Meu Destino é Pecar Capítulo 18

Hisashi acorda, mas não tem coragem de abrir os olhos. Sente um vago cheiro de poeira no ar, sente que está frio, mas que onde está, não há frio algum, embora não haja cobertas. Sente-se quente e saciado, exausto. Sente um pouco de sede e de tristeza, e nunca saberia dizer o motivo dessa tristeza. Imagina que tenha já amanhecido. Lembra-se com clareza de toda a paixão da tarde e da noite passados, do pesado sono sem sonhos da madrugada... Lembra-se de Saiyame. Pensa nele com amor. Sente o peso de seu corpo sobre o seu, quente e acolhedor, a cabeça sobre seu peito. Sua respiração é forte e ruidosa. Talvez não tenha dormido. Talvez tenha chorado.

Hisashi abre os olhos e vê o forro da cama, no teto das colunas, que um dia foi branco, e agora é amarelo. Não se atreve a fazer qualquer outro movimento, apenas baixa os olhos, para encontrar os olhos da fera. Sim. Os olhos de uma fera.

Há um leão deitado ao seu lado. Ele é maior do que todos os leões que vira nos zoológicos, quando criança. É muito mais bonito, também. Sua cabeça está pousada sobre o estômago de Hisashi, uma pata poderosa está repousada sobre seu peito, e as garras são escuras e longas, afiadas e lustrosas, e os olhos de crepúsculo miram diretamente nos seus. No ar, uma cauda longa e musculosa balança no ar, serpenteando, lenta, pesada, pousa sobre uma de suas pernas, e sente que aquele toque quente é real, verdadeiro, perigoso.

Mas nada disso consegue faze-lo ter medo. Hisashi Wakai não sente nem sequer um laivo do medo que sentia dos leões do zoológico, quando era criança. Não sente nem um mínimo do medo que sempre dispensou a este leão ao seu lado. Ele sustenta, com olhos verdes e úmidos, este olhar, e afaga o leão, arranha sua cabeça, o faz fechar os olhos, como se fosse apenas um gato grande demais. E por sua vez, o próprio Hisashi fecha os olhos e respira fundo. Na sabe se está feliz, ou se confia demais na sorte que tantas vezes vem abandonando-o, desde meses atrás, mas não tem medo. Sente aquela cauda pesada bater de encontro a sua perna, quando ela balança pelo ar, e lentamente, volta a resvalar para o sono.

Quando abre os olhos de novo, tão preguiçosamente quanto antes, volta a olhar, esperando encontrar os olhos do leão. Ele não se engana ao esperar isso, ainda que seja novamente Saiyame, deitado sobre seu corpo, uma perna passando sobre uma das suas, a pele toda nua e muito quente, aquecendo a sua... E seu rosto. É aquele rosto de menino de sempre, manchado de lágrimas, triste e distante.

Hisashi faz menção de que ele chegue mais perto, e consegue deita-lo ao seu lado. Beija sua boca, toca seu cabelo com carinho, passa as mãos por todo o seu corpo pálido, descobrindo que esteve a vida toda esperando por alguém como ele. Abraça-o com toda sua força, e sente seu coração se apertar de medo, e fecha os dentes no ombro de Saiyame, levemente, querendo que ele fique para sempre no lugar onde está. Não importa, ele pensa, que seja um leão. Basta que seja ele. Basta que sussurre como agora, que me ama. Com isso, Hisashi sente que pode perdoar-lhe qualquer crime.

Ele fica muito tempo imóvel, quente, respirando pesadamente, entre seus braços, até se desfazer do abraço e levantar, sem olhar para ele, sem erguer o rosto, buscar suas roupas espalhadas pelo chão. Saiyame veste-se com movimentos automáticos, o cabelo encobrindo o rosto pálido.

Quando Hisashi tenta falar com ele, a única coisa que recebe são suas próprias roupas, empurradas nas suas mãos. Logo em seguida, Saiyame sai do quarto.

Hisashi veste-se e tenta descobrir onde ele está. Vasculha corredores, quase cede à tentação de entrar em vários quartos vazios, desce as escadas e tenta se localizar dentro da casa. Acaba por ver Saiyame parado, olhando para as cinzas da lareira, naquela grande sala de baixo. Ele está com folhas de jornal velho nas mãos, começa a torce-las, arruma tipo um anel com elas, uma guirlanda de jornal velho, e usa um isqueiro que está largado no chão, para acender o fogo. Senta-se no chão e fica tão imóvel quanto o havia encontrado, no dia anterior.

"Fale comigo... Diga alguma coisa."

"É hora de você ir embora. Haverá pessoas aqui, mais tarde e você não gostaria de encontra-las."

Hisashi termina de vestir sua camisa, e fica realmente perplexo ao escutar isso.

"Quem? Você está esperando alguém aqui?"

"Estou."

"Quem?"

"Touya Kinomoto."

"Mas ele veio encontrar-se com o Siaoran! Como você sabia que Li lhe mostraria aquela carta?"

"Não sabia. Apenas tinha um encontro marcado com Touya, há um ano atrás." – Saiyame não se move. – "Eu não sabia que ele iria querer que Li estivesse nesse encontro."

"A irmã de Touya morreu, e você a conheceu. O que você tem a ver com o irmão dela?" – Hisashi não compreende, e se aproxima mais, olhando para o fogo consumir o jornal e os restos de carvão que Saiyame coloca encima das chamas... E ele faz isso com as mãos nuas, o fogo lambe sua pele e simplesmente não o queima. Sente um frio na barriga, ao ver isso. – "Eu acho... Que Touya sabia quem você era."

"Ele sempre soube. Mas nunca se importou ou fez algo para me impedir de ajudar Sakura, porque para ele era muito mais fácil fingir que nada estava acontecendo. Ele apenas se importou quando Yukito esteve envolvido naquilo tudo."

"Você está falando das cartas, não é?"

"Sim. Ele flertava com Yukito. Não chegaram a se tornar amantes." – Saiyame ergue ainda um pouco o rosto, sem tirar os olhos do fogo, e Hisashi olha para suas mãos, quando ele afasta o cabelo de cima dos olhos. Suas unhas continuam estranhas como no dia anterior, parecem grossas e muito duras, e mais longas do que se recordava que fossem. Sua pele ainda tem aquele branco de giz... Hisashi senta-se sobre os calcanhares, ao seu lado, porém, um pouco mais atrás, de modo que não consegue olhar em seu rosto. – "Você quer mesmo falar sobre isso?"

"Quero saber o que está acontecendo com você."

"Você não precisa saber. Não precisa ver nada do que vai acontecer aqui. Esta noite será longa, você não vai gostar do que vai ver..." – Ele estremece, ao sentir a mão de Hisashi em seu braço. – "E eu não gostaria que você me visse... Como eu sou realmente."

"Eu já vi."

"Não. Aquilo não era nada."

"..."

Saiyame então vira-se bruscamente para ele, seu cabelo mais leve do que nunca, flutuando em volta de seu rosto, os olhos muito abertos e sem brilho algum. Seus lábios, ao se moverem deixam entrever dentes brancos e afiados.

"Quer saber?" – Ele avança mais um pouco, fazendo Hisashi tombar para o lado, surpreso e temeroso. – "Eu lhe direi tudo o que quiser saber. Mas vou dizer apenas uma única vez... E você guardará cada palavra com o seu silêncio."

"..."

"Quer saber por que Yukito e Touya não chegaram a ser amantes?"

Ele dá mais um passo, caminhando de quatro, sobre Hisashi, fazendo-o quase se deitar sobre o chão gelado de mármore, realmente assustado com a expressão de Saiyame, seus olhos estranhos, como se feitos de vidro, seus dentes brancos...

"Porque foi na noite em que Yukito ia dormir com Touya, que eu o matei."

Hisashi arregala os olhos mais ainda. Seu coração dispara, e precisa apoiar-se para não cair realmente no chão. Saiyame está sobre ele, quase inteiramente debruçado. Ele, mais do que nunca, consegue se parecer com um animal selvagem.

"Eu o matei. Assim..." – Saiyame leva uma das mãos para o pescoço de Hisashi, que estremece, sentindo aquele toque quente e firme, em volta de seu pescoço, por cima das cicatrizes vermelhas, e a pressão leve dos dedos de Saiyame quase o poderia fazer tremer, de tanto pavor. O rosto dele está diferente, tudo em volta fica mais escuro do que já é. Sua mão treme em volta do pescoço de Hisashi, e ele continua a falar, seus dentes parecendo mais brancos, mais afiados... – "Yukito era Yue e eu o matei. Assim, com as mãos... Eu não queria que ele sentisse dor."

"..." – Hisashi estremece mais, e sua respiração falha, enquanto tudo ao redor parece girar, e cada palavra é como uma punhalada. Ele não consegue se esquecer da voz de Saiyame, contando-lhe, como séculos atrás, ele dizia que Yue era o seu irmãozinho, como cuidava dele, ninava-o, educava-o. Não importa nada disso. Não parece a Hisashi que um dia Saiyame pudesse ter amado o menino que ele descrevia com tanta adoração, agora que sabe que as mesmas mãos que acha tão bonitas, foram capazes de mata-lo.

"Eu não queria... Que ele sentisse dor." – Sua outra mão vai para ficar com a outra, em torno do pescoço de Hisashi, sem apertar. E nem seria preciso. Hisashi poderia morrer apenas de tanto é o medo e o desespero de escutar que Saiyame fosse capaz de matar Yue. – "Assim... Você sente? Eu não queria que demorasse. Mas quando eu o soltei... Hisashi, ele estava tão bonito quanto quando vestia a forma do Juiz... Mas eu o machuquei. Assim..."

E escorrega os dedos pelo pescoço de Hisashi, passando de leve as unhas, pelos lados, e Hisashi, sentindo-se gelado e trêmulo, percebe como este caminho repete exatamente a trilha da sua cicatriz. Sua mão continua descendo pelo peito de Hisashi, e ele cede também, deixa-se deitar sobre ele.

"Não. Não chore por ele. Ele não merece. Ele nunca me agradeceu pelo que fiz. E eu fiz apenas o que ele havia me pedido."

Saiyame deita-se, a cabeça no colo de Hisashi. Hisashi deseja apenas sair de perto dele. Descobre que estava enganado, que não estava preparado para escutar qualquer coisa que Saiyame lhe dissesse. Assim eles permanecem jogados no chão, por muito tempo, em total silêncio.

"Hisashi..." – Ele volta-lhe o rosto transtornado, os olhos secos e muito abertos, de antes. – "Faça amor comigo, Hisashi..."

"Não." – É tudo o que tem coragem de dizer. Não sabe onde está com a cabeça que apenas continua no mesmo lugar, e sussurra. – "Sakura... Ela tentou vingar Yue... Yukito."

"..."

"Sakura... Ela sempre está perto de você."

"Eu sei."

"Você era o servo dela. Ela soube que você matou?..."

"Porque você acha que ela fez aquele ritual? Sakura queria me matar... Ela não deveria envolver-se nisso..." – Saiyame se ergue, esfrega as mãos sobre suas roupas, parece ter nojo de suas mãos. – "Ela nunca faria idéia das coisas que estava enfrentando. Eu não matei Yue... Yukito. Yukito. Eu não o matei por ódio. Eu nunca o odiaria... Eu queria protege-lo. E Sakura era apenas uma menina, como ela poderia entender? Ela jamais compreenderia nada disso... Ela acreditava em tudo o que lhes diziam, ela se deixava usar como um mero peão de um jogo muito perigoso..."

"..."

"E ela morreu sem saber disso. Ela nunca chegou a me ver... Nunca me viu nesta forma..." – Ele se levanta e anda pela sala vazia, mostra-se, afastando um pouco os braços do corpo. Ele não derrama uma única lágrima, ao falar em Sakura. Sua voz tem apenas carinho, e fala dela como se ela fosse surgir pela porta a qualquer momento, em seus patins e suas roupas de colégio. – "Para ela eu sempre tive de ser uma criança, ou ela jamais confiaria em mim, mas... Mas, Hisashi, eu não sou uma criança. Ela jamais escutaria nada do que eu poderia dizer sobre as Cartas, sobre Clow... e nem sobre nós, eu e Yue. E então... Bastou que eu me afastasse... Eu não suportaria vê-la chorar por Yukito."

"Você... Li me contou que você havia desaparecido na noite em que Yukito foi morto..."

"Eu não desapareci." – Ele ri, amargamente, cruza os braços junto de si como se estivesse com muito frio. – "Eu sempre estive por perto. Eu dormi por muito tempo no mesmo templo em que Sakura ia rezar por Yukito. Eu sempre despertava, quando ela estava lá. Escutava cada palavra. E nenhuma das suas palavras falava de vingança, mas como eu iria dizer a ela? Eu teria de lhe contar toda a verdade sobre... Sobre Clow... Sobre..." – Ele continua sorrindo, e agora treme. Anda devagar de um lado ao outro, tenso, como se enjaulado. – "... Eu às vezes vestia esta forma, assim, assim como você me vê, e eu a seguia na rua, eu às vezes a via crescer, ficar mais bonita do que nunca... Uma vez, eu esperei que ela estivesse sozinha, e me aproximei, ali, na frente da casa do senhor Kinomoto, e esbarrei de propósito no ombro de Sakura, apenas para saber de que altura que ela estava..."

"..."

"Eu nunca deveria ter saído do lado de Sakura. Bastou que eu não estivesse por perto... E aquela serpente se aproximou. Eu não sei, ninguém sabe o que ele dizia a ela. Mas seja o que for... Foi quando ela fez aquilo. Aquele ritual. Aquele círculo de proteção, que era muito mais forte do que o que usamos naquele sótão... E... Ela era tão inocente, embora estivesse fazendo aquilo, que bastou que ela me visse, e ela veio... Sakura veio correndo de braços abertos para me receber."

Silêncio. Por muito tempo.

Hisashi não pisca, sequer. Está ouvindo o que nenhuma outra pessoa jamais ouviu, e ele sabe que jamais poderá repetir palavra alguma sem parecer louco.

"Ela saiu do círculo."

"..."

"Eu senti uma maldade muito antiga respirar através de Sakura... Eu não vi a menina de antes, eu vi uma pessoa estranha. Não. Não era estranha. Eu senti nela algo insuportável até para mim... Então, quando ela estava a um passo de me tocar... Antes que ela me tocasse..."

"..."

"Eu a matei."

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Hisashi sente seu estômago contrair-se, e seu coração apertar-se.

"Você o quê?"

"Eu a matei." – Saiyame diz, com a simplicidade que sempre teve para dizer qualquer coisa.

"..."

"Eu a matei com todo o ódio do meu coração..." – Ele sussurra. – "Com as minhas mãos. Eu a matei como sempre desejei matar Clow, porque eu o vi nela, quando ela veio na minha direção... Não importava o quanto era lindo o seu sorriso..." – Saiyame não olha para ele, olha apenas para suas próprias mãos. Seus olhos estão perdidos e muito mais claros. Ele arqueja, respira muito fundo e como se não conseguisse manter-se de pé com firmeza. – "Ela ainda não havia pensado que eu pudesse ter matado Yukito... Mas que diferença faria? Tudo o que ela desejava então era me matar. Ela havia se tornado, e ela nunca soube... Idêntica a Clow."

"... Você?... Como você pôde?"

Hisashi endireita-se no chão, tenta encontrar forças de se levantar e não consegue deixar de pensar no retrato da líder de torcida, naquela menina de olhar doce... Por tudo de mais sagrado, se é que algo de sagrado poderia fazer diferença naquela maldita casa, era apenas uma menina!

"Como você pôde!" – Hisashi descobre-se a gritar com ele, sentindo-se sujo de tê-lo tocado um dia.

Saiyame olha para ele, com olhos transparentes e límpidos. Pisca algumas vezes e não responde. Nem mesmo ele sabe como foi capaz de fazer aquilo àquelas duas pessoas que não mereciam tais mortes. Mas no seu entender, apenas Sakura merecia ser pranteada.

"Ela veio de braços abertos, assim..." – E ele abre os seus, como se fosse abraçar alguém. Ele quase chega a sorrir, quando se lembra do sorriso dela. – "... Assim, feito um anjo... Quando ela estava a um passo de mim, eu saltei sobre ela."

"... Assassino."

"Eu nunca escondi isso de você. Você mesmo já viu o tanto de sangue que há nas minhas mãos."

"... Assassino!"

"Quando eu saltei sobre Sakura, ela não teve tempo de gritar. Ela jamais teria força de me empurrar, mas ela se debatia, era pequena demais, e... Eu fui um leão para ela, naquela hora. Apenas para ela. Não, estou enganado. Eu também fui um leão para Tomoyo, porque ela atirou-se entre nós, fez de tudo para defender Sakura..." – Hisashi escuta sua calma ao dizer todas estas coisas, e sente algo entalar em sua garganta. Sente raiva, sente nojo, sente tudo o que nunca esperou sentir por ele, depois de tudo, depois de tanto. – "Ela ergueu os braços para tentar se defender também, e Li... Ele não pôde fazer nada, mesmo que houvesse tentado não teria conseguido fazer nada. Ele apenas continuou vivo porque permaneceu dentro do círculo de proteção, foi ele quem arrastou Tomoyo para dentro dele, quando matei Sakura. Eu a matei na frente de Li e de Tomoyo..."

"... Meu Deus... Era só uma menina... Como você pôde? Você não se arrepende do que fez?"

"..."

Saiyame apenas suspira e lhe dá as costas. Vai por uma das portas, até uma grande sala com um piano de cauda coberto por um lençol em um dos cantos. Hisashi sabe agora, mais do que nunca do risco que correu, do risco que ainda está correndo...

"Pelo Amor de Deus, diga que você se arrepende de ter feito isso com eles!"

"..."

"Saiyame! Por favor, me diga que você chorou por eles! Ao menos isso... Diga-me se você chorou por eles..."

Saiyame continua, até ficar parado no meio da sala, e senta-se no chão, e fica olhando para as janelas fechadas, as cortinas grossas e cerradas. Nesta sala tudo está mais escuro ainda do que nas outras.

"Eu chorei. Você nunca saberia como eu chorei por eles, ainda que nenhum deles tenha em momento algum derramado uma única lágrima por mim. Se quer saber se me arrependo... Eu me arrependo. Mas não o bastante para não poder fazer tudo de novo."

"Você matou o seu irmão..."

"Um dia, muito antes de ter Yue como irmão, eu vi meus outros irmãos morrerem de fome. Ninguém lamentou por eles, e muito menos alguém se importou quando os curandeiros do porto foram arrancar os olhos deles, quando os corpos estavam nas sarjetas, para fazer infusões de olhos azuis."

"Era seu irmão..."

"Eu o matei. Eu chorei por ele, mas eu teria feito tudo de novo. Agora é muito tarde para qualquer coisa. Você não entenderia, ou enlouqueceria se tentasse entender..."

"E Sakura? Como você teve coragem de fazer isso com aquela menina?"

"Você a viu. Ela era linda, não é?"

"..."

"... Ela seria mais bonita do que sua mãe. Ela tinha em um dos seus armários um vestido branco, eu a vi escolher aquele vestido, numa loja. Ela o experimentava sempre, mas nunca chegou a usa-lo. Era para a festa de quinze anos."

"Eu não entendo, Saiyame... Como você pôde?..."

"Eu já lhe disse meus motivos." – Hisashi se aproxima dele, a indignação fazendo o medo ceder, e ele fica de pé, bem à frente de Saiyame, olhando para seu rosto indiferente. – "Apenas você sabe, agora, o que houve realmente. O motivo de ter feito aquilo com ela. Eu não vi Sakura, a minha Sakura... Eu vi qualquer outra pessoa... Eu sei quem eu vi. Apenas aquela pessoa poderia ter lhe ensinado a fazer aquele círculo, a dizer aquelas palavras..."

"Eu não acredito que você não consiga se arrepender por ter acabado com a vida daquelas pessoas..." – Hisashi abaixa-se até poder olha-lo nos olhos, até ver que eles são opacos e perdidos... Cada vez mais distantes de parecerem humanos, e seu rosto também é estranho, sua expressão é totalmente inumana. – "Você a matou, mas você fez muito pior com os que permaneceram vivos...!"

Hisashi coloca-se nos joelhos, e fica olhando para Saiyame por um tempo interminável.

"Saiyame..."

"..."

"Cerberus." - Hisashi se recorda, por um momento, qual é o nome da criatura sentada à sua frente.

"Cerberus está morto."

"Era só uma menina. Você é um monstro."

"Eu sou. Eu chorei por ela. Mais do que gostaria."

Hisashi segura-o com força pelos ombros, faz com que erga os olhos e então, sem querer sua voz se eleva, sua ira também.

"Eu tenho nojo de você! Nada do que você pode ter feito torna as coisas melhores! Não adiantou nada você se meter na vida de todas aquelas pessoas, no Japão! Você destruiu a vida de todos eles!" – Hisashi sente tanta raiva que o derruba no chão. Está furioso consigo mesmo, apavorado e furioso. Ele agarra Saiyame pelos colarinhos e bate com suas costas várias vezes sobre o chão de mármore. Saiyame parece apenas alheio a isso. – "Você destruiu a minha vida! Você arrasta todos consigo para este inferno em que vive! Você destruiu a vida de todos eles...! Você não lamenta por isso?"

Saiyame apenas olha para ele, a respiração um pouco, somente um pouco agitada. Hisashi sente nojo de cada vez que ousou toca-lo, das vezes que o beijou e das noites que passou ao seu lado. Sente raiva de cada palavra que lhe dispensou. Simplesmente não consegue entender. Não quer entender. Para ele, cada assassinato foi apenas um reflexo cego de maldade, e é assim, como pura maldade, que ele percebe a criatura deitada no chão, debaixo dele.

Ergue-se, sentindo que seus olhos estão rasos, pensando em todas as pessoas em cujas vidas viu Saiyame envolver-se, das mais diversas formas. Solta devagar as roupas de Saiyame, ergue suas mãos, afastando-as dele. Ergue-se nos joelhos e sua mão fechada fecha-se também. Ela se ergue. Saiyame apenas fecha os olhos, e sem deixar escapar nenhum som, recebe o soco, em cheio no seu rosto, estourando seus lábios, com tanta força que faz sua cabeça rolar para o lado.

"Você não lamenta por nenhum deles...!" – Hisashi diz, afastando-se, nauseado, irado. – "Você destruiu a vida de todos eles...!"

Saiyame então rola para o lado, aparando o sangue em seus lábios. Essa dor não é de todo estranha. Faz lembrar os tapas do Mestre, que por sua vez já eram idênticos às pancadas e safanões dos missionários e das pessoas na rua. Hisashi está quase saindo da sala, pronto a ir embora, e não espera escutar mais nada dele, mas quebrando essa expectativa e o silêncio, Saiyame diz, talvez mais consigo do que para qualquer outra pessoa.

"Eu nunca quis que ninguém me entendesse ou perdoasse... Não é apenas você quem diz que eu destruí a vida deles... Mas ninguém nunca se arrependeu por ter destruído a minha vida, quando eu tinha uma. Ninguém nunca lamentou por mim."

Hisashi olha para trás, a despeito de toda sua raiva, não consegue deixar de ter curiosidade. Vê que Saiyame está novamente sentado, e que apesar de estar com o rosto sujo, ele não está inchado, e é como se nunca houvesse tocado-o. E suas costas... Em suas costas, atravessando o tecido de sua camisa, e no chão, há uma grande mancha de sangue. Ele parece indiferente a isso, como se não houvesse dor alguma. Não olha para Hisashi, e nem espera que ele tenha escutado ou se importado com o que disse. Saiyame tira com movimentos simples e indiferentes a camisa suja de sangue, deixa-a embolada ao seu lado, no chão.

Hisashi hesita, seu coração disparando, vendo que aquele sangue todo nas costas de Saiyame nada mais é do que as cicatrizes que haviam nelas, finalmente abertas, como se fosse um golpe recente.

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Hisashi está apavorado, cheio de raiva e de ressentimento. É como se o coração arrancado não fosse o de Sakura, e sim o seu. Ele fica não sabe quantas horas, ou talvez tenham sido apenas momentos, pensando em todas as coisas que podia ter dito, poderia ter feito, poderia ter evitado. Ele pensa que jamais deveria ter chutado aquela porta, que deveria ter confiado em seus instintos, e que realmente jamais deveria ter se aproximado de Saiyame. Ele não consegue enxergar mais do que um assassino à sua frente. Um frio assassino, que matou o próprio irmão e aquela menina da fotografia. Ele é louco, Hisashi pensa, e é um monstro...

Anda pela casa, até chegar no são principal, fica olhando ao redor tentando achar um motivo para as pessoas fazerem coisas assim. Descobre que não entende nada do que houve. Hisashi já trabalhou com loucos e assassinos, mas nunca conheceu nenhum como Saiyame. Às vezes, ele se lembra, os pacientes o atacavam, mas nenhum nunca lhe causou um medo como este, que o impede até de correr porta afora, como se espiasse cada passo seu, até o movimento de sua respiração. Por vezes, no seu desespero, sente-se completamente sozinho nessa casa abandonada. Outras vezes, como agora, sente alguém às suas costas. Tem vontade de gritar de raiva, as piores coisas e ofensas que é capaz e dizer, mas um calafrio o faz calar. Não sabe que sensação é essa. A casa está escura, já está anoitecendo, mas nesta sala, um resto de luz do dia basta para iluminar o chão de mármore branco. Nele, há uma estranha mancha marrom infiltrada nos veios do chão.

Hisashi atreve-se a olhar quando um movimento se faz em um dos cantos, onde pode ver a curva da escada, que passa por fora deste ambiente, elevar-se. Há uma porta fechada, que ele julga ser apenas uma adega. Um arrepio o faz tremer, e comprovar com seus próprios olhos os detalhes do que Saiyame lhe contava. Ele vai até a porta e abre. Escuro. Afasta-se um pouco e a luz refletida do chão mostra garrafas de vinho e champanhe, empilhadas, no fundo da saleta esquecida. Realmente, apenas uma adega. Ele dá um passo para dentro e escuta algo tilintar. Vai recuar, mas seu sapato esbarra em algo no chão que faz um ruído metálico, e Hisashi olha. Uma argola num alçapão de madeira, no canto, quase debaixo de um dos armários de bebida. Há um cadeado antigo e pesado fechando esse alçapão. Enroscado no aro e no cadeado, um rosário.

Era verdade.

O cadeado está enferrujado. Com alguns chutes será fácil fazer ele se soltar. A tampa é pesada, mas Hisashi sente-se tão curioso e desesperado que não mede esforço algum para saber mais, cada vez mais... Afundar-se nessa verdade. Chuta a primeira vez o cadeado. Chuta mais uma vez, tentando separar o arco da caixa.

"Eu não faria isso."

Estremece, cortado de calafrios. Olha para o lado de onde escuta essa voz estranha, e percebe que há cheiro de tabaco fino no ar. Arregala os olhos e vê com clareza um homem vestido de preto, parado quase no meio do salão, fumando sem pressa e sem parecer surpreso de vê-lo aqui. Hisashi engole em seco, olhando para o cadeado quase solto, no chão. Ele nunca pediu conselhos de ninguém, e nunca aceitou conselhos de pessoa alguma, mas de repente sente que o certo seja realmente não dar o último chute. Sai da adega e encosta a porta, bem devagar detrás de si. Aquele rosário não deve estar ali à toa.

"Quem é você?"

O estranho demora a responder. Continua soltando grandes baforadas de fumo. Hisashi olha para ele tentando procurar alguma semelhança com alguém, mas seu rosto está baixo e ele parece pensativo.

"Você realmente não gostaria de saber o que tem, ou o que pode ter, lá embaixo..." – Ele continua, quando seu cigarro acaba. – "Eu é quem deveria perguntar quem é você. Eu sou Touya Kinomoto."

Ele então olha para Hisashi. Sim, não há dúvida alguma. É o mesmo daquela fotografia do quarto de Tomoyo, no entanto mais velho.

Touya pergunta seu nome, um resto de fumaça escapando de seus lábios. Hisashi ainda acha que o conhece de algum lugar, além daquela fotografia. Lembra-se do encontro marcado através daquela carta, com Li, e se lembra mais ainda de Saiyame lhe contando como matou a irmã de Touya. Sente que sua voz desaparece...

"Hisashi Wakai."

"..." – Touya aproxima-se e estende-lhe a mão. Cumprimenta-o com firmeza, olhando atentamente para seus olhos e para suas olheiras, e ele já viveu e já viu coisas suficientes para dizer que esse rapaz à sua frente esteve a um passo de enlouquecer, há poucos momentos. – "Você não parece muito japonês."

"Não sou."

"Ótimo. Agora diga-me o que está fazendo aqui. Você não deveria estar neste lugar. Está sozinho aqui?"

"Não." – Tem certeza de nunca ter visto alguém tão sério quanto Touya Kinomoto.

"..." – Touya procura outro cigarro em seus bolsos e acende-o. Olha de soslaio para Hisashi, tentando imaginar o que faz aqui, ou quem é. – "Como ele se chama, agora?"

Hisashi sente seu coração disparar de novo, e Touya nota que ele empalidece subitamente. Um silêncio entre eles se resguarda, durante longos minutos.

"Nós sabemos de quem eu estou falando, não sabemos?"

Hisashi sente-se gelado, e poderia desmaiar, se fosse dado a desmaios. Sua curiosidade fala alto demais, ele precisa morder a língua para não trair seu silêncio. Touya não parece "sedento de vingança", e age com naturalidade, tranqüilidade. É claro que Hisashi sabe de quem ele está falando. De quem mais poderia ser?...

"Touya!" – Uma voz adolescente o assusta e o enche de alívio ao mesmo tempo. Touya olha para o lado da porta larga do salão. Hisashi não olha, ele está passando a mão úmida na testa, tentando descobrir como sumir do mapa, para não ter de dizer o quanto está enterrado em toda esta lama. E pensar que vejo quase que em toda parte a assombração da irmã desse homem, ele pensa, rindo nervosamente, tentando manter a frieza, tentando pensar se Touya já não sabe que aquela... Pessoa... Está nesta casa.

Alguém mais se aproxima. É um garoto. Apenas um adolescente. Não deve ter mais do que quatorze anos. Ele se chega junto a Touya e recebe um afago sobre a cabeça, um carinho em seu cabelo louro, claríssimo, somente um pouco encaracolado. Ele tem olhos azuis. Hisashi, mesmo no seu nervosismo e tensão, não evita de olhar para ele, e engole em seco, e sente tudo à sua volta escurecer, quando seus olhos se encontram, e nota o quanto esse menino estranho se parece com a imagem pálida de Yue naquela tela de televisão. O mesmo rosto, a mesma sensação de irrealidade de estar vendo aquele fantasma... Apenas mais jovem, apenas louro, mas o frio desses olhos não o engana. Hisashi sente como se estivesse ao lado de uma geleira, de tão intenso o frio. Talvez seja apenas uma impressão, ou sua imaginação, mas ele se questiona se não seria aquele o próprio Yue de quem Saiyame lhe falou. E se for, como ele poderia estar aqui, se disse que o matou? Sua presença é tão clara, tão branca, fria... É um menino alto, vestido de branco e de azul, sua camisa e suas calças, e seu casaco marrom claro... Nada disso ajuda a disfarçar a sensação de pouca humanidade e frio que ele emana.

Tão diferente de Saiyame...

"Ainda não me respondeu, senhor Wakai. Sabe de quem eu estou falando, não é?"

"Sei... Acho que sei." – Tenta consertar a tempo. – "Ele..."

"Não tente mentir. Eu sei que ele está aqui. Nós temos um encontro marcado."

"..."

"Frost, espere lá fora. Já vou conversar com você."

O menino não poderia ter nome mais apropriado, pensa. Hisashi estremece quando se vê sozinho mais uma vez com Touya, nessa sala escura. É como se toda a verdade, cada detalhe de sua vida passasse como um letreiro por sua testa.

"Eu sei que ele está aqui. Sinto a presença dele. Ele andou pela casa inteira, não? E você? Está longe de casa, não é?"

"Sim, estou. Bem longe."

"Você está com ele?"

"... "

"Você é amante dele?"

"..."

"Não adianta tentar me enganar, Wakai. Eu sei quem ele é, sei do que é capaz. Ele lhe disse qual era seu verdadeiro nome?..." – Touya dá um pequeno sorriso, espalhando a fumaça com um gesto. – "Você também deve saber das coisas que ele fez. Ele tem muita coragem, mas juízo não é a sua maior virtude."

"A sua irmã..."

"Eu sei. Não queria ter de falar sobre isso agora."

"Yue... aquele rapaz... Yukito... Ele também..."

"Não se preocupe com Yue. Você não viu? Ele veio comigo."

Hisashi não sabe se sente alívio ou pânico.

"..."

O ar começa a lhe faltar. Gostaria de ter mesmo fugido desse lugar quando seus instintos lhe disseram isso. Touya continua andando pelo salão, olhando tudo ao redor. Está muito escuro, e ele mesmo se misturar com as sombras mais densas.

"Poderia fazer algo para clarear isto aqui? Nem todos conseguem enxergar tão bem quanto você." – Ele diz, casualmente. Hisashi percebe que não está falando com ele, e sente que não estão sozinhos nesta salão, até escutar um baque surdo no chão. As velas do candelabro do teto se acendem. As dos suportes das paredes, embora há anos apagadas, também se iluminam, a princípio com chamas altas, e depois elas diminuem até ficarem estáveis.

"Obrigado. Eu estava por tropeçar em Wakai."

Hisashi estreita os olhos, vendo com clareza que Touya se parece muito com Fujitaka Kinomoto, no entanto, moreno, e seu cabelo é tão negro que quase não reflete luz alguma, e é bem mais alto do que imaginou, a princípio, quase um palmo mais alto que ele próprio. Todo o salão fica mergulhado numa luz quente e amarelada, facetada pelas peças de cristal do lustre. Parecem estar em uma época que há muito se acabou.

"Como você se chama agora? Wakai não soube me responder."

"Saiyame." – Hisashi treme ao escutar esta voz rouca e tão conhecida, adulta. Ele olha ao redor e encontra Saiyame parado, mais perto do que poderia imaginar. Há quanto tempo estaria ali? Não notou quando ele entrou. Está mais parecido ainda com aquele retrato inacabado da biblioteca. Está sem camisa, e suas costas continuam ensopadas de sangue, e o modo como se move... Lento, ondulante, silencioso como um leão cercando caças. Touya nem de longe parece se incomodar com estes modos pouco humanos de Saiyame. – "Era meu nome, antes de ter sido batizado por Clow."

"É dialeto?"

"Sim. Quer dizer 'estrangeiro'."

"Você sempre será um estrangeiro em qualquer lugar onde estiver... Viu Frost?"

"Não, mas eu o senti. Ele está diferente."

"Você também."– Touya aproxima-se, sem demonstrar qualquer tipo de emoção, apenas uma estranha cordialidade, uma calma... Hisashi sente-se um idiota, pois sabe que está à beira de um ataque de nervos, sem entender como Touya consegue agir dessa forma com o assassino de sua irmã. Ele age com naturalidade vendo todo aquele sangue descer pelas costas de Saiyame, manchando as calças de sarja marrom, vendo que ele está irreconhecível e descalço, levemente trêmulo e com o rosto ainda manchado do golpe de Hisashi. – "Você está bem diferente do que me recordo."

"Eu cresci..."

"..." – Touya parece olhar com atenção para ele, e o faz em silêncio, por um longo tempo. – "Sim, é verdade. Você cresceu."

"..."

"Creio que duas ou três polegadas de altura..." – Touya sacode a cabeça, pensativo. Hisashi sabe que não é apenas disso que estão falando. Sabe que há algo entre eles que não pode entender.

Hisashi tem a impressão de escutar uma porta ranger.

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"O que está acontecendo aqui?" – Hisashi escuta a voz de Siaoran Li.

"Ele chegou cedo..."

Li aparece à porta do salão, tenso, olhando atentamente tudo ao redor. Tem uma aparência grave e preocupada. Arregala ligeiramente os olhos quando vê Saiyame sujo de sangue e mais ainda quando vê que Hisashi também está nesta casa. Touya apenas solta mais uma baforada de seu cigarro e simplesmente não se dá ao trabalho de responder.

Frost volta para o salão, e passa ao lado de Li, que de repente fica terrivelmente pálido e trai um tremor na sua voz:

"Touya... O que está acontecendo? Saiyame, achei que... O que você está fazendo nesse lugar? As suas costas..."

Frost olha para ele por um certo tempo, enquanto fica subitamente parado no mesmo lugar. Para Hisashi, isso é um autêntico circo de horrores. Nunca sequer havia imaginado que pudesse haver mais alguém como Saiyame no mundo, e agora sabe que Frost não é diferente, em sua natureza. Li está tão perturbado com a presença de Frost que não consegue tirar os olhos dele.

"Y..." – Ele tenta falar, mas engasga. Touya apenas traz Frost para perto de si e passa um braço em torno de seus ombros estreito. – "Que diabos, Touya... Diga alguma coisa."

"Dizer o quê? Você já deve imaginar o que está havendo aqui. Conhece Wakai?"

Touya diz isso como se ele e Hisashi fossem velhos conhecidos, porém, há ironia em seu tom. Ele sabe o quanto Li está abalado pelo que está vendo, e até pelo que apenas sente. Mais do que nunca Li percebe a verdade sobre a natureza de Saiyame aflorar, como um calor de incêndio.

"Infelizmente." – Li engole em seco e respira fundo, tentando desviar os olhos de cima de Frost.

Silêncio.

"Trouxe suas cartas?"

"Trouxe" – Li responde, agora olhando com atenção e raiva para Hisashi.

"Sabe o que teremos de fazer?" – Touya vai até uma das pesadas cadeiras dispostas junto à parede e senta-se, muito mais à vontade do que qualquer um de todos eles. Saiyame, silencioso, caminha sem fazer um único ruído, e se ajoelha no chão, quase ao lado da cadeira de Touya, e fica ali, sentado sobre os calcanhares, imóvel. – "Eu também precisei ir a busca destas cartas. Eriol fez o mesmo, ainda que não tenha me dito, é fácil ter notícias assim..." – Touya fica um longo tempo olhando para Saiyame, que parece uma estátua, parado, quase sem respirar. – "Não precisa agir desse modo. Eu não sou Clow e você com certeza não é o mesmo que foi um dia."

Ele apenas move o rosto na sua direção e então se levanta, fica em pé, no mesmo lugar onde estava sentado, há pouco. Li está quase tão chocado com o que está vendo quanto Hisashi. Mas a diferença, é que Li já deveria estar acostumado a coisas assim, no entanto, ver Saiyame se comportar de uma maneira tão pouco humana é a pior forma de concretizar as suspeitas que chegou mesmo a comentar com Hisashi, um dia. É afinal, tudo muito pior do que a mais terrível de suas suspeitas.

"Eriol virá?" – Li não sabe porque pergunta isso. Os olhos escuros de Touya parecem brilhar, na penumbra amarela do salão. Frost está a seu lado, porém também está em pé. Curiosamente, ele mantém uma postura parecida com a de Saiyame. – "Quem é o menino que está com você?"

"Diga-me você. Não sei se Eriol virá. Ele nunca pareceu o tipo mais afeito a encerrar as cartas novamente num livro. Mas eu soube que ele esteve este último ano inteiro refazendo o que sobrou do livro de Sakura."

"..." – Hisashi aproxima-se de Li e toca-lhe o braço, tentando falar-lhe. Li olha para ele com desafio, diretamente nos olhos, e Hisashi então se sente atravessado por este olhar. – "Você já o viu uma vez, Hisashi. Reconhece-o?"

"..." – Faz que sim brevemente com a cabeça.

"E você, Saiyame?" – Li pergunta, aproximando-se. Hisashi começa a notar, curiosamente apenas agora, que Saiyame não apenas parece diferente, e sim, parece mais alto, também, ou pode ser apenas um reflexo da discreta arrogância de sua postura. . – "Quem é você? Diga-me quem é você, agora que não sei como, já posso dizer quem é o menino que veio com Touya."

"Eu fui aquele que matou a sua Sakura. Estranho você nunca ter me reconhecido. Você olhou nos meus olhos quando eu arranquei o coração dela. Você sempre olhava nos meus olhos, quando falava comigo."

No mesmo instante, como se tão somente esperasse algo que acendesse essa certeza, Li então ergue seu braço, tendo na mão um papel de encantamento. Ele não chega a dizer nada, com um único olhar de Saiyame, as chamas que surgiam daquela pequena faixa de papel de arroz se consomem no mesmo lugar. O que cai no chão então, são apenas cinzas.

"Meu Deus... Você esteve lá... O tempo todo." – Li vê as cinzas do papel se dissolverem entre seus dedos, ele sente seu encantamento se dissolver entre eles. Está tão assustado com o que acaba de descobrir que se arrepende com sinceridade de ter feito aquela pergunta. –"Não. Isso deve ser mentira... Veja só! Touya!" – Ele aponta para Saiyame, olhando com firmeza para Touya. – "Olhe para ele! Ele não é Cerberus! Cerberus era um leão! Ele jamais... Meu Deus... Não...!"

Li não consegue terminar de falar. Sua voz se acaba num soluço. Ele caminha pelo salão, com a cabeça entre as mãos. Hisashi nunca achou que Li pudesse parecer-lhe tão frágil, de repente. Ele conhece bem o desespero que toma conta de Li, o medo, toda a indignação. Mas sabe também que sua dor é pequena perto da dele. Li viu Sakura ser assassinada, ele nunca esqueceu-se do que viu.

"Não... Eu achei que estivesse morto. Como se atreve a voltar para nossas vidas? Você é um fantasma..."

"Eu não quero o perdão de ninguém."

"Você matou Sakura! Por que nunca teve coragem de apresentar-se assim, como está agora? Você enganou a todos nós...!" – Ele diz, voltando-se bruscamente, os olhos vermelhos.

"Eu não sei mentir."

"Assassino."

"Eu nunca disse que não era. Eu matei em nome de Clow, e muito mais vezes do que você poderia imaginar. Eu teria matado em nome de Sakura, se ela não houvesse tentado fazer isso comigo antes."

"Porque? Porque você fez aquilo com Sakura? Eu deveria... Desgraçado...!" – Por um momento, Li quase avança sobre ele. Mas apenas baixa a cabeça, cerrando os punhos com força.

"Você nunca se atreveu a ler as cartas de Sakura?" – Saiyame diz, na sua voz rouca, de repente, quase casualmente. Seu tom não tem emoção alguma.

"Cartas? Do que está falando?"

"As cartas de correspondência que ela trocou com Eriol Hiragizawa, entre a época em que estive longe dela." – Saiyame desvia os olhos dos dele, baixando-os. Não é um gesto de submissão, é um gesto de indiferença. Hisashi não reconhece este olhar, aliás, não consegue reconhece-lo de modo algum, como se este jamais pudesse ter sido o Saiyame que ele conheceu.

Touya levanta os olhos para ele, esquece de bater a cinza de seu cigarro. Algo em suas palavras faz mais sentido do que Hisashi imagina, e Touya sabe disso melhor do que todos os outros.

"Você nunca sentiu curiosidade sobre aquelas cartas, Siaoran Li? Você foi leal a Sakura mesmo depois que ela morreu. Você apenas pegou todas aquelas cartas e enviou-as de volta a Eriol."

"De que diabos você está falando, Cerberus?... Está tentando tirar a sua culpa!" – A voz de Li fica mais alta, ele não tem medo algum, e aproxima-se, os olhos faiscando perigosamente.

"Cerberus está morto."

Li alterna seu olhar entre Saiyame e Touya, que parece muito interessado na conversa para dizer qualquer coisa. O menino ao seu lado apenas olha, ligeiramente assustadiço, mas a frieza do seu rosto e dos seus gestos mais simples intimida-o a ponto de não se atrever a dirigir qualquer palavra a ele. Sim, Li é capaz de reconhece-lo, e não sabe se deve sentir-se feliz em ver novamente esta pessoa, mas sabe que Sakura provavelmente sentiria-se muito feliz com isso.

"Touya... Você sabia disso? Você sabia que Cerberus matou a sua irmã? Ele também matou..."

"Faz diferença o que eu sei?" – Touya se levanta, e traz Li pelo braço, afastando-o dos outros. –"O que faz diferença é que sempre soubemos muito pouco sobre tudo isso. E pare de agir como se fosse o único que sofre por Sakura! Não se esqueça de que ela sempre foi muito mais para mim do que nunca teria sido para você! A dívida dele para comigo é muito maior do que para com você." – Touya aponta para Saiyame, que continua imóvel no mesmo lugar, indiferente aos gritos que são dirigidos contra ele, as ofensas e o olhar curioso e ocasional de Frost.

Touya arrasta Li para fora do salão e então, os três ficam sozinhos: Frost, Saiyame e Hisashi.

"..."

Hisashi tem muitas coisas a perguntar, este tremendo muito. Está completamente perdido no meio de tantas acusações. Seja o que estiver havendo, é algo importante, que pode mudar a vida de todos eles, e Hisashi não sabe se quer fazer parte disso. Escuta brevemente a discussão de Touya e Li, e pensa que pode ser essa sua ultima chance de saber o que está havendo. Talvez sua última chance de perdoar Saiyame por qualquer coisa que ele tenha feito, mas ainda assim é difícil acreditar que aquela menina de olhar doce da fotografia – Sakura – fosse capaz de desejar matar alguém. Também é difícil imaginar que Saiyame tenha matado tantas pessoas quanto ele mesmo diz.

"Você é Yue?" – Ele pergunta a Frost. Ele imediatamente volta seus olhos grandes, frios e azuis na sua direção. Toda sua presença inspira um grande frio em Hisashi, mas não medo. Apenas um frio incômodo, por que há algo nele, não saberia dizer o quê, que muito faz recordar Saiyame. E quase um ao lado do outro, de pé, no salão, apesar disso, nunca eles poderiam ser mais diferentes. Saiyame mais do que nunca parece exalar calor e força.

"Sim. Eu sou Yue." – De repente nota que a voz de Frost é um pouco estranha, como se duas pessoas falassem exatamente ao mesmo tempo, através dela. Ele tem um olhar calmo, azul e penetrante. Está com o rosto um pouco erguido para encarar Hisashi, mas isso não diminui sua altivez. Frost parece, assim como Saiyame sempre lhe pareceu, tremendamente mais velho do que aparenta.

"Por isso..." – Hisashi estremece, um pouco mais calmo, e também mais confuso ainda...Como é possível que Saiyame tenha lhe dito que havia assassinado Yue, se Yue está aqui, bem na sua frente, tão belo e impressionante quanto naquela fita de vídeo? Lembra-se da voz de Li, tempos atrás, dizendo como os servos de Clow eram capazes de atravessar o tempo, e pensar nisso o faz um pouco mais tranqüilo. Somente um pouco. – "Por isso você..."

Hisashi quase toca em Saiyame, mas sua mão para no meio do caminho, e ele estreita os olhos, sentindo-se muito perdido e vazio, notando que Saiyame realmente está irreconhecível, e pior, que seu olhar é distante, longe do seu. A despeito da presença de Frost, Hisashi atreve-se – ele não entende, por isso não saberia o que pode ou não fazer então – a tocar em Saiyame. É quente... Sente o calor emanar de longe, e toca com a ponta dos dedos uma mecha de cabelo louro, escuro e manchado de sangue.

"Por que ele está assim?"

"Eu não sei." – Frost acaba por responder a pergunta que Hisashi faz para si mesmo. – "Você e nem mesmo ele pode reconhecê-lo. Eu não o reconheço."

"Por que?..." – Hisashi sente raiva desse olhar perdido e opaco.

"Ele voltará a ser quem sempre foi." – Frost lhe diz, com um suspiro que o faz voltar a parecer tão humano quanto no primeiro momento que Hisashi o viu. – "Nem eu o reconheço agora."

Hisashi solta o cabelo de Saiyame, e afasta-se dele, olhando bem para ele, tentando entender o que se passa detrás de seus olhos. Frost tem uma expressão estranha, quase de lamento, mas é difícil saber ao certo.

Ele se afasta mais.

Não agüenta ver Saiyame desse jeito. É terrível, é insuportável e aterrador. Decide que não quer ver mais nada, algo lhe diz que esta é a última vez que vê Saiyame, e que ele vai morrer, e decide também que não quer vê-lo sofrer. Relembra de seu ressentimento com ele, sua raiva de horas antes, de tê-lo machucado daquela forma. Pensa ao mesmo tempo nas noites apaixonadas que dividiu com ele, as palavras simples e sussurradas, os carinhos tão tranqüilos, os beijos, o seu olhar, a sua voz... Hisashi sente sua garganta entalar com alguma coisa que não queria estar sentindo agora, e apenas fecha os olhos para isso tudo, não diz nada. Apenas se retira do salão, alheio à discussão de Touya e Li, numa sala anexa.

Chega na sala onde há a lareira e vê que o fogo já se apagou há muito, está frio dentro da casa, talvez tanto ou mais do que do lado de fora. A noite é escura, e está longe de terminar. Terminar, ele repete só consigo. Está tudo acabado. Não quer ver Saiyame morrer, porque tem certeza de que é isso o que vai acontecer. Pega sua bolsa, que estava largada no mesmo lugar, no chão, e quando se abaixa para segurar a alça, nota que a porta da frente está aberta. Não seria do feitio de Li deixar uma porta escancarada assim, mas Hisashi não pensa muito sobre o assunto. Quando está com a bolsa na mão e indo para a porta, sente que é como se não estivesse andando sozinho nessa casa. Sente que há alguém, que realmente não está só, embora devesse, e saiba muito bem que Saiyame – ou seja lá quem for aquela criatura que não o reconhecia – e o menino Frost estão no salão principal, e que Li e Touya continuam discutindo na outra sala. Não escutou mais ninguém chegar.

Preciso sair daqui, pensa só consigo, agarrando a alça da bolsa com mais força e jogando-a sobre o ombro. Vai sair por esta porta sem fazer a mínima idéia para onde vai e o que vai fazer agora. Ainda olha brevemente para trás, apenas um instante de algo que jamais admitiria ser hesitação.

Então, tem a impressão de ver vaga-lumes. Vaga-lumes? É quase inverno... Mas estes vaga-lumes não estão se movendo. Estão fixos, acima do nível dos seus olhos, no meio de uma escuridão quase impenetrável que há no interior da casa.

"Onde eles estão?" – Uma voz grave interrompe-o de fazer qualquer outra coisa, e acaba deixando que sua bolsa escorregue para o chão, caindo com um baque abafado sobre o mármore.

Com certeza, Hisashi poderia dizer que este foi o pior susto de toda a sua vida. Os vaga-lumes piscam. Não, não são vaga-lumes, são olhos. Tem mais alguém nesta casa, e pela forma que faz Hisashi arrepiar quando se aproxima dele mais um passo, ninguém precisaria lhe dizer que trata-se de algo que não é humano.

"Você está me entendendo?" – A voz insiste, e uma mão longa e morna toca-lhe o braço. Hisashi sente-se completamente sem forças.

"Ah... Sim. Estou." – Hisashi estremece, quando olha para a mão em seu braço, sobre o tecido claro de sua camisa, e nota que os dedos são longos e... Completamente negros, como se fosse uma luva de cetim negro.

"Onde estão os outros?" – É uma voz calma e com uma estranha pronúncia de "erres", que Hisashi nunca escutou. Está lhe falando num inglês britânico, tão formal quanto o de Saiyame.

"No salão. Perto..." – Hisashi engole em seco quando a mão abandona seu braço, e ele arregala os olhos, enxergando, sob a luz azulada que vem de fora, um breve reflexo que lhe revela feições humanas e muito finas, na escuridão. Mas a pele é completamente negra, e não consegue distingui-lo das sombras. – "Perto da adega."

"Pode vir comigo?"

"Como!" – Sem querer Hisashi trai grande parte de seu nervosismo nessa pergunta. De certa forma o reconforta estar falando com alguém tão tranqüilo e com uma atitude tão humana, embora sua aparência... Embora tudo isso seja assustador.

"Há muitos anos que não venho a esta casa..."

"Ah... claro."

Hisashi toma a frente, notando pelo som dos passos que esta pessoa o acompanha.

"Você fará parte do ritual? Não conheço você de nenhuma das Sociedades."

"Não, eu... É uma longa história. Mas... que ritual é esse?"

"O fechamento do livro. As Cartas serão reunidas novamente e... Não seria muito prudente estar aqui quando eles fizerem isso. Não sei se estamos sendo esperados, na verdade nem faço uma idéia muito exata do que haverá aqui."

"Como assim?"

"Não sei o que haverá aqui. Sei apenas que as Cartas serão seladas novamente no Livro e que provavelmente Cerberus voltará ao selo. Não tenho o que esconder... Todos sabem o quanto é cômodo silencia-lo. Que ninguém me ouça..."

Hisashi quase cai na tentação de perguntar mais, no entanto, esta pessoa caminhando pouco atrás dele parece tão cansada e atravessada destas coisas que ela fala livremente, com a voz carregada de pesar.

"Mas... Ele será...?"

"Aprisionado. E quem sabe, se ele tiver sorte, em mais alguns séculos, uma pobre criança, tão estúpida quanto Sakura abrirá o livro e o libertará. Mas se quer saber a verdade... Não há muita diferença entre estar preso a um livro ou estar aqui, preso aos interesses de um mestre, vivendo por ele e para ele. Para nós, não há tanta diferença. Aliás, a única diferença é o aprisionamento."

"Porque?" – Hisashi está surpreso em ouvir estas coisas – "Por que está me dizendo estas coisas?"

"Quando ele for aprisionado, seu corpo será despedaçado. Mas ninguém, nenhum deles se importa. Afinal, tanto Cerberus quanto eu e os outros somos apenas servos. Ninguém nunca nos ouviu, ou se importou conosco."

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"Spinel Sun." – Saiyame fala, baixo, sem erguer os olhos. Hisashi olha para trás e vê que quando a pessoa que estava com ele pelo corredor emerge na luz, esta não o faz menos negro. Sua pele é como se fosse um negro cetim, e seus olhos são verdes e fosforescentes, no meio de seu rosto anguloso. Deve ser quase da altura de Touya Kinomoto, mas move-se de uma maneira leve e felina, assim como Saiyame, sem fazer quase som algum, como fosse um grande gato preto... Não. Hisashi imagina imediatamente que ele se parece muito mais com uma pantera do que com qualquer outro felino. Seu cabelo é muito liso, e cai sobre as costas, por cima das roupas escuras, até a altura de sua cintura, e tão negro quanto sua pele.

"Frost... Quero dizer... Yue... Senti muito sua falta, há um ano que não o via." – O olhar de Frost se abranda até quase parecer humano. Spinel Sun se volta para Cerberus: – "Então... Esta é a sua forma verdadeira. Sakura teria desmaiado se o visse assim. Acho que nenhum de nós o conhecia, Cerberus..."

"Cerberus está morto." – Saiyame levanta os olhos para Spinel Sun, que se aproxima, curioso. – "Você me conhecia."

"Não... Eu me lembraria de você. Clow me criou depois de você."

"Eu havia prometido voltar para libertar você." – Saiyame fala muito baixo. – "Você nunca me perdoou por eu não ter voltado. Você ainda finge esquecer das coisas que houveram."

"Está enganado."

"Eu não sei mentir."

"Nós nos vimos pouquíssimas vezes, e você já estava com Sakura."

"Não. Você pode não querer se lembrar, mas não pode esquecer do seu medo, naquele porão." – Saiyame aponta com o queixo para a porta encostada da adega, e Hisashi sabe que ele deve estar falando daquele grande alçapão no chão, com o cadeado e o rosário.

Não tem tempo de responder. Touya volta com Li para o salão, ainda trocam palavras ásperas. Li está sendo trazido pelo braço, com força e irritação. Touya já não parece tão calmo, já parece completamente aborrecido.

"Foi para me mostrar que o assassino de Sakura agora é o seu servo, que você me chamou até aqui? O que você quer agora? Quer as cartas para ter poder? É poder o que você quer?" – Li dispara, quando Touya larga seu braço e procura sem pressa pela carteira de cigarros no bolso do sobretudo marrom. – "Desgraçado, eu não duvidaria que você houvesse planejado a morte dela, você nunca a suportou..."

Touya acende seu cigarro.

"Eu não vou esquecer do que eu vi, Touya... Eu juro que eu não vou esquecer. Este maldito servo de Clow enganou a todos. Ele poderia ter nos matado, ele estava em torno de todos nós, no Japão...! De mim, do seu pai, de Tomoyo!..."

Touya volta-se contra ele no mesmo instante, e o derruba Li no chão com um soco. Ele cai, a boca manchada de sangue, tentando se apoiar, o sangue respingando no mármore do chão. Seu olhar é de mais perplexidade do que de raiva. Touya apenas se abaixa perto dele, de uma maneira neutra e o ajuda a levantar. Ele não fez isso por raiva de Li...

"... Li, seu idiota... Fui eu quem mandou Saiyame procurar por vocês, no Japão."

...Ele lhe deu aquele soco para faze-lo parar para escutar.

Li se levanta, perplexo, os olhos arregalados de surpresa, a raiva de seu olhar dissipou-se, e ele se deixa apoiar no braço de Touya, até ter equilíbrio de ficar de novo em pé sozinho. Depois, Touya o deixa e volta para a cadeira ao lado das outras, dando um breve aceno de cabeça quando passa por Spinel Sun, e falando então com Hisashi:

"Quer assistir, Wakai?" – Ele pergunta, entre uma baforada e outra.

"O quê?" – Hisashi olha para Touya, sem entender, e depois para Li.

Ele não lhe responde. Apenas manda Li deixar as cartas com Hisashi, e voltar para Tomoyo. Li pestaneja, olha para Hisashi. Por sua cabeça, depois de ter escutado que Saiyame estava sob as ordens do próprio Touya, há apenas uma confusão, e ele não sabe mais o que pensar. Passa as mãos pelo cabelo desalinhado, e toca os lábios, olhando depois para seus dedos manchados de sangue. Não sabe mesmo o que pensar. O assassino de Sakura, não importa seu nome, salvou sua vida, salvou a vida de Tomoyo, e a seu modo, também salvou a de todos eles. O que pensar sobre isso? Lembrou-se de quando acordou naquele hospital, e era Hisashi quem estava ao seu lado... Ele também ajudou a salvar sua vida.

"Eu acho que tenho muito a aprender..." – Sussurra só consigo, metendo a mão no bolso do casaco e entregando um maço de cartas nas mãos de Hisashi. São sete cartas de couro, adornadas de arabescos de um lado, e de pinturas estranhas do outro, cada uma possui um nome escrito, da qualidade que lhe é atribuída. Olha para elas, e nota que Li está com o olhar perdido, olhando para Saiyame. E sabe exatamente como é fascinante se perder ao olhar para aquele rosto sem época que Saiyame tem. – "Mais ainda do que ele me ensinou..." – Li engole em seco e bate de leve no ombro de Hisashi, antes de ir embora. – "Adeus, Hisashi."

E Li vai pela porta afora, sem olhar para trás, sem hesitar, sem nem de longe tencionar voltar. Touya balança a cabeça e puxa Frost pelo braço, e o faz se sentar ao seu lado, em outra cadeira, com um braço em torno de seus ombros. Apesar da frieza do seu olhar, ele apenas repousa sua cabeça no ombro de Touya, e cerra os olhos.

"Ele ficou feliz de me ver?"

"Ficou. Ao contrário do que pareceu."

Li ainda não cruza o umbral da porta, quando mais alguém surge neste salão. Esse alguém, Hisashi nota, tem o sorriso mais cínico que já viu em toda a sua vida, e é quase estranha a semelhança dele, não sabe o quê, mas há algo de semelhante entre ele e Fujitaka Kinomoto. Não, na verdade ele parece uma versão mais jovem e delicada daquele homem vestido de preto, que estava numa das telas esquecidas no fundo da biblioteca desta casa. O passo de Li diminui apenas o bastante para dirigir-lhe um olhar de breve reconhecimento.

"Siaoran... Como você cresceu..."

Uma risada deliciosa, tão sincera que é quase irritante, um sotaque britânico tão carregado quanto o de Spinel Sun. Ele está vestido de preto, e tem um ar de indisfarçável cansaço detrás desta jovialidade.

Ele ainda passa a mão delicadamente pelo rosto de Li, que se desvencilha deste toque como lhe causasse nojo, ou o perturbasse de alguma forma. Li desaparece nas sombras de fora do salão e este estranho dá mais alguns passos para debaixo da luz, ainda olhando para trás, por um momento. Depois, ele olha ao redor. Hisashi calcula que deve ter a mesma idade que ele e Siaoran Li. Tanta elegância e cinismo só lhe fazem lembrar Tomoyo falando sobre o menino inglês... Como se chamava mesmo?... Aquele que ela disse ser um canalha. Meu Deus, pensa Hisashi, um pouco distraído em olhar para ele, ele poderia ser aquele menino inglês de quem Tomoyo falava, como se chamava mesmo? Ah, sim, ele se chamava...

"Eriol Hiragizawa. Você está com a aparência de quem atravessou o mundo em vinte e quatro horas." – Touya diz, batendo as cinzas de seu cigarro e jogando o que resta dele no chão, torcendo debaixo do salto de seu sapato. Não fala com um tom cordial, e sim, de ironia, tanta que o olhar de Eriol endurece de forma a mostrar toda sua antipatia e aborrecimento por estar neste lugar. – "Sentiu saudades de casa?"

Eriol olha para Touya de uma maneira quase assassina, realmente curioso em poder saber se de alguma forma Touya conhece o motivo de ele ter se arrastado às pressas, desde a Inglaterra até aqui. Ele olha para os servos, e visivelmente não se agrada de ver Spinel Sun ao lado dos outros, e muito menos sente-se bem vendo que Cerberus está aqui... E Frost?... Um estranho ódio por vê-lo ao lado de Touya faz seu coração se agitar. Olha ainda um pouco para o lado, e seu olhar prende-se a Hisashi, Eriol encontra em si frieza suficiente para dar-lhe um aceno de cabeça e um suave sorriso, pois evidentemente ele não tem nada a ver com o que está havendo, e pelo que Eriol vê, detrás destas olheiras e deste ar de desespero e cansaço, há algo que pode ser muito interessante. Eriol se recorda que quase sempre amantes de olhos verdes são ardentes. Seu olhar é tão intenso que Hisashi sente-se desnudado por ele, e ainda consegue ver um sorriso de malícia alargando-se em sua direção, o qual ele retribui com um olhar de desafio, até que os olhos de Eriol baixem para o resto de seu corpo e encontrem suas mãos, e ele sente toda a raiva que o tomou naquele pesadelo voltar como se um vento forte o sacudisse, pois tudo o que ele tem à sua frente agora são aquelas mãos... E aquelas estrelas pintadas de negro...

Eriol sente-se contrair-se de raiva. Se o momento fosse outro, tiraria suas dúvidas, mas agora, apenas Hisashi nota o mais puro ódio surgir nos seu rosto, antes que o escute dizer:

"Vamos acabar logo com isso, Touya. Eu não tenho a noite toda..."

CONTINUA