. Cerrou as mãos e obstinou-se em não olhar. Trêmulo, ele se levantou e jurou a si mesmo que não cederia a seus fantasmas, que a culpa era para os homens, e que ele desejava ser um deus...
O riso. Era o riso de uma criança. Palmas. Ele estarreceu-se e foi inevitável olhar: Yue, pequeno que mal sabia falar, sentado numa das poltronas, perdido no uniforme azul da mesma missão de onde ele havia conseguido Cerberus antes, rindo para ele e estendendo os braços pedindo colo.
"Não! Não! Eu não vou lamentar por nenhum de vocês! Eu tenho poder! Eu sou um deus! Eu sou..."
"O homem de chumbo."
Lead estremeceu violentamente ao ver o pequeno aparecer de detrás do sofá em que vira Yue, em roupinhas de rapaz e casaquinho de cetim, como quando o tirara de sua mãe, porém, todo manchado de sangue, trazendo sobre seus ombros e a sua cabeça, tal como uma capa, a pele ensangüentada da pantera.
Ele ia falar, praguejar, conjurar sua magia, mas uma dor aguda atravessou seus ouvidos com o ruído de um sino, e uma voz que ele conhecia chamando-o. Ele escutou, ainda que tapando os ouvidos com ambas as mãos, essa voz, o som altíssimo e melodioso do sino, e outras vozes em seu interior. A voz de seus servos, de seus amantes, de seus inimigos, ficando cada vez mais alto, mais alto, que ele não tinha como abafá-lo nem se fechasse as portas do salão, os vitrais vibravam de vida e cor, e Lead correu pelos salões da casa, caindo, espalhando o negro de seus cabelos e o vermelho do sangue em sua camisa sobre o branco do mármore.
E as vozes, os risos das crianças, os gritos delas morrendo em suas mãos... Tudo era um grande inferno ensolarado pela luz do crepúsculo dourado que entrava pelas grandes janelas do palacete.
Por um instante Lead imaginou que o inferno era um pesadelo, quando sua mão resvalou o punhal que havia deixado cair naquele mesmo chão.
E ele acreditou que só havia um modo de despertar.
Lead despertou, sorrindo, branco como o mármore do chão, deitado num lago do próprio sangue, com os pulsos cortados, desperto pela mesma lâmina com que ele havia despertado suas crianças para as trevas...
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É o movimento da mão dele saindo da minha que me faz voltar ao quarto e ao momento em que estamos. E numa coincidência macabra, aqui o sol também já dobrou e em breve vai anoitecer. Sua mão vai para seu colo e ele olha para a janela com olhos secos e firmes.
"Você..." – Eu começo.
"Não diga aquele nome."
"Saiyame."
"Um dia, este foi o meu nome. Antes dele, eu tive outro, um nome cristão. E depois dele, eu quero esquecer."
"Impossível... Eu sei que é. Mas eu acredito."
Com tudo de desvairado que posso ser, eu acredito em cada disparate que ele disse, por mais que passe por cima de todas – eu disse TODAS – as leis de Deus, dos homens e da ciência. Eu nunca acreditei nos homens, nunca parei para pensar em Deus, porém a ciência... Para mim, na minha vida, na minha profissão, ela era tudo. Agora é nada. E tudo é esse rapaz alto e calado se encolhendo como se sentisse frio, como um enorme gato assustado, ignorando a minha presença aqui.
Continuo sem me importar com o que ele é. Acho que nunca me importei, que era apenas por curiosidade que insistia em desvendar os seus mistérios. Eu os desvendei, todos. Tenho a verdade em minha cabeça e acredito nela e sei que é um fardo pesado demais... angustiante.
"Não sofra sozinho. Saiyame, olhe para mim..." – Eu sei que talvez esse nunca tenha sido de fato o seu nome, mas o que isso importa? Sussurro, tentando tocá-lo, desejando abraçá-lo. O seu vazio é tão completo e repleto desse silêncio esmagador que eu também sofro. Sofro porque ele sofre, e isso acaba comigo, mas a cada vez que tento tocá-lo, Saiyame escapa e se encolhe mais em si, se contorcendo, evitando meu olhar, fingindo que está sozinho. – "Não faça isso comigo!"
Me ouviu. Pára de se fazer de surdo e olha para mim com aqueles olhos enormes, amarelos e rasgados.
"Você já se envolveu demais nisso. Sabe demais. Você sabe mais do que nenhuma outra pessoa viva."
"Não faça isso comigo! Não me mande embora..." – Minha voz treme, um nó apertado na minha garganta. Me aproximo e ele se esquiva. Levo um braço para envolver seus ombros estreitos e ele se afasta tão bruscamente que se levanta da cama como um animal enjaulado.
"Você não precisa de mim. Eu errei ao permitir que se envolvesse numa coisa que pode custar a sua vida. Volte para a sua vida. O meu mundo não pode ser o seu mundo."
E ele tem razão. Está falando a voz da lógica, me expulsando da sua vida como se me chutasse porta afora, assim como eu entrei na sua, colocando uma porta abaixo.
"E-eu estou aqui, não estou? Eu ouço, eu acredito.. eu..." – Engasgo, com coisas demais para falar e sem conseguir dizer nenhuma. Estou tão perdido e desarmado que começo a sentir-me tão pequeno perto de saiyame, como se eu fosse apenas uma criança, e ele o adulto, e afinal, a realidade de certa forma é esta. Eu aqui, Hisashi Wakai... sentado nessa cama velha, no meio de um casarão que deve ter quase um século de idade, eu sou a coisa mais jovem deste lugar. É assustador. – "... Eu me importei. Você é importante! Se não fosse..." – Quando tudo fica turvo e distorcido, esfrego os olhos e descubro que estou chorando, e o que digo vem atravessado desse engasgo. Você me queria! Ainda ontem à noite você estava me deixando com vergonha na frente dos outros, querendo ir até o fim comigo, soltando o meu cabelo... O que há com você? É feito de pedra? Eu sei que não é... – "Eu não quis que você morresse... Eu estive aqui o tempo todo... Até quando eu queria machucá-lo, e agora... Você sabe o que eu sinto. E eu sei que você sente o mesmo."
Talvez tenha feito a maior burrada de toda a minha vida falando coisas assim para alguém que talvez só caminhe encima de duas pernas por mera coincidência. Agora, não acho mais que seja sintoma de loucura o modo pouco humano (em verdade nada humano) do seu olhar, e nem o seu silêncio. No vazio que há nele, há a angústia dessa solidão, do apego à vida que escapa das suas mãos sujas de sangue. Ele quer coisas tão pequenas, ele quer menos para ser um humano de verdade, do que nenhum humano de verdade se conformaria de ter.
Começo a soluçar, calado e desesperado, sentindo cada nuance de sua tristeza por detrás desse olhar indulgente e doce e selvagem. Uma vez, ele disse que tudo o que sempre quis era uma janela de onde pudesse ver o céu.
Saiyame talvez queira me dizer que eu não posso ser a sua janela, e nem posso lhe dar uma.
"Você não precisaria me dizer nada na noite passada para que eu fosse seu. Nem o seu nome." – Suspira, olhando para o chão... Sinto-me idiota e sentimental chorando na sua frente. Ele mesmo disse que já matou muitas pessoas, o que é para ele um tonto chorando por sua causa!... – "O seu desejo me bastaria... Se ele fosse verdadeiro, se ele fosse por mim. Você não precisaria mentir para que eu fosse até o fim. Eu nunca pedi que gostasse de mim para isso. Bastaria que me desejasse."
"Você acha que eu estou mentindo? Acha que eu não quis por nojo de você? Você acredita nisso?"
Ele não sabe mentir. Ficamos nos entreolhando, e eu me desfazendo em lágrimas, me desmanchando em tristeza, porque me afundei no poço que eu mesmo cavei, me envolvi tanto que não posso me afastar e aceitar sem sofrer.
Isso não se faz! Olhe para mim!
Grito com ele, no começo, quando fica parado do lado da cama, torcendo a ponta da barra da camisa entre os dedos.
Você não sente! Você é um monstro!
Eu me entrego, eu me desmancho como nunca por ninguém... Eu ouço, eu acredito, e você me trata assim! Me deixa entrar na sua vida, e faz a minha ficar repleta de você, e um belo dia...
"Você é um monstro..." – Repito, com a voz entrecortada e quase sumida, sem querer acreditar que ele realmente não tenha sentimentos (Meu Deus, ele me enganou então, direitinho!...)... que não me queira junto a ele. E pior: que estou tendo coragem de dizer-lhe uma coisa horrível como essa depois de haver perdido todo este tempo tentando tirar-lhe essa idéia da cabeça, tentar dizer de qualquer jeito que ele poderia ser tudo – menos um monstro.
"Eu sei. Eu nunca neguei." – Saiyame se senta de novo na cama, que range com o seu peso, e ele fica um momento olhando para a janela antes de passar o dorso das mãos sobre os olhos. Sua voz é tão triste como nunca ouvi. Está tremendo, toda sua força, energia e distância desapareceram, deixando-me ver nada mais do que um menino. Mais nada. Inseguro, tímido, vulnerável... E tão assustado quanto eu com o rumo que as coisas tomaram a esta altura. – "Me desculpe, Hisashi. Eu errei com você, com todas as pessoas que me cercaram. Me perdoe... Por eu não ser o que você gostaria."
Engulo em seco e de atravessado, sentindo um aperto no peito, escutando sua voz rouca...
Me perdoe, Hisashi, me perdoe. Me perdoe. Me perdoe...
Ele se desculpa tantas vezes e começa a pedir desculpas pelo que fez de ruim e pelo que fez de bom, fica me pedindo desculpas por tudo, por existir, por viver... Por me amar.
Me amar... Meu Deus...
Escutar isso faz o mundo parar completamente, e me deixa com os pés fora do chão.
Saiyame chora com aquele desespero tão cheio de mágoa que desce numa avalanche de coisas que ele já não pode conter.
"Se você gosta de mim, por que está me mandando embora?" – Pergunto, furioso.
Ele fica calado, sabe que não pode mentir. Penso em quando tentou se matar pela última vez, e me falou do seu medo de ser preso. Agora isso faz algum sentido, para os outros talvez nenhum, mas depois de tudo o que ouvi, aquela história (o final dela, ou ela ainda vai começar?), eu sei que ele colocou na minha frente coisas, verdades, que podem mudar tudo, e já fazem isso, mudam meu modo de vê-lo, de entendê-lo. Minha voz quase some quando peço que ele diga que não gosta de mim, pois só assim vou poder aceitar que me mande embora.
"Eu poderia ter ido quando você disse que eu era a sua maldição, no entanto eu ainda estou aqui..."
Peço para que Saiyame diga qualquer coisa, qualquer justificativa esfarrapada para que não me queira perto dele. Diga que a culpa é minha, que eu falei alguma coisa, que eu fiz...
Se o problema é sobre ontem à noite, eu lhe digo, tentando me aproximar, sentindo um amargo horrível subir pela minha garganta, eu tive medo de fazer o que você não queria.
Diga alguma coisa, minta para mim... diga que quer outro...
"Diga que não me quer..." – Eu lhe sussurro, segurando firme seus ombros, apesar de que se debata debaixo das minhas mãos.
Tudo o que ele faz é se desculpar. Para de tentar se soltar e fica só se desculpando, infinitas vezes, seus olhos vermelhos e molhados, até que, pára, num tranco, ao ouvir o que acabo de dizer. Seu desespero parece ainda maior, ao se dar conta que nada do que disse até agora adiantou. Seus olhos claros se arregalam, e ele se segura nas mangas da minha camisa, realmente furioso comigo, dizendo em voz alta:
"Eu não tenho nada. Nada! E o pouco que eu tenho, se eu tiver, não vale nada! E o que tem nas minhas mãos é sangue, Hisashi... Eu não quero que você fique, porque eu não quero que esse sangue seja o seu."
"Eu não me importo."
"Eu não tenho uma vida para compartilhar... Eu não tenho nada! E tudo o que eu lhe disse é somente uma parte... a parte mais bonita. Se você soubesse a verdade... Se você me conhecesse..."
"Eu conheço. Do melhor ao pior... Eu escutei, eu acreditei."
Solto seus ombros, e ele me diz, mesmo chorando, com palavras diretas, que não me quer mais na sua vida porque não quer sofrer quando tiver de se separar de mim. Não quer me enganar. Diz que toda sua vida está neste outono e não há vida após ele: cedo demais para morrer e tarde demais para amar.
Afasto-me lentamente, tentando entender isso. Fico digerindo suas palavras, uma a uma, tentado a fugir, com vontade de esbofeteá-lo, desejando gritar e com forças apenas de enxugar as lágrimas.
Eu sei o que ele é e não me importo. Muito menos com o que ele fez e até com o que ele me fez. Você me marcou, digo sem pensar, passando a mão sobre o meu pescoço riscado de cinco linhas vermelhas e quase iguais.
"Você me marcou... Eu sou a maldição da sua vida." – Toco seus lábios e Saiyame levanta seus olhos para mim, vivos e intensamente dourados, e não mais somente amarelos. São lábios mornos e macios, úmidos e um pouco trêmulos. Já beijei essa boca vezes o suficiente para saber que o gosto do seu beijo é inesquecível. Eu sou a maldição da sua vida, repito, tentando dizer a coisa estranha que se passa comigo, esse não sei o quê que me fez ouvir até agora, e até quando soube a verdade, não me deixou fugir dele. – "Quem mais vai te abraçar como eu?"
Faço um carinho por seu rosto úmido e pálido, achando horrível e irracional que tenhamos de nos separar. Depois de tudo, de saber e ter aprendido tanto... Estamos juntos há tanto tempo nessa casa caindo aos pedaços que nem me lembro se são meses ou décadas.
"Você quer mesmo que eu saia da sua vida?"
CONTINUA
