Acordo com algo se quebrando.
Ele disse que ia dormir, e colocou a mão sobre a minha testa. Fez aquilo de novo, me fez dormir e eu nem percebi! Preciso fazer força para abrir os olhos e ver o que causa este barulho todo, e continua, com o tilintar de vidro caindo pelo chão, estalando, quebrando.
Olho para a parede ao lado da cama e vejo que é o espelho que está quebrado. Ele quebrou o espelho? Por que? Não sei se estou acordado ou ainda sonhando. Na parede, tudo o que há é a moldura descascada e gasta do espelho, alguns cacos pendurados no seu alto, outros ainda caindo. Seja lá o que tenha acontecido, o espelho foi feito em pedacinhos. Mas é certo que também posso estar errado, e com a escuridão do quarto, tudo isso seja apenas um sonho mesmo. Posso estar apenas assustado com as coisas que estão acontecendo – se pelo menos soubesse o que é... Meu coração dispara com tudo e não consigo imaginar onde Saiyame pode estar agora.
Evidentemente, não há apenas cacos no chão. Pulo da cama e acendo a luz do quarto, e o que vejo tem a rara qualidade de me embrulhar o estômago. Após ficar ofuscado com a luz... Eu me encontro ofuscado pelas mãos brancas de Saiyame segurando os lados da moldura gasta do espelho. Todos os cacos afinal estão no chão. E eu também me sinto no chão, e realmente estou, eu faço mais força do que nunca, para ergue-lo daí.
Saiyame parece de pedra, e totalmente estranho a mim, ajoelhado no chão.
Eu grito com ele, tento faze-lo me dizer porque fez isso, e para nada ele responde. Apenas continua me olhando com aqueles olhos secos e selvagens, muito abertos e claros.
"Você quer se matar? Vai acabar me matando também!" – Arrasto-o pelo chão e o jogo encima da cama. Estou fazendo um milagre, estou me controlando para não bater nele. – "Vai acabar com nós dois!"
Estou tremendo. Não consigo tocar em você sem ter vontade de arrebentar seus lábios. Que susto que me deu! Encima da colcha da cama, tentando se apoiar da queda encima do colchão, Saiyame deixou um rastro vermelho e generoso de sangue. Fico parado, sem saber no que pensar, sem saber ao certo o que fazer. Nós estávamos bem... Eu achei que você era feliz ao meu lado. Saiyame acabou de quebrar esse espelho inteiro com as mãos. Estou aterrorizado com isso. Eu quero ajudar... Eu só quero ajudar, mas não adianta dizer nada agora, ele não me escuta e nem olha para mim.
"Eu achei que tudo ia ficar bem entre nós..." – Tento tocar seu cabelo solto, mas ele se esquiva, e baixa o rosto, enquanto suas mãos bonitas apertam o tecido da colcha, encharcando-a de sangue. –"O que foi que eu fiz?..."
"..." – Saiyame se volta para mim de repente, e me agarra pela aba da camisa, com uma força que não condiz com a delicadeza que sempre achei que tivesse e que me surpreende e faz recordar imediatamente o modo pouco humano de agir que ele tinha, quando o conheci. Tento me soltar e não consigo. São as palmas de suas mãos que estão seriamente feridas e mesmo assim... Ele parece não sentir dor alguma. E nesses momentos, até seu olhar é assustador, e sua voz, rouca... Forte como um rosnado, diz alto para mim: - "A culpa não é sua! Não se envolva nisso!"
"... Está fazendo das nossas vidas um inferno."
"Você não sabe o que é o inferno, Hisashi Wakai!" – Ele grita comigo, algo como um rugido, como se essa voz não fosse sua. Seu rosto está muito perto do meu, e nada daquela mansidão de antes seria capaz de voltar a ele agora.
Silencio na mesma hora. Sua mão larga minha camisa e ele levanta, indo para a porta, e mesmo que eu esteja com medo de toca-lo, seguro seu braço com vontade e tento puxa-lo de volta. Eu não sei o que é o inferno... Lutamos durante um tempo, faço-o perder o equilíbrio e cair ajoelhado no chão. Agarro seus pulsos e grito com Saiyame, de novo, e de novo, e sinto que estou tremendo de raiva e tristeza, porque sei que ele precisa de ajuda... E com urgência. E eu não sei o que fazer. Eu não sei o que fazer nem quando suas mãos ficam bem na frente dos meus olhos, cortadas, repletas de pequenos cacos de vidro enterrados nas palmas, sangrando tanto que escorrem por seus pulsos finos e sobre meus dedos, segurando-os. Ele pode morrer... Eu posso morrer.
"Me deixe ajuda-lo..."
"Não..." – Ele diz num fio débil de voz, o rosto pálido, o cabelo solto nos ombros...
"Eu prometi..."
"Esqueça as promessas que me fez..." – Saiyame puxa as mãos de volta para si, apertando-as, cerrando os dedos, com força, e eu solto seus pulsos devagar, chocado e nauseado, em ver que agora o sangue goteja das suas mãos fechadas. – "... Não guarde lembranças de mim..." – Ele estremece um pouco, e fica parado, olhando para o vazio por uma verdadeira eternidade. Tomo coragem de toca-lo. Está gelado. – "Eu tenho tanto medo, Hisashi..."
Umedeço os lábios, engolindo em seco. Não posso entrar em desespero agora. O que está acontecendo, afinal de contas? Estamos os dois enlouquecendo dentro dessa casa velha, e por que eu não consigo deter a sensação de que você vai mesmo se matar, e na minha frente? Ficamos sentados no chão do quarto até que eu o levante pelos ombros, o faça se sentar na cama e puxo delicadamente suas mãos, abrindo cada dedo, fazendo espalma-las sobre as minhas... Meu Deus, Saiyame... Por que você faz isso? Você é só um garoto... O que você está engolindo todo esse tempo é muito mais grave do que um copo de veneno ou uma garrafa de Bourbon... Isso que o envenena, eu não posso curar com um copo de leite, eu lhe digo, estremecido de horror com o estrago nas suas mãos. Ele fez isso sem soltar um único pio de dor, mas é impossível que não sinta esses cacos aí.
Eu perco as contas de quantas vezes já o vi tentar se matar. Está tão frio... Tão pálido. Está tremendo, ofegando, vazio. Completamente vazio, desolado. Um dia, eu me lembro de que você olhou para Tomoyo como se não entendesse porque as pessoas fazem essas coisas... Agora eu vejo em você o olhar das pessoas que tem tanto medo da vida que acabam fazendo o mesmo que Tomoyo tentou fazer.
"Eu sempre achei que você não tinha medo de nada."
"Você não me conhece..." – Seus olhos se erguem para mim, como se ele tomasse todos estes longos minutos de silêncio, unicamente para prestar atenção em mim, cada detalhe do meu rosto. – "... Eu tenho tanto medo... Tanto medo... Que você não acreditaria."
Começo a puxar os cacos de vidro da sua mão. Ele nem se move. Puxo um pedaço de espelho fino e afiado. Incrível não ter cortado nenhum tendão. No entanto, quando o pedaço de espelho vem, um fio constante de sangue cai encima do meu joelho, manchando o jeans com várias pequenas manchas redondas e vermelhas. Agora eu acredito que você tenha medo de alguma coisa. Ele diz tão baixo quanto um mau pensamento, que está muito cansado, e que gostaria de dormir.
"Não." – Respondo, secamente.
Se ele dormir agora, pode ser que nunca mais acorde. Está pestanejando, tonto, e seguro seu rosto, mandando que olhe para mim. Saiyame volta um pouco a prestar atenção, e depois que faço o melhor que posso por enquanto, nas suas mãos, o levanto pelos braços da cama e o obrigo a se arrastar para o outro quarto. Esses cacos maiores pelo chão não são uma boa idéia...
"Me esqueça... Não guarde lembranças de mim." – Ele resmunga, um pouco sonolento, um pouco preocupado, tentando ficar no mesmo lugar.
"Seu filho da puta, não pense que vou deixar você conseguir fazer isso assim... Debaixo do meu nariz!" – Grito com Saiyame, arrastando-o pelo corredor, e só consigo porque a perda de tanto sangue o deixa desnorteado.
"Não!" – Ele tenta me empurrar, e não tem mais forças para isso.
Eu deveria chamar uma ambulância, leva-lo para um hospital. Seus lábios estão lilases. Eu já vi você morrer uma vez na minha frente, mais uma eu não vou agüentar. Eu sei que você não quer fazer isso... Eu sei que está com mais medo do que eu...
Deixo-o cair inerte sobre a cama, e puxo-o para se sentar. Afasto o cabelo de seu rosto e enxugo seu suor frio. Sem tirar os olhos de cima dele, vou até o banheiro e umedeço um pouco uma toalha limpa. Também trago uma outra, enxuta, e menos de dez minutos depois, até que eu consiga limpar suas mãos dos farelos de vidro, as duas estão ensopadas, e Saiyame, mais branco do que nunca, tentando se escorar no vazio e lutando para poder ceder à sonolência da hemorragia. Já gritei com ele, já puxei seu cabelo quando estava revirando os olhos, quase desmaiando, e já lhe disse coisas horríveis. Mas no fundo, eu também estou com muito medo. Medo por ele.
"Me... deixe."
"Não! Agora não! Não se atreva a dormir!" – Sacudo-o, tentando fazer o sangue parar de correr o bastante para passar as bandagens em suas mãos. –" Não se atreva a morrer..." – Estou cedendo... Não posso! Enrolo as bandagens o mais rápido que consigo... Por que estou tremendo? Estou acostumado a ver sangue, e gente querendo se matar é o que mais aparecia nos hospitais em que trabalhei. Penso na minha mãe, como há anos evito pensar. Não vou pensar nela. E nem vou pensar nas outras vezes que vi Saiyame tentar se matar. Ele estremece, o ar se soltando dos seus pulmões, caindo para trás, e tenho de puxa-lo com tudo, desacordado, para se sentar, mas está pesando... Ele pesa demais quando está desacordado. Esbofeteio seu rosto várias vezes, até que abre os olhos meio que sem saber onde está. Talvez nem tenha sentido os tapas. Move os lábios repetindo várias vezes aquilo que ele disse a todos em cujas vidas entrou e saiu sem que ninguém se desse conta, que eu não guardasse lembranças dele. – "Cale a boca e fique acordado!"
Termino de enrolar o outro lado de sua mão, e inutilmente agora, tento impedir que ceda e desmaie de novo. Agora, eu poderia quebrar seus dentes de tanto esbofeteá-lo e ele não sentiria e nem acordaria. Talvez nunca mais acorde...
Meu Deus... O que está havendo comigo? Estou chorando.
Saiyame fica jogado na cama, as roupas amassadas e manchadas, respirando irregular e lentamente. Ele olhava para mim como se fosse esta a última vez em que nos vemos. Ou se não fosse assim, então ele olhou para mim de forma a nunca mais se esquecer do meu rosto. É desse jeito que você disse que me ama? Minha camisa está toda manchada também... No chão, ao todo, há três toalhas completamente sujas de sangue e uma delas, se eu espremesse, gotejaria.
Tentando recobrar o sangue frio que sempre tive, levanto do chão e limpo o melhor que consigo a bagunça a redor da cama. O quarto em que costumo dormir está precisando também de uma limpeza, todos aqueles cacos pelo chão... Junto as toalhas sujas dentro de um saco de lixo que vou buscar na cozinha. Trago panos de chão para limpar o sangue que caiu também no chão do outro quarto. Recolho os cacos sentindo arrepios. Tenho a impressão de que alguém está me olhando do fundo do escuro azulado do corredor. Eu olho e não há ninguém, somente aquela garrafa vazia de Bourbon, no mesmo lugar, no mesmo degrau.
Como eu não desconfiei do que ele queria fazer?
Quebrou o espelho com as mãos... Jogo a camisa que estou vestindo fora e visto uma camiseta limpa. Prendo meu cabelo, porque esta noite mal começou, será muito se ainda for meia noite, e tenho muito o que conversar com Saiyame quando, e se – e pensar nesse "se" me faz nausear de tanta aflição – ele acordar. Deixo o saco de lixo num canto e volto para o quarto dele. Continua no mesmo lugar, e as bandagens estão úmidas nas palmas. Passo a mão por sua testa e ela está úmida e gelada. Puxo as beiradas da colcha de retalhos de sua cama e o enrolo nela. Eu deveria chamar uma ambulância...
Há algo entalado na minha garganta.
Suporto este algo pelo que imagino que sejam duas horas de total silêncio e imobilidade. Olho para aquela bolsa de couro que por todos estes meses e não sei por quantos mais, antes, não saiu de cima da mesma cadeira velha, encostada numa parede amarela que tem pequenas e cinzentas infiltrações perto do rodapé, e que fica bem na direção de um cabide de parede, mais acima, onde sempre está o seu casaco de camurça. Ele fica assustador vestido de preto, quando está com esse casaco, e assim, como está deitado nessa cama, vestido naquela minha velha malha preta. Seus lábios estão secos. Desço para a cozinha e trago gelo, um pouco de sal, e água com muito açúcar. Sento do seu lado e antes de fazer qualquer coisa, me inclino sobre o seu peito, escutando, e ficando aliviado por um momento, com as batidas fracas do seu coração. Tem um hematoma do lado do seu queixo, no seu maxilar. Bati demais em você para mantê-lo acordado. Passo a pedra de gelo por seus lábios até que ela derreta inteira. Depois outra.
Depois de mais uma meia hora totalmente imóvel, com se estivesse morto, Saiyame deixa sua cabeça tombar para o lado. Toco seu pescoço. Ainda está vivo e respirando. Fico passando a mão por seu cabelo, e faço derreter na sua boca mais uma pedra de gelo. Perdeu muito sangue... Nunca mais me dê nenhum susto como esse, digo, e me sinto vazio e inexpressivo.
Saiyame então abre os olhos, e olha para o teto por longos minutos. Depois vira a cabeça para o lado e olha para a porta. De resto permanece imóvel. Falo com ele, e Saiyame apenas volta a cabeça na minha direção.
Seus olhos continuam claros e úmidos, mas ele não chora. Nem parece humano, e se passa por detrás destes olhos algum sentimento, eu não o entendo, não é nada que possa ser avaliado por mim. Não é nenhum tipo de sentimento... Humano. Isso me assusta.
"Você não morreu..."
"Vá para o inferno." – Ele diz, somente movendo os lábios descorados, e o faz muito pouco, enfraquecido.
"De nada, Saiyame."
Ele fecha os olhos e deixa a cabeça tombar lentamente para o outro lado. Com o tanto de sangue que perdeu, com certeza somente amanhã vai ter forças de se levantar dessa cama. Talvez nem isso. Fico olhando para ele por muito tempo, e passo a mão por seu cabelo. Se me diz desaforos como este que acabou de dizer, é sinal de que está, afinal, tudo bem.
Amasso um dedo de encontro ao sal que está num copo e enfio na sua boca. Faço com que engula à força quase uma colher inteira de sal. Tenta me morder algumas vezes, mas isso é o de menos... Saiyame está sem força alguma para isso. Depois, um pouco mais de cor volta ao seu rosto e ele tenta se levantar.
"Vai tentar de novo?" – Pergunto. Não tenho mais disposição alguma de gritar com ele. Tudo me parece quase rotina agora. –"Você conseguiu a façanha de abrir até algumas veias dos seus pulsos. Como você fez isso? Nunca vi cortes de vidro assim... A impressão que tenho... É de que você quebrou o espelho... E esmigalhou os pedaços que sobraram... Entre as suas mãos."
"..." – Saiyame suspira, passando a língua sobre os lábios, quando sua cabeça pesa mais do que tem forças de manter erguida, e acaba se deitando de novo. Olha para baixo e levanta um pouco as mãos. As bandagens estão sujas, mas o sangramento parou. –"Você deveria ter dormido até de manhã."
Não é possível... Quem ia agüentar fazer uma coisa dessas consigo mesmo?... E num silêncio absoluto?...
"Você sabia o que estava fazendo. Eu sei que não vai tentar mentir, dizendo que foi um acidente. Você sabia até onde cortar para que sangrasse até morrer... Silencioso... Limpo... Eu apenas me pergunto... Por que você faz isso?" – Minha voz é impessoal, eu me sinto distante disso tudo. Se não for assim, vou cair me desfazendo em lágrimas e implorando por um final nesse pesadelo. –"... Se é porque não está feliz com isso... conosco. Se foi algo que eu fiz... Eu tenho defeitos, e fiz coisas muito questionáveis... Mas se você tem apenas até o inverno, eu quero saber... Se pelo menos você foi feliz neste outono, Saiyame."
"Por que você acordou?..." – Ele pergunta, baixinho, mas não fala como se esperasse uma resposta e sim pergunta para si mesmo, como se o fato de eu ter acordado fosse simplesmente a parte do plano que deu errado, justamente aquilo que ele não esperava que acontecesse.
"Pense ao menos uma vez... ao menos desta vez pense em mim."
"..."
"Egoísta."
"..." – Saiyame consegue apoiar as mãos no colchão e se sentar. Então, ele fica de costas para mim, o cabelo desalinhado, pálido, dentro dessa roupa larga. Escuto sua respiração bem lenta, indo e vindo, chiando um pouco. Espero que não tente ficar de pé. Se cair, vai ser um custo conseguir tira-lo do chão, pesando as suas toneladas quando desmaia... – "Você não me conhece... Para me julgar."
"... Eu?"
"Você não me conhece para me julgar." – Repete, mais alto, mais forte. – "Veja o que está fazendo comigo. Você só sabe me julgar... Eu me enganei muito com você, Hisashi."
"Mas?..." – Não acredito. Isso deve ser um pesadelo. O que espera que eu faça, grito, que eu ajude a puxar esse gatilho na sua cabeça? Que eu sirva o seu copo de veneno? Que eu fique sentado numa cadeira, assistindo o seu suicídio? O que quer que eu faça, afinal?
Saiyame nem se abala com isso. Com certeza essas são as palavras mais duras que nunca lhe disse. Sinto novamente que alguém nos observa do escuro do corredor. Levanto e fecho essa porta do quarto com uma pancada que ecoa. Chega de pesadelos, assombrações, e qualquer delírio de feitiçaria. O passado está do lado de fora. O meu e o seu, e quero que resolva, de uma vez por todas, continuo lhe dizendo, o que quer que eu faça afinal. Olho de novo para Saiyame... Não parece mais nada além de um garoto grande demais, tímido, sentado na cama, muito tonto e pálido.
"Olhe para mim."
Ele continua com a cabeça baixa, olhando para as bandagens manchadas que estão em torno de suas mãos e em torno dos seus pulsos. O que mais você teria feito se eu não houvesse acordado naquela hora? Enterrado pedaços de vidro também por seu pescoço? Engolido pedaços de vidro? Parece uma penitência... Você quer ser castigado de alguma forma.
"Olhe para mim quando eu estiver falando com você."
Ele olha. Seu olhar é pior do que um soco. Seus olhos estão muito amarelos, embora opacos, sem luz alguma, sem brilho. A cada vez que ele tenta se matar, a luz dos seus olhos se apaga um pouco e a cada palavra dura que lhe dirijo, essa luz se perde mais ainda. Agora, são como dois olhos de vidro, possuem cor, mas não possuem nenhum traço de vida. Apenas de tristeza.
"Você não tem nada a dizer? Não vai dizer nada?"
Seu silêncio é a pior parte. Ele vem crescendo de uma forma avassaladora, e eu sinto pela primeira vez toda a força daquela avalanche que corre no seu interior, eu sinto um peso inacreditável. São duzentos anos... De uma solidão e de uma tristeza profunda.
"Você me condenou... Veja o que fez comigo... Você só piora tudo, quando me salva. Você me faz perder a coragem que eu sempre tive." – Saiyame sussurra, como um vento selvagem, no meio de um silêncio que é mais do que um muro, é um mundo inteiro, feito de escuridão, frio e silêncio, que existe ao redor dele. – "Faz com que me arrependa do que quero. Você me condenou a voltar para aquela coisa... E espera que eu agradeça, sinceramente... Por isso?"
Ele segura a cabeça entre as mãos, esfrega os olhos, numa vertigem que o deixa subitamente mais pálido ainda. Ele começa a sorrir. Olha para mim e sorri. Amargo. Antigo. Estranho. Depois o sorriso desaparece no seu rosto. E fica apenas esse silêncio palpitando, e eu incapaz de ter forças ou vontade de fugir ao seu olhar, ou dar um passo para trás, recuar das coisas que ele emana e que me assustam. Fico vendo a dureza do seu olhar ir desaparecendo, até que eles estejam rasos e avermelhados. E Saiyame está apenas imóvel, no mesmo lugar, emanando essa vibração que soa como não sei quantas vozes falando ao mesmo tempo, através de seu silêncio, e de repente tudo o ao redor dele está escurecido, estrangulando aquele ar quente e dourado que sempre acreditei que tivesse, que parecia fazer parte de sua pele. Agora é apenas uma palidez dura, um olhar que me paralisa e faz engolir em seco. E de repente é só um garoto implorando:
"Me ajude."
As vozes param. O silêncio é puro e inteiro.
Ele baixa a cabeça de novo, como se houvesse dito algo que não devesse. Não entendo mais nada. Estou quase me acostumando a me sentir burro assim. Eu quero ajudar, mas não sei como, digo.
"Me abrace." – Ele olha nos meus olhos através de mechas louras e espiraladas. – "Não me faça chorar agora. Não agora."
Até o inverno... Já se passou todo um outono, e o inverno ainda não chegou. Este é o auge do nosso outono: cedo demais para morrer e tarde demais para amar.
Saiyame parece tão menor sentado nessa cama, impassível, sozinho, as mãos enroladas assim. Por que não tenho coragem de toca-lo? Eu nunca tive reserva nenhuma de toca-lo. Nesse momento, todavia, isso me parece errado, proibido, maldito... Eu me sinto amaldiçoado. Eu me sinto perseguido pela mais negra das maldições, eu lhe sussurro, desviando os olhos dos seus, me sentindo corar de vergonha do meu próprio medo.
"Então por que fez tanta questão de me manter aqui?" – Saiyame resmunga, e coloca os pés descalços no chão. Não deveria estar nem conseguindo sentar agora... Se ele conseguir ficar de pé, nem eu vou acreditar... Ninguém se recupera de uma hemorragia daquelas em tão pouco tempo. – "Eu não me lembro... de ter pedido em algum momento, para que você me salvasse."
Ficou de pé. Está bem ao meu lado, olhando para mim com cuidado, como antes de desmaiar, como se estivesse aprendendo cada detalhe do meu rosto, como se fosse esta a última vez que nos vemos. Ele parece sem equilíbrio a princípio e então, fica mais firme. Nunca vi isso acontecer. Nunca vi ninguém conseguir se recuperar desse jeito de uma hemorragia. Com que tipo de gente eu estava dormindo todos estes tempos? Não demonstra quase nenhuma dor, sobrevive a coisas que ninguém sobrevive, e praticamente sem seqüela nenhuma. Não gosto de pensar nas coisas que ele me disse um dia, naquela verdade estranha.
Eu me sinto horrível em não conseguir toca-lo. Eu me sinto amaldiçoado. Não. Eu sou a maldição da sua vida. Tanto eu quanto ele estamos presos um ao outro de uma forma que não podemos nos separar.
Vai deixando rolar por seu rosto impassível e constante um par de lágrimas grossas. Apenas isso. Ele passa o dorso das mãos enfaixadas por elas e depois disso, nem diria que ele é capaz de chorar ou de sorrir. Olha para a porta fechada, e depois para a janela da varanda. Depois para mim. Sinto a gaze de torno da sua mão passar por meu rosto, sinto a ponta dos seus dedos frios, depois sua mão no meu cabelo.
Começo a pensar no dia em que achei que ele pudesse me matar.
Saiyame se senta na beirada da cama, novamente, e tira a malha velha em que estava vestido. Depois, deixa cair no chão ao lado dela, a camiseta branca e impecável que estava vestido por baixo. Ele move as mãos como se elas estivessem livres das bandagens e como se nem estivesse machucado. Saiyame agarra a beirada do cós da minha roupa e puxa-me para perto dele, me obriga a sentar do seu lado, a deitar ao seu lado, na cama, a colcha apenas descendo sobre os lençóis e indo para o chão.
Não tenho como dizer que não ou reagir, apenas porque não quero fazer isso.
Eu me sinto mais do que amaldiçoado, eu me sinto a própria maldição da sua vida, e isso não é mais apenas uma forma de dizer que gosto de Saiyame. Eu me sinto preso a ele, ardendo debaixo de cinco beijos pelo meu pescoço, sobre aquelas linhas levemente vermelhas que as suas – curtas, arredondadas e inofensivas – unhas, deixaram em mim. O calor que sempre houve no seu corpo desaparece. É frio, silencioso, triste... Sinto que o matei. Sinto que salvá-lo foi pior do que se o deixasse morrer. Ele disse que o condenei.
Oh, não, isto está apenas na sua cabeça. Está apenas confuso. Amanhã vai estar tudo bem. Vai acordar e achar que ter esmigalhado cacos de vidros nas mãos foi uma grande estupidez. E eu vou pedir desculpas por esse roxo no seu rosto. Você vai me dizer coisas inacreditavelmente mal-educadas para se vingar das minhas palavras mais azedas. Você ainda... Ainda vai me amar. E eu ainda vou amar você.
Os lençóis se reviram e ele se levanta um momento. Respira fundo, se apóia nas paredes, e desliga o interruptor da lâmpada do teto. Tudo fica um breu. Nessa escuridão completa, eu não saberia contar depois, o que houve realmente, se foi um pedido de desculpas, se foi uma reconciliação, ou uma despedida, eu só sei que o abracei como se ele fosse a minha vida, e ele me abraçou, como se eu fosse a sua morte, e que estremeci de medo, entre suas coxas, e quando ele estava entre as minhas, só de imaginar que poderia perde-lo, algum dia.
Ele nunca me pediu nada... O que posso lhe dar são os momentos que estamos juntos, o calor entre nós, que inutilmente tenta aquecer a frieza dessa escuridão toda. Não precisa me pedir para que eu o abrace, finalmente. Nunca me pediu nada, e lhe dei tudo o que poderia, sem que nada me fosse cobrado. Eu lhe entreguei minha vida inteira. Eu me sinto tão feliz em senti-lo vivo e silencioso, se movendo contra mim, montado nos meus quadris, me cavalgando... Que eu poderia morrer de tristeza.
Por que estou triste? Nada disso vai se acabar.
Eu sei que esta é a última vez que você vai tentar se matar. Sinto-me aflito pelo que será de você daqui em diante. Você parece tão mais velho, e o brilho dos seus olhos, desaparecendo aos poucos... Eu o vi morrer a cada tentativa, e afinal, desta vez, o que vai restar?
Não sei. Amanhã, debaixo da luz do dia, vou saber se essa sensação é verdadeira, se a luz dos seus olhos realmente se apagou. Amanhã...
Amanhã... Vai ficar tudo bem.
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Amanhece com chuva, e pelo barulho, poderia jurar que o gelo do inverno está vindo junto com ela, pelo barulho forte que faz sobre a clarabóia.
Sinto a cabeça pesada e um peso maior ainda sobre o peito, e quase sinto aquele cheiro de sangue que estava saturando o ar, quando estava catando cacos de espelho enterrados nos pulsos de Saiyame.
Ah...
Esfrego os olhos, engolindo em seco o medo que não me abandonou desde ontem.
... Eu nem ao menos sei como ele se chama realmente...
Nem preciso olhar para os lados para saber o que está acontecendo ao meu redor. Está bem debaixo do meu nariz. Tudo, a casa inteira, a despeito da chuva desabando do lado de fora, sacudindo os salgueiros, está numa calmaria de morte, silenciosa e vazia.
Absolutamente vazia.
Vou me sentando na cama, tão chocado comigo mesmo que nem consigo ter pressa. Tudo parece distante como um sonho, nada do que eu toco me traz uma sensação de apoio, de realidade. Não consigo nem pensar em nada, porque não sei o que pensar. Das roupas e cobertas que estavam espalhadas pelo chão, não há nenhuma. As minhas roupas, que estavam caídas ali, estão dobradas e deixadas sobre a cadeira. Aquela cadeira... E a bolsa de couro que estava ali, até a minha última recordação, que eu sempre imaginava que estava ali por puro desleixo... Aquela bolsa não está mais lá. E o casaco que eu me acostumara a ver mais na parede do que vestido em Saiyame... Também não está no gancho.
Sinto um arrepio de frio.
De repente esta casa me parece imensa e gelada, fria nos sentidos mais amplos. Em todos.
Visto minhas roupas, sem avaliar se estou realmente acordado ou se isto é apenas uma brincadeira de mau-gosto da minha cabeça. Lembro imediatamente daquele pesadelo que tive uma vez, que eu sempre despertava dentro do mesmo sonho, e a cada vez era pior, até que a última vez... No último despertar, eu descobria que era tudo apenas um sonho. No banheiro, tudo está impecavelmente limpo, nem sequer as marcas de sangue que mancharam a louça da pia, quando lavei minhas mãos ontem.
Abro as gavetas, lentamente, vendo-as todas vazias. Nem as roupas de Saiyame, nem seus papéis, e nem aquelas duas cartas, nem o pedaço de ferro que ele guardava. Nada.
Estou engasgado quando saio para o corredor, e aquela sensação de um par de olhos invisíveis me acompanhando de repente me amedronta. Esta casa inteira me causa medo e vazio. No outro quarto, não há nem sinal da moldura, do sangue pelo chão, e nem da colcha e dos lençóis sujos. Apenas o colchão sobre o estrado. Onde havia deixado o saco de lixo com as toalhas e os panos de chão sujos, não há nada. Nem a mínima mancha.
Quando chego na escada, o meu vazio aumenta. Agora sou eu quem me sinto inteiramente silencioso, e tão apavorado, que não consigo reagir. Apenas vazio. A garrafa de Bourbon não está mais lá, e nem a tampa. Tudo está escuro, de tal forma que até a luz do dia que entra pela clarabóia entra em faixas de cores frias, que agoniam de ver, e descendo as escadas, eu encontro... Oh, sim... Como eu poderia ter esquecido disso?
Meu suéter preto, que Saiyame sempre vestia... Dobrado impecavelmente, repousado no último degrau... E encima dele...
Eu poderia rir...
Eu poderia chorar...
Eu poderia gritar de raiva agora...
Eu deveria me matar de tanta tristeza...
... O meu relógio está lá, encima da malha.
Eu nunca o havia perdido. Saiyame é que o havia escondido de mim.
Por que eu nunca percebi o que ele queria me dizer?
Tão silencioso.
Está tão frio aqui.
Passo a mão sobre a malha desbotada. Está fria, ela não guardou o seu calor. No meio da trama da gola larga, um fio de cabelo louro está entrelaçado com a linha. Está com seu cheiro... Parece uma roupa que estivesse no sol. Alecrim... Madeira... Cheiro de sol.
Não consigo me mover, fico imóvel, sentado nesses degraus escuros, nessa casa escura e assombrada por fantasmas que só estão me mim. E esse fantasma que me persegue, esse frio que me faz ter calafrios. Foi tudo um sonho? Esse fio louro debaixo dos meus dedos... Não pode ter sido apenas um sonho.
Passo a mão por meu pescoço. Eu sei que não pode ser um sonho.
Fico olhando sem noção alguma de tempo, para o suéter no meu colo, apertando o relógio na palma da mão.
Fico olhando para o fio louro no meio do tecido preto, e tão cheio de coisas na minha cabeça, e ao mesmo tempo tão vazio de tudo, que nem percebo... Que estou chorando. Me sinto ofegante e desolado. Vazio. Você sempre tinha razão. Eu não conhecia o inferno. Agora eu conheço o inferno que sempre foi a sua vida. É imenso, frio, vazio...
Essa solidão é o seu inferno.
Agora também é o meu.
Por que você fez isso comigo?
Minhas lágrimas caem sobre essa malha. Ainda tem o seu cheiro, é tudo nessa casa que diz que você um dia esteve aqui. Eu não posso ter sonhado com você. Uma pontada atravessa a minha garganta e eu começo a soluçar, baixo, sentindo tanta dor dentro do meu peito que me sinto feito do mesmo silêncio que acompanhava Saiyame.
Esse nem sequer era seu nome.
Por que fez isso comigo?
Que dissesse que não me queria mais... Que dissesse que eu o magoei...
Agora é tudo escuro, turvo de lágrimas... Completamente silencioso.
E vazio.
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"Tomoyo!" – Grito a primeira vez, na porta da casa de Tomoyo. O portão da frente estava aberto. –"Tomoyo!" – Repito, tentando ver alguém nas varandas. Está chovendo ainda. Está frio... Estou ensopado, e nem sei que horas são. Deixei o relógio no mesmo lugar em que o encontrei. Tempo... Quê importa agora? – "Tomoyo!"
As empregas estão me escutando, chamam Tomoyo quase aos gritos também, enquanto uma delas vem abrir a porta. Entro. Estou tremendo, e Tomoyo abre os maiores olhos de espanto que já vi quando me vê nesse estado, na sua sala. Ela dispensa as empregadas e me chama para dentro.
"O que está acontecendo?" – Tomoyo pergunta, fechando as cortinas de uma das salas, E olhando para os lados do corredor antes de fechar as portas. –"O que houve com você, Hisashi?"
Não consigo falar. Estou engasgado e nauseado. Minha garganta está ardendo e estou tremendo inteiro.
"..."
"Hisashi, eu preciso saber... Eu não posso ajudar, se não me disser."
Baixo a cabeça. O que eu posso dizer?
"Ele desapareceu."
Tomoyo fica, por um instante, tão branca quanto sua blusa, e depois entreabre os lábios, como fosse falar. Acaba ficando calada, e esse silêncio tenso entre nós dura o tempo em que ela vai até um armário perto da parede oposta e tira de dentro dele uma garrafa de vodca pela metade. Abre a garrafa e toma um generoso gole. Empurra a garrafa nas minhas mãos e também bebo. Isso me aquece um pouco. Apenas um pouco.
"Quando?"
"Não sei. Esta manhã. Não sei."
A garrafa volta para o armário e Tomoyo se senta num dos sofás. Não me manda sentar, deve saber que eu não aceitaria. Seu rosto bonito se torna tenso e apreensivo.
"Ele foi para a China." – Ela diz, direta, em voz baixa. –"Eu sei que Li esteve na casa ontem, fazendo-lhe aquele convite."
Devo ter arregalado os olhos quando Tomoyo diz isso. Ela continua, dizendo que sabe, inclusive, que o convite foi categoricamente recusado, e que sabia, desde o princípio, que Li não iria na casa apenas para isso. Tomoyo me diz... que ele certamente preparara um presente para mim.
"Li não estava... sozinho. Havia algo com ele, Hisashi, e eu não sei o que era. Acredito que por isso ele estivesse tão diferente, às vezes." – Ela suspira. Me manda esperar e sai rapidamente da sala, voltando quase em seguida, com um bloco de papel nas mãos e uma caneta. – "Ninguém deve saber que eu estou fazendo isso, e nem conversando sobre essas coisas com você. Eu não quero voltar para aquele maldito hospital."
"O que?..."
"Li tinha um encontro marcado."
"Mas?..."
"Saiyame também."
Estremeço. Respiro fundo tentando achar um significado para o que Tomoyo está tentando me dizer. Ela parece tão madura, tão parecida com Sonomi, agindo com essa segurança. Há seis meses atrás, eu acreditava que nem fosse capaz de atravessar uma rua sozinha. Saiyame fez milagres aqui, realmente.
"Uma vez, perguntei se ele poderia ficar até o inverno, e Saiyame me disse que não. Perguntei porque, e então ele me disse que tinha um encontro marcado com alguém, que ainda não sabia onde seria. Sabia apenas quando."
"A carta de Touya, irmão de Sakura... Então Touya era quem tinha esse encontro marcado com Saiyame? Ele sabia que de alguma forma... isso é impossível..."
"Impossível ou não..." – Tomoyo começa a rabiscar algo sobre o papel. – "... Tudo leva a crer que Touya sempre soube que aquele garoto ocidental um dia chegaria a esta cidade, e se aproximaria de nós. De mim, de Li, de minha mãe, do Senhor Fujitaka... E eu sinceramente, Hisashi... Sinceramente duvido que você estivesse nesses planos."
Ela rasga o papel do bloco e me entrega. Faz um sinal com o indicador sobre os lábios, para que eu não diga nada sobre o que está escrito nele. É um endereço, de um bairro de Hong Kong.
"Nada do que aconteceu entre todos nós foi meramente um acaso, eu acredito. Não sei porquê Touya faria algo assim. Não faria sentido. Ele saiu do país há dez anos..."
"Quando Sakura morreu... Ele estava envolvido na morte dela?"
"Não." – Ela faz uma longa pausa, deixando o bloco de lado. – "Mas eu e Li estávamos. Outras pessoas também estavam envolvidas nisso."
"Saiyame...?"
"Impossível."
"Muita coisa que parece impossível está acontecendo. Touya sabia, então, que a carta em que ele estava marcando o encontro com Siaoran de certa forma seria comentada com Saiyame? Isso é impossível. Que tipo de assuntos eles poderiam ter, Tomoyo?"
"Eu não sei."
"Um dia, Saiyame me disse que conhecera Sakura."
"Impossível." – Mal tenho tempo de terminar a frase, a voz melodiosa de Tomoyo ganha uma nota de raiva, me faz silenciar.
"..."
"Impossível, Hisashi. Eu era a melhor amiga de Sakura." – Ela se levanta, dá um passo na minha direção, e ela parece tão irritada como que falei que sem pensar acabo recuando, para o lado da mesa de centro. – "Eu o teria conhecido. Eu teria me lembrado dele. Eu era a melhor amiga de Sakura. Eu estava com ela em todos os momentos! Ela só confiava em mais uma única pessoa além de mim!"
"... Ele contou coisas de Sakura que realmente eu achei que só você poderia saber. Eu acho que você nunca falou dela para ele."
"Nunca." – Tomoyo fica parada. Olhando para o chão. –"Você não sabe o quanto que eu a amava. Há recordações de Sakura que eu nunca partilharia nem mesmo com Li, muito menos sabendo que eu a perdi para ele, um dia!" – Tomoyo então chuta violentamente a mesa de centro. Ela tomba e se arrebenta no chão. Vários pedaços de vidro se espalham. Ela olha para eles e depois para mim, calma como uma menina, e sorri: - "E você acha que eu as partilharia com Saiyame, vendo nele um olhar que eu só vi uma única vez em toda a minha vida, no rosto da segunda pessoa em quem Sakura mais confiava, além de mim?"
"Quem?..." – Por isso... Por isso ela dizia aquelas coisas sobre ele...
"... Ninguém. Apenas um fantasma, Hisashi. Saiyame não tem culpa de nada do que aconteceu, se é que ele conheceu Sakura quando ela estava viva. Ele não poderia ter sido mais do que uma criança quando a conheceu. E eu só posso agradecer a ele o bem que me fez..."
Aperto o papel na mão, pensando em tudo isso. Ao contrário do que ele gostaria, ele não será esquecido facilmente da vida de nenhum deles. E nem da minha. Não adianta correr agora, a chuva está longe de estiar.
"Se Saiyame realmente conhece Touya, e os assuntos que têm envolvem a mim, Li e sabe lá quem mais... Eu não quero saber. Eu acredito nisso. Não acredito que Saiyame houvesse ido por causa de Siaoran." – Eu também não acredito, ele teve todas as chances para fazer isso. O sorriso de Tomoyo diz que ela também deu todas as chances para que isso acontecesse. E se houvesse acontecido, não teria se importado, a não ser que Siaoran houvesse deixado todas as cortinas cerradas. Quando olho para seu rosto de boneca, sempre me esqueço de que ela é uma caixa de surpresas, nem todas agradáveis, e os pequeninos cacos da mesa de centro me mostram isso claramente.
Ela não é a única pessoa imprevisível que conheci, desde quando ganhei essas linhas no meu pescoço.
"Não fique remoendo por coisas que só estão na sua imaginação." – Ela sorri, endireitando os ombros e afastando a franja escura dos olhos. – "Não espere a chuva passar."
Ela tem razão.
Não há mais o que dizer.
É uma pena que eu saiba que nunca mais a verei. Provavelmente, nunca mais verei nenhum deles. Ou pode ser que eu esteja enganado, como em muitas coisas eu sempre me enganei. Estou sempre apostando alto e perdendo.
Vou saindo, sem me despedir de Tomoyo, e sem ela dizer nem um breve "adeus" para mim. Para que? Nunca saberemos se vamos nos ver de novo. Está escuro nessa sala. Encontro a porta e já estou no corredor quando escuto-a dizendo:
"Ele beija gostoso, não é?"
Não acredito que Tomoyo acabou de dizer isso na minha cara! O que é isso? Não existe mais propriedade privada nesse país?
"O quê?" – Eu sabia. Eu sabia. Eu sabia. Eu sabia...
"Eu estava brincando..." – Ela dá um risinho, lá do fundo da sala, sentada no braço do sofá, acenando como uma menina travessa.
Nem parece que acabou de destruir aquela mesa com um chute só. Sinto uma ponta de admiração por Li. Eu não teria coragem de dormir ao lado dessa mulher.
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Volto para a casa vazia, tranco todos os quartos, deixando-os do mesmo jeito que os encontrei. Fecho as janelas, limpo a geladeira e a deixo aberta. Tudo já estava limpo antes. O único sinal de vida que havia na cozinha quando entrei lá era uma tangerina esquecida no cesto da mesa. Vai continuar aí. É uma tangerina de cera. Quase me enganou.
Deixo um bilhete para a dona da casa, e a chave de luz fechada... Deixo meu relógio ainda no mesmo degrau em que o encontrei. Não vou precisar dele... Tenho de morder o lábio para não chorar tudo o que já chorei e mais pouco, mas eu não choraria de tristeza, eu choraria de raiva. Eu choraria por qualquer coisa, menos por tristeza, quando toco a malha que deixei embolada ali, no degrau. No entanto, eu não tenho orgulho, deixei qualquer dignidade do lado de fora dessa casa, quando abri a porta da frente aos chutes, naquela noite estranha. Embolo a malha e ela cabe com perfeição dentro da minha bolsa.
Estou irritado apenas porque essa dor de cabeça não passa e porque estou encharcado. Arrumo minhas coisas na minha bolsa e pouco depois estou no metrô de volta para meu apartamento.
Sinto frio, as pessoas estão olhando para mim e sei o motivo disso. Não é porque não me pareço com elas, por meu cabelo não chegar a ser preto, ou porque meus olhos são verdes, ou porque seja mais alto do que vários deles. Estão olhando porque estou muito pálido, desfeito, o cabelo desalinhado, certamente notam que estou tremendo um pouco, e meus olhos estão vermelhos.
Mas eu não estou triste.
Não mais.
Estou furioso.
Tomo um banho e mudo de roupa quando chego em meu apartamento. Antes de sair, deixo um recado na secretária eletrônica, dizendo com todas as letras o que passa por minha cabeça. Realmente não estou nem um pouco interessado no que as pessoas vão pensar escutando isso. Ninguém que não queira apenas uma esplêndida noite de sexo telefona para este número, e há tanto tempo que não paro aqui, que a maioria delas já deve ter desistido.
Arrumo minha bolsa com tudo o que tenho, e não é muito, menos do que sempre achei que tivesse. Tiro as fotografias da minha família de dentro do álbum, tiro roupas do armário, e penso naquela camisa vermelha que dei a Saiyame, ela era a única das suas roupas que estava ainda na casa. Como meu suéter, o seu cheiro estava nela. Não olho para trás quando saio do apartamento. Não me volto para olhar nada do que estou deixando para trás fazendo isso. É uma vida inteira. É uma vida sem ele, que sempre me pareceu ser, na verdade, um pesadelo para o qual eu não quero acordar.
Como estou irritado!...
Estou agora, com um humor tão péssimo que poderia derrubar aquele maldito e ridículo esqueleto de ferro – A tal daquela Torre que quando crescer quer ser a torre de Paris – que fica encravado no meio da cidade, apenas com um chute. Eu poderia incendiar aquele pingüim plantado naquela praça, o qual representa a síntese de todo o mau gosto da humanidade, eu poderia enfim... E deveria... Tirar a asquerosa Senhora Iketani do meu caminho e da minha vida, somente empurrando-a pela escada abaixo.
Mas... Ela está diferente. Não sei o que é, mas está diferente.
"Boa tarde, Wakai."
"Era."
Acho que ela vai me morder, está mostrando os dentes para mim. Ah, não, isso é um sorriso. Ela passa do meu lado piscando um olho. É o fim do mundo, mesmo. Não bastasse tudo estar me acontecendo de uma única vez, e mais aquela brincadeira de mau gosto de Tomoyo, agora minha senhoria está dando encima de mim...
Depois de quase um minuto todo de choque, resolvo sair praticamente correndo daqui. Tenho o dinheiro dos meus pagamentos como enfermeiro de Tomoyo bem guardado, e as economias que fazia para voltar... Que estranho dizer... Voltar para casa.
Casa é onde o coração está.
Mas meu coração... Eu não faço a mínima idéia de onde esteja...
Tarde demais para pensar nisso. O meu vôo sai dentro de uma hora.
CONTINUA
