Não era nada de extraordinário.
Era apenas a dona desta casa.
Fantástico.
Eu achava que essa casa nem tinha um dono! É a primeira vez até hoje em que ouço falar dele. É parte de uma herança do marido dessa mulher que telefonou e o nome nem Saiyame sabe dizer, eles pretendem alugar a casa, ou reformá-la para viverem aqui, tanto faz. Ela disse a Saiyame que quer falar-lhe, pois ainda não vai começar a reforma, e não quer que a casa fique vazia, ou vai cair literalmente aos pedaços. Ele diz que só falou com essa mulher por duas vezes até hoje e ela nunca vem aqui. Dizendo ela que virá semana que vem. Saiyame não pareceu acreditar muito nisso.
Por isso não recusou o meu convite. Pelo menos longe daqui, irá se distrair um pouco, pensar em outras coisas e esquecer um pouco das suas estranhas e apavorantes preocupações. No dia seguinte a esse telefonema, convido-o com todo o jeito, com todos os carinhos e todas as promessas (chego a deixar que ele passe a mão em mim...), como forma de convencê-lo a ir no meu apartamento, comigo. São mais de duas horas de metrô, várias quadras, etc, etc... Mas é a minha casa, eu lhe digo, faço-lhe chantagens com copos de leite com açúcar queimado, de manhã. Prometo que não vai se arrepender de ir comigo, e imagino que aceite porque acha que vou ceder àqueles seus desejos indecentes que reparo de longe, começando por suas mãos encima das minhas nádegas.
Vamos para a estação do metrô de tarde, quando já está mais quente lá fora, e já ficamos tempo demais brincando de um atiçar o outro, e principalmente eu já estava cansado de correr de Saiyame, em torno de um sofá na sala, escapando dele sempre por pouco, e evitando ter de ver ele saltar as escadas daquele jeito, que me dava a impressão de me sentir um daqueles pobres animais do documentário da National Geographic, que correm inutilmente antes de serem devorados por um leão faminto e sádico.
Leão...
Eu nunca prestei muita atenção nessa semelhança entre Saiyame e um leão. Pensando nisso, quase não vejo o metrô chegar na plataforma. Ele me puxa pela manga do meu casaco. Vamos entrando e ele tira o dele antes de se sentar, ao meu lado, no banco que fica de costas para a janela. Não sente frio, e sua pele está por sinal bem morna. Se não estivesse acostumado, acreditaria que Saiyame tem febre o tempo todo. Seu olhar ainda é tão estranho e distante quanto ontem. Não dormimos juntos esta noite. Ele ficou no meu quarto, e eu, no dele. Já de madrugada veio se deitar ao meu lado, sem no entanto querer mais nada. Falamos pouco e acho que me desculpou, caso contrário já teria no mínimo me afogado na privada.
Algumas pessoas entram no vagão, a maioria olha para nós durante um tempo. Eu não pareço nem de longe ser japonês, e Saiyame... Ainda que mentira, com certeza, a cidadania que está no seu passaporte não lhe deixa nada a desejar. Quando está calado é um perfeito ocidental. Eu já deveria ter me acostumado com isso, de ficar sendo observado com tanta curiosidade que dá vontade de fazer uma careta para todo mundo nesse maldito vagão. E com Saiyame aqui, só piora tudo. E fica um pouco pior ainda com ele pouco a pouco, enquanto o metrô vai no seu caminho, parando de estação em estação, chegando-se a mim. Claro que eu não posso reclamar e estou longe de me importar. Seu braço fica encostado no meu, e me distraio olhando para o seu rosto. Sou louco por esse rosto arredondado. Se Saiyame fosse um doce... Mas este doce talvez na verdade esteja estragado.
Deixo-o se escorar mais em mim, até pousar a cabeça na minha. Assim, na frente dos outros? Tem gente do outro lado do vagão apontando para nós. Que diferença faz? Eu abraçava a minha mãe e meu pai na rua quando iam me buscar no colégio, em Okinawa, da mesma forma que fazia quando estávamos na América. Eu gosto de Saiyame o suficiente para passar um braço em torno do seu ombro para acariciar o seu cabelo. Também sou louco por seus cabelos. Pena que não é verão. Debaixo do sol, ele é mais bonito ainda. Sinto sua mão quente sobre a minha. Você me perdoou pela idiotice que fiz ontem, pergunto-lhe. Ele apenas me manda esquecer o que houve e o que vi. Melhor assim, penso, conformando-me, não quero estar de mal com você. Saiyame escorrega um pouco no banco do metrô, de propósito ou com o próprio balanço do trem, não sei dizer, e acaba com a cabeça sobre o meu braço, e sua mão... Mando que se comporte, mas não estou falando sério, mesmo com a sua mão abrindo caminho por dentro do meu casaco, passando em torno da minha cintura. Ainda estamos quase na metade do caminho... Viro um pouco mais no banco, somente para olhar melhor seu rosto, e passar um dedo sobre seus lábios até que ele me mostre um pequeno sorriso de ar infantil.
Depois que arranco um sorriso desses lábios que podem ser tão sérios, eu lhe roubo um beijo. Beijo o canto da sua boca demoradamente, apertando sua mão na minha, enlaçando nossos dedos. Vai me deixar doido, faz idéia do que quero dizer, pergunto-lhe. Vou enlouquecer por sua causa. Nos estreitamos mais, nos beijamos mais, de leve, suave, e lentamente. Desde ontem que você não me beijava, desde a hora em que estávamos na cama. Sempre acho que a qualquer momento vai me chutar da sua vida.
Um solavanco sacode o banco. Paramos numa estação.
"Estamos chegando." – Digo, reconhecendo que só mais uns dez minutos e vamos estar no nosso destino. Mas... Estão todos os passageiros descendo desse vagão, até que fica vazio, somente nós, no mesmo lugar, sendo apontados pelas pessoas horrorizadas que estão saindo correndo daqui.
Azar delas, penso, sentindo os lábios dele no meu rosto, e a ponta da sua língua correndo na minha pele, naquele estranho afago felino que ele me dispõe de vez em quando.
Não sabem como é bom beijar Saiyame.
Ele tem lábios macios, sabe beijar de língua e se esfrega todo em mim quando faz isso. Sem falar de como deve ser capaz de fazer qualquer um se arrepiar todo de calor e prazer.
Morram de inveja, seus hipócritas.
Não sabem como é bom ter um amante como ele.
Ele beija maravilhosamente.
Beijando-o, nunca esta viagem foi tão curta!
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Dez minutos de metrô e três quarteirões dos grandes à pé depois, chegamos aonde moro. Meu apartamento fica nos altos de uma loja de conveniência. A pior parte é passar pela dona da loja que, por falar nisso, também é a minha senhoria. Ela finge surpresa ao me ver, fica falando na sua voz ligeira e estridente que qualquer dia vai ter noticias de mim pelo obituário do jornal, e então quem vai pagar o aluguel, blá, blá, blá... Aproveita e se mete um pouco na minha vida. Pergunta quem é "esse rapaz ocidental" que está comigo, franzindo o nariz pelo fato do meu braço estar em torno da cintura dele.
"Meu namorado." – Eu respondo bem alto, fazendo um dos clientes da loja derrubar uma cuba de ovos no chão. Os outros não evitam de olhar. Não há uma única piadinha sobre isso, estão chocados com o que eu acabei de dizer, pois ninguém de juízo sai dizendo essas coisas do jeito que eu disse. Mas eu nunca tive muito juízo...
O rosto da minha senhoria passa por diversas cores até ficar branco. Ela me chama de pervertido e de mais um monte de coisas. Saiyame olha impassível para ela, como se não entendesse o motivo dessa confusão toda. Ela fica me xingando e não quer sair da frente do corredor que vai para a escada nos fundos da loja, do lado do depósito, até que me faz perder a paciência:
"A senhora está indignada por que eu estou transando com ele ou por que queria estar no lugar dele?"
Ela consegue ficar da cor do seu avental e desmaia de uma vez. Azar dela, espero que tenha quebrado o pescoço e morrido na queda. Velha nojenta, me inferniza há três anos, e sempre ficava de ouvido colado na minha porta todas as vezes que eu trazia alguém para cá. O caixa e a balconista vêm acudi-la, enquanto todos os clientes não desgrudam os olhos de nós. O quê que há? Eu estou de mau humor mesmo! Ver essa mulher bisbilhoteira acaba com o meu dia!
"O que foi?" – Dou um berro com esse monte de gente estranha e curiosa. Eles arregalam os olhos e eu continuo, dando asas ao meu mau humor: - "Estão com inveja também?"
Alguns saem da loja imediatamente, a maioria desvia o olhar e baixa a cabeça. Melhor assim, penso só comigo, bando de bisbilhoteiros. Não estou nem aí para a vida de ninguém, e todos se incomodam com a minha. Vou levando Saiyame comigo, pelo corredor e pelas escadas, sem soltá-lo nem um instante. Digo que nem sempre as coisas são assim aqui e ele me responde que está com fome. Faz-me rir, mudando de assunto desse jeito, discreto demais para comentar o que houve. Deve estar me achando um favelado. Está sorrindo quando entramos no meu (Enorme, espaçoso, vasto e imenso!) apartamento de um quarto, banheiro e cozinha. Eu poderia ter alugado um de apenas banheiro e cozinha, porém, dormir no chão é algo que só faço quando estou com dores nas costas, e outras coisas... na cama é bem melhor. E a minha range. Para cochilar, tem o meu sofá de dois lugares, que, dependendo de como eu me deite nele, minhas costas encaixam muito bem na curva.
Saiyame pára um pouco ao lado da porta. Está escuro. Entro, quase tropeço numa pilha de revistas velhas e jornais que nunca li e abro as cortinas.
"Talvez chova." – Abro as outras. Aqui é tão diferente. Abro as janelas para o ar circular. Não me lembro de ter vivido aqui, tanto tempo faz que não venho... Estou com vontade de rir quando tiro o casaco e penso na cara da senhoria antes de desmaiar. – "Fique à vontade."
Acena um breve sim, e pendura o seu num gancho da parede, onde eu me lembro de nunca ter pendurado nada. De certa forma talvez estivesse esperando por um casaco que não fosse meu para estar pendurado aí. Pergunto se está cansado. Não me responde. Penso que não tenho nada para oferecer-lhe aqui, preciso comprar comida, coisas de que ele goste... Saiyame se deita no meu sofá, se acomoda um pouco e realmente dorme quase na minha cara. Fico olhando ainda ele deixar seus sapatos caírem no chão, e o relevos do seu corpo aparecerem debaixo da camisa larga. Ainda está claro lá fora. E aqui me parece tão escuro. Está dormindo com a cabeça encima da minha almofada.
Que bonito...
Vou arrumar as coisas, ou vou começar a dar razão da senhoria me chamar de pervertido.
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Quando Saiyame acorda, eu vejo daqui da cozinha tudo o que ele faz quando se levanta, se espreguiça, tira o cabelo de cima do rosto, esfrega os olhos, fica tranqüilamente deitado, e desta vez olha ao redor, tentando lembrar de onde está. Ou talvez sinta o cheiro da lasanha no forno. Já anoiteceu, estou em roupas que nem lembrava que ainda eram minhas, e que agora ficam um pouco mais frouxas, sentado na cama, sorrindo feito um besta para Saiyame.
Ele chega mais perto e se deita aqui também, de bruços, do meu lado, disfarçadamente cheirando os lençóis limpos que coloquei sobre o colchão. Rangidos que me fazem corar, é constrangedor e delicioso lembrar de rangidos de camas, agora, mais do que nunca. Ele aponta o álbum de fotografias que está do meu lado, vindo colocar a cabeça no meu colo. Você está cada vez mais doce comigo, por que está fazendo isso? Eu estou me transformando num torrão de açúcar!
Abro o álbum. Está vazio. As únicas fotos são uma do meu pai, uma da minha mãe comigo quando eu era menino (cheio de sardas, cheio de curativos nos joelhos) e uma dos meus avós (minha avó ocidental e meu avô japonês, jogando cartas à dinheiro). Mais nada. Com sorte e depois de meses sem abrir isso, talvez uma traça tenha fixado moradia aqui.
Saiyame se endireita e estreita os olhos, passando o dedo sobre o rosto da minha mãe na fotografia.
"Tem o seu sorriso."
Depois, aponta para o meu pai, que está de farda e divisas e diz, baixo ainda e tão inexpressivo quanto antes:
"Sério como você."
Saiyame se senta na cama e preguiçosamente se escora em mim, com os braços em volta do meu pescoço, e com o rosto no meu pescoço. Não diz nada, sinto falta da sua voz às vezes, mas esse silêncio é tão completo que não me queixo. Ele é assim, seu afeto me basta, seus carinhos doloridos, como agora, que está me mordendo, não quer me machucar... Logo em seguida me beija muito levemente, sobre a boca e fecha os olhos, ficando apenas com o rosto junto do meu, sua boca na minha. De vez em quando ele sorri, corando, e depois volta a ficar sério, e finalmente, ele faz aquilo que eu adoro, se deixa ser apenas um menino, um sorriso aberto e olhos úmidos.
"Tudo tão simples..." – Saiyame segura meu rosto entre as suas mãos longas e pálidas e sorri. Veja só o que eu ganhei. Ganhei este sorriso tão raro... Eu ganhei esse olhar doce. Eu existo para você, você me ama, e eu pelo menos nesse momento posso ser a sua janela para ver o céu, posso ser o seu mundo. E você o meu.
Droga, eu às vezes me sinto tão feliz perto dele como se tudo fosse acabar de uma hora para outra. Isso é como se fosse um sonho bom demais para ser verdade. Eu não vou me sentir triste por você. Eu só gosto de você, mas eu não estou apaixonado. O que eu disse foi besteira, entende? Eu não amo você, e o dia em que nosso caso acabar por qualquer razão que seja, não vou lamentar, deve ter uma centena de pessoas querendo estar onde ele está, e as vezes em que fizemos amor terão sido então apenas mais algumas entre tantas outras e...
"Eu invejo a sua vida." – Saiyame suspira, se afastando de mim e me dando as costas, indo ficar olhando pela janela o movimento da rua.
Fico com uma sensação atravessada na garganta.
Levanto e vou tirar a lasanha do forno.
Nada me tira da cabeça que ele está chorando.
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Depois de um silencioso jantar (tirei um pedaço de lasanha para mim, o resto da travessa, ele comeu sozinho e não pediu ajuda de ninguém), conversamos. Inacreditável. Ele me conta coisas simples, como já conhecer este bairro, que trabalhou aqui quando chegou na cidade. Conta de uma pizzaria rodízio há umas quadras daqui. Fico sabendo que é tremendamente odiado pelos garçons do lugar, porque aproveita toda a liberdade que uma taxa única por pessoa pode proporcionar. Comendo como ele comeu essa lasanha inteira, não acho isso nem um pouco estranho. Queria saber como faz isso sem engordar nem uma grama. Pessoalmente, eu acho que desde anteontem ele já deve ter me feito suar cerca de cinco quilos. Se não for mais... Estou exausto. Ele dorme em qualquer lugar, vive se espreguiçando e come horrores... Talvez por isso não se canse.
Mas o que eu estou pensando?
Não quero que ele se canse.
Adoro cada momento de intimidade com ele, me delicio só de olhar para a sua boca e imaginar como ela é pequena e pode ser deliciosa e quente, também...
"Do que você está rindo, Hisashi?"
"Nada..."
Essa passou perto. Se eu ficar mostrando muito os dentes, Saiyame pode entender como um convite. Na verdade é. Mas não para o que ele gostaria. Temos muito o que fazer ainda, e eu não lhe mostrei nada do que sei fazer. Depois de hoje, duvido muito que venha a querer outro se não eu.
Céus, até mesmo vê-lo passar o dedo pelo molho da lasanha que está na beirada do prato está me deixando excitado... Oh, e se ele lamber este dedo?...
Estou sem emprego, não tenho nenhum lugar para ir e ninguém me procura mesmo... Estou com ele e apenas com ele. Que coisa melhor do que imaginar loucuras para esta madrugada? Oh, não! Está lambendo a ponta do dedo sujo... Ah, por que faz isso sempre na minha frente? Já basta que não consigo olhar para coberturas de bolo, agora, nunca mais vou olhar para um molho branco da mesma forma.
"Tem doces?" – Pergunta, de repente, me tirando dos meus delírios...
"Ah... Não. Não tenho doces." – E quase lhe digo que tenho coisas melhores e mais gostosas, mas prefiro deixar isso para depois.
Ele sorri e se levanta, em momentos como este, eu me pergunto se sempre sabe o que está se passando na minha cabeça, ou se pode escutar os meus pensamentos. Sua camisa está velha... Eu me lembro de tê-lo visto com ela várias vezes, e penso se tenho alguma que lhe sirva. Talvez Saiyame vista um ou dois números a menos do que eu. Pode deixar os pratos na pia. Não sobrou nada para guardar mesmo.
O arrasto comigo para o quarto, que com a luz apagada deixa entrar o neon vermelho da loja de conveniência. O distraio com bobagens, com jeito, faço-o tirar essa camisa velha e experimentar uma das minhas, que nunca usei. É vermelha. Deveria sempre usar vermelho, me faz lembrar de quando o vi daquele jeito estranho no sótão. Eu estava delirando, com certeza. Pergunto-me seriamente se também pode ser um delírio meu estar vendo esta marca nas suas costas cada vez mais viva e nítida. Quero acreditar que é porque sua pele é muito fina, e desvio o olhar. A camisa fica larga nele, mas no comprimento, está boa.
Agora tire para mim, digo no seu ouvido, como se alguém pudesse ouvir.
Olha-me de cima e com um ar de atrevimento que lhe é bem comum, uma maneira sua de me desafiar, me manda vir tirá-la, então.
E eu vou.
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Consigo jogá-lo encima do sofá e tirar-lhe não só a camisa como o resto das roupas. Depois lhe arranco também suspiros em que fico entre suas pernas, que me apertam com força, no começo, as coxas todas arrepiadas como na nossa primeira noite juntos. Estava apenas esperando uma chance para começar, não é? Quando e como isso vai terminar eu nunca sei. Tira a minha roupa quase aos rasgos, e me afasta para que não fique por cima de seu corpo.
"O que houve?"
Força-me a sentar e monta nos meus quadris, apoiando as mãos nos meus joelhos, entendo o que quer afinal, e isso me assusta. Assim não! Está me usando, me deixa ir na sua boca, mas não até o fim – ajoelhando-se na minha frente, sem tirar os olhos dos meus, seu cabelo espalhado encima das minhas pernas é sempre uma carícia a mais – , me enche de saliva, esbarra dentes afiados bem alí, justamente alí... Sussurra com uma voz quente e rouca que me quer inteiro. Oh, como mandá-lo parar? Essa língua passando por mim, o cheiro do seu suor de almíscar se espalhando, sensações meio animais, um ardor de cio... Assim não... Nunca gostei de ficar por baixo, e muito menos ser cavalgado, e meio que a meu contragosto, faz isso e muito mais, fica no comando de tudo, escolhe o momento para que eu o penetre, e até o quanto, dita o seu próprio ritmo e me usa como deseja. Oh, é maravilhoso não ter vontade alguma, debaixo desses solavancos deliciosos e rápidos, ondulantes, está me cavalgando fortemente, seu interior quente e escorregadio, tão estreito...
Seguro seus quadris para tentar ir mais devagar, as suas mãos prendem as minhas e não me deixam fazer nada, apenas olhar como seu corpo balança, reluzindo em vermelho de neon e suor, meio que experimentando cada movimento, feito estivesse descobrindo a sensação desse jogo perverso de prazer e agonia. Tento beijá-lo e ele se afasta, arqueado para trás, o cabelo quase esbarrando o chão, longe da minha boca e tudo o que posso beijar é seu corpo, lamber seu suor, morder sua pele lisa até que esteja cheia de marcas rosadas, quase violetas, onde meus beijos não mediram força, e os seus mamilos... Eu os deixo avermelhados e arrepiados como o resto da sua pele. Tento aspirar o mais fundo o seu cheiro intenso de sexo.
Não há nada que se compare em estar aqui. Nenhuma palavra, nenhum outro amante.
Saiyame é meu amante, agora. Apenas ele. E sou todo seu.
Um gemido...! Apenas um escapa da sua boca. Isso me faz esquecer qualquer reclamação, seguro firme em torno de sua cintura, faço o impossível para escutar mais.
O penetro com mais força, seu silêncio apenas aumenta, e consigo abraçá-lo, somos apenas um movimento sobre o sofá, que treme quase soltando suas partes: eu sentado aqui, e ele montado em mim, meio que entre as minhas pernas, e eu entre as suas. Esse movimento agora não depende apenas do seu corpo, do meu também, e resolvo fazer-lhe maldades, me movo bem devagar dentro dele, cada vez mais lento, compassado. Gemidos... Bem no meu ouvido. Que gemidos roucos inesquecíveis, todos feitos de prazer... Assim o faço ronronar, gemer... Sussurrar por mais, mais forte, ele diz baixinho, mais forte, mais fundo, ele diz, gemendo baixo no meu ouvido, metendo sua língua na minha orelha, cerrando os olhos, balançando seu corpo contra o meu, seu cabelo colando-se na pele. A sua voz me deixa mais excitado ainda e quando acho que vai dizer meu nome, gozo dentro de Saiyame, que se aperta em mim, quase me estrangulando, como se sentisse isso, suas pernas em torno de mim, e não consigo parar de me mover, de forçá-lo a continuar também, por muito tempo, e mais lento, apenas forçando a penetração para ir mais fundo, sem me mover, e consigo fazê-lo soltar um grito curto, depois outro, como um lamento... e um orgasmo selvagem varar seu corpo.
Esse é o segredo do seu prazer, eu me pergunto, assustado e encantado com isso tudo, todo esse prazer que ele demonstra, esse ardor... Nunca imaginei que fosse assim...
Gosta com força, mas geme cada vez mais alto quando faço cada vez mais devagar? É uma agradável surpresa. Quem diria?... É muito bom... Continuo os investidas, e sei o quanto gosta disso, e se sente livre estando comigo, o quanto acredito que confie em mim para se mostrar tão cheio de desejo e prazer... Geme alto, livre, apaixonado... E geme o meu nome várias vezes, pelas várias vezes em que fazemos amor nesse quarto abafado e cheio da luz vermelha que entra pelas cortinas...
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Descobri os segredos do seu prazer, lugares que posso tocar e arrancar suspiros e até se eu os beijar, posso arrancar-lhe orgasmos súbitos e violentos. Tão sensível, dá gosto de o provocar... Tão bonito... Estou quase desmaiando na cama, deliciosamente cansado. Estou, e não é nenhuma surpresa sentir isso, todo arranhado. Tanto que me deito de bruços, e Saiyame ao meu lado, suado, deitado quase encima de mim, uma perna entre as minhas, a ponta de um pé passando por meu tornozelo. Ah... Nunca fiz sexo assim com ninguém. Se eu morrer a culpa terá sido sua. Está cada vez melhor, e com surpresas muito boas e que me deixam tonto, como aqueles bombons da caixa que você abriu ontem... e nenhuma vez é como a outra. Isso me faz lembrar que não ganhei nenhuma mordida esta noite, penso, acomodando a cabeça no único travesseiro da minha cama, sorrindo. Se ele não houvesse sido tão selvagem, eu imaginaria que foi até carinhoso, e que isso pode ser sinal de perigo. Que perigo? Deixei-o bem exausto, quieto como uma criança sonolenta, e mal sinto seus lábios em mim.
Que bom... É tão bom...
Talvez seja isto estar apaixonado.
Quem sabe eu até poderia vir a me apaixonar por Saiyame algum dia.
Não. Acho difícil.
Eu não o amo.
Nem de longe e no escuro.
...Está me lambendo, a princípio é dolorido sua língua e macia nos lanhos das minhas costas. Depois fica uma delícia, um alívio e um carinho. É bom... Seguro sua mão e a trago para beijá-la. Beijo sua palma também. Desta vez permite e leva a minha para fazer o mesmo. Arrepio. Reconhecimento. Tão estranho e tão familiar. Por que ele faz essas coisas que eu não entendo? Ainda se ressente pelo que aconteceu da outra vez que beijei sua mão?
E pensar que você não me queria...
E pensar que eu o odiava e achava sem graça... Estou com sono, não quer dormir aqui, comigo? Podemos continuar de manhã, não tenho nada para fazer, e você? Está descobrindo todas as coisas de que o seu brinquedo novo (no caso, eu) é capaz, não é? Entre cada lambida, um beijo leve e sua mão vai até o fim das minhas costas e fica lá, e depois sobe. Não me ache um pervertido, Saiyame, eu tenho muito a experimentar com você... Amanhã... Estou com tanto sono... Ainda vai me deixar doido e vai até me espremer, se puder!... Beija da minha nuca até a base da minha coluna, bem devagar, bem molhado... Ahn... Que bom... Vou ter sonhos indecentes esta noite... E você vai estar aqui para sonhá-los comigo...
Sinto suas pernas passando sobre as minhas...
Seus beijos voltam para o meu pescoço, fazendo círculos deslizantes, afastando meu cabelo para o lado. Tão bom...
Seu peso em mim... Tão quente e...
E uma dentada violenta em cheio na minha nuca!
Meu sono passa na hora e tento fazê-lo me largar, e quanto mais me debato, com mais força me morde! O que é isso? Cenas do Discovery Channel? O que pensa que está fazendo? Está... esse pervertido está tentando me comer! Está metendo suas pernas entre as minhas, encaixando-se sobre mim, me segurando com força...! É apavorante... Eu não vou ceder, não vou! Solto um grito de dor com essa dentada e com as unhas se encravando em mim, nos meus ombros, me forçando contra o colchão. Não acredito! Foi de propósito... Ficou carinhoso só para me distrair... Seu tarado! Você só pensa nisso?
Nunca me deixei penetrar por ninguém, e você é que não há de ser o primeiro e... E... Oh, não, estou sentindo-o em mim... Pronto para me penetrar, encostando-se, sua respiração precipitada na minha nuca, a dor da dentada...! Vai querer me fazer seu à força? Nem assim vai conseguir, seu maníaco! Não sou de ninguém, nunca fui... Apenas eu posso estar entre os joelhos de alguém aqui! Ah! Uma investida violenta me faz gritar, está tentando me penetrar... Como dói... Tento me afastar, e seus dentes entram com mais força na minha nuca, me obrigando a ficar quieto...
Eu não quero isso, droga, não entendeu? E-u-n-ã-o-q-u-e-r-o! Estou em pânico, gritaria por socorro, se não tivesse plena consciência de que... Seria uma frescura fazer isso.
Está se acomodando para tentar de novo, tenta erguer os meus quadris, está encostado alí... Tentando, prontificando-se, ereto, quente e úmido e... Me escuto gritando de novo, mais alto, mais desesperado, como se eu fosse uma pessoa totalmente despreparada para essas coisas... Aaaahn, quase conseguiu me penetrar! Doeu como nada que pudesse comparar, minha vista escurece... É um pesadelo!
Ah... Vai tentar de novo?... A dor me faz ficar parado no lugar, imóvel, e de repente seus dentes afrouxam o aperto... O susto foi terrível, espero que estivesse brincando ao fazer isso. Foi uma brincadeira sádica e de mau gosto... Ficamos ofegantes, eu esmagado no colchão pelo seu corpo, o travesseiro não está mais aqui, foi parar no chão... Estranho... Foi fácil demais, desistiu. Uma das suas mãos passa pelo meio das minhas costas, de cima até embaixo, e depois volta, devagar, espalhando o meu suor gelado de dor e medo. Isso não se faz, Saiyame, não achei graça nenhuma, seu... Seu tarado. Sua mão volta a fazer isso, me faz relaxar, respirar fundo, e por um instante esquecer a raiva que a sua brincadeira me causou. Vai me pagar caro por isso e...
Ah, não! Tenta de novo, fêz isso de propósito também, e desta vez, com mais força, mais vontade do que nas outras tentativas e... E... Consegue me penetrar. Está em mim! Grito, com a dor, com a surpresa de uma sensação que é a primeira vez que experimento, tanta dor e uma excitação mais forte do que a minha vontade tomando o meu corpo, me fazendo aquietar por um segundo de surpresa, sem ar, sem forças... Mais uma investida e está completamente encravado em mim, fundo no meu corpo, unido a mim, assim, com força, como se fossemos apenas animais famintos. Solto outro grito, me segurando nas grades da minha cama, que balança inteira com a primeira investida.
Dor, apenas dor... Eu o odeio, seu pervertido! Você está dentro de mim! Eu o odeio pelo que está fazendo... Meu orgulho está no chão... Obriga o meu corpo a recebê-lo assim... A segunda investida é mais forte e meu grito se torna de puro prazer, que não sei de onde vem, e aumenta a cada ida e vinda de Saiyame.
Sinto minhas mãos tremerem nas grades, o ferro batendo contra a parede, rangendo.
"Aaaahn, Saiyame..." – Sinto lágrimas de prazer e dor, vindo de repente. Não quero que pare por nada desse mundo. Escuto-me mandando que continue, e gemendo, uivando, gritando de um prazer desconhecido e desesperado sob o seu corpo e suas investidas por vezes hesitantes e desajeitadas, que me machucam, e levanto eu mesmo meus quadris, só um pouco, dando espaço entre eu e o colchão para a minha própria excitação, facilitando a penetração, que fica mais profunda, mais violenta.
Sinto-me estremecer, me balançar todo junto ao corpo dele, esfregando-me nos lençóis, nos pêlos louros de entre suas pernas... Chamo seu nome, dizendo-lhe coisas desesperadas e indecentes, imorais até para mim... Se soubesse que poderia ser tão bom... Sua mão faz meu cabelo de rédea, golpeia com mais força, faz-me sentir dor junto com o prazer de antes e mais ainda e... Puxa meu cabelo com mais força e me faz virar a cabeça para receber um beijo selvagem, que sinto meus lábios se machucando nos seus, isso me excita de tal maneira e nem acredito, então, quando tenho um orgasmo, sem que ao menos houvesse esperado por isso, e ele se prolonga indefinidamente, me fazendo arrepiar, jorrar sobre os lençóis... Então é assim?... Foi o que ele sentiu quando eu...? Dor até em meio ao orgasmo, incomparável, extremo... Escuto-o soltar um pequeno gemido, ainda mordiscando meus lábios, e estremecendo, gozando junto comigo, quase que no mesmo ritmo, nossos corpos cedendo um sobre o outro na cama, continuando essa batalha que não tem vencedor, até que cedemos...
... Acordo de repente, sentindo meu rosto molhado. Estou chorando... Não... Eu chorei... Chorei de prazer e de dor... Ninguém nunca me fez gozar desse jeito tão descontrolado. Eu não me reconheço mais... Ainda sinto o seu palpitar, e ele escorregar por mim, deixando um rastro molhado e quente de semêm nas minhas pernas, que também escorre entre elas, para o colchão. Demoro muito até ter forças de me por nos cotovelos e tentar compreender o que se passou ainda há pouco. Sinto que um trator me atropelou, deu marcha ré, e passou novamente encima de mim…
E Saiyame está aqui do meu lado, escondendo um sorriso que não tenta disfarçar, olhos brilhando, maliciosos, empolgados. Seu brinquedo serve para outras coisas além de se morder e arranhar, não é, seu pervertido?... Consigo rolar, ofegando ainda violentamente, com a boca aberta, sem força alguma, tremendo e percebendo-me todo amolecido, sem conseguir nem falar. Falar o quê? Sorte que aqui tudo está vermelho com a luz do letreiro lá fora, ou ele estaria me vendo da cor de um tomate. E na minha própria cama, seu pervertido... Você é ardiloso e sádico... Fêz tudo isso de propósito... E não tem vergonha nenhuma nessa cara cínica. Assim que eu conseguir me mexer, vou lhe dar uma surra, e quero ver se ainda vai querer ficar tão perto de mim, olhando bem no meu rosto.
Que sorriso lindo, travesso, maldoso...
Não vou ter coragem de bater nele mesmo, que porcaria, e nem me importo tanto em ter sido... Bom, descubro que me preocupo agora muito menos do que antes. Sinceramente? Não me importo com mais nada. Foi muito bom, ainda sinto arrepios me cortando...
Acho que acabei de perder até a virgindade da minha alma. E pior do que isso, não tenho mais nenhum orgulho, nenhuma dignidade e nada disso faz falta como está me fazendo falta outra coisa...
Estou me sentindo mais uma vez como um canário, e ele, o gato que me olha balançando a cauda de um lado para o outro.
Só que desta vez eu me sinto com toda a certeza o canário mais bem comido de todo este continente...
E Saiyame, com a sua cara de gato que engoliu o canário... Esse olhar é indecente, me faz sentir que eu também sou indecente, e com razão, a excitação que ainda me atormenta é indecente. Descubro em mim toda uma vocação para pertencer a Saiyame, gemer debaixo dele e pedir sempre por mais, como peço, segurando a sua mão na minha – que é trêmula, hesitante, como imagino que seja meu olhar agora, vendo o seu sorriso se desfazer num rubor de prazer– trazendo-a para o caminho que nunca achei que algum dia iria deixar alguém percorrer, trago a mão de Saiyame para entre as minhas pernas, e eu as afasto, ansioso e excitado, faminto, e imploro, num fio de voz, que ele me faça novamente.
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Estou furioso.
Não que não tenha gostado, mas...
Eu não vou dar o braço a torcer por mais que tenha pedido por uma segunda vez. E nem vou dar o braço a torcer de que mais uma vez eu disse que o amava. Se eu ficar dizendo essas coisas, vou acabar acreditando.
Mas a quem eu estou tentando enganar?
Ele já sabe e eu também já sei. Ficar negando é pura idiotice.
Estou apaixonado.
"Tire essa mão daí!" – Rosno do outro lado da cama, já de manhã, caindo em mim do que houve, do que deixei acontecer e do que pedi para que acontecesse, e dos motivos que me fizeram aceitar, que me irritam mais do que qualquer outra coisa.
Se isto é estar apaixonado, preferia ter mesmo atravessado o Pacífico à nado quando tive chance.
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Não adianta.
Consegui me transformar em um monstro feito todo de açúcar e manteiga para Saiyame – O enfermeiro da lagoa negra, hahaha – e no dia seguinte (Depois que volto a falar com Saiyame, claro, e a receber seu afeto de gato, esfregando a cabeça no meu ombro, manso e íntimo...) e nos outros, eu me descubro vivendo para ele, para nós, distraindo-o, amando-o, deixando-me amar por ele.
Estou apaixonado e nem acredito nisso, parece que é um pesadelo do qual não consigo acordar e nem quero, a concretização de todos os meus pavores, como se fosse aquele encontro final e crucial com o lendário bicho papão que nos assusta quando somos crianças. E perto dele eu sou apenas um menino...
Não adiantaram caras feias, berros furiosos, acusações que lhe fiz. Ele apenas sorriu quando o chamei de tarado. Respondeu que eu havia gostado. Isso me deixou morto de vergonha e me calei. Será que era tão evidente? Eu nem sou de fazer muito barulho na cama, por sinal eu sou sempre muito discreto e controlado, como em tudo na minha vida. Fico remoendo isso demoradamente até que fui dar uma volta, comprar doces para Saiyame – que descobriu que eu tinha potes cheios de balas de menta na cozinha e comeu quase todas – e quando voltei, perguntei se eu havia deixado tão na cara que havia gostado. Mais uma vez ele apenas sorriu, voltando a olhar os meus livros empilhados.
Isso me fez entrar em uma depressão profunda, juntando-se ao fato de que finalmente descobri que estou apaixonado (...e muito, mais apaixonado do que qualquer pessoa pode estar). Fiquei a noite toda sentado no sofá, no escuro, comendo todas as balas de menta que sobraram, me sentindo muito burro e pensando se ele gosta mesmo de mim. Depois fiquei furioso de novo, me sentindo traído, o último a saber das coisas que estavam acontecendo entre nós.
Ele sorriu.
E eu me derreti inteiro.
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"Que escândalo indecente é o que estão fazendo no meu apartamento? Este é um lugar de família, seus ocidentais pervertidos!" – A dona da loja me agarra pelo braço, na manhã em que vamos voltar para a casa de Saiyame, grasnando isso e muito mais. Não sei onde estou com a cabeça que em todos estes anos não dei-lhe um tiro no meio da cara. Motivos não me faltam. E agora... Suspiro, olhando um pouco para trás, esperando Saiyame terminar de atar os sapatos, sentado nos degraus, alheio a essa lavação de roupa suja na frente de todo mundo.
"Não vai me responder, seu sem vergonha? Não tem vergonha de corromper este lugar com a sua indecência?"
"Você não vai estragar o meu dia, senhora Iketani..."
"O quê? Ainda se atreve a responder para mim, seu sujo!" – Ela fica indignada. Todos estes dias eu tenho passado por aqui e não a vi mais. Achei até que havia mesmo quebrado o pescoço e morrido naquela queda... – "Eu vou estragar o seu dia, sim, eu vou despejá-lo daqui e..."
"Não vai. E não vai estragar o meu dia. Sabe por quê?"
Ela arregala seus olhinhos puxados para mim, curiosa, embora irritada. Do fundo do balcão, a balconista e o caixa esticam os pescoços para assistir melhor, porém isso não me tira do meu estado de surpreendente bom humor.
"Hã?... Por que?"
Nessa hora, Saiyame está chegando perto de mim, perguntando em inglês se nós já vamos. Eu o abraço antes que vista o seu casaco de camurça, por cima daquela camisa vermelha que lhe dei, fico com um braço em torno do seu ombro e os dele em volta da minha cintura.
"Porque, senhora Iketani... Você nunca vai saber o que é acordar de manhã com uma coisa linda dessas daqui entre as suas pernas..." – Dou uma risadinha, apertando mais Saiyame, que apenas sorri e cora pois sabemos de quem eu estou falando, e é dele mesmo... Vejo que ela está perdendo a cor e o ar. Dessa vez ela não escapa, eu tenho de fazê-la ficar com o cabelo tão de pé que nem o lenço que usa na cabeça vai ficar no mesmo lugar! Se ela tiver um ataque do coração, tanto melhor... Livro-me dessa peste de uma vez por todas! – "... E muito menos há de saber o que é dormir depois de transar loucamente com um homem como eu. Porque se soubesse, ia entender o motivo de tanto barulho."
Ela resiste em pé, branca da cor do seu avental. Uma tensão paira no ar da loja de conveniência. E lentamente, como um cedro partido, minha senhoria desaba no chão de novo.
Respiro fundo com a sensação do dever cumprido.
Velha desgraçada. Você sempre acabou com o meu dia, sua mal amada. Resisto de dar uns chutes no seu corpo inerte no chão. Eu jamais faria uma coisa dessas na frente de Saiyame, mas se ele olhasse por um momento para o lado, quem sabe...
Desvio dela e saio para a rua, ao lado do meu... namorado.
(Hahahahahahahahaha! Morra de inveja, senhora Iketani, eu tenho um namorado e a senhora não!)
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No metrô, depois de rir muito sozinho, sem Saiyame entender ao certo os meus motivos, percebo que estamos deixando um pequeno paraíso para trás. E à medida que nos afastamos de lá, uma sombra de preocupação volta aos seus olhos rasgados e claros, que ficam escuros com a falta de sol deste dia nublado de outono. Talvez sinta falta destes seis dias de calma e simplicidade, eu também sinto, e medo também. De repente sinto todo o frio na barriga que sentia ao pensar que ele poderia me abandonar a qualquer instante, e agora é pior, porque estou preso a ele, porque estou apaixonado. Não que acho que tenha sido uma coisa que brotou em mim, do nada... Antes eu estava, eu acho, e não queria deixar o orgulho de lado para admitir. Engoli o meu orgulho e parei de ter vergonha. E assumi com isso todos os riscos de me machucar, e embora tudo me diga o contrário, até a aconchegante bagunça da casa velha quando estamos nela de novo, a banalidade das coisas, fico apreensivo.
Houveram umas duas noites em que não vi Saiyame dormir, apenas olhando pela janela do meu apartamento. Não disse nada, não gosta quando me intrometo nesse tipo de coisa, e nem preciso ser alguém como Li, com capacidade até de fazer um copo se mexer sozinho, para saber que ele esconde algo ainda. E tem a ver com as coisas da gaveta.
Ainda é o mesmo comigo, um pouco perverso às vezes, abrindo a minha boca à força para enfiar nela mais um daqueles bombons de gosto alcoólico que me deixam tonto, me maltratando como se me fizesse carinhos, mas sempre muito doce. Ele tem um temperamento péssimo (e eu certamente sou um primor de temperamento...) e imprevisível. Sempre. E em alguns momentos, quando acha que não estou por perto ou prestando atenção e essa preocupação volta ao seu rosto, deixando-o parecer ter séculos de idade, imagino que talvez eu não o conheça de todo.
Já está se preparando para me fazer comer outro bombom quando a campainha toca, na metade da manhã. Ele sai de cima de mim, no sofá da sala e me manda atender a porta, num tom tão seco e autoritário que obedeço na mesma hora.
"Bom dia." – Uma voz de mulher me encontra antes que preste atenção em quem está do lado de fora.
Ela passa por mim, entrando, perguntando de Saiyame, sorrindo, bem vestida e com um lenço sobre o rosto. Ah, é a dona da casa. Ela pergunta quem sou eu, enquanto se acomoda no sofá da sala. A caixa de bombons sumiu.
"Você é amigo dele, não?" – Se ela quer acreditar nisso... Eu é que não vou estragar as suas conclusões.
Ela olha ao redor, desconfiada e vai tirando o lenço do rosto, bem devagar. Nem chega a tirar o lenço todo e começa a espirrar, e seu nariz fica vermelho imediatamente, seus olhos lacrimejando.
"Bom dia." – Saiyame entra na sala, com uma bandeja que explica o motivo daquela água que ele pôs a ferver quando chegamos aqui hoje. Traz chá. E também aquele maço de papéis que estava na sua gaveta. Mas a mulher nem consegue dizer o seu próprio nome para mim, a pobre mulher não pára de espirrar desesperadamente, e já se apóia no meu braço para não cair do sofá.
"Aqui estão as contas da casa, senhora. E também os recibos de alguns consertos. E eu mesmo consertei a clarabóia, ainda no verão."
"Oh" – Espirro. – "Que ..." – Espirro. – "... bom!"
Ela consegue ficar um minuto inteiro sem espirrar, segurando a respiração e pergunta se pode dar uma parte do pagamento de Saiyame agora e o resto depois, e ele acena um sim breve e neutro. Entre mais espirros, alguns em seqüência, essa mulher diz que agradece pelos serviço dele, e que assim que seu marido voltar de viajem, Saiyame pode ir embora. Isso, ela diz, vai acontecer agora no inverno. Tira da bolsa mais do que rápido um bloco de dinheiro e entrega a ele, levantando e praticamente correndo até a porta da sala. Saiyame faz menção de acompanhá-la:
"Não, não precisa! Por favor.." – Espirro – "... Não se incomode!"
Mas eu vou acompanhá-la até a porta, até porque essa mulher tem pernas que não se vê todo dia!
"A senhora está com alergia..."
"Oh..." – Espirro. – "Todas as vezes..." – Espirro. – "... que venho aqui..." – Espirro. – "... eu fico pior dessa alergia!"
E vai embora para o carro estacionado na frente da casa sem nem se despedir nem de mim e nem de Saiyame. Alergia? Ele aparece do meu lado, para encostar a porta da frente.
"O que ela tem, afinal? Eu nunca vi uma alergia como essas!" – E não vi mesmo, já vi muitas, mas tão fulminante, é a primeira vez.
Ele umedece os lábios, sem pressa. Sem nem me espantar. Olha para o maço de dinheiro na sua mão, olha para mim e olha para o chão, virando-se para voltar à sala e tomar sozinho o chá do bule que a dona da casa não pode aceitar, respondendo, banal:
"É alergia a gato."
Fico meio chocado com isso. Na verdade eu fico quase em estado de choque.
"Mas não tem gato nenhum nessa casa, Saiyame!"
Ele apenas sorri e me oferece chá.
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Continuo pensando de onde poderia ter saído a alergia daquela mulher até depois de um bom tempo. Mas o chá me faz esquecer e ficar bem tonto. Tenho de beber com ele, porque Saiyame insiste, e insiste de um jeito, sempre enchendo a minha xícara que até que esse bule termine, já até comecei a gostar de chá. Ele parece distante e um pouco distraído, um olhar que há muito não sinto nele. Depois de meses descobri que era verdade quando me disse que esta casa não era sua, e que estava trabalhando mesmo, nos seus sumiços. É assim que ele paga as contas, mantém este lugar. O telefone toca, baixo e constante, algumas vezes, e ele... tão somente repousa sua xícara na mesa do lado e me pede para atender.
"Vai começar com seus segredos?"
"Eu nunca terminei com nenhum deles. Atenda."
"No que você está pensando? Não gosto quando fica com esse olhar."
"E eu não gosto quando começa a se meter nisso mais do que deve."
"Eu estou tentando ajudar!"
"Desde o começo, quando tenta ajudar, se mete onde não é da sua conta e faz o que não deve. Maldito seja, atenda este telefone, que inferno!" – Levanta, levando a bandeja numa das mãos e o bule vazio pela alça. Eu o aborreci. E muito. –"E não diga a ninguém que estou aqui. Seja quem for, se quiser falar comigo, eu não estou."
Atendo. Silêncio do outro lado. Por que ele não quer falar com ninguém? Repito o "alô" Mais uma vez e Saiyame fica parado, esperando para ver o que vou dizer. Está se escondendo, fugindo? Está fugindo do quê? De quem? Está evitando as pessoas? Mas quem poderia telefonar para ele?
"Alô? Gostaria de falar com Saiyame, por gentileza?"
"Ele..." – Eu conheço essa voz... Minha língua arde para dizer a verdade, e fico pensando na dona da casa, avisando-o de que seu trabalho aqui praticamente chegou ao fim. Fim. Tudo tem um fim. Espero que nós não tenhamos o nosso, Saiyame. Você deu fim na sua relação com todas essas pessoas, e exigiu claramente que nenhuma delas guardasse lembranças suas. Isso se aplica a mim também?– "... Saiyame não está. Gostaria de deixar algum recado?"
"Sim... Quem fala por favor?"
"Wakai...Hisashi." – É o senhor Kinomoto que está do outro lado da linha. Meu coração dispara quando penso em Sakura, no carinho com que ele tem aquelas fotos do corredor, no carinho com que Saiyame diz o nome dela. Meu coração quase chega a doer quando imagino o que una essas pessoas, de maneira que até mesmo que eu tenha visto o fantasma de Sakura aqui, nessa casa, no quarto de Saiyame. Eu olho para ele com perplexidade, por que deixo-me envolver nesse jogo imundo que cerca essas pessoas, algo que é tão grande que estou tão perto, está tão na minha cara e mesmo assim não posso enxergar, não posso imaginar o que seja.
"Olá, Hisashi!" – Ele diz quem é, e nem precisava. Engulo em seco. Escuto-o pedir-me, naquela calma professoral que peça para Saiyame ir visitá-lo, assim que puder, que ele tem muito a conversar, que sente falta de vê-lo por perto. Saiyame parece escutar do outro lado da sala cada uma dessas palavras e não se abalar com nenhuma. Você vai sumir da minha vida como sumiu da vida dele e da de Tomoyo? Vai se afastar tão secamente de mim quanto de Li?
"Eu darei o seu recado, senhor Fujitaka." – Digo. Estou sem ar. Estou mentindo para aquele homem tão gentil e educado, que me recebeu tão bem na sua casa e confiou tanto em um estranho até para contar detalhes de sua vida. Por que Saiyame não quer falar com ele. Não guarde lembranças de mim, senhor Kinomoto, ele disse, eu me lembro, escutei neste mesmo telefone.
Desligamos. Não, eu continuo com o telefone na mão, olhando sem acreditar no que está havendo aqui, para um Saiyame imóvel e inexpressivo na porta da sala. A linha caiu, faz um barulho monótono e faz coro com meu coração que quase explode. Estou triste como que você está fazendo, eu lhe digo. Pergunto por que está se escondendo de todos.
"Eles não precisam mais de mim, e nós sabemos disso. Em algum tempo, eles não vão mais se lembrar de nada sobre mim. E melhor que não guardem lembranças de mim."
"Você vai fazer o mesmo comigo? É isso que você vai fazer?"
Ele vai pelo corredor. Eu não deveria ter dito aquilo. Só piora tudo.
Escuto seus passos se afastando daqui, e vou logo atrás. Por que eu tive de começar essa discussão? Estou me sentindo mal com isso, com essa preocupação que voltou aos seus olhos de animal e eu... Eu não tenho mais orgulho, vou correr atrás dele e pedir, implorar, com a simplicidade de quem não costuma fazer isso nunca... por desculpas.
Quando abro a boca, não digo nada. E nem chego à metade do corredor. Saiyame está parado, olhando para dentro das cristaleiras. Há quatros cristaleiras em todo o caminho do corredor, duas de ébano, uma de acaju e uma de pau-marfim. E dentro, uma babel de louças, cristais... e bonecas. É verdade. Eu me lembro de ter visto Saiyame colar as que estavam quebradas, eu assistia de longe a autópsia das bonecas nas suas mãos longas e cuidadosas, como se tomasse conta de crianças. Mas há muito tempo que ele terminou esse serviço, e nunca pareceu se lembrar dessas bonecas a não ser agora.
Por que?
Está me assustando. Eu não gosto de sentir esse medo tão parecido quanto da época em que o conheci, que nunca sabia se você ia querer me assassinar. O que há de especial nessas bonecas? Eu não gosto de pensar que talvez estivesse certo imaginando que você seja louco.
Ele pestaneja, e continua andando, como se não houvesse ficado indefinidamente parado no meio do corredor, e eu então vou atrás. Encontro-o colocando o bule lavado no escorredor de louças, a bandeja novamente no armário. Sinto que ao baixar a cabeça, ele na verdade olha de soslaio, para ver que sou eu aqui. Bem perto, parado, calado. Eu tenho muitas coisas a dizer, mas ele não ouviria. Ou ouviria, e não faria sentido. Mas eu não quero brigar, nosso dia começou tão bem, nós estávamos tão bem... não estávamos? Ou aquela paz de todos esses dias (embora as brigas, embora as minhas neuroses...) estava só na minha cabeça, e na verdade você sofria escondido todas as noites, e fazia amor comigo daquele jeito tão completo só para não ter de sofrer mais ainda?
"Saiyame..."
Ele não responde. Apenas ergue a cabeça e suspira. Aproximo-me dele e abraço seus ombros, por trás, apertando-o em mim, percebendo um tremor subir por seu corpo. Falo no seu ouvido que não queria brigar com ele, e muito menos deixá-lo triste. Não responde. Digo que não o entendo e me irritou que tenha gritado comigo. Eu só queria ajudar.
E sua voz rouca somente me responde que não queria ter gritado comigo.
Depois de um longo tempo se deixando abraçar, somente se afasta e passa a mão no meu cabelo.
"Você não precisa me entender. Apenas fique comigo."
CONTINUA
