Quase não dorme mais. Não me quis esta noite, eu me pergunto se ainda vai querer, até que agora, entra no meu quarto e deita do meu lado. Mas não dorme. Passa a noite toda mexendo no meu cabelo, brincando com os botões da própria camisa, respirando pesadamente. Cochilo e sempre que acordo, encontro-o bem acordado.
"Está sentindo alguma coisa?" – Não sei que horas são, nunca mais encontrei meu relógio, mas está tão escuro que deve ser algo como quatro da madrugada.
Ele me responde um não sussurrado e distante. Se insisto em falar, ele me cala do melhor jeito que sabe: com um beijo tão doce, que no entanto é amargo e terrível. Faz amor comigo suavemente, mais do que nunca, mal nos esbarramos, mal nos tocamos, e ainda assim os lençóis se incendeiam. E Saiyame finalmente cochila já de manhã, um sono pesado e acho que sem sonho algum.
Estou acordado e vestido – sentado numa cadeira velha, vendo o dia clarear, frio, cada vez mais frio, como se o inverno fosse começar a qualquer instante, e essa aproximação me deixa cada vez mais aflito, com o estranho desejo que Saiyame tinha, de morrer antes que o inverno chegasse – , o dia já está alto quando ele acorda, de um jeito que nunca vi igual. Isso me assusta. Saiyame se senta na cama com tudo, de repente, tapando a boca com ambas as mãos, tentando conter um grito que me pareceu ser um rugido, tentando engolir alguma coisa que o está machucando, se debatendo de uma dor que não há razão. Pulo da cadeira e seguro suas mãos, tentando fazê-lo acordar, mas o pior... é que ele está acordado e age como se eu não estivesse aqui.
"Eu estou aqui!" – Mas não me ouve, ou não me reconhece.
Ele tenta me empurrar e arranca alguns botões da minha camisa tentando me afastar de si. Não faça isso, não faz idéia de como me sinto mal vendo-o desse jeito, por que não me diz nada? Por que nunca me conta nada do que se passa com você? Pare de agir como se estivesse sozinho!
Pronto.
Acabo de gritar com ele.
Ele solta um ruído do fundo de sua garganta, estrangulado, e seu peito pálido começa a subir e descer, e fica arquejando, tentando engolir a força alguma coisa que o está sufocando. Tudo fica imóvel e eu solto seus pulsos, apertei-os demais. Espero não o ter machucado. Silêncio. Ele baixa a cabeça e começa a crescer entre nós aquele silêncio que havia muito tempo não se erguia, aquela insuportável distância.
"Está se afastando de mim... O que está acontecendo? Está escondendo alguma coisa de mim."
"..." – Saiyame se encolhe no meio das cobertas e apenas continua tentando se controlar.
"Você teve um pesadelo?"– Não escuto a minha voz, estou achando tudo tão estranho que nem consigo me mover.
"..." – Apenas acena com a cabeça.
Talvez esteja me preocupando à toa. Talvez não haja silêncio e nem distância alguns entre nós, só minha desconfiança. Daqui a pouco vou achar que você tem outro, como e a que horas conseguiu isso, não sei, mas vou achar. Estou com ciúmes dos seus pesadelos.
Depois de muito tempo a sua tensão cede. Ele quase volta a ser o Saiyame a quem estou acostumado. Quase. Ele se parece mais com o estranho cuja casa invadi aos chutes. Deixo de reconhecê-lo e ele a mim. Dura apenas um momento. Eu não o conheço, mais do que imaginei antes, agora tenho certeza. Sento ao seu lado na cama e tiro seu cabelo comprido e cheio, repleto de cachos, ondas, espirais, de cima do seu rosto. Fico com uma das mechas enroscada em torno do meu dedo, e sinto que é real, e que nem de longe posso estar sonhando com nada disso.
"Você sabe que eu estou aqui. Não sabe? Sabe que eu amo você..." – Digo, bem perto do seu rosto, vendo como suas narinas se dilatam, e seus olhos ficam praticamente vermelhos, de tantas coisas que tranca dentro de si mesmo. Passo um dedo sobre seu nariz, como se desenhasse o seu perfil na areia, e da mesma forma, como se eu fosse perdê-lo assim que um vento qualquer soprasse mais forte. Um frio vento de inverno. Pergunto se eu fiz alguma coisa.
"Não."
"Está com raiva de mim? Eu fiz alguma coisa de que não gosta esta madrugada? Ontem? Você está distante, tão longe de mim, desde que voltamos."
"Não. Você já tem problemas demais sozinho."
"Eu sou o seu problema."
Ele olha com estranheza, por muito tempo. Enfim parece que entende o que quero dizer e sorri, é breve, mas é um sorriso. Que alívio, se todos os dias eu tivesse um susto como esse!... Pergunto como foi seu pesadelo. Ele apenas faz de conta que não perguntei nada, e já vai catando suas roupas que estão penduradas no espelho da cama. Nada disso, nem pense em sair daqui agora. E não adianta tentar me calar me beijando, eu não caio mais nessa. Fique bem aqui, está com vergonha do quê? Fique bem aqui... Puxo-o para ficar encostado em mim, com a cabeça encima do meu peito. Ah, que coisa... Pare de me olhar assim. Eu não vou perder mais do meu tempo tentando ler os seus pensamentos. Tenho medo do que posso descobrir.
Pergunto-lhe várias coisas. Pergunto se ele não quer visitar Tomoyo (Hmmm, imediatamente me arrependo de dizer isso, Li pode estar lá... E Sonomi também, aquela mulher é um perigo.), e a resposta é um não – Ufa! – sem emoção. Nem adianta perguntar sobre o senhor Kinomoto. Desse Saiyame quer distância, certamente. Ofereço doces. Posso fazer leite com açúcar queimado.
"Você gosta. Deve estar com fome."
Ele olha com interesse e se senta, de novo, esfregando os olhos, como vejo-o fazer quando se levanta, e sem dizer nada, me puxa pela camisa, e praticamente me coloca para fora da cama.
Trocado por um copo de leite.
Devo estar ficando velho. Meu cabelo deve estar um horror, imagino, saindo para o corredor, para que ele quisesse um copo de leite e não a mim. Acho que não entendeu o que eu estava querendo dizer quando ofereci-lhe doces... Pensando bem, eu não entenderia outra coisa além de doces.
Estando eu velho e horroroso, ou não, melhor vê-lo se empanturrar de doces e leite do que vê-lo tenso e preocupado.
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Depois que ele desce para tomar o leite que prometi, voltamos para o quarto, mas não para dormir.
Bom... Não chegamos ao quarto, para falar a verdade. Ficamos mesmo é na sala, rolando por cima do tapete, em brincadeiras incendiárias, nos esfregando, nos tocando, sem fazer mais nada, somente atiçando. Ainda estou tentando mostrar a ele o que sei fazer. Por vezes eu é que pareço estar aprendendo. Por favor, não me faça acreditar que eu não fui o seu primeiro! Não quero pensar em sexo agora, estou aprendendo, sim, estou descobrindo o prazer de... namorar. Nunca fiquei apenas junto de alguém como estou agora, tão feliz, esquecendo das coisas ruins, com esses bombons enfiados na minha boca me deixando bêbado por causa do recheio.
Eu me flagro rindo, cada bombom dividido com Saiyame por um beijo mais profundo e quente.
Sabe o que me deixa mais feliz? O telefone desta droga de casa não toca, e ninguém bate nessa maldita porta. Nada melhor do que ser esquecido pelo mundo. Estou sem emprego, ele não tem nada para fazer... E eu não consigo me preocupar com nada disso. Estou louco!
Mais um bombom... Metade na minha boca, metade na sua, e logo em seguida a sua língua passando pelo meu queixo, limpando a calda de cereja que escorreu entre nós. Depois, mais um beijo, e a sua língua na minha boca. Nada para falar, qualquer coisa pode estragar isso. Puxões leves no meu cabelo, e eu também afago o seu, mas sem malvadezas. Minha maldade é morder os seus lábios sem os machucar. Está pesado encima de mim, e a sua camiseta branca ameaça seriamente escapar do seu corpo. Minhas mãos estão entre ela e sua pele morna.
Hmmm... Até esses bombons me deixam bêbado. Estou sentindo cheiro de alecrim em Saiyame.
Ele é tão quente...
Estou rindo à toa e a culpa é toda sua. Tire essa mão daí. Você já teve o que queria esta madrugada, agora é a minha vez. E não me morda...
Vai ser uma delícia dormir com você no inverno... quente assim... é melhor do que um cobertor.
"Não, não quero mais essas coisas... Já deve ter me feito comer a caixa toda sozinho!" – Reclamo, tentando escapar do último. Todos foram deliciosos, mas não agüento mais, vou ficar bêbado de vez se comer mais um.
"Está bem. Não quer mais nada? Nada mesmo?" – Está me atraiçoando, o bombom está na sua mão, e nem consigo parar de sorrir. E não vou comer isso. Não adianta. Agora venha cá... Escorrega de dentro da sua camiseta, mostrando-se pálido embaixo de mim, encima desse tapete escuro e grosso. Não sorri, e nem precisa fazer isso para me derreter. Minha camisa acaba de perder o resto dos botões e ele me faz tirá-la. Tão bom saber que ninguém vai apertar a tal da campainha...
A campainha.
Ela toca baixo e uma única vez.
Saiyame arregala um pouco os olhos e faz menção de se levantar.
"Não. Você mesmo disse ontem que não queria falar com ninguém."
"..." – Morde o lábio, apreensivo, olhando para a direção da porta da sala, e depois para mim. Seu cabelo se espalha um pouco mais pelo chão. Aqui está escuro e abafado, e o cheiro do seu suor é provocante. Se me deixar nesse chão, eu nunca vou perdoar você. Se fosse em qualquer outra hora, por qualquer motivo... Mas não por causa de um não-sei-quem que resolve nos interromper justo agora.
Ele escorrega de debaixo de mim e sem encontrar sua camiseta, acaba vestindo a minha camisa. Parabéns, deu fim em todos os meus botões, e ainda assim vai ter a cara de pau de me deixar sozinho encima desse tapete? Não estou com vontade de deixá-lo abrir essa porta.
"Eu deixo você me morder..." – Saiyame costuma ser, apesar ou por tudo, altamente subornável em termos de sexo. E conhecendo-o, sei que não é indiferente ao abraço em torno de sua cintura, puxando-o de volta para o chão.
"Não" – Ele ri baixo, com cócegas no pescoço, quando mordo-o perto da sua orelha.
A campainha toca de novo. Ah, se eu tivesse uma espingarda...
Vamos lutando assim, um pouco à sério um pouco de outra maneira, mais atrevida, e já estamos na porta da sala e não consegui negociar nada do que gostaria.
"Se atender esta porta, eu não faço mais nem um copo de leite para você!"
"Eu sei fazer..." – Resmunga, se livrando do meu abraço e tentando passar por mim. Nem se eu morrer eu vou sair da frente dessa porta, não antes de cometer uma loucura bem aqui no meio do corredor.
"Eu deixo..." – O que ele faria qualquer coisa se eu oferecesse? É tão difícil saber, há várias coisas que eu jamais deixaria-o fazer, porque acho que Saiyame é um desvairado e totalmente imprevisível... – "Eu deixo você vir na minha boca!..." – Digo-lhe por fim, quase envergonhado de estar dizendo essas coisas indecentes. Estamos tão perto um do outro aqui, e essa campainha tocando, que não é nada até eu o arrastar até os degraus da escada e fazê-lo se deitar sobre eles. Se ninguém atender a porta, a pessoa lá fora vai embora. Melhor assim, devo estar bêbado daqueles bombons de licor, nem sei mais o que estou fazendo. O que Tomoyo estava querendo que acontecesse dando-lhe aquela caixa? Certamente isso que está acontecendo agora, estalos de botões saindo de suas casas, ruídos úmidos desses beijos onde sua língua felizmente insiste em se intrometer no meio... Vou ficar todo roxo de fazer isso nesse escada... Mas vai valer a pena. E o que faria realmente valer mais ainda seria apenas se fosse aquele filho da mãe do Siaoran Li quem estivesse apertando a campainha dessa porta.
Saiyame se lembra da porta e me empurra de leve, ofegante e muito vermelho, e pára um instante, passando a ponta dos dedos por cima dos meus lábios, soltando um gemido como de estivesse sentindo dor. Ah, pelo menos sabe o que está perdendo... Antes que tente se levantar, trago-o de novo, fazendo com que fique bem perto de onde estou ajoelhado, nos degraus. Suas costas estão escoradas em mim, quentes e suadas. E de repente arrepiam quando sussurro no seu ouvido, enquanto meto as mãos por dentro de suas calças surradas de sarja, por lugares que gosto de pensar que fui o primeiro a tocar, sem muita certeza do que estou prometendo, e com aquela sensação de estar fazendo uma loucura do tamanho que seria se eu me lambuzasse de mel e deitasse encima de um formigueiro...
"Eu deixo você fazer o que quiser, mais tarde."
Estremece, inerte, me deixando descer seu zíper, ir longe com as mãos, quando ele se estica, cedendo... Não acredito... Vai ser aqui mesmo? Nas escadas da casa? Como eu queria que fosse o Siaoran Li escutando tudo isso... Ele deveria ir morar com a minha senhoria, eles se merecem.
Começamos a fazer barulhos que dariam razão à minha senhoria de chamar a polícia, até que ofegante e triunfante, cansado e feliz, e também um pouco apavorado em mais tarde ser forçado a cumprir a minha promessa, me deixo cair jogado nas escadas, vendo Saiyame tentando levantar, desorientado e tonto. Você gostou. Nem adianta reclamar. Foi precipitado, foi violento, mas foi ótimo, melhor ainda sabendo que tem um idiota escutando tudo. Saiyame diz, alto e entrecortadamente que "pode entrar". Pena que ele já conseguiu se vestir de novo.
A porta vai abrindo aos poucos.
E por falar no diabo...
"Olá." – É ele, Siaoran Li, parado, olhando para nós, principalmente para mim, jogado aqui, sem camisa, nessa escada, com o cabelo todo colado no rosto e nas costas, e ele olha com uma cara de poucos amigos. Não vejo raiva como da última vez que nos encontramos, e nem de longe aquilo que vi no seu rosto quando ele beijou Saiyame. Mas vejo despeito. E não por menos, está evidente o que aconteceu aqui até um minuto atrás.
"Olá..." – A voz de Saiyame o faz desviar os olhos de mim. Está vestido da melhor maneira que poderia fazê-lo, agora, o que não ajuda muito a desanuviar essa situação. Eu não estava pensando muito à sério quando queria que fosse Li a escutar nossas... brincadeiras. Ele se levanta do meu lado e vai ficar de pé perto de Li, trocando com ele um olhar estranho. Não. Apenas o olhar de Saiyame é estranho, ele se torna um estranho para mim e para Siaoran também. Ao mesmo tempo, essa estranheza tem um ar sinistro de reconhecimento mútuo, como se eles se conhecessem de realmente muito, muito tempo. E como se fosse agora, esse olhar, uma trégua para algum tipo de guerra particular.
"Eu recebi uma carta esta manhã."
"..."
"É uma carta de Touya Kinomoto, irmão de Sakura." – Li desvia os olhos um momento, tirando do bolso do sobretudo cinza um envelope simples e um pouco amassado. – "... Sabe há quantos anos que não temos notícias dele aqui no Japão?"
"Não." – Saiyame responde, apenas, é uma resposta simples e seca, apesar da sua respiração agitada, do seu rosto úmido de suor. Ele apenas mantém sua fria postura.
"Desde a época em que Sakura foi assassinada. Nenhum de nós fazia idéia..." – Ele continua a falar, simples, calmo apesar do choque inicial de nos encontrar tão... íntimos. – "Toya está na Inglaterra. Pelo menos até quando postou esta correspondência, ainda deveria estar lá."
"O que ele diz nesta carta?"
"Ele me pede que eu o encontre em Hong Kong. Numa casa que é da herança da minha família."
"E?..."
"E essa casa é a mesma que um dia pertenceu a Lead Clow. Está fechada há mais ou menos seis anos. E eu vim aqui para saber se você não deseja vir comigo."
Cara de pau... Na minha frente? O que ele pretende dizendo essas coisas?
Tenho a impressão de ver Saiyame estremecer dentro dessa camisa que não é sua. Ele deve estar tão espantado com essa ousadia de Li quanto eu. Ou pode ser que não, e que retribua a tranqüilidade que há nos olhos escuros e penetrantes dele. Ou talvez, o que me faz tremer nesses degraus, mas não pelos mesmos motivos de minutos atrás, ele retribua aquele olhar estranho que Li lançou a ele, quando estavam sozinhos na casa de Tomoyo. Talvez retribua o seu desejo.
Sinto que aquela minha mórbida alegria de logo antes, quando fizemos amor às pressas nessa escada que quase range tanto quanto as camas, se esvai num frio que começa no fundo do meu estômago, e de mistura com uma raiva que deixa minha boca amarga e seca. Cara de pau. Desgraçado. Dizer isso na minha frente, bem debaixo do meu nariz...
"Eu não estou brincando, e preciso que me responda isso agora. Você quer vir comigo?"
Saiyame ainda não respondeu. Escuto sua respiração daqui de onde estou, e não vejo seu rosto. Como gostaria de saber o que se passa com ele, o que pretende responder, até que ponto sente-se tentado a ir. Se ele disser que sim, eu vou impedi-lo nem que tenha de matá-lo. Ou mesmo que tenha de matar Li. Parece que ele está fazendo aquilo de novo, como se quando olhasse para mim, de repente, soubesse de cada pensamento meu, de cada coisa que se passa comigo. Cada medo e desconfiança, e me manipulasse, com esse olhar de quem sabe algo que eu não sei e no entanto deveria saber.
"..."
"Estou à caminho do aeroporto." – Li ajeita as lapelas do seu sobretudo e sua voz fica mais baixa, e seu tom, mais parecido com o que usou, quando quase beijou Saiyame, há tempos atrás, no hospital. Vejo sua mão segurar o queixo de Saiyame, e seus lábios se movendo de uma forma mínima, deixando uma promessa no ar que eu sei que ele não hesitaria em cumprir, pois no seu lugar eu faria o mesmo: - "Se vier comigo, nunca mais voltarei ao Japão."
"...Não."
"Eu posso lhe dar tudo o que sempre quis."
"Eu sempre quis tão pouco. O que você pode dizer que sabe sobre mim para prometer dar-me o que eu quero?"
"Me diga o que você quer então. Eu posso torná-lo possível." – Li lentamente baixa a sua mão, passando-a sobre o braço de Saiyame, com aquela intimidade que me incomoda terrivelmente, aquela posse que nem eu me atrevo a demonstrar sobre ele. E eu aqui... Nessa escada, sentado nos degraus, imaginando que finalmente teremos aqui a briga que estávamos precisando desde o começo dessa loucura toda, mas ao mesmo tempo um tanto inerte, alienado disso tudo, dormente... E furioso.
Essa resposta negativa de Saiyame não me convenceu. Ele hesitou. Se eu não estivesse aqui, provavelmente aceitaria. Estou assistindo isso calado, e nem sei porque. No fundo estou triste com a sua hesitação. Estou furioso porque respeito-o demais para voar encima de Siaoran aqui, na sua frente. Eu não estou na minha casa. E por que eu me importo tanto? Droga... Vá de uma vez! Eu sempre notei essa atração que oscila entre ódio e desejo que há entre vocês!... Consigo amantes muito mais... Não vou conseguir ninguém, ninguém vai me querer coberto de hematomas e marcas de unhas e dentes.
"Você tem poder, eu conheci outros com mais poder do que você, Siaoran Li. O que eu poderia querer, ninguém pode me dar. O perdão do qual eu preciso para dormir pelo menos uma noite em paz... Eu jamais terei."
Li baixa os olhos um momento, e afasta as mechas escuras de seu cabelo muito liso de cima dos olhos. Parece estar contendo um sorriso. Olha diretamente nos olhos de Saiyame, e depois nos meus, demoradamente, por cima do ombro dele. Aponta-lhe um dedo, perto do rosto, e diz, como se repreendesse uma criança, suavemente autoritário:
"Pare de falar assim. Veja a sua idade... Você pode ser perdoado pelo seu mau gosto." – Vai falando bem devagar, mas numa altura de quem planeja que eu escute cada palavra. Desgraçado, você nunca dormiu comigo para saber o que Saiyame viu em mim...! – "E não tente fazer desviar do motivo que me trouxe aqui. Não se preocupe..." – Ele continua apontando-lhe, e a cabeça de Saiyame balança como se ele olhasse atentamente para esse movimento, acompanhando com atenção como a mão de Li se move. O que há com ele? Nunca entendo nada do que faz! De vez em quando acho que é louco de pedra, realmente... – "Esse daí..." – Olha para mim, uma ponta de um sorriso sarcástico aparecendo no canto da sua boca. – "... Esse daí não vai fazer nada para impedir que você venha comigo. Ele não é seu dono."
Uma ova, Siaoran Li... Uma ova.
Você que pensa que eu vou deixar você levar de graça o meu amante, o meu namorado (nunca achei que um dia eu fosse dizer isso), para onde bem entender...
"Hã?" – Li diz de repente, sobressaltado. Não acredito... Nem eu acredito. Endireito-me nos degraus para ter certeza disso. Eu não acredito nos meus olhos. Não sei porque ele faz isso, essas coisas que ninguém espera que faça.
Saiyame está com o indicador de Li entre seus dentes, mordendo a ponta de seu dedo com um pouco de força, rindo, do nada, sem explicação alguma. Fica olhando para isso como se não lhe fosse algo de todo estranho. Nesse instante vem um eco de algo que Saiyame me disse certa vez, há muito tempo, que ele conhecia Li de quando eram crianças. Esse gesto, esse riso... Parece uma brincadeira de criança. Crianças um pouco perversas fazem isso, peraltas... Ele solta o dedo de Li de entre seus dentes e continua sorrindo, por um certo tempo, depois apenas se entreolham, e Li... Ele fica olhando para sua própria mão, pálido e ofegante, dizendo, como se apenas consigo:
"Você me traz recordações estranhas, Saiyame. Coisas que eu teria dado tudo para esquecer. Nessas horas, é como se você fosse outra pessoa. Sinto que não o conheço. Sinto que não consigo confiar em você, quando age dessa forma."
"Se eu estivesse no seu lugar... Eu jamais confiaria em mim." – Saiyame cruza os braços sobre o peito, desviando o olhar. – "Siga o seu caminho. Eu seguirei o meu. Vá para o seu encontro com Toya, ele deve ter coisas importantes a lhe dizer."
"Então você quer ficar? Ficar com ele?" – Aponta para mim com o queixo.
"..." – Quero acreditar... Como eu quero acreditar que foi um sorriso que desconcertou mais ainda Siaoran Li por quase um minuto inteiro de raiva e surpresa engasgados! Com esse sorriso, Saiyame poderia fazer o que quisesse de qualquer um de nós. Tomoyo, Li, Fujitaka, Sonomi, eu. Todos nós nos desarmamos com esse sorriso. Li se desarma como tantas vezes eu me vi sem poder responder.
Consegue recuperar um pouco da cor do seu rosto e quem sabe, o fôlego também. Eu me levanto, sem motivo, apenas para olhar melhor o que está acontecendo, acho. Poderia continuar quase deitado nos degraus, como estava. Olha para mim, e passa pelo lado de Saiyame, que se volta para ver o que ele está fazendo. Eu também olho, porque ele vem estar bem na minha frente, quando fico em pé, e me estende a mão, como se a me cumprimentar. Li está sorrindo. É muito raro vê-lo fazer isso, e mais estranho, é vê-lo sorrir para mim assim. Aquele brilho perigoso está nos seus olhos escuros, e acho que tem algo na sua mão. É um papel.
Está me estendendo isso? Quer que eu pegue?
O que terá nesse papel?
Estou curioso, essa mão está de certa forma como também a me cumprimentar. Que papel é esse? Tem desenhos...
Estendo a mão para pegá-lo, e nem consigo. Saiyame chega antes, me empurrando e pegando o papel antes de mim, se colocando entre mim e Li. E... E... O papel acaba de queimar na sua mão, se incinerar, iluminando seu rosto com um clarão. Do nada. De onde veio esse fogo, do nada? O papel desaparece numa chama alta e vermelha, que sobe e depois se consome, desaparecendo num monte de cinzas na palma de sua mão, e o mais incrível é ver ainda... Que ele não está machucado.
Li nos fuzila com um olhar estreitado de raiva, e Saiyame talvez por pouco não diga o que está atravessado na sua garganta. Mas seu olhar diz tudo, está furioso. Verdadeiramente furioso. Meu Deus, eu não queria estar no couro de Li neste instante!
"Sai daqui. Já disse o que queria dizer. E já teve a sua chance de conseguir também, fazer o que queria." – Saiyame diz, com voz baixa e tensa, deixando as cinzas se espalhando no chão. Olho para elas e logo em seguida para Siaoran Li, que está pálido como uma estátua, e daquele seu modo duro, não baixa e nem desvia os olhos dos dele.
"..." – Ele recua um passo, estreitando os olhos quando olha para mim, e apenas faz um aceno que sim, com a cabeça. Dá meia volta e sai, tão inesperado quanto entrou, e quando já está na metade das escadas da frente, a porta bate sozinha, num estrondo que faz o ar vibrar. Se eu não houvesse visto o que aconteceu no sótão dessa casa, agora sim teria certeza de que Li ainda está com aquela carta dentro de si. Estranho que desta vez ele não estava tão... Diferente de si mesmo quanto da última vez que o vi. Se o tal Clow que eles tanto falam existisse, teria um olhar como aquele, faiscante e insano. Mas não era o tal Clow que acaba de sair daqui, deixando um silêncio tenso para trás. Era apenas um Li que se conformou, que talvez tenha posto a mão na consciência, e que me faz entender porque Tomoyo nunca parecia se importar com isso.
Eu teria me importado se de repente Saiyame se atirasse nos braços dele...
"Saiyame?"
Acaba de me agarrar pelo braço e me arrastar para a sala de novo. Joga-me no chão e me força a ficar. Droga, pare com isso. Não está me ouvindo? Você adora se fazer de surdo, seu maníaco. Ei, ei, ei! Pare um pouco aí!...
"O que é?" – Saiyame se afasta de mim, fica sentado no chão, os lábios vermelhos e úmidos de saliva. – "Vai abrir a boca para falar alguma coisa que não entende..."
"Você... O que você acabou de fazer? Aquela coisa pegou fogo! Não queira agir como se nada houvesse acontecido! E esse... Esse Siaoran querendo que você me largasse?"
"O que você sabe sobre o que está acontecendo? Por que não cala essa boca?" – Começa a parecer triste e irritado comigo. Não gosto quando me olha assim, e muito menos de quando se esquiva da minha mão, como está fazendo agora. Às vezes acho que você só queria mesmo se aproveitar de mim. Ah, por que você sempre me faz sentir como um adolescente?
"Eu não vou me calar." – A raiva de antes, de escutar os desaforos de Li, vai cedendo, e no lugar disso... Em lugar de estar irritado... Eu só consigo me sentir pequeno e inseguro. – "... Você teria ido com ele?"
"Eu não teria ido... com ele." – Saiyame responde, fazendo menção de se levantar. – "Mas eu não posso negar... que temos negócios ainda por resolver. Você não entenderia, como não entende muito do que já viu acontecer. E o que eu gostaria de ter... Nem você, nem ele, e nem ninguém vivo... Poderia me dar." – Ele levanta e se joga num dos sofás, olhando para mim, e apenas para mim, como às vezes ele faz, como se eu fosse o seu mundo. E eu olho para ele sabendo que ele também é o meu.
"... O que você quer, afinal?"
"Sakura."
"Você a amava? O que ela era para você, enfim?"
"Ela era apenas uma criança..."
"... O que houve com ela?"
"..." – Ele sorri de uma maneira amarga. Umedece os lábios e ergue os olhos, e quando os volta para mim, são perdidos e brilhantes. Eu não o conheço. Nem de longe.
Vou ajoelhar ao seu lado, e não me contenho de colocar a cabeça sobre o seu colo – No que eu me transformei? Se eu tivesse um rabo, estaria abanando e latindo alegremente! Daqui a pouco vou aos extremos da felicidade se ele me colocar uma coleira e arranhar a minha barriga! – e com sincero espanto, ele faz o que nunca esperava. Eu esperava um afago. E Saiyame apenas se levanta do sofá e se senta ao meu lado, no chão, escorando-se no meu ombro, e depois, no meu peito, me fazendo me esticar no chão, e logo, com a cabeça no meu colo, abraça a minha cintura, me obrigando a fazer o milagre de não poder desviar os olhos dos seus, e mesmo assim, receber este olhar imensamente triste sem poder chorar de aflição em não poder fazer nada para ajuda-lo.
"Ah, Saiyame..." – Não é hora para dizer que o amo. Ele sabe. Só de você não ter me largado para correr atrás de Li, já me deixa feliz e saltitante. E quase sinto meu coração estourar, em lembrar daquele papel queimando. –"Eu... Saiyame. Eu queria dizer..." – Obrigado.
"Cale essa maldita boca, Hisashi." – Ele me fala esse desaforo com tanta doçura, e tanta impaciência ao mesmo tempo... – "Não me faça mais perguntas. O que eu nunca quis, você já me deu. Foi muito mais do que eu nunca mereci."
Aaah...
O que eu vou dizer?
Você também me deu uma coisa maravilhosa que eu nunca quis saber para que lado ficava. Essa coisa me faz ficar na beira daquele fogão, com uma colher de pau, mexendo caramelo com leite numa panela de esmalte. Essa coisa me faz calar quando você me manda ficar de boca fechada. Essa coisa me faz rir feito um retardado, quando estou sozinho. E me causa um aperto no peito, um engasgo... Em imaginar que pode acabar a qualquer momento. Afago seu cabelo solto, afasto-o de seu rosto e acaricio seus cílios, passo a mão por todo o lado do seu rosto morno.
Saiyame vem por cima de mim, solta seu peso, e escorrega para o meu lado, enlaçando meu pescoço com braços quentes e longos. Tire logo essa coisa... Essa camisa fica enorme em você. Você fica bem melhor como estava, momentos atrás, naquela escada, debaixo de mim. Ficamos calados, nos entreolhando. Não chore agora, Saiyame, pare de pensar nesse monte de assombrações que perseguem você, e até a mim, de vez em quando.
"Eu teria feito picadinho do Li, se você houvesse ido com ele." – Digo, no seu ouvido.
Venha cá... Aperto sua cintura entre os braços e ganho um beijo no canto do lábio, ganho também um toque gentil no meu cabelo, e a ponta dos seus dedos passando detrás da minha orelha. Rolamos no tapete até que ele fique sobre mim de novo, preparando as unhas para me arranhar, e já ensaiando morder a minha boca.
Pare com isso... Adora me maltratar, mas não vai gostar nem um pouco se eu lhe der a surra que merece, e nem se eu o tratar com o mesmo... com a mesma... delicadeza.
"Não..." – Resmungo, afastando-o, segurando seus ombros. – "Assim não."
"Você disse que eu poderia fazer o que quisesse..."
"Mas assim não..."
É.
Acho que Saiyame não sabe mesmo a diferença entre um carinho e um maltrato.
"Assim..."
São beijos úmidos e muito mais delicados do que os que estamos acostumados a trocar. A princípio, ele fica inerte, apenas respirando fundo. Está ficando escuro aqui... Ou sou eu? Ele desliza de dentro da camisa e fica quieto, os olhos fechados, suspirando. Bem melhor do que morder, não é? Eu que o diga. Ponho uma das mãos sobre sua testa, tentando não levar dentada nenhuma, e descubro, que a sua boca é cada vez mais deliciosa de ser beijada, cubro seus olhos e o beijo com mais força. E lá no fundo, somente depois de um tempo adoravelmente interminável, percebo sua língua se movendo num breve círculo, bem devagar, bem de leve, encontrando a ponta da minha.
Sim... Agora, sim. Assim mesmo.
Não temos pressa.
Pressa nenhuma.
Cubro seus olhos com a mão, e com a outra, enquanto seus lábios ainda estão nos meus, tento, sem palavras, convence-lo que tocar, sem as unhas, é bem melhor... Vou passando a mão, e depois a outra também, por suas costas. Sem unhas, entendeu? Devagar... Você aprende bem... Mas não tenha pressa.
Pressa nenhuma.
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Terminamos no meu quarto, como deveria ter sido desde antes.
Mais uma vez mal nos tocamos, mas foi muito bom. Muito quente e lento, e parecido com a nossa primeira noite. Daquele mesmo jeito.
Quê importa que horas são, que dia é hoje, quem sou eu, ou onde estou?
Tem uma coisa linda e loura dormindo ao meu lado, quando acordo, e já deve ser bem tarde da noite. O resto... o resto tanto faz. Você me ensina como é bom apenas brincar, e eu o ensino a parar de me machucar. Às vezes imagino que estou tentando cuidar de um leão da mesma forma que se cuida de um gato, mas as diferenças são enormes. Preciso de um novelo de lã. E dos grandes!
"Acordou há muito tempo?"
"..." – Ele está deitado ao meu lado, mexendo no meu cabelo, passando os dedos por ele e imagino se quer puxar, quando enrola-os em uma mecha mais grossa...
"..." – Eu conheço esse silêncio. Saiyame nem chegou a dormir. Esta vai ser a segunda noite que ele passa em claro, e desta vez, parece menos afeito ainda a pelo menos cochilar. O quarto, e certamente todo o resto da casa, está mergulhado num escuro total. E está um pouco frio, em qualquer lugar que não seja perto dele. Sinto um frio no estômago de pensar naquele cara-de-pau tentando convence-lo a viajar com ele. Espero que o fato de Saiyame ter ficado calado antes daquilo acontecer com o papel, não tenha o valor de um talvez. Espero que o ruído distante de um avião passando, seja Li, e se eu soubesse que ele estaria sozinho naquele avião, teria esperanças de que caísse no mar. Não. Os peixes morreriam envenenados. – "Está preocupado."
"..." – Ele apenas chega mais perto de mim, afastando qualquer sensação de frio, com o calor intenso da sua pele. Os lençóis e os travesseiros estão no chão. Ele ainda está... Nunca deixa de ser uma surpresa maravilhosa sentir isso... Completamente nu.
(Comemore, Hisashi Wakai! Poderia ser Li quem estivesse desfrutando deste corpo que era virgem – virgem! – antes de seu dono me conhecer!)
"Ainda não me disse o que está havendo com você. Que pesadelo foi aquele que teve esta manhã?"
"Sonhei que você estava morto."
"..." – Se arrependimento matasse... – "Foi só um pesadelo."
"E se você realmente morrer?"
"Bom... Todos vamos morrer um dia..." – Engulo em seco, pousando a cabeça encima do seu braço.
"Eu não."
Brincadeira estranha. Coisa estranha de se dizer. Deve estar querendo me fazer rir dessa tensão toda. Eu sei que não é apenas isso, porém, não consigo mais pensar no resto, então apenas fecho os olhos, e quando estou quase dormindo, sinto seu beijo, bem lento, bem úmido e... E uma dentada nos meus lábios.
De-sis-to!
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Acordo sem saber onde ele está. Mas nem chego a me preocupar. Escuto a porta ranger. Ainda está escuro. Ah, minha cabeça está pesada e minha boca está amarga... Não acredito que aqueles bombons de hoje à tarde me deixaram com ressaca! Eu nunca tive uma ressaca em toda minha vida! Levanto me segurando no espaldar da cama, e é um milagre que encontre meu jeans no chão. Hmm, estou enjoado. Indisposição alcoólica por causa de meia dúzia de bombons de licor. Mas ali deveria ter mais licor do que chocolate!
Nunca mais como aquele tipo de bombons!
Me lembro como um sonho de ter feito aquela loucura na escada, apenas para chocar quem estivesse esperando detrás da porta da frente. Eu deveria estar bêbado. Devo ter delirado também com aquele papel que quase pegou fogo sozinho na minha mão, porque sei que simplesmente não há nenhuma forma de justificar isso, e além do mais... É impossível que algo assim aconteça normalmente.
Estou com muita sede e vontade de comer alguma coisa doce.
Não sei se há laranjas na cozinha... Sempre deixo Saiyame come-las. É um autêntico espetáculo vê-lo comer qualquer coisa. Ele confunde perfeitamente o pecado da gula com o da luxúria. Fico excitado só de vê-lo lamber a ponta de seus dedos, quando os suja com alguma cobertura de bolo, algum glacê...
Minha cabeça está começando a doer.
Minha primeira ressaca. Que inesquecível!
Tomo coragem de terminar de vestir esse jeans e me arrasto até o outro lado do quarto, acendendo a luz, e fico cego por um momento, ofuscado, e com a dor de cabeça dando marteladas.
No corredor, noto que falta muito ainda para amanhecer, o que quer dizer que dormi mais cedo do que esperava. Saiyame está sentado no meio da escada, encolhido perto da parede. Logo no primeiro degrau, há uma garrafa vazia, de pé, e a tampa caída quatro degraus abaixo.
Engulo em seco, e vou me aproximando devagar. Acho que não me notou, se bem que tudo o que faz é tão imprevisível que não acho nada espetacular que estivesse me esperando aí.
Pego a garrafa vazia, afastando-a para o lado. Sorte que a clarabóia deixa esta parte da casa bem iluminada e...
Bourbon?
Saiyame estava bebendo?
E Bourbon?
Ahh...
Espero que ele não seja nenhum gambá. Realmente eu não sei nada sobre ele. Eu não o conheço, nunca vou conhece-lo! Eu nem sabia se ele gostava de beber! E somente esta garrafa vazia já diz que sim.
E Bourbon!
"Saiyame?"
Quieto. Mal reparo que está respirando. Talvez esteja dormindo. Se fosse eu, estaria em coma só com um copo de Bourbon. Quase morri com cheiro de formol na faculdade e estou amargando a primeira e espero que a última ressaca da minha vida por causa de doces.
Chego bem perto e sento do seu lado. Está todo enrolado rés à parede, dentro dessa malha velha e larga. Você gosta dela, não é? Não me importo que vista as minhas roupas, só acho estranho que goste tanto dessa.
"Saiyame?..." – Chamo de novo, abaixando o rosto para olhar para o seu.
Assustador.
Ele está bem acordado e com olhos muito abertos. Ergue-os para mim. O que está havendo? Está tenso, não tenho coragem de terminar meu gesto. Minha mão volta do caminho do seu ombro para o meu colo, hesitante. Não tenho coragem do toca-lo. Seus olhos, debaixo do azul claro da clarabóia, são amarelos e brilhantes, e me causam a mesma estranheza de dias atrás, quando vi o que se esconde detrás deles. Eu não gosto de pensar sobre esse assunto, e prefiro deixa-lo enterrado no fundo da minha consciência.
"O que você está fazendo aqui?"
Saiyame – Ou seja lá quem ele for... – se encolhe mais e estremece. Está tremendo. Não acredito que esteja bêbado. Não está. Seu olhar é lúcido, e sua voz é firme e adulta, quando me diz:
"Eu tentei..."
"O quê?..." – Não estou, para variar, entendendo nada. Estou me sentindo apenas um rostinho bonito, pois nessas horas em que Saiyame me causa arrepios de medo, como agora, eu me sinto terrivelmente burro.
"Eu juro que eu tentei..." – Ele se aproxima muito de mim, de repente, e agarra a minha mão que está mais perto dele. – "Mas... Mas a culpa é sua, Hisashi Wakai." – Seu hálito tem todo o cheiro do Bourbon, e não sei porquê, de repente sinto uma vontade louca de beija-lo, e fico seriamente indeciso entre fazer isso e apenas correr pelas escadas e sumir pela porta da rua, para nunca mais voltar.
"..."
"Eu não consigo... Me perdoe. Eu não consegui." – Agora noto que ele está olhando, realmente, através de mim, falando comigo, porém, de uma forma alheia a distante, como se estivesse a ponto de se tornar mesmo outra pessoa, e bem na frente dos meus olhos. – "... Eu não consigo. E a culpa é toda sua!" – Ele continua falando, baixinho, perdido como um menino, exalando esse cheiro de bebida, e mesmo assim, eu sei que não está falando bobagens, ainda que não saiba que rumo é este que as suas palavras tomam.
Ele segura a minha mão com mais força, e me faz abri-la, enquanto se chega bem perto de mim, como se fosse me abraçar ou me beijar, e coloca alguma coisa nela. É alguma coisa fria... Estou assustado. Começo a lembrar de que ele poderia ter me matado a qualquer momento, bastasse querer. Quem sentiria a minha falta? Nesse país, ninguém. Ninguém certamente jamais saberia que eu sumi no mundo. Você está me assustando, Saiyame. Verdadeiramente. Ele me faz fechar a mão nessa coisa, e vai se levantando, furtivo, leve como um imenso felino, e me olha com os olhos de uma fera, através de mim, e me larga sentado nas escadas. Escuto o baque leve e surdo dos seus passos pelas tábuas do chão, e a porta do meu quarto ranger.
Noto somente agora que meu coração está aos saltos, e minha boca está seca. Minha cabeça parece que pesa toneladas e não consigo controlar o tremor das minhas mãos, quando as ergo, finalmente vendo o que ele colocou nelas.
É simplesmente a maior e mais afiada das facas da cozinha.
Deixo-a cair pelos degraus, e corro para o quarto. Espero que não tenha se ferido, espero que não tente fazer isso de novo. Espero que não seja tarde demais, embora sejam poucos momentos entre estas escadas e o quarto.
Você me assusta! Prometeu que não ia mais fazer essas coisas! Eu não o conheço, Saiyame!
Chego no quarto, e ele está, como se nada houvesse acontecido, deitado na cama, jogado, cochilando, seu rosto desanuviado, tranqüilo. Meu Deus, você é louco. Você é praticamente um psicopata. E como eu podia estar sendo idiota a ponto de achar que você era somente um garoto? Você não é... Você me assusta. Você é o meu sonho e o meu pesadelo, é um presente de grego que a vida me deu.
Tentando controlar o meu próprio nervosismo, puxo-o pelo braço, sacudo seus ombros até que abra os olhos, sonolento. Aproximo o rosto do seu e sinto que realmente está cheirando a Bourbon, eu não delirei nada daquilo. Ele não diz nada, e apenas fecha de novo os olhos, e isso me faz sentir quase grato. Eles estavam distantes e frios, apesar da cor. E eu sei que não está bêbado, e que vai agir como se nada houvesse acontecido, amanhã. Deito do seu lado e trago sua mão para perto do meu rosto, desenrolo seus dedos longos e brancos, procurando por sangue, qualquer ferimento... Nada. Não se feriu. Ainda. Mas ele poderia ter se suicidado, e eu nunca teria desconfiado de que queria fazer isso.
Por que as coisas estão seguindo este rumo? Tudo está culminando nesse maldito inverno que está chegando, e agora só piora, com a visita de Li, hoje durante o dia. E a sua lembrança de Sakura... Você não está... Você está nisso até o pescoço, seja o que for. Eu daria tudo para saber. Para ajudar. Você sabe mais do que me mostra. Você me diz menos do que eu pergunto. Faça tudo, até me mate, mas não me deixe...
Engulo em seco, e não atrevo a me mover, olhando fixamente para o seu rosto, até o momento em que a luz do dia começa a entrar pelas janelas. Sempre esperando... Pelo pior.
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Parece que aquele abismo entre nós está se abrindo de novo. Ele sorri quando lhe faço agrados. Me diz desaforos quando faço alguma coisa de que não gosta. Faz eu me sentir um nada, fazendo de conta que nada está acontecendo. E mesmo tenso, de uma forma que não pode esconder, e que me deixa também assim, Saiyame passa o dia todo ao meu lado, conversando em voz baixa, apenas, ou então, calado, olhando para mim, até que seus olhos fiquem subitamente vermelhos como se ele fosse chorar. Nesses momentos, Saiyame sai de perto de mim, e por fim, se tranca no próprio quarto. Mas não passa a chave. Apenas quer ficar sozinho. Lembro com um calafrio daquele pedaço de lâmina na gaveta, e daquelas cartas.
Se é o que ele quer, que faça então o que bem entender.
Mas se você se matar, eu também vou morrer. Vou morrer de tristeza, com o coração esmagado de sentir a sua falta. Isso dói. Descubro que dói estar apaixonado. E dói mais do que tudo estar tão perto e tão distante dele. Também vou me fechar no meu quarto, e apenas fecho os olhos, esperando que tudo isso pare, e possamos voltar àquela tranqüila bagunça, nossas brigas por besteiras, nossas longas conversas pelas madrugadas, como quando estávamos no meu apartamento. Se você morrer... Eu espero tê-lo feito muito feliz nesse outono.
Fico olhando para o teto.
Já fiz tudo o que podia, e não agüento mais essa tensão toda. Já perguntei, já tentei entrar nisso à força, mas apenas sinto sua distância aumentar. Sinto sua vontade de se livrar de mim e sua impotência em fazer isso. Eu me sinto assim. Queria ter tido forças de levantar daquela cama e ir embora, quando estive pela primeira vez entre aquelas coxas inesquecíveis... Eu não teria me envolvido tanto. Eu não teria me apaixonado.
Seu pivete...
Nós sabemos que eu nunca teria ido embora depois daquela manhã.
E todo mundo sempre soube que eu já estava envolvido até o pescoço quando parei de chamá-lo de lesma.
Esfrego os olhos, tentando não cair no choro. Eu deveria invadir o seu quarto e amarra-lo no pé da mesa da cozinha até o próximo verão. Eu deveria lhe dar uma surra e nunca mais fazer nem um copo de leite com açúcar queimado para você. Eu deveria implorar para você esquecer tudo isso, e ir comigo para algum lugar que ninguém o conhecesse, esquecido no mundo... Algum lugar como... A cidade em que eu nasci. Lá você seria feliz. Sem passado, e sem futuro. Apenas um lugar cheio de sol... Como você.
Estou sufocado.
Olho para o lado e vejo Saiyame de pé, do lado de fora do quarto, olhando para mim pela fresta da porta. Não consigo sorrir para ele. Ele também não sorri. Sento na cama e estendo os braços para ele. Tudo tão simplesmente. Eu estou com muito medo, acredite. Muito medo. Ele entra no quarto e com um pulo já está sentado aqui comigo, me abraçando com força, como sempre faz, esfregando o rosto no meu ombro até que eu arranhe a sua nuca, e seus olhos se fechem. Sabe que eu lhe darei todos os abraços que nunca teve.
"Quer conversar?"
"Não."
"Quer comer alguma coisa? Está o dia todo sem comer nada."
"Não." – Sua voz é baixa e tímida, e Saiyame fala bem perto do meu ouvido, como se todas as respostas que ele me dá fossem segredos.
"Está sentindo alguma coisa? Às vezes você não fica muito bem..." – Maldito. Bebeu toda aquela garrafa de Bourbon e com certeza não deve estar nem sentindo uma dor de cabeça...
"Eu apenas estou cansado. Muito cansado." – Ele esbarra os lábios sobre os meus. Não chega a ser um beijo, é apenas uma carícia.
"Você estava bebendo esta noite? Senti o cheiro em você de manhã. Eu não sabia que você bebia..."
"Eu gosto. Eu sempre bebia escondido... quando era mais jovem." – Ah, está falando como se tivesse duzentos anos, de novo! – "Mas nunca fiquei daquele jeito... Tonto..."
"Bêbado?"
"É. Nunca fiquei bêbado. E eu nunca bebi quando estive com Sakura."
"E depois dela? "
"Então eu bebia muito, quando estava na Inglaterra. Eu trabalhava e guardava tudo o que ganhava. A bebida era de graça. Estavam apostando comigo e eu ganhava." – Ele respira fundo, perto do meu pescoço, e eu... Escutando tudo isso... Assim, de repente. Nem posso acreditar! – "Uma vez... Eu desmaiei de fome na rua."
"...!" – Eu não gostaria de ver algo assim, mas... Mas eu... Eu gostaria de estar lá, nessa hora. Para cuidar de você.
"E outra vez eu fui para o hospital... em Londres... Porque me encontraram na rua... E todos estavam dizendo que eu estava morto. Mas ninguém se importava."
"Foi um acidente?"
"Não." – Saiyame me faz escorar as costas no espelho da cama, e ele se debruça mais em mim, metendo uma das mãos por debaixo da minha camiseta, passando-a em torno da minha cintura. – "Eles me encheram de perguntas estranhas quando eu levantei, no dia seguinte. Eu não tinha aqueles papéis marcados com carimbos, que os médicos diziam que todos devem ter. Conseguir foi fácil, eu trabalhava com quem os fazia."
"Que trabalho era esse?"
"No porto. Eu carregava um fardo inteiro de grãos sozinho."
"..."
Saiyame é um completo estranho.
Eu não sabia nada sobre você. E estou ao seu lado, por bem ou por mal, há quase cinco meses! Eu nunca saberia que você trabalhava num porto, e nem poderia estar desconfiando, como então, de que talvez tenha quase morrido, como acabou de me contar, pegando aquelas cartas que você tem escondidas. Pergunto-lhe, depois de muito tempo calado, tentando me acalmar, o que ele quer fazer agora, que está se sentindo tão cansado.
Diz que quer dormir. Apenas isso. E depois de mais um longo silêncio, ele se acomoda melhor junto de mim, e afago seu cabelo louro, metendo os dedos entre eles.
Eu também me sinto muito cansado.
CONTINUA
