"Você já esteve lá antes?"
"Já. Mas isso foi há muito tempo. Eu era outro. E você também."
"É estranha a naturalidade que você se refere a mim." – Ele diz, erguendo os olhos por um momento de uma revista cujas páginas ele observa apenas pelas imagens. As palavras escritas são em uma língua estranha a qual não compreende.
"A ele, também..."
"Nós somos um. Não nos imagine como vidas separadas."
O homem torce o cigarro no cinzeiro da mesa da sala de espera de um hotel. Mais de vinte e quatro horas dentro de um avião nunca lhe faziam bem, e ele perdia toda a noção de espaço e tempo. Os hotéis são todos iguais. Agora, por exemplo, sentia-se a mais de um continente de distância, apenas o cheiro do jantar do buffet anexo, os legumes fritos, os mariscos e o cheiro das frutas dos arranjos era o que destoava da sua sensação de ainda estar na Inglaterra.
"Nunca imaginei."
"..."
"Algumas vezes é estranho, e eu já estou acostumado. Gostaria de saber como alguns tipos de pessoas se sentiriam." – A acende outro cigarro, tragando profundamente. Da poltrona oposta à sua, um homem de aparência ocidental observa-o com atenção para logo distrair-se com seu livro mais uma vez. O menino também observa, mas não se distrai facilmente. –"Ele por exemplo." – Deixa o cigarro de lado por um momento esse inclina para perto do ombro do garoto, apontando discretamente o homem que estava tão atento um minuto atrás. –"Ele nem imagina... Não faz idéia. Ele não sabe, ele jamais imaginou. Eu tenho uma curiosidade terrível sobre o que aconteceria..." – Não sorri, ele nunca fala sobre esse assunto, e cada palavra sua é valiosa neste momento. – "...Se alguém como ele... Conhecesse alguém como você."
O garoto olha demoradamente para ele, sério, como se refletisse cada letra. Por fim, apenas sorri. Depois ficam em silêncio, como qualquer um naquela sala de espera. Aquele homem não termina de saborear seu cigarro:
"Senhor Touya Kinomoto, o táxi já está com sua bagagem, e está esperando-o para o aeroporto. As reservas do vôo para Hong Kong foram confirmadas." – O funcionário do hotel inclina-se para a frente, fazendo a reverência. – "A gerência do Hotel Hilton de Macau agradece a sua visita. Volte sempre, Senhor Kinomoto."
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Longe dali, sem saber onde está, sem entender o que as pessoas dizem, e depois de horas sem dormir, ele se sentia irreconhecível. Estranho num lugar de estranhos. Numa loja de ervas, souberam dizer-lhe em inglês, que estava no caminho certo para o lugar onde queria ir. Mais ao norte, sempre pelo porto. Mais tarde, alguns turistas japoneses souberam explicar melhor o lugar para onde queria ir. Ao norte, realmente, por esta rua, suba uma alameda, deve ser alguma das casas centenárias. Agradeceu precipitadamente, e quando seu sapato bate em uma pedra solta, ele então olha para baixo.
Paralelepípedos, uma alameda larga, que sobe, a partir de uma praça cheia de pés de romã. De um lado, haviam as árvores protegidas por altos portões de ferro, tão próximas uma das outras que não é possível ver a casa com clareza. Do outro lado, ciprestes ao redor de um casarão. Ele segue andando com firmeza, a lembrança do que sempre achou loucura, tomando ares de realidade.
E não apenas isso, uma estranha sensação de algo familiar. Quase uma náusea, e ele sente suas mãos ficarem frias quando a realidade toma a forma de um alto portão, com um brasão em que há um remo e uma âncora, um amplo gramado. Muros cobertos de hera e um jardim com pessegueiros desfolhados e roseiras ressequidas pelo inverno. Um caminho de pedras indo do portão até a porta de um grande palacete negro, de pedras escuras e telhado de ardósia. De todas as janelas laterais... Apenas uma possui grades. E além dela, e estranhamente, apenas as janelas do que imagina que fosse um sótão.
Por um tempo fica parado na frente do portão, segura uma das bandas da grade e empurra. Apesar da ferrugem, o portão desliza, o bastante para que ele passe ali, de lado. Seus joelhos tremem. Cada passo é custoso se traz um sentimento estranho. Tem vontade de fugir, mas a teimosia e a raiva, mais do que a coragem, o fazem entrar.
Está tudo vazio do lado de fora, e imagina que a casa também. Repousa uma das mãos sobre a madeira e espera, sinceramente, que o papel na sua mão esteja dizendo o número errado, pois as sensações de pisar naquela soleira são tão diversas e intensas, que ele não sabe se pode agüentar, ou enfim, apenas render-se e acreditar nas palavras de...
"Cerberus."
A casa não estava vazia. Há alguém que ele conhece muito bem, sentado no chão, numa grande sala vazia, de costas para a porta. Este alguém não vira-se. Ele não sabia dar-lhe um nome, pois nunca soubera qual poderia ser o seu verdadeiro.
"Cerberus está morto." – Ele responde, imóvel, sentado no chão, olhando para uma lareira queimar continuamente uma pilha de jornais amassados e torcidos, e um resto de carvão.
Ele entra e cerra a porta. Está cansado e muito abatido. Aquele viço, aquele ar dourado e selvagem... estão perdidos.
"Cerberus morreu há um ano atrás." – Ele continua, sua voz rouca enche o ar da sala vazia com uma reverberação de eco. – "Há um ano atrás, eu nasci, eu acordei em uma igreja tão velha quanto esta casa, numa cidade feita de neve. Então, um anjo colocou uma flor nas minhas mãos."
"Saiyame..." – Ele se recorda do nome que embalava cada suspiro seu, que acompanhava cada palavrão que ele praguejava...
"Naquela noite, eu escolhi ter mais uma vez o nome que me pertencia, quando eu ainda era batizado frente ao Deus dos cristãos. Isso porque... Cerberus está morto. Aquele que eu era... Está morto."
"..." – Ele escuta. Está estarrecido demais para responder, e sente-se tão ... Burro, que por pouco não dá meia volta e volta para o país que abandonou. – "... Saiyame."
"Era assim que eu era chamado pelas outras crianças da Missão Inglesa, desde o dia em que cheguei lá. Antes, eu tive outro nome, mas eles não o entendiam, e me deram outro. Eu esqueci de como era chamado. Quase todos os que estiveram no navio que trouxe o cólera haviam morrido. Os que ficaram nos porões, como eu, como outras crianças, algumas mulheres jovens, morreram depois. As meninas foram levadas por estranhos e vendidas para os bordéis. Eu e os outros ficamos na rua e no porto. Depois, pessoas nos arrastaram para a Missão. Lá, eles cortaram meu cabelo e me deram roupas azuis. O mesmo aconteceu com os outros. Até o filho do imediato de bordo do navio, este foi vendido para ser um beija-flor... Alguns foram vendidos como grumetes. Alguns morreram de desinteria, varicela, cólera, influenza, febre, ou apenas fome. E eu..."
"..."
"... Eu sobrevivi ao leite mais azedo, ao arroz apodrecido, às doenças. À fome. Eu quase fui vendido por duas vezes, antes de que ele chegasse às portas da Missão Inglesa."
"Eu não sabia..."
"Você sempre soube. Você escutou. Mas nunca quis acreditar"
"..."
"O seu olhar de espanto nunca me é de todo estranho. Ele mesmo, quando chegou à Missão, vestido de veludo e com sapatos que eram melhores do que os do capitão do navio que nos trouxe a este lugar, ficou com olhos assim... Assustados. Não pelas crianças. Nós, na fome, éramos todos iguais, magros, olhos esbugalhados, cabelos tosados e vestidos de azul. Os missionários, na sua generosa missão de salvar almas precisavam nos vender para que eles mesmos não tivessem de passar fome, embora fosse contra o que diziam. Ele não foi até lá com uma intenção diferente. Ele olhou os meninos mais velhos, olhou os dentes dos mais novos. Ele deve ter se sentido tão perdido quanto eu. Ali, aquelas crianças falavam português, mandarim, cantonês, tailandês, dialetos, línguas que hoje estão mortas... Horas depois, eu o vi sentado no pátio de fora, e ele me viu por dentro das grades."
"Quem? Quem era ele?"
"Ele me olhava, assim como você, com olhos de espanto. Levantou-se daquele banco e dispensou o missionário que estava conversando com ele como se dispensasse o mais reles criado. Veio olhar de perto para os meus olhos, para o meu cabelo, delicadamente me fez abrir a boca para olhar os meus dentes. Olhou para as minhas unhas e para as palmas das minhas mãos. Por fim, ele falou comigo em mandarim, e depois em um português com muito sotaque, e nada do que ele dizia eu era capaz de entender. Por fim, ele perguntou o meu nome, em inglês. E eu soube responder. Ele sorriu. Oh, você não faz idéia de como eu queria sair daquele orfanato... Nunca você será capaz de imaginar como era aquilo... Morrer de fome na rua era menos doloroso do que morrer na sujeira e na miséria daquele lugar, e era muito fácil morrer na rua, os órfãos morriam às centenas, nas vielas, na lama, nas sarjetas... Então aquele homem, ele afagou a minha cabeça, sem se importar o quanto eu estava imundo e faminto. Disse que eu era pequeno demais, magro demais. Disse que ia ser o meu pai. Colocou um pião de madeira nas minhas mãos e eu nunca me senti tão feliz antes quanto naquele dia, com aquele brinquedo correndo pelo chão. Eu olhava para cima e não acreditava... Que podia estar vendo o céu mais uma vez e... Eu... Eu deveria ter fugido... Eu não imaginei porque ele sorria daquele jeito, e pagava sem reclamar, por mim, ao missionário, cinco vezes mais do que teria pago por uma criança chinesa..."
"... Saiyame..."
"... Eu só soube quando ele me trouxe em uma carruagem negra para esta casa, fechou a porta, e mandou as criadas se afastarem... Ele me disse que eu teria de fazer valer o quanto pagou por mim... Ele me arrastou por escadas, sempre para baixo, e antes de fechar o cadeado que me prendia, disse que eu deveria realmente dar-lhe muita sorte desta vez, que eu valia no lodo dessa cidade, ainda muito mais do que pagou por mim, que ele gastara aquele ouro todo apenas para pagar por uma coisa que quase nunca poderia ser encontrada no oriente."
"O... qu...?"
"Quer saber o que era? Não era por ser filho de ingleses... Não era por ter dentes bons, ou todas as unhas nas mãos, ou por ter sido persistente por dois anos desde quando saí do porão do navio. Foi apenas porque eu tinha olhos azuis. Somente por este motivo. Ele tinha fascinação por olhos azuis. Os olhos dele eram azuis, mas eram escuros... de um azul denso como chumbo. Ele acreditava... Que seja lá o que fosse fazer, os seus fracassos anteriores deviam-se ao fato de haver faltado este detalhe no seu plano. Você nunca poderá imaginar, Hisashi Wakai... Eu só soube o quanto eram azuis os meus olhos quando Lead Clow arrancou um deles, três dias depois de me prender, e eu o vi na sua mão... antes que ele me arrancasse o outro."
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Hisashi pestaneja repetidas vezes, tentando sair desse torpor. Como muitas vezes, e mais do que nunca, ele não sabe o que pensar, até ver Saiyame se mover, apenas seu braço se move, sua mão ainda enfaixada se ergue e ele passa os dedos sobre o rosto. Eles ficam molhados de lágrimas, apenas isso. Não faz nenhum ruído ou pelo menos respira mais fundo.
Hisashi se aproxima mais, deixando sua bolsa cair com um baque surdo.
"Eu aprendi a chorar quando matei pela primeira vez."
Saiyame apenas respira fundo, olhando fixamente para o fogo.
"Eu matei muitas outras vezes depois, perdi a conta de quantos matei, e de que formas. Todas eram dolorosas, e todos os que morreram por minhas mãos pediram em algum momento, que eu acabasse logo com aquilo. Nunca lamentei por nenhum deles. A não ser pelo primeiro." – Ele se volta um pouco na direção de Hisashi, e lança-lhe um olhar diferente de todos os outros, desde quando se conheceram. Aponta com a cabeça, como a dizer que ele pode se sentar. Hisashi se senta, quase ao seu lado, no chão. – "E ainda assim por conta de algo que escutei Chen Li conversar certa vez com o Mestre... Ela dizia que nunca se deve comer do coração de nenhuma criatura, ou ela estará presa a você. E a primeira pessoa que eu matei... Ela ainda estava viva quando eu devorei o seu coração. Mas ninguém nunca soube disso. Até agora."
Silêncio.
Hisashi quase consegue sentir o peso de toda a dor da existência de Saiyame, e o cheiro de todo o sangue que já foi derramado por suas mãos longas e pálidas. Se o tempo existe, ele é uma ilusão. Saiyame, ou seja quem ele seja, ou seja, este que está quase ao seu lado, e que não se volta para olha-lo nos olhos, atravessou o tempo, e o contradiz, contradiz tudo. O impossível aconteceu e está bem à sua frente. A ira que o fez abandonar tudo para persegui-lo, como uma maldição que persegue a sua vítima, abranda... Fica apenas um engasgo, uma tristeza e um ressentimento que perdura por quase uma hora inteira de silêncio, em que ele também fica apenas olhando para o fogo que queima lento o papel velho e o carvão.
Silêncio.
"Saiyame..."
"Eu sei que você está furioso comigo. Não o culpo. Eu sei que adoraria apertar o meu pescoço nas suas mãos até que eu parasse de respirar."
"Não..." – Hisashi se sente corar. Ele arrepia, nauseado de tensão, e o calor do fogo não o deixa sentir-se melhor, embora devesse. – "Eu jamais machucaria você."
"Quando eu o conheci, você dizia outras coisas, não muito parecidas com essa."
"Eu era outro... Não sei, mas agora... Eu estou furioso com o que você fez. Mas eu nunca o machucaria."
"Você já fez pior do que isso, deixando que eu chegasse vivo ao dia de hoje."
Silêncio.
Desta vez o silêncio perdura por muito tempo. O incômodo de Hisashi Wakai apenas aumenta até que seja impossível ficar calado.
"Por que você fez isso comigo?"
"Eu fiz?..." – Saiyame move um pouco a cabeça na sua direção, sem chegar a olhar para ele.
"Você sumiu daquele jeito."
"Você não pensa no que fez a mim."
"Eu salvei a sua vida. Várias vezes."
"Ninguém nunca quis saber se eu queria ser salvo. Ele também nunca perguntou se eu era feliz aqui. Ninguém nunca quis saber, de qualquer forma, o que se passava comigo."
"Não me compare com essa pessoa de quem você está falando. Eu sei que você quer viver..."
"... E assim esquece de que eu devo morrer."
Silêncio novamente.
Vira-se até olhar nos olhos de Hisashi, nada diz enquanto se levanta. Faz um gesto seco, apontando o chão perto da porta. Hisashi olha, no meio da penumbra fria da sala para aquela direção, e se levanta também. Saiyame afasta uma das cortinas e a luz do dia então ilumina o mármore branco do chão.
O mármore está quebrado em dois lugares diferentes, um ao lado do outro, perto da porta fechada, como se houvesse sido rachado à peso de marretadas. Ele abre a boca para falar mas as palavras somem, e Saiyame também some da sua frente, indo sem pressa alguma para o corredor de logo à frente.
"Eu não sei mentir. Eu não fui feito para isso."
Ele acaba por segui-lo, pois não consegue evitar. Ele encontra Saiyame abrindo com conhecimento e intimidade as portas de velhos móveis laqueados, com bordas trabalhadas e douradas. Ele olha o que há dentro dos armários e os fecha de novo. Não parece estar procurando, apenas tentando achar o alívio de descobrir que algo está diferente. A Hisashi, a casa parece imensa. O chão agora é de madeira, há as escadarias que coincidem numa sala, onde há mais um largo corredor, um vestíbulo com vários ganchos nas paredes – talvez para receber casacos de convidados de festas –, e as portas fechadas de um salão de festas, a única que Saiyame não abre para olhar. Hisashi só não imagina que ele não o faça apenas pelo costume.
"Se não fosse por você, eu jamais teria posto os pés aqui novamente."
Agora estão parados frente a uma das altas janelas, num corredor lateral da casa. Olhando por lá, pode-se ver um pedaço do gramado queimado, as touceiras de flores desfolhadas e algumas árvores mais distantes, abaixo.
"Por que você está agindo assim? Você está falando como se fosse a última vez que nos vemos. Eu não posso acreditar nisso. Nós estávamos bem..."
Hisashi atreve-se a toca-lo. A paisagem é seca e desolada, dentro da casa o silêncio é pertinente e quebrado apenas por suas vozes e passos. Passa a mão pelo braço de Saiyame, achando que sua pele tornou-se fria, que irradia através do tecido da camisa velha e desbotada. Encontra as bandagens de seus pulsos e mãos. Não foram trocadas, as marcas de sangue estão secas depois de dois dias, então ele começa a desfazer o curativo.
"Acredite... Nós nunca poderíamos estar bem... E isto sim, é uma despedida."
"..." – Hisashi não duvida mais de nenhuma palavra que já escutou de Saiyame, seja qual a época. Tudo o que disse, desde o começo, era verdade. Isso parte seu coração, por raiva de si mesmo. O impossível acontecera, e está com a mão entre as suas, ele termina de desenrolar as bandagens, e a palma da mão de Saiyame está cicatrizada, suja de sangue seco, porém, como se nunca houvesse estado ferida como ele sabia que estivera. – "Por que não restaram marcas? Como você pode ter se curado tão rápido?" – Não consegue mais falar alto, sua voz é apenas perplexa.
"O meu tempo está acabando. Eu não queria que você visse isso acontecer. Quando a hora chegar, eu terei de me tornar aquele que eu fui um dia." – Saiyame responde, a voz também muito baixa e entrecortada. – "E você, e nem eu, vamos conseguir me reconhecer."
Hisashi sente sua garganta atravessada de alguma coisa dura, e então toma a outra mão de Saiyame e desfaz as bandagens. O outro lado também está como se intacto. Ele, como antes, deixa as bandagens caírem no chão. Estão frente a frente, e quando ergue os olhos, encontra os de Saiyame.
"Eu não queria que você soubesse de nada disso... E pensar que você não sabe nem da metade..." – Saiyame morde o lábio por um momento, olha para o rosto de Hisashi como fosse a primeira ou a última vez. – "Eu não poderia nunca ter lhe contado tanto, ninguém nunca deveria saber. E nem o meu nome. Mas nunca poderia mentir... Mesmo que quisesse... E nunca para você..."
"Você era o servo de Sakura..."
"Sim."
"Você devorou o coração dos inimigos de Clow..." – Hisashi se lembra das palavras de Siaoran Li.
"Sim."
Silêncio. Hisashi vê nos seus olhos como certa vez havia visto, a impressão de que eram feitos de vidro, e por detrás deles, um olhar totalmente desconhecido. Ele ergue a mão muito lentamente, e toca o rosto de Saiyame, com perplexidade e com a fascinação de antes e sempre... Silêncio. Hisashi escuta seu próprio coração diminuir o passo. Está menos chocado do que acreditava que estivesse. Na verdade sempre soube... E mesmo assim... Ele escutara várias vezes a verdade, esbarrara nela, trombara com ela e até esfregou-a na cara dos outros, mas nunca a assimilara. E mesmo assim...
"Você também devorou o meu."
Hisashi deixa o lado do rosto de Saiyame se encaixar na sua mão, sentindo aquela pele morna se esfregar na sua palma, silenciosamente pedindo por este afago. Sente a frieza da sua pele diminuir lentamente. Saiyame fecha os olhos e entreabre os lábios, tentando respirar, e o faz ruidosamente, tão entregue quanto nunca o vira antes. Sua pele é quente, agora, quando sente os braços de Saiyame em torno de si, íntimo, familiar...
Ele segura o rosto de Saiyame entre suas mãos, e sem querer pensar que não estava errado, quando dois dias atrás imaginou-se amaldiçoado por haverem-se envolvido, apenas o beija. Eles sabem que este beijo não se parece com nenhum antes, e talvez, com nenhum depois.
Este beijo tem o amargo sabor de uma despedida, e o insuportável travo de uma lágrima de saudade.
Eles param de falar.
Não há mais o que dizer.
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Saiyame anda pela casa, Hisashi nos seus calcanhares, como um tipo de maldição. Ele apenas abre portas, olha os cômodos, como fosse ainda sua função verificar se estava tudo limpo, tranqüilo e em ordem. Nas portas que travam em seus castilhos, ele ainda sabe até onde bater de leve, uma única vez, para abri-las sem o menor ruído. Pelo mesmo corredor do salão de festas que estava fechado, há outra porta, também de duas bandas, de madeira de ébano. Esta, Saiyame apenas empurra um pouco, olhando, e abre as bandas totalmente. É uma grande sala, com armários repletos de livros, de todos os tipos, com lombadas de todas as cores, de várias épocas. Fora as estantes, não há mais nenhum tipo de móvel, nem o antigo tapete, e no lugar das pedras do piso, agora há madeira corrida, de duas cores.
Saiyame entra, faz Hisashi entrar também, arrastando-o para dentro. Olha ao redor com uma sensação muito mais forte do que teve nos outros cômodos, de que já havia estado naquele lugar. Mas então, não era apenas o deja vu, havia também uma sensação de calor e desconfiança.
Ele olha ao redor e não fica, e nem conseguiria, se quisesse, ficar por muito tempo neste lugar, assim como em certos outros desta casa. Ele sai.
Hisashi fica sozinho na antiga biblioteca. Olha as lombadas dos livros, muitos deles não são em chinês. Respira fundo aquele cheiro de antiguidade, tentando associa-lo a qualquer lugar em que já houvesse estado antes. Inútil. Sente-se um estranho nessa casa, ameaçado por tudo. Oprimido pelo silêncio impenetrável que há nela. Mas não sente aquele frio estranho, não nesta sala. Ele sente um estranho calor. Sua perna esbarra em alguma coisa, perto do chão. São coisas empilhadas perto da parede, embrulhadas em lençóis brancos e lona cinzenta. A curiosidade o faz abaixar-se e abrir os embrulhos de tecido, tirando o barbante que os prendem. Ele não sabe se surpreende-se ou alivia-se por encontrar apenas telas de pintura.
Está sozinho, olha por um momento para a porta aberta, recendo que Saiyame volte. Afasta a lona e o primeiro quadro é realmente impressionante. Uma mulher de traços não muito orientais, de olhos e cabelos escuros, olhando diretamente para ele, sentada numa cadeira antiga. Seu vestido é azul e intenso como o azul do mar, e uma flor de cerejeira no seu cabelo preso. Por um momento, Hisashi sente-se preso a este olhar escuro, e imediatamente avalia o quanto Siaoran Li se parece com aquela mulher. O olhar é o mesmo.
O outro quadro, logo atrás deste, é uma paisagem antiga. Assim como o primeiro, não está terminado. O retrato da mulher não tinha um fundo de contornos definidos ainda. Este não tem a cor das copas das árvores.
O terceiro... Por um instante Hisashi imagina que esteja servindo de palhaço para alguém. Depois, tem certeza absoluta de que está olhando para um retrato do pai de Sakura, Fujitaka Kinomoto. A certeza dura apenas até observar as roupas do homem no quadro. São antigas, mas não são chinesas. Ele tem um monóculo numa das mãos, e parece ter acabado de sorrir, há algo de cínico no seu olhar, de antigo e de bem humorado. Mas definitivamente, é idêntico ao pai de Sakura, se o pai de Sakura tivesse os cabelos pretos muito lisos, à metade das costas e olhos azuis e densos... Como chumbo. Olhar para este homem causa-lhe arrepios estranhos e uma antipatia que não consegue deter, passa direto para o outro quadro.
E a última tela... São duas crianças. Quase a imagem poderia passar desapercebida. É mais um quadro que não está terminado. Hisashi volta para olhar como a roupa de uma delas parece ser de um vermelho tão brilhante, e como o azul da outra é tão vibrante e descobre que a sua primeira impressão o enganara. É um adolescente de pé, ao lado de um menino sorridente sentado numa banqueta estofada, numa certa atitude de vigília. Estranho é ver como ambos são pálidos e estranhos, com olhares pouco humanos. Diria que pudessem ser fantasmas. As roupas eram de cetim brocado e bordado, os sapatos eram pretos e forrados de seda. A princípio, quem mais chama sua atenção é o menino, vestido de azul celeste, de cabelo tão louro que chegava a ser branco, e seus olhos azuis quanto suas roupas. Ele estava sob algum tipo de luz incidente. O rapaz perto dele estava mais atrás, debaixo da sombra de uma cortina branca. Tinha o cabelo mais escuro, e um estranho ar adulto demais, na sua postura.
Hisashi leva o quadro inacabado para debaixo da luz que entra por uma das janelas, filtrada pela poeira há anos acumulada ali. É um quadro grande, tem quase a sua altura. E debaixo da luz do dia, ele vê claramente que a semelhança não é a toa. Não há, e nem pode haver sequer uma sombra de dúvida. O rapaz vestido de vermelho no fundo do quadro, apesar do cabelo atado completamente em uma trança, na verdade, tem o rosto e o olhar perdido de Saiyame. Cílios quase negros, olhos de um amarelo de crepúsculo, dourado e profundo. O rosto de uma fera, escondido detrás do rosto do que poderia ser apenas um menino.
Hisashi larga o quadro, contendo com ambas as mãos um grito de horror.
O quadro cai desajeitadamente no chão, com um baque, e fica escorado na parede, e aquele rosto estranho e tão conhecido parece voltado unicamente para Hisashi, aqueles mesmos olhos amarelos que vira tantas vezes na distância de um beijo, então... Ameaçadores. Terríveis. Selvagens.
Ele recua, sentindo se todo tenso de náusea e pavor, e tudo nesta casa lhe inspira o mesmo sentimento, ele sente que não está seguro, e descobre que esta biblioteca antiga o amedronta como nenhum outro lugar, e o faz ter vontade de fugir, tanto da casa quanto da cidade, de si mesmo.
Cambaleia e pisa firme no chão, duramente, quase correndo para voltar à sala principal, pegar sua bolsa e ir embora, esquecer tudo, dar as costas a este pânico que toma conta de toda sua mente e apenas fugir... daqueles olhos de crepúsculo.
Ele não consegue chegar até a porta.
"Não me toque!" – Ele grita, antes mesmo de ter certeza de quem está á sua frente, seus olhos turvos de medo, e suas mãos trêmulas.
Saiyame apenas olha para o quadro no chão.
"... Não diga nada."
"Não!... Não!" – Hisashi está pálido e sente-se perdido no meio de um lugar estranho, onde passado e presente colidem bem à frente de seu olhos. –"Quem é você, afinal? Eu não sei quem é você!"
Hisashi baixa a cabeça. Ele se sente mínimo, perto das coisas que soube, desde que deu aquele único passo para dentro do círculo.
"Você algum dia se importou com isso?"
Hisashi sente as mãos de Saiyame em seus ombros, apertando o tecido de suas roupas, tomando um rumo tão conhecido em torno de seus ombros, e apesar do terror que sente agora... Seu coração se abranda de tal modo... Que deixa de bom grado que aquele silêncio que o enchia de raiva flua livremente, lentamente, até que o som de sua respiração seja apenas um pensamento. O silêncio que sempre vinha de dentro de Saiyame agora vem de dentro dele próprio, e é cheio das coisas que não precisa dizer, e que no entanto são conhecidas. Seus olhos encontram os dele, e não conseguem soltar-se... Seus lábios encontram os dele, as mãos se misturam, a pele colide... Ele não são mais do que apenas um, quando se beijam, quando o silêncio se quebra, entre o farfalhar das roupas e entre a voz inaudível de Saiyame:
"Aqui não...!"
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Ele leva Hisashi por corredores largos e escuros, por uma escadaria de pedra forrada de um tapete escuro e impecável. Empurra-o para um quarto de cortinas fechadas, escuro, onde tudo o que se vê é apenas e tão somente um breve reflexo da pouca luz refletir na madeira do chão e na madeira das colunas da cama. Todos os outros móveis são cobertos por lençóis brancos. Mesmo o alto colchão da cama também é coberto por lençóis brancos, que são arrancados num puxão, por Saiyame, que traz Hisashi para perto.
"Que lugar é esse?" – Pergunta, arregalando os olhos para tentar ver com clareza o que está havendo. – "De quem é este quarto?"
"Não diga nada..."
"Mas..."
"Aqui... Nesta cama."
Saiyame o faz deitar-se ao seu lado, sufocado de excitação e medo, e levanta-se, deixando cair suas roupas, frente a olhos surpresos, assustados... E humanos. Hisashi não sabe o que pensar e nem saberia se teria forças de fugir, quando vê como sua pele é branca, no escuro, agora, muito mais do que poderia recordar-se que era a pele de Saiyame.
Saiyame tem agora sua pele toda num branco de giz, impecável e irresistível. Seu cabelo sacudido, quando a camisa surrada escapa de seus ombros, este parece mais louro, mais claro e realmente... É como a juba de um leão caindo em torno de seu rosto. E até seu modo de olhar é diferente e assustador, distante, quase frio, quase triste... Seus olhos não tem mais nada do antigo brilho. Estão opacos como olhos de vidro. Difícil acreditar, quando Hisashi toca a mão de Saiyame, que há calor debaixo dessa pele tão branca. Mais difícil ainda acreditar que este Saiyame é o mesmo de antes. Não é. Ambos sabem disso, e embora nada digam, um está tão assustado quanto o outro com tudo isso.
Esquiva-se, felino, leve, nenhum movimento seu é humano, quando se afasta da cama, evitando que Hisashi o abrace. Quando a pele nua de um esbarra na pele nua do outro, é como se pequenas faíscas de prazer ameaçassem incendiar a fina coberta do colchão, ou apenas destruí-los, simplesmente. Ele foge das mãos de Hisashi, deixa-se capturar entre braços que lhe são familiares e difíceis de esquecer. E Hisashi... Ele caça essa fera que se deita com ele, como se caçasse a própria alma, e por várias vezes consegue sentir seu corpo todo colado ao dele, para deixa-lo escapar em seguida, entre suspiros, entre entrecortados gemidos, entre beijos e mordidas, que se alternam entre serem de raiva, tristeza ou prazer.
"Isto sim é uma despedida..." – Saiyame diz, entre um beijo e sua língua correndo pelas cicatrizes do pescoço de Hisashi, montando em seus quadris, esfregando seu sexo no dele, sua pele mais quente do que nunca, e seu cheiro, tão selvagem quanto ele próprio, exalando forte, distante de qualquer recordação humana.
Ele se levanta, sôfrego, um pouco precipitado, ofegante, e sorri maldosamente, passando as unhas com força pelo peito de Hisashi, que ainda consegue segurar suas mãos, e descobre que mais do que uma impressão, as unhas de Saiyame não mais lhe parecem tão curtas como sempre, lhe parecem longas e tão afiadas quanto do modo que imaginou, quando arranhou seu pescoço, no dia em que se conheceram, lhe parecem duras, um pouco recurvadas e perigosas. Ele sente um arrepio de medo subir por seu corpo nu debaixo do de Saiyame, mas não tem mais força ou vontade alguma de fugir.
"Não diga nada..." – Ele se afasta da cama, mistura-se com a escuridão do quarto, e chega até um lençol estendido sobre algum tipo de móvel, e agarra-o, puxa-o para deslizar para o chão, descobrindo assim um grande espelho, mais alto do que ele próprio, que reflete com a pouca e amarelada luz do anoitecer, nada mais do que quase todo o quarto, e olha com maldade, com tal maldade que Hisashi nunca viu naquele rosto, para ele, que está na cama, sem saber o que está havendo. –"... Mas eu quero que seja aqui... Nesta cama. Neste quarto."
Ele volta para a cama, trazendo o lençol branco arrastado a seus pés, atrás de si, deita-se ao lado de Hisashi, sem tirar os olhos dos seus, os lábios entreabertos num ofegar de prazer, puxando o lençol sobre si, estendendo os braços para acima de sua cabeça, todo largado sobre o colchão, completamente entregue... completamente seu.
O lençol é fino e tão branco quanto sua pele, e através dele, Hisashi vê seus olhos faiscarem, completamente feito olhos de um animal. Ele segura uma ponta do lençol e arrasta-o lentamente, descobrindo-o, olhando cada pedaço de sua pele como se fosse a primeira ou a última vez, e quando seu rosto surge pelo tecido, é como se o sol houvesse surgido de detrás de uma nuvem.
Hisashi o beija como se fosse a primeira ou a última vez.
O quarto é escuro, e não há nada que um negue ao outro. Hisashi sente que não quer fugir dessa fera que se deita sobre ele, cujo corpo quente se contorce lentamente, retribui um abraço de paixão e não é indiferente a nada. Ele exala ainda aquele cheiro de madeira, suor, alecrim, e sua respiração é ruidosa e nas vezes que arrepia de prazer em que as mãos de Hisashi acariciam as cicatrizes de suas costas, ele deixa escapar algo como um soluço, um gemido imperceptível de aflição. Talvez ele estivesse desejando chorar, pensa Hisashi.
"Abrace-me."
Então, Hisashi abraça-o com mais força, e também geme, quando as coxas de Saiyame escorregam sobre ele, para os lados de seu corpo, prendendo-o, olhando-o nos olhos, passando as mãos sobre seu rosto para faze-lo fechar os olhos quando o beija e sua língua toca a dele, íntima e atrevida, e chega a morder os lábios de Hisashi, com força, e ao mesmo tempo esfrega-se sobre ele, naquela carícia indecente e provocante.
Saiyame escuta Hisashi gemer baixo, e tentar apoiar os calcanhares no colchão para acompanhar seu movimento, e afasta os lábios dos seus, toma suas mãos para se encaixarem na sua cintura, com força, com ambição, e ele apenas estremece, como nunca estremecera antes, a boca entreaberta sem som algum, no momento único em que se deixa penetrar, tão lento, tão faminto, que não há dor, dor alguma. E com olhos turvo de prazer e mãos trêmulas de excitação, Hisashi, inerte debaixo de seu corpo apenas acompanha a entrega completa de seu amante. Ele olha com prazer para o corpo que ondula sobre o seu, recebe o seu, prende-o ao dele, aperta seus quadris entre seus joelhos, e afinal Saiyame deixa escapar um suspiro engasgado, quando solta todo seu peso sobre Hisashi, repleto dele, e tão desesperado de agonia que não tem forças de cavalga-lo com a selvagem disposição de tantas e outras vezes, e Hisashi não tem como evitar de apertar a cintura de Saiyame com mais força, forçando-o a se mover, bem devagar e como um pêndulo... Para frente e para trás. Não para outra coisa, mas apenas para fazer força em seu interior, toca-lo, provoca-lo até que ele mesmo não pudesse mais conter o instinto, o ritmo fatal do sexo tomando conta de todo seu corpo. Como agora, em que pousa as mãos quentes sobre as suas, e leva-as para o resto de seu corpo, como se quisesse que as mãos de Hisashi também fossem as mãos de outra pessoa, como se não quisesse estar com ele, e sim com outro alguém, e seu corpo todo comporta-se dessa mesma maneira, seu ritmo é outro, seus gemidos distantes são outros. Até a maneira que movimenta seu corpo todo sobre o dele, a forma como o cavalga, é muito diferente, porém não menos enlouquecedora, e a tal ponto que Hisashi não sabe mais medir a força de suas investidas, e sente câimbras subirem por suas pernas, de tanta a força que faz dos calcanhares sobre a cama, e não é apenas por prazer que faz isso. Também é por raiva, porque Saiyame é um estranho para ele, porque ele é um estranho para si mesmo, quando segura aquelas ancas com mais força, apóia-se para erguer seu corpo contra o dele, abraça-lo, e Saiyame... Pela primeira vez Saiyame não se esquiva de seu abraço nesse momento.
Na verdade, ele se deixa abraçar com tanta força a ponto de ficar quase que imóvel entre os braços de Hisashi, apenas seus lábios abertos se encostando nos dele, o hálito de um colidindo com o do outro, e o silêncio de Saiyame... este se quebra em inúmeros pedaços, porque seu corpo é todo sacudido por investidas cada vez mais intensas, que não medem força, que não hesitam em machucá-lo e enlouquecê-lo, e cada vez mais, até quando Hisashi passa os braços por debaixo de seus joelhos, erguendo-os mais, até que fique enforquilhado nele, tão preso a seu corpo que pareçam apenas um, e que se tornem realmente apenas um, quando Saiyame aperta seus braços em torno do pescoço de Hisashi, buscando apoio, gemendo em seu ouvido, o seu nome, bem baixo, bem devagar, entrecortado, enlouquecido, enchendo-o de saliva, enchendo-o de prazer com os espasmos violentos de seu corpo.
Saiyame continua gemendo até quando se deixa apenas largar sobre a cama, ensopado de suor, como se não fosse nada mais do que um pedaço de carne, e assim se sente, e essa sensação o enche de prazer tanto quanto o sexo. E imaginar-se apenas carne, sem consciência, sem nenhum traço de qualquer passado ou futuro, apenas carne e desejo, debaixo do corpo ofegante de Hisashi... Isso, e apenas isso, o faz lamentar.
Ele afasta os joelhos e deixa que Hisashi continue movendo-se no seu interior, escorregadio de sêmem e suor, entre as suas pernas, fazendo-o gemer, entregar-se de diversas formas, de todas as maneiras possíveis, e exigir assim que Hisashi faça o mesmo, permita-se à mesma entrega, e ele o faz, com desespero, com desejo, com amor. E por amor. Apenas por isso.
E afinal, Saiyame, ou qualquer um que ele seja, pois neste quarto ele se torna apenas carne e desejo, entrega-se da forma que nunca havia feito-o antes. Finca as unhas no colchão, e seu olhar é desafiador, através do reflexo do espelho à sua frente, retorna para seu rosto um breve raio de sol que ultrapassa as cortinas. Hisashi não consegue desviar o olhar. Ele se vê refletido, de repente, ao lado de Saiyame, no grande espelho da parede, tendo assim tudo ao seu redor organizando-se no mais sujo dos fetiches. E tão logo não apenas ao seu lado, mas sobre ele, nele, preso a ele, enlouquecendo, fazendo-o enlouquecer também, misturando as gotas de suor que correm às cegas pela escuridão, encontrando-se onde as peles se encontram, confundindo os suspiros de tal maneira que não sabem mais a quem pertence um grito ou um gemido, e nem como de repente parece tão natural essa posse violenta e furiosa, tão selvagem que poderia estar em qualquer selva, em qualquer alcova suja, de qualquer época, porque a forma que Saiyame entrega-se é tão plena e impensada que somente um desejo fatal poderia obrigá-lo a fazer isso.
Apenas carne...
Hisashi aperta a cintura de Saiyame entre mãos suadas, quase deixando que ele escape vez por outra, numa investida mais desesperada. E aperta mais, forçando-o a ficar no mesmo lugar, obrigando-o a recebê-lo, abrir-se, desesperar e gemer mais alto, sem tirar os olhos dos seus, colocando as mãos sobre as suas, contorcendo-se com raiva, encarando o espelho como se fosse isso um ato de vingança.
Hisashi pode ainda escutar o lençol se rasgar em tiras quando as unhas de Saiyame passam com força, nele, e fazem vales no colchão, como se fossem abertos à faca. E seus olhos vão cerrando-se, seus lábios úmidos de saliva dizem o seu nome, apenas o seu nome, com desespero, com prazer... Com muito prazer, cada vez mais alto... E seu grito mais alto é longo, interminável, entrecortado... Profundo... Como se atravessasse num longo eco cada canto desta casa, e até além dela.
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Quando dormiu, havia um calor acolhedor em sua cama, ainda uma vibração quente pelos lençóis, pelo dossel de madeira escura. Ele dormia como em todas as noites, entre o corpo de Mizuki e o de Nakuru, porém, neste momento... Era como estar deitado sobre a neve gelada do inverno.
Ele acorda subitamente e se vê completamente sozinho, longe da casa que conhece, longe do calor da lareira que queima carvão de angelim, e conhece esta sensação. Este frio terrível não lhe é estranho, nem seu coração disparado, nem a náusea e a sonolência, o peso em seus braços, como se arrastasse o mundo... Quase não teria forças de abrir os olhos, se não soubesse que não estaria aqui senão por uma razão muito importante.
A última vez que visitara – se assim poderia dizer – esta casa, fora quando os japoneses lançaram suas bombas contra a costa da China, e os que então ocupavam esta casa esconderam-se nos porões, os sussurros dos fantasmas alí torturados assustando mais àqueles ouvidos sensíveis do que os tremores que se espalhavam, causados pelas bombas. Mas isso fora havia muito tempo. Agora... A casa está toda vazia e quieta, há luz do dia, mas dentro dela é escuro, e vê arder brevemente um resto de jornal torcido, no fundo da antiga lareira. Sente no ar algo familiar e estranho ao mesmo tempo...
Não está sozinho, não sente-se mais o mesmo. Perdem-se as recordações, ele deixa-se invadir pela estranheza, deixa essa antiga consciência tomar conta de cada pensamento seu, e guiá-lo pelos corredores, olhar pelas janelas embaçadas, ver as touceiras de rosas que eram todas amarelas, na primavera, todas secas pelo frio... Corredores, escadas... A presença no ar se torna mais forte e presente, quando pisa no corredor de chão de pedra. Passa pela porta de um dos quartos – as bandas da porta estão lacradas por fora, com tábuas sólidas de cedro, que apenas foram reforçadas com outras, e com mais pregos – que ele nota: nunca fora aberto por nenhum dos que vieram depois dele. O calor que paira no ar não consegue aquecer suas mãos geladas de náusea e da sensação estranha de caminhar neste chão desconhecido e tão familiar. O calor traz algo mais familiar do que todo o resto, uma sensação que reconhece bem, uma raiva, uma tensão, uma desconfiança estranha... Uma presença estranha, na verdade. E os sons, estes não existem aqui, apenas um tenso silêncio. Ele sabe que se tivesse uma real presença física neste lugar, escutaria algo, o ar vibra com as ondas, com o calor... Ele se atreve a olhar por entre aquela porta... Para dentro daquele quarto. E ele vê.
Ele vê aquele cujo nome não sabe dizer, não se lembra ao certo quem é, mas sabe que o desejou, há muito tempo, por muito tempo, e por isso o odiou. Ele está com alguém que não pode ver, porque tudo o que vê é um reflexo num espelho, mãos segurando firmemente a cintura do outro. Não consegue ver quem é, apenas vê as suas mãos, os efeitos de suas investidas violentas, e suas mãos, não pode saber a quem pertencem, pois a única coisa que as identifica ainda sim é absurda, porque sabe, de toda a sua alma, de todas as suas vidas, que aquele homem deveria estar morto, que não deveria estar olhando para suas mãos, e vendo nelas aquelas estrelas. Lembra-se com um engasgo de náusea da noite em que aquele homem foi assassinado. Uma desconfiança que nunca havia brotado em sua mente ganha raízes fortes e sua náusea o faz cambalear, sentir-se impotente e com vontade de gritar. Um gosto amargo sobe por sua garganta e ele afinal entende... que há algo errado. As duas vozes que vivem dentro dele dizem isso, se fazem uma e suas consciências passam a dividir um mesmo ódio, uma mesma insuportável desconfiança.
Atreve mais um passo para dentro do quarto, e então descobre, que na verdade não estava olhando nada daquilo através de seus olhos, e sim, de um grande e distorcido reflexo de cores quentes e ondulantes, no vidro gasto e empoeirado de um espelho.
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Acorda num sobressalto, contendo a náusea com ambas as mãos, saltando da cama e correndo para o banheiro, mas mal se tranca, a náusea é substituída por uma insuportável falta de ar. Havia muito tempo que não ia tão longe, com tanta sensação de realidade. Não faz a mínima idéia do que está havendo, e deseja que o mundo se acabe, quando escuta a voz de Mizuki, do outro lado da porta.
"Você está bem, Eriol? Precisa de alguma coisa?"
"Não preciso de nada."
Engole em seco, acendendo a luz do banheiro e vendo-se no espelho, pálido e com o cabelo pesado de suor.
Não fora apenas um pesadelo. Sabe disso, a sensação de ter pisado sobre o chão empoeirado ainda está nas palmas dos seus pés. Aquelas estrelas estão marcadas em suas retinas, e tudo o que consegue sentir é ódio e confusão.
Deixa passar um longo tempo, escuta as luzes do quarto serem acesas, a voz de Nakuru, dizendo que vai para seu quarto. Mizuki dizendo-se preocupada. Passos perto da porta. O frio do piso de granito incomoda... A raiva contida.
"Nakuru!" – Ele chama, quando abre a porta novamente, mais refeito, porém, ainda pálido. – "Chame Spinel Sun."
"Não sei se ele está no seu quarto."
"Você sempre sabe onde ele está. Chame-o aqui. Preciso fazer uma viagem urgente."
"Viagem?" – Mizuki deixa-se cair sentada na beirada da cama desfeita, vendo Nakuru sair, perdido dentro do roupão, indo para o corredor. – "O que está acontecendo? Para onde você vai?"
"Tenho negócios no oriente."
"..." – Mizuki não sorri, apenas olha para ele, vendo-o ir para o quarto de vestir e revirar as roupas penduradas, separando algumas, realmente poucas. – "Ainda verei você, Eriol?"
"Não se preocupe."
"Não estou preocupada."
Ele volta e joga sobre a cama as cruzetas com as roupas. Não há tempo de chamar os empregados para fazer isso.
"Eu sei que não, Kaho. Você nunca se preocupa com nada, não é?" – Ele diz, entredentes, para quase chegar a se arrepender disso. Mas com certeza Eriol não está no seu melhor humor. É pouco mais de duas da madrugada, e ele perdeu o sono completamente.
Senta-se quase ao lado de Mizuki, na cama, e abre o criado mudo para buscar a lista telefônica. Com dois telefonemas, um táxi está a caminho e duas reservas no vôo das três e meia, para Hong Kong, estão feitas.
"Não quer que eu vá?" – Mizuki tenta descobrir o que está havendo, antes que Eriol vá para o banheiro novamente, desta vez com uma muda de roupas.
"Não. Nakuru ficará com você." – Sua voz é sem inflexão alguma. Procura rapidamente os óculos para deixá-los dentro do estojo. Logo, sua mala já está pronta.
"O que está acontecendo!" – Ela aperta as mãos na beirada do robe. – "Faça-me o favor de me responder!"
"Você mesma acabou de dizer que não estava preocupada."
Quando ela prepara-se para dizer algo, escutam ambos a voz de Spinel Sun, do corredor, sonolenta, perguntando o que Eriol quer falar com ele.
"Vamos viajar."
"Agora? Quem irá com você?"
"Você."
"..." – Escutam Spinel Sun suspirar, de uma maneira cansada. – "Eu não pretendia viajar agora. É de tanta urgência?"
"É."
"Neste caso, Paris pode esperar..."
Escutam-no falar com Nakuru, afastar-se, e Mizuki volta a insistir:
"Aonde você está indo, afinal?"
Eriol sente-se fraquejar um pouco. Não gosta de responder perguntas tão incisivas quanto as dela, nesse momento, e esta não é melhor hora para pensar no que gostaria mesmo de responder. Então, respira fundo e pesa se vale à pena responder a verdade. Não, não vale a pena, mas pode ser divertido plantar esta semente de dúvida no coração de Mizuki.
"Estou voltando para casa."
E apenas deu-lhe as costas e foi apressar-se em tomar um banho, antes que o táxi chegasse.
CONTINUA
