"Spinel Sun, venha para cá. Você não é como eles..."
Spinel Sun olha com estranheza. Continua, resolutamente, no mesmo lugar em que estava, quase ao lado de Saiyame. Responde secamente, com a educação de todas as suas palavras, que eles não são tão diferentes assim, e que mesmo que não fossem da mesma natureza, então seriam companheiros da mesma sina. Evidentemente Eriol range os dentes, e, dissimulando seu aborrecimento, traz, do bolso de dentro de seu paletó, as suas próprias cartas, e não é preciso perguntar para saber que elas são exatamente sete, também. Ele então se aproxima e as entrega nas mãos de Touya, mas mesmo assim, ele olha para elas com antecipada saudade, um arrependimento profundo de estar fazendo isso. Spinel Sun traz de dentro de um dos bolsos internos de seu sobretudo um livro de capa de couro, e em alguns pontos o couro está escuro como se chamuscado, e em outros, remendado. As bordas tem arremates de bronze e um fecho também de bronze é o que o mantém fechado.
"Você se tornou bom nisso, Touya." – Eriol diz, ainda com as cartas na mão, acariciando-as como se fossem coisas extremamente valiosas e que acendessem a sua cobiça. – "Nós não temos de fazer isso, sabe? É apenas uma formalidade... Que diferença faz se as cartas estão destruídas..." – Eriol ergue os olhos para Saiyame, por um instante, e sente um arrepio cortar-lhe o corpo inteiro, um calafrio de medo, de raiva e de... – "... ou juntas, novamente? Isso não trará Sakura de volta."
"Tem razão, não trará." – Ele pega as cartas e o livro. Solta o fecho do livro e balança a cabeça positivamente, vendo que as folhas são vazadas no meio, e que as páginas todas tem inscrições impossíveis de serem entendidas por quem não está ligado a este livro de alguma forma. – "Mas acredito que ela sentiria-se feliz em saber que este pesadelo acaba aqui."
"Você fala com tanta certeza..."
"Ela está do seu lado." – Touya completa, e Hisashi ao escutar, olha imediatamente para Eriol, e por um breve momento tema impressão de ver algo desaparecendo do lado dele. Apenas uma ilusão de ótica, a luz das velas é oscilante, pode tê-lo enganado, e está cansado, enfim... Hisashi procura na lógica todas as explicações para reconhecer que ele também é capaz de ver Sakura, e já a viu diversas vezes, em diversos lugares, e sem explicação alguma que o justificasse, mas agora, depois de ter dado aquele passo para dentro do círculo e vendo que tudo é mais real do que gostaria, procura essa justificativa com desespero. Eriol empalidece um pouco e seu sorriso some.
"Você está realmente muito bom nisso, Touya."
"Eu sei." – Ele deixa o livro de lado por um momento, e busca as suas próprias cartas em um de seus bolsos. – "Wakai?..."- Ele se inclina, chamando Hisashi com um gesto, e ele vai, entrega-lhe as cartas que Li deixou em suas mãos. Touya arruma-as, contando-as, juntando-as em um bloco de vinte e uma cartas. Os olhos de Eriol acompanham atentamente este ato. – "Não estão todas aqui, nós sabemos disso. Mas estas são as que oferecem mais perigo." – Touya coloca-as cuidadosamente no vão das páginas e encosta a capa do livro. – "Acabaram-se as despedidas."
E ele pestaneja, estalando o fecho da capa, Hisashi olha para Saiyame e pensa nas palavras de Spinel Sun, na revolta e no ressentimento de sua voz, ao contar-lhe todas aquelas coisas, como se apenas quisesse compartilhá-las com alguém, mesmo que fosse um estranho. Já havia percebido o mesmo tom de dissimulado desespero surgir na voz de Saiyame, um dia, e era bem mais intenso, um medo muito mais palpável, ao falar de um livro. Hisashi olha para o livro nas mãos de Touya e descobre que o livro era aquele, e que ele nunca mentiu ou exagerou sobre nada. As palavras de um estranho apenas confirmaram aquele pavor que o deixava noites e noites em claro...
"É hora de dizer adeus."
Touya se levanta, e olha Eriol nos olhos, quando passa ao seu lado.
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Hisashi arregala os olhos quando os vê caminhar como um silencioso cortejo até o meio do salão. Frost, então, fica bem perto de Spinel Sun, e eles se entreolham demoradamente, como se dividisse um mesmo temor. Eriol toma a frente de tudo e aponta para uma das placas de mármore do chão. Diz que ela está solta, que ali era onde a família de Clow guardava seu ouro em tempos de guerra. Agora são épocas de paz, ele diz, então a coisa mais valiosa que esta família sempre teve deve ficar aí. Spinel Sun e Saiyame levantam com facilidade a placa de mármore e ela deve ter quase um palmo de espessura. Hisashi acredita perfeitamente no que vê, e acredita que apenas um deles poderia fazer isso, pois já viu Saiyame, por exemplo, quebrar um chão com as mãos.
"Eu não vou precisar de ajuda para fazer isso. Posso cuidar de tudo sozinho, Touya. Apenas empreste-me o seu servo..."
"Ele não é meu servo. Eu não tenho servos." – Touya responde, olhando para o buraco no chão, repleto de poeira, e onde uma única aranha albina se esconde da luz do lustre do teto. É como uma pequena cova escavada na pedra. – "Eu não sou como você."
"Neste caso, vou entender isso como um consentimento."
Eriol olha demoradamente para Saiyame antes de chamá-lo.
"Cerberus, deixe-o vir..."
Saiyame estremece, mas sua expressão não se altera em nada. Ao mesmo tempo, Frost recua do seu lado e Spinel Sun inevitavelmente faz o mesmo. Hisashi e Eriol são os únicos que continuam a olhar para ele, embora seja uma sensação tão desagradável, vê-lo cair no chão, de joelhos, como se fosse desmaiar, quase desfalecendo, que um arrepio de puro medo tenha feito os cabelos de sua nuca se eriçarem.
"Deixe que ele venha..."
Ele quem? Do que Eriol está falando? É tudo confuso demais. Hisashi tem vontade de fazer alguma coisa, qualquer coisa, quando escuta um som estrangulado, vindo da garganta de Saiyame, em que ele tenta se apoiar nas mãos, se debatendo no chão, e começa a esmurra-lo, de repente, e passa as unhas com força sobre o mármore, abrindo lanhos... Spinel Sun tem agora os olhos arregalados e afasta Frost um pouco mais, ficando perto de Touya. Até mesmo os outros servos estão tensos com o que está havendo com Saiyame, mas Hisashi apenas gostaria de aliviar esta dor. Touya não consegue nem olhar para ele...
E de repente, ele solta mais um gemido estrangulado, e é como se o sol houvesse saído de detrás de uma nuvem negra, uma luz quase cegante irrompe pelo salão inteiro, ofuscando todas as luzes, deixando tudo mergulhado em dourado por um momento, e depois, sumisse. Hisashi pestaneja, aquela explosão de luz marcada nos olhos, e quando ela se contém mais uma vez, ele vê, e sabe, porque cerra as mãos com tanta força que sente as unhas se enterrarem nas palmas, que não é mais Saiyame quem se levanta...
É aquela mesma criatura que ele viu erguer uma espada para aquela serpente, naquela noite, naquele sótão de casa antiga, a mesma túnica vermelha, a mesma forma impecável, e o olhar... Hisashi nunca viu um olhar como esse, e algo lhe diz que os outros servos também não. Nem eles, e nem os outros. Eriol tira os óculos de lentes finas, por um momento, olha maravilhado para o que tem à sua frente.
"E eu nunca imaginaria que este é você..." – Ele diz, quase num fio de voz, os olhos azuis brilhando...
"Laqueus contritus est, et nos liberati sumus..." 1– A voz desse que Saiyame se torna é mais profunda do que antes, mais forte, quase gutural. Ela causa arrepios, ela não é uma voz que fale somente aos ouvidos, ela atravessa as mentes...
"O diário de Clow não estava errado..." – Spinel Sun sussurra para Hisashi, intimidado com essa presença. – "Ele é o Carrasco. Ele é um demônio... Veja, ele apenas fala em latim, Eriol..."
Olha para Eriol e ele parece tão hipnotizado pela visão do Carrasco, suas roupas vermelhas e douradas, seu olhar selvagem, seu silêncio absoluto, que não responde. As costas de sua túnica são nuas, até sua cintura, e aquelas marcas, as feridas, estão abertas, mas não sangram mais, e é possível notar que antes, havia asas ali.
"Eriol?" – Touya chama por ele, e ele não responde. – "Eriol!" – Ele insiste, e Eriol levanta os olhos, e estes parecem mais escuros, e ele sorri de uma forma estranha, que parece cruel, ele tem uma maneira peculiar de sorrir, seus dentes se mostram por seus lábios como se isto fosse um sinal de perigo.
"Dê-me o livro."
"Você vai apenas fecha-lo?" – Touya pergunta, antes de por o livro em suas mãos. As cartas são perigosas demais para estarem com uma só pessoa, elas tem o poder de também corromper, e ele sabe que Eriol, sendo quem é, não merece tanta confiança assim. – "Não ouse tentar mais do que isso..."
"Não se preocupe. A carta da qual eu precisaria para controlar todas as outras não está aqui. Eu gostaria de saber se um dia teria a felicidade de reencontra-la. Quando isso acontecesse, Touya, eu voltaria a ser o que eu era."
"Você tem ambição..."
"Não, Touya, eu tenho fome de conquistas maiores." – Eriol pega o livro, e acaricia sua capa remendada. Hisashi nota que ele olha por um longo tempo, enquanto seus dedos passeiam pelos pontos das costuras, para Frost, e logo se voltam para o Carrasco. Então, aquela parte da história também não era um exagero... Se Yue vive através de Frost, que é apenas um adolescente, o que impediria de Clow, o homem daquele retrato, estar vivendo através desse tal Eriol? O olhar é o mesmo, a fina maldade detrás de seus olhos azuis, é a mesma. Hisashi sente algo emanar dele, não saberia dizer o quê, mas isso o perturba e quase chega ao cúmulo de irritá-lo, inexplicavelmente.
Eriol então dá a volta no buraco do chão, e fica do outro lado, com o livro nas mãos...
"O que você vai fazer, Eriol? Diga a verdade..."
"Vou fechar este maldito livro, é claro. De uma vez..." – Suas palavras são pausadas, ditas com estudada lentidão. – "... Por todas. E todos os nossos problemas serão fechados com ele." – Eriol estende o livro, e segurando a outra parte dele, é o Carrasco quem o segura. Touya nem de longe parece confiar nele. – "E eu estou falando dos meus, e dos seus problemas, Touya. Você ainda vai me agradecer por isso...!"
Silêncio. O sorriso de Eriol perdura pelo tempo todo.
Hisashi se aproxima mais, tentando entender isso, Eriol e o Carrasco segurando este livro ao mesmo tempo. Lembra-se do que Spinel Sun lhe disse, do medo de Saiyame de ter de chegar vivo ao inverno, ou então, ele dizia, seria aprisionado. Aprisionado... É isso o que Eriol pretende fazer? Apesar de todas as janelas estarem fechadas, um vento súbito corre pelo salão, agita as chamas da velas, faz algumas se engolfarem até quase se apagarem, levanta a poeira do chão... Ele estreita os olhos, como se estivesse sentindo prazer no que está fazendo, e começa a pronunciar coisas que Hisashi não entende, muito baixo. Apenas Spinel Sun parece entender o que ele está dizendo, e parece alarmado com isso.
O Carrasco ergue um pouco a cabeça, e fecha os olhos muito amarelos que tem. Irreconhecível. Não há nenhum traço do Saiyame que Hisashi conheceu, mais do que nunca é um perfeito estranho. De repente começa a ficar muito escuro dentro deste salão, e Touya manda que Eriol pare, e ele apenas sorri, depois Eriol somente ri, com a satisfação de uma criança cruel.
"Apenas feche este maldito livro! Maldição, Eriol, o que pensa que está fazendo!" – É a voz de Touya que se sobressai, ele realmente não faz idéia do que Eriol pretende. O salão está mergulhado numa escuridão completa, e a única coisa que diz onde eles estão é tão somente um breve reluzir dos fechos de bronze do livro.
Tudo fica silencioso e tenso, e Hisashi se escuta gritar que parem com isso, quando sente cheiro de sangue, quando sente que de alguma forma a luz que emanou do Carrasco está se apagando. Está morrendo. De repente um murmúrio começa, eles todos escutam um murmúrio infinito de vozes, as janelas vibram batendo, algumas das vidraças se partem, e o chão todo treme, esquenta, Touya também grita para que Eriol pare, mas nada adianta. Nada adianta, afinal. Hisashi imagina de quem serão as vozes que eles escutam falar ao mesmo tempo, falar cada vez mais alto, até que se calam, e um riso ecoa pelo salão escurecido. As janelas param de tremer, e um último som de vidro se partindo quase é abafado por este riso. Touya olha ao redor. Eriol estremece e sua mão larga o livro, lentamente, e ele se descobre a tremer. Hisashi já escutou esse riso uma vez, apenas uma vez. O livro cai no chão, o Carrasco também deixa de segura-lo, e lentamente ele tomba no chão, saindo do transe, saindo de si mesmo. Tudo continua silencioso e escuro, e esse riso... É um riso com voz de menina, passos agitados pelo corredor, eles, Hisashi, Eriol e Touya ainda se voltam para o corredor atrás deles, a tempo de ver um vulto branco terminar de passar, muito rapidamente, num farfalhar de seda, rendas e anáguas.
"Sakura!" – Touya grita, quase indo atrás do vulto branco que acaba de passar. Eriol se distrai, está mortalmente pálido, e olha em torno, no rosto de cada um deles.
Neste momento, quando voltam seus olhares para o Carrasco, simplesmente ele não está mais lá. Acabou-se. Frost abaixa-se para tocá-lo, seja quem for o que está caído no chão, novamente.
"Agradeça-me, Touya, ele está morto. Tudo o que ele sabia morreu com Cerberus."
"Não!"
Eriol volta-se para o rumo de Hisashi, surpreso de escutá-lo intrometer-se. Ele é apenas um estranho, Eriol pensa, não deveria nem estar aqui, o que está imaginando, se metendo neste assunto? Touya ainda olha para o corredor negro.
"Cerberus já estava morto. Morreu quando lhe cortaram as asas... Ele tinha asas, não tinha?..." – Hisashi fala alto, sua voz ecoa pelas paredes, como se estivesse sozinho. Está ofegante.
"Quem você pensa que é?" – Eriol diz, entredentes, quase escarnecendo desse tal que resolve achar que pode saber mais sobre Cerberus do que ele próprio. – "Você não faz a mínima idéia de nada sobre isso... Cerberus está morto, eu acabo de matá-lo."
"Não. Eu... Eu sei quem é você. Você é Clow. Não sei como, mas você é Clow. Você não sabe de uma única coisa sobre ele... Ele tinha outro nome. Para mim, ele sempre foi Saiyame. Cerberus já estava morto. O que você ganha com a morte dele? Você convenceu Sakura de tentar assassiná-lo."
Um silêncio tenso retorna sobre eles. No chão, Frost continua tocando o cabelo espalhado de... Sim, Hisashi abaixa-se também ao lado de seu corpo caído e nota que ele voltou... Saiyame. Há um delicado carinho no toque das mãos frias e brancas de Frost encima desse cabelo espalhado, e por um único instante é possível notar sua frieza se partindo e ele se tornando muito mais parecido com Yue... O Yue de quem Saiyame lhe falou, o... pequeno Yue menino. Hisashi sente vontade de dizer-lhe alguma coisa, mas sabe que nem é preciso. Frost afasta sua mão quando Hisashi faz Saiyame virar o rosto, seus olhos estão fechados, e sua pele está muito quente.
"O que?..." – Touya diz, lentamente. Há uma indignação espantosa em sua voz contida.
Hisashi não quer saber se acendeu um rastro de pólvora. Aquele silêncio tenso volta a reinar, e tão intensamente que pode facilmente escutar Eriol engolir em seco. Não sabe de onde tirou aquela conclusão absurda de que Eriol tenha convencido Sakura a tentar matar Cerberus, mas de repente aquilo fez muito sentido. Saiyame está apenas desacordado, há uma faixa de sangue escorrendo de seus lábios, e quando está tentando faze-lo acordar, levantar-se, um som diferente o faz prestar atenção, e percebe que Spinel Sun olha numa certa direção. São passos, uns sons de sapatos batendo no chão, rapidamente, como se fosse uma criança correndo em torno deles. Olham e é Sakura, esvoaçando, correndo em torno deles, segurando uma profusão de saias, um vestido rodado, branco, rendado... Está mais... Mais bonita do que nunca a viram em nenhuma fotografia, ela surge apenas por um momento, desaparece em seguida, e deixa um rastro de surpresa e medo no coração de todos, humanos ou não.
"Por isso ela está perto de você... Eriol, isso é verdade? Você a convenceu de ter feito aquele ritual?..."
"Não!" – Ele grita, irado, recuando no mesmo passo que Touya avança sobre ele. – "Sakura era uma menina... Cerberus a matou! Vingue-se dele!"
Saiyame faz força para respirar, e consegue colocar-se de joelhos com a ajuda de Hisashi. Está estranho, parece ainda outro, porém não o Carrasco... Ele não está mais com aquelas roupas de antes, está novamente do jeito que estava quando Touya chegou na casa, e suas costas já não estão com as marcas abertas, estão fechadas de novo. Ele afasta Hisashi de perto de si, e não levanta o rosto para ele, quando consegue firmar-se sozinho.
"Eu escolho de quem acho que devo me vingar, Eriol... Mas agora eu também gostaria de saber... O que você lucra com a morte dele?"
"Não me ameace..." – Eriol sabe que não pode fugir, e a proximidade de Touya é perigosa.
Ele, há um ano atrás jamais julgaria que Touya se tornaria tão íntimo de práticas de magia, e se aquele que se chamara Cerberus era agora seu servo, ele faria o que Touya ordenasse, e ver que ele está vivo e de pé novamente não ajuda a dissipar a impressão de que pode ser assassinado aqui mesmo. Antes houvesse de fato acabado com tudo quando teve chance, seria melhor do que esperar que os outros sujassem as mãos por ele.
"Spinel Sun!... Defenda-me!" – Ele diz, sentindo-se acuado pelo olhar de Saiyame e pelas perguntas de Touya. Se pelo menos aquela maldita assombração não houvesse estragado seus planos, ele pensa...
Ele prontamente obedece, mas Saiyame segura seu braço antes. Apenas isso. Eles se encaram durante um segundo único.
"Você vai defende-lo?" – Saiyame pergunta, a voz oscilante, o olhar tão firme quanto sempre, desconcertante até para os outros servos. – "Ele nunca se importou com você. Ele nunca se importou com a sua dor, Spinel Sun. E nem com a dor de nenhum outro..."
"..."
"E você pensa que pode esquecer essa dor? Você é capaz de esquecer da dor do peso daquela corrente? Daquela faca correndo pelas suas costas, abrindo a sua pele?..." – Saiyame solta seu braço, mas os olhos brilhantes e muito claros de Spinel Sun estão presos aos seus. – "Quantas noites você não passou, pensando se deveria servir ou odiar seu mestre? E em quantas outras você não acordou sentindo toda a dor de ter a sua pele arrancada de novo? Você se esqueceu da dor de ter seus olhos arrancados? E quando a faca daquele homem abriu caminho pelo seu peito para arrancar o seu coração? Você também se esqueceu disso? Eu me lembro que você tinha olhos azuis... Eu também tinha olhos azuis, antes de morrer nas mãos de Clow."
"Eu não lamento por nada disso."
"Então você se esqueceu do que passou nos porões desta casa, e das coisas que Eriol já o forçou a fazer? Se não lamenta por si mesmo, então você lamentou algum dia pelos seus amantes que Eriol assassinou?..."
Se sua pele não fosse tão negra, Hisashi poderia notar que Spinel Sun empalidece ao ouvir este sussurro inaudível. Ele olha ainda para Eriol, que insiste, chamando-o, e olha novamente para Saiyame.
"Você não é diferente de nenhum de nós. Um dia ele irá simplesmente descartar você, como ele achou que pudesse fazer comigo, quando perdeu a minha lealdade... A sua, ele conquistou como conquistou a de todos os outros: à força. Será que um dia a sua também não irá se esgotar?"
"..." – Ele olha para Eriol por um momento e então seus ombros largos se soltam dentro de seu casaco. Ele estreita os olhos e continua no mesmo lugar.
"Spinel Sun! O que pensa que está fazendo? Raios, defenda-me!"
"..." – Ele apenas olha de novo, alguma coisa o fazendo ignora-lo. Talvez as palavras de Saiyame, mas Hisashi nota apenas crescer aquele ar de revolta que havia nele quando se falaram, no corredor.
Eriol baixa os olhos até o livro jogado no fundo do pequeno fosso do chão. Ele nota que um escorpião surge de um dos cantos do buraco e fica andando ao redor do livro, e outros escorpiões aparecem também, e ficam passeando sobre a capa, e ao redor do livro.
Spinel Sun dá apenas um chute para que a pesada tampa de mármore se encaixe com um estrondo naquele mesmo lugar de antes, ele parece mais saturado daquela revolta que o fez contar a um estranho, segredos sobre o ritual que deveria haver aqui. Sabe que Eriol está odiando-o por ignora-lo, mas não se importa tanto quanto sempre achou que iria.
"Não tenha tanta preocupação, Hiragizawa. Nós teremos uma chance de conversar... Depois, sobre isso e sobre outras coisas. Agora eu me sinto tremendamente curioso... Mais do que nunca."– Touya não sabe porque confia tanto no que aquele estranho... Como se chamava? Wakai, disse. Ele nunca o vira antes, mas aquelas palavras ditas com desespero apenas deixaram mais viva uma antiga desconfiança, e reavivou outras, surgidas quando tornou a reencontrar Eriol, mais de dez anos depois da morte de Sakura. Ele sempre soube demais sobre o que estava acontecendo, e estava... Não. Errado. Ainda está. Eriol ainda está tenso com a presença silenciosa de Cerberus, ainda empalidece quando seus olhos se encontram com os dele. Ainda que esteja amaldiçoando o fato de não estarem a sós, sabe que o momento pode não ser este. Melhor procurar saber com outras pessoas sobre outros detalhes. Talvez o próprio Cerberus... Touya lembra-se de que ele não se chama mais assim. Seu nome é outro. É um nome que causa menos estranheza, sem dúvida. Para Touya, Saiyame está longe de ser um cão de três cabeças, assim como Frost está longe de ter aquela frieza devastadora do Juiz Yue. Para ele, Frost é apenas Yue. O seu Yue. São seus ombros que ele toca, com cuidado, trazendo-o para perto de si, debaixo de um olhar de ira pouco dissimulada, de Eriol.
"Mas não se esqueça de que a nossa conversa ainda não acabou." – Ele completa, sabendo que Eriol pode mesmo perder o resto de seu controle, vendo que está tocando Frost.
Silêncio.
Eriol desvia o olhar, respirando fundo para se conter. Enxerga a todos como traidores e promete a si mesmo o pior dos castigos para Spinel Sun, e jura que há de se vingar de Cerberus. Há de se vingar também, ele diz a si mesmo, desse sujeito estranho que disse o que ninguém mais se atreve a dizer na sua frente, que o faz sentir seu estômago dar voltas de tanta raiva desde que o olhou com mais atenção, quando chegou. E Touya... Por estas e outras, Touya não perde por esperar, Eriol estreita os olhos, pensando, tentando reencontrar sua frieza, sua dissimulação.
Saiyame se afasta deles, ele sabe que falou mais do que deveria, que revelou o que ninguém suspeitaria, e que por isso, encontrará seu fim.
"Touya, nós temos... aquele assunto."
"Tem razão. O encontro foi marcado entre nós. É apenas uma ocasião, que outros estejam aqui."
"Talvez destino..." – Eriol diz, com escárnio, de costas para eles, a ponta de seu sapato passando por cima da beirada da placa de mármore que foi posta do lugar, vedando o livro. Seria quase impossível tirar esse livro daí sozinho, sem que ninguém soubesse ou sentisse.
"Cale-se, Eriol." – Touya diz, suspirando, como se falasse a uma criança impertinente. Não se sente com paciência para agüentar nem mais uma vírgula de Eriol, principalmente depois de ter visto com seus próprios olhos o que ele poderia ter feito a Saiyame, e muito mais agora, que as palavras de Hisashi acenderam as suas dúvidas. – "Pode ir embora se quiser, ou pode esperar lá fora, se achar que deve. Mas esta conversa não lhe diz respeito."
"Ora, seu..." – Eriol começa. Ia dizer que a casa é sua, mas seu olhar encontra Hisashi, e se lembra do que ele falou. Sim, ele é Clow, mas não é mais mestre do livro e nem desta casa. Pena este tal linguarudo ter caído em sua desgraça, seria interessante se aproximar dele, é um tipo bastante diferente e exótico, tem um pouco de sangue oriental, o bastante para dar-lhe traços finos e misteriosos, e Eriol nota isso apenas porque seus olhos são um pouco estreitos, mas ele tem olhos verdes...
Touya ignorou totalmente o que ele iria dizer. Deu-lhe as costas deliberadamente e foi sentar-se numa das cadeiras de perto da parede. Apenas um breve azul da noite entra pelas janelas de vidraças trincadas, expostas quando o vento misterioso agitou e afastou as cortinas.
"Você pode fazer aquilo de novo?..." – A voz de Touya pergunta, apenas a breve chama de seu isqueiro rebrilhando e depois, o brilho da brasa de seu cigarro. Os servos não conseguem sentir confiança em mais nada. Talvez dividam entre si da mesma revolta por estar preso à vida de alguém, que Hisashi escutou de Spinel Sun, momentos antes, e de Saiyame, por várias vezes.
Desta vez, não há baque algum no chão. É algo que parece um chicote de fogo estalando no ar. Isso poderia cegar alguém que estivesse muito perto, ou poderia incendiar as cortinas muito velhas e puídas. O som dessa faixa de fogo estreita e que some logo em seguida parece um ronco de vento, e Frost sente um aperto em seu coração que o aquece por dentro, como se isso lhe trouxesse alguma recordação, ou se pelo menos essa luz breve quase chegasse a lhe trazer alguma recordação. Alguma recordação boa. Touya quase chega a ver seu sorriso de menino, no rosto branco como porcelana, quando as luzes das velas retornam.
Eriol fica ainda por tempo suficiente apenas para ver Frost ir sentar-se ao lado de Touya. Cerra os dentes com força e pensa que as coisas haveriam de mudar, se aquela carta estivesse nas suas mãos. Ele se retira do salão, mas Spinel Sun imagina que ele não há de querer sair do palacete. Imagina que Eriol vai querer arrancar-lhe o fígado, mas ao contrário do que sempre imaginou que pudesse acontecer, descobre que não tem medo algum, e nem se altera com isso. Touya o chama e o manda sentar-se também. Ele se senta ao lado de Touya, com as mãos cruzadas sobre o colo, tão negras que se confundem entre si. Apenas seus olhos e os reflexos de sua pele surgem no seu rosto. Hisashi se vê ao lado de Saiyame, insistindo em estar aí, tentado a lhe dizer alguma coisa, dizer que não fazia idéia das coisas que poderiam lhe acontecer, mas somente toca brevemente seu braço. É quente, e ele apenas volta o rosto na sua direção, o olhar perplexo. Trocam este olhar por muito tempo, até que Touya o chame.
Ao que parece, Saiyame não o escuta, mas na verdade, ele não quer ir, porque sabe que talvez Touya não lhe destine coisa diferente da que Eriol pretendia. O que não daria para poder esquecer tudo o que sabe para poder apagar seus séculos de idade, mergulhar num esquecimento definitivo e apenas viver a vida que escolher? Nenhum deles, nenhuma criatura humana entenderia a tempestade do coração de um servo. Spinel Sun olha para ele como se quisesse muito conversar com ele, e eles nunca conversaram, nunca se falaram, mal haviam se visto em todos estes anos. E Frost, por um momento Saiyame quase arrisca dizer-se que consegue ver nesses olhos azuis de gelo o mesmo reconhecimento de Yue quando corria atrás dele, nessa mesma casa, há mais de um século atrás, pedindo ajuda para fechar os botões de seu sarongue, quando ainda mal sabia falar. Saiyame sente sua garganta arder, e sente que tem de fazer um milagre para não chorar agora, quando olha para Hisashi, e ele tem um ar de quem imploraria para que não obedecesse ao chamado de Touya, porém, ele jamais faria isso... Saiyame sente que tudo não passou de uma estação, um outono que nunca voltará, sensações que nunca retornarão. Toca o cabelo de Hisashi, passando seus dedos por entre os fios, sentindo como são muito lisos, castanhos e escorregam. Distraidamente, também toca seu rosto, e Hisashi baixa os olhos. Saiyame sabe que ele nunca o perdoaria por nada das coisas que já fez, e para este crime, que é amar Hisashi, ele próprio não é capaz de dar-se um perdão.
Afasta-se dele e não olha mais em sua direção. Vai ficar na frente de Touya, naquela sua atitude de imobilidade, esperando qualquer coisa, as mãos juntas na frente do corpo. Hisashi abre a boca para chamá-lo, mas desiste. Por que se importar com um assassino? Ele matou, matou muitas vezes, friamente, e lhe disse com todas as letras que não sentia culpa por nenhuma das mortes, a não ser por uma delas... Quem seria esta pessoa por quem Saiyame ainda lamentava? Talvez a amasse. Se é que é possível alguém que não seja humano, amar alguém. Seu coração se aperta. Não quer acreditar que pelo menos em algum momento Saiyame não o tenha amado de verdade.
"Eu nunca vi Sakura. Desde quando ela morreu, eu nunca a vi."– Touya diz, os braços cruzados na frente do peito, um ar pensativo, uma calma recuperada. Ele é um homem frio e que já viu muitas coisas. Poucas ainda tem a capacidade de espanta-lo, e hoje, uma delas surgiu na frente dos seus olhos... E na frente dos olhos de todos os outros que estão neste salão. – "Eu via minha mãe, sempre... Mas Sakura?... Nunca. Eu simplesmente não consigo entender o motivo disto ter acontecido hoje."
"..."
"E o mais estranho... Você a matou, mas ela não estava ao seu lado." – Sua voz treme, ele bate as cinzas de seu cigarro, e traga, demoradamente, antes de continuar: – "Ela parecia feliz. Ela está feliz..." – Ele baixa a cabeça, um momento, apertando os olhos, a mão sobre o rosto, respirando muito fundo, como se fosse chorar, e quando olha de novo para Saiyame, seus olhos escuros são implacáveis. – "Ela não está com raiva de você. Você a matou, mas ela não está ao seu lado, irritada com você."
"..."
"Me diga o motivo disto. Eu sinto que não sabia nada sobre a minha irmã." – Touya diz, muito baixo, muito perturbado com as próprias palavras. – "O que ele..." – Faz um gesto para indicar um Hisashi perplexo, parado longe deles. – "... disse, é verdade? Você sabia disso?"
"Sabia."
"Isso é muito mais grave do que pode imaginar... Eriol quase o aprisionou de novo no livro. Desta vez, definitivamente."
"Eu não me importo."
"Eu acho que você se importa... E muito. Duvido que seja uma sensação boa... Estar preso ali."
"Nenhum mestre quer saber o que se passa com seus servos. Eriol estaria lhe fazendo um favor me aprisionando." – Saiyame diz, uma certa inflexão de tristeza na sua voz rouca, reverberando pelo salão silencioso. – "Assim, você estaria vingado. E ele estaria seguro. E eu poderia apenas fechar os olhos e esquecer de tudo isso. Para sempre."
Touya desvia os olhos um momento. Olha para Hisashi, e imagina se ele não será mesmo amante de Saiyame. Seria estranho não terem ao menos uma amizade que justificasse ele estar aqui, nesta ocasião tão tensa, e mais, dizendo aquelas coisas, defendendo Saiyame.
"Então era isso o que você queria?"
"Ninguém nunca quis saber o que eu queria. Eu sou apenas o seu servo."
"Eu nunca quis servo algum... Eu quero que me diga se pensou naquilo que conversamos em nosso último encontro."
"Eu fiz tudo o que você mandou, Touya. Aconteceram muitas coisas, mas eu fiz o melhor que pude. O seu pai..."
"Não é disso que estou falando." – Ele balança a cabeça, condescendente. – "Eu quero saber sobre você. Quero saber se você tomou a sua decisão. Eu lhe dei um ano para pensar sobre qual vida o agrada mais."
"Faça o que quiser, Touya. Eu não me importo."
"..."
"Talvez eu sinta falta de algumas coisas, das sensações, das cores, do calor... Estar no livro é a idêntica sensação de estar servindo a um mestre. É uma vida vista através de uma vidraça. O livro é escuro e silencioso por dentro, como estar numa caverna escura, e saber que ela está apinhada de pessoas, e não conseguir tocar em nenhuma delas... O livro..." – Saiyame fala baixo, mas apesar das aparências, seu desespero é tão grande que é sufocante, ele fala de uma forma que Sakura jamais poderia ter entendido, algum dia. – "... O livro é uma grande cova, uma vala de corpos... cada carta um dia teve uma vida, como você, Touya, como qualquer humano. E cada alma aprisionada é condenada a isso... Ao escuro e ao silêncio. O tempo passa em torno, mas não o afeta... Nada consegue... quebrar esta vidraça."
Um longo silêncio se segue a suas palavras. Eles não conseguem se entreolhar, e Touya pesa cada palavra. O que Sakura diria, se escutasse isso? Ela certamente rasgaria todas as cartas, tentando libertar aqueles espíritos condenados. Fica fácil de entender o motivo de Cerberus tê-las queimado, quando matou Sakura, e principalmente, de ter destruído o livro. É estranho, mas Touya ainda não consegue odiá-lo por ter assassinado a sua irmã. Tenta agir bem com ele, tenta agir diferente com estas criaturas que têm tanto poder que este chega a ser uma maldição, de uma forma muito diferente da que Clow agia... Da que Eriol age. Bom, ele quase deixa escapar um sorriso de maldade, Eriol é Clow, e ele deve ter ficado irado ao escutar Hisashi dizer-lhe isso na cara, coisa que ninguém se atreve a fazer, embora muitos saibam. Olha para Saiyame, e pensa o que pode ter acontecido em um ano. Em um ano... Frost está mais velho, está com quatorze anos e algumas polegadas mais alto, Touya está mais velho, está com trinta e dois anos, e sabe que um ano pode ser uma vida inteira, talvez mais do que isso...
"Eu acho, Saiyame..." – Touya sente como é estranho chamar Cerberus por um nome comum, um nome... humano. – "Que esta vidraça já está quebrada."
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Saiyame pisca, levemente, de forma que seus cílios se encostem, lentamente. Touya observa que ele, nesta forma, consegue se parecer mais com um leão do que em qualquer outra. Não é a aparência, é o espírito. É o que se passa detrás destes olhos cor de mel que o assusta.
"Esta vidraça está quebrada." – Touya repete, como a ter certeza de que ele o escutou, pois é difícil saber, Cerberus sabe muito bem esconder o que sente. Apenas os anos que passou ao lado de Sakura, sem manifestar sua verdadeira forma já são a melhor referência para dizer isso. Oh, não, Touya se recorda, este de pé, de olhar perdido, não se chama Cerberus. É outro, completamente diferente. – "E eu acredito que você já tenha feito a sua escolha."
"Eu quero ficar. Sou seu servo."
"Mas eu não quero que fique. Não preciso de servo algum."
"..."
"Eu não quero um servo. Pare de agir como se eu fosse Clow. Eu não sou Clow e nem sou como ele."
"... Posso matar seus inimigos. Posso dizer tudo o que sei. Posso voltar a ser... Ser o que era. Se não me quer como seu servo, então não houve sentido em ter se incomodado de Eriol querer me aprisionar. A não ser que queira fazer isso pessoalmente. Eu posso... Eu conheço esse encantamento. Posso ensina-lo e poderá faze-lo, Touya." – Baixa a cabeça. Touya estreita os olhos, realmente desejando que pudesse saber o que se passa pela mente dele.
"A proposta é tentadora... Mas eu sei que você e os outros têm a natureza de um demônio. O que você gostaria de ter em troca? Afinal, isto me parece ser a proposta de um pacto..."
"Eu gostaria de conversar com Yue. Frost. E gostaria... Eu quero conversar com Spinel Sun. Se ele quiser me ouvir."
Touya não acredita no que está fazendo. Está fazendo um pacto com Saiyame para destruir a ele mesmo. Isso é loucura, e não sabe se dele ou do outro. Mas se é este o jogo que Saiyame quer jogar, imagina que deva aceitar as regras. Touya se lembra que nunca aprendeu a roubar em jogo algum. Ele joga limpo.
"Claro." – Se levanta e se afasta deles.
Frost continua no mesmo lugar, e Spinel Sun diz, tão somente, e um tanto ansioso:
"Eu quero ouvi-lo. Eu preciso falar com você."
"Você está diferente, Cerberus. Você não era assim com Sakura." – A voz de Frost é suave, falha nas notas mais agudas, é uma voz doce e adolescente. Como ele. Saiyame pestaneja. Tem vontade de chorar quando pensa que esse tom queixoso, o modo de dizer seu nome... É como escutar Yue menino falar, mas esse menino está morto. Clow o matou quando o machucou daquela forma, e quando ele rasgou aquela carta... Todas as recordações... Perdidas, uma vida inteira. Apenas Saiyame imagina o quanto o inveja nesse momento.
"Eu não tenho muito tempo. Vocês escutaram Touya, e sabem o que vai acontecer agora. Quero lhes dizer que eu tenho medo. Não imaginem outra coisa, eu tenho muito medo. Eu tenho algo para entregar a vocês."
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"Não me olhe desse jeito, Wakai. Ele finalmente escolheu o que quis fazer. É uma proposta muito tentadora, quando quem a faz é quem matou a sua irmã, entende?" – Touya passa ao lado de Hisashi e bate de leve em seu ombro, num gesto de certa amizade entre estranhos. Isso faz Hisashi pestanejar e desviar sua atenção da conversa sussurrada do fundo do salão. Touya silenciosamente lhe oferece um cigarro. – "Há um ano atrás eu estava tentando parar, mas realmente se tornou impossível fazer isso... Não gosto de fumar na frente de Frost."
"Ele também é... Não é?"
"É claro que é."
"Saiyame me contou..." – Hisashi suspira, tentando se conformar com o que Saiyame disse a Touya. Ele está se despedindo dos outros. Provavelmente não se despedirá dele, e não sem razão. Hisashi se lembra do seu ódio quando o escutou contar como matou Sakura, mas não evita de sentir seu coração diminuir dentro do peito, quando pensa que nunca mais irá vê-lo. –"Ele sempre me disse muitas coisas. Poucas eu ouvi com interesse. Quase nada eu pude entender."
"A única pessoa capaz de entender um deles é quem os criou. E como você mesmo disse, Eriol é esta pessoa, e ele os trata como brinquedos. Não tente entender estas criaturas, eles não são como nós. Todavia, Wakai, eles tem uma alma e tem desejos... E estes não são nada diferentes dos nossos."
"..."
"..."
"Como é estar com ele?.. Com Yue, por exemplo?"
Touya deixa-se sorrir e balança a cabeça lentamente. Vê, do outro lado do salão, Spinel Sun e Frost ficarem de pé. Frost é um palmo mais baixo que Saiyame, e Spinel Sun é o mais alto dos três. Eles poderiam aparentar a idade e a forma que quisessem, com o poder que tem, mesmo o mínimo que Clow lhes tenha dado, já poderiam fazer muito. Olha para as manchas de sangue nas costas de Saiyame, as marcas de onde estavam as asas, um ano atrás. Morde o lábio, pensando se ele algum dia ele foi grato pela existência que tem, e se mesmo Yue gosta de ser o que é.
"Confuso. Difícil. Às vezes é enlouquecedor. Não gosta de acordar cedo, não gosta de ir a uma escola, não gosta de comer sozinho, de fazer deveres de casa... Às vezes não me deixa trabalhar em paz, outras, apenas fica calado, com esse olhar..."
"De quem tem duzentos anos de idade."
"Isso mesmo." – Touya finalmente ri. Hisashi então nota que ele parece pelo menos dez anos mais jovem quando faz isso, e bastante diferente de antes, e não consegue deixar de achar como esse sorriso se parece com o de Sakura. – "... E como se nos conhecesse antes mesmo de nos ter visto pela primeira vez... Eles conheceram mais pessoas em todas as suas vidas do que nós nunca poderíamos imaginar, acumulam segredos que eu pelo menos jamais quero saber. Não é à toa que Clow tem tanto receio por eles. Ele lhes deu poder demais, e pode apenas aprisiona-los, mas não mata-los."
"E você?"
"Eu?"
"Você tem poder para fazer o quê?" – Hisashi pergunta, sob um olhar de curiosidade, sabendo que não pode odiar Touya por nada do que ele fizer.
"Eu tenho apenas o poder de cruzar os braços e deixar o destino tomar as rédeas de tudo, Wakai. Você é um médico, deveria saber melhor do que eu que de vez em quando, as coisas fogem de nosso controle."
"..." – Hisashi se sente estremecer, e aceita desta vez, quando Touya lhe oferece um cigarro.
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Saiyame umedece os lábios, é um gesto humano, mas está habituado demais a se sentir humano para esquecer de fazer isso. Sentir-se humano é diferente de ser. A última vez que se sentiu humano foi quando Clow colocou aquele pião de madeira colorido nas suas mãos e quando... Ele se sentia apenas humano quando estava com Hisashi, mas em breve, ele será apenas uma pálida recordação, e não quer ter de olhar para trás agora.
"Tenho algo para entregar a vocês. Eu não sei se é o melhor a fazer... As cartas não estavam todas naquele livro. Algumas, menos importantes, ainda estão por serem capturadas. O quê importa? Somente Sakura teria coragem de ir atrás de todas elas novamente. Eu pensei nela quando fui em busca destas..." – Ele traz, de um dos bolsos dessa calça de sarja marrom surrada que o veste, duas cartas. Apenas duas, aparentemente idênticas às que acabaram de ser presas no livro. As costas delas são também cobertas de arabescos, e como as outras, todas parecem muito velhas e simples. As faces estão voltadas pare baixo quando as estende, uma para cada um deles.
Spinel Sun olha demoradamente para a sua carta, pensando em cada coisa que Saiyame lhes diz, percebendo que não é o único a ver-se como mais um mero escravo, apenas um brinquedo, um... Capricho egoísta de um homem desejando ser um deus. Um homem desejando ser um deus criou demônios... Deu-lhes tudo, só não lhes deu liberdade. Frost segura a carta em sua mão pálida e tenta desesperadamente entender porque Saiyame não juntou estas às outras.
"Cerberus..."
"Esta é a minha vingança. Eu tenho ódio demais em mim até mesmo para somente matar Clow... Vocês viram o que eu posso me tornar. Eu não quero ser aquilo... Eu quero ter as minhas recordações, boas ou más. Elas são tudo o que eu tenho. Eu quero sentir... o tempo passar, mesmo que ele não me toque... Eu quero... que vocês tenham a chance que eu nunca tive."
Saiyame fecha os olhos, passa as mãos sobre eles, como se enxugasse lágrimas, e, no entanto, eles estão perfeitamente secos, dourados e ferozes. Frost sente algo como uma recordação preste a aflorar, quando vira esta carta e olha para a imagem e o nome que estão nela.
"A Lua?" – Frost não compreende. – "Por que está me entregando a carta da Lua?"
"Fique com ela. Rasgue-a quando achar que deve." – Saiyame diz, olhando para Frost com um carinho que Frost não entende, pois as recordações de Yue, que repousa dentro dele, são cortadas pela metade, e entre as que ele possui, certamente não estão as de Cerberus, e nem dele próprio, quando era um menino pendurado em suas roupas, exigindo atenção.
Spinel Sun olha a sua. Estremece e pela primeira vez em toda sua vida sente um medo que o faz tremer. Empurra-a de volta, mas Saiyame delicadamente faz com que ele a mantenha nas suas mãos negras.
"Isso é demais, Cerberus."
"Isso pode ser suficiente, para quem nunca teve nada."
"Clow daria sua alma por esta carta..."
"Ele já deu. Há muito tempo. Mas ele é apenas um homem."
"... Ele poderá me matar para tê-la de volta."
"Mate-o antes, se ele quiser fazer isso, Spinel Sun."
"Cerberus, eu..."
"Este não é mais o meu nome. Eu não sou uma besta de três cabeças, sou? E você? Você sempre foi uma pantera? Eu me lembro que você era um menino. Apenas isso. Eu, você, Yue... A única coisa que unia nossos destinos eram nossos olhos... azuis."
"Eu não me lembro de nada disso."
"Melhor que nunca se lembre, Frost." – Saiyame afaga seu cabelo louro e muito claro. Está mais longo do que da última vez que o viu, quando ainda não se conformava de estar vendo-o envolvido com Touya, da mesma forma que um dia Yue deixou-se envolver por Clow, porém... É melhor que ele escolha se quer se lembrar disso sozinho. A carta que rege sua existência está nas suas mãos, o resto definitivamente não depende de Saiyame.
Do outro lado do salão, Hisashi engasga com a fumaça do cigarro e tosse. Ele não sabe fumar, e Touya se diverte muito tentando ensina-lo a tragar. Spinel Sun finalmente sente-se curioso.
"Quem é ele?"
"Hisashi Wakai."
"Você dorme com ele?..." – Frost pergunta, mas Saiyame reconhece que este tom de perguntar, um tanto incrédulo, só poderia pertencer mesmo a Yue. Ele pergunta baixo, quase como se tivesse medo de estar tirando conclusões precipitadas.
"Na verdade, quando ele estava comigo na cama... A última coisa que fazíamos era dormir."
Um rubor leve sobe pelo pescoço e pelo rosto de Frost, como se a gola de sua camisa o estivesse sufocando. Está dito tudo. Saiyame baixa os olhos, dando todos os assuntos por encerrados.
Frost tem esta carta nas mãos, e sabe que ela significa poder, se a rasgar, poder para não depender de mais ninguém, ter força para manter-se sem um mestre, da mesma forma que Cerberus é capaz de fazer, já que uma carta foi rasgada quando foi criado. Spinel Sun não experimenta este alívio, ele experimenta medo e receio. Esta carta em suas mãos vale sozinha mais do que as outras, que foram aprisionadas. Começa a se questionar o que poderia acontecer se Eriol soubesse, e é certo que saberá, mais cedo ou mais tarde, se é que já não percebe a proximidade desta carta.
"... Espere!"
Saiyame olha para ele. Não censura seu receio. Sabe que esta carta pode desencadear coisas terríveis.
"Por que você me entregou justamente esta carta? E para mim? Porque não para outra pessoa?"
"Porque esta carta pode corromper qualquer humano. E qualquer um de nós está longe disso. E porque eu sei que você vai deixar que Eriol saiba sobre esta carta, até o ponto de enlouquecer por ela, e não vai deixar que ele ponha as mãos nela." – Ele olha para o lado por um momento, e se move como se fosse se afastar deles. – "Admita. Você vai sentir prazer em espezinhar Clow."
"Ele não é Clow. Eriol é diferente."
"Eu não acredito nisso. Para mim, os olhos dele sempre serão olhos de chumbo."
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Se Ruby Moon estivesse aqui, Spinel Sun pensa, enquanto guarda a carta num dos bolsos de seu sobretudo, ele pegaria esta carta e iria correndo entrega-la a Eriol, e sentiria-se feliz com isso, mesmo que nunca ouvisse sequer um "obrigado" dele. É uma responsabilidade tremenda, uma confiança muito grande a que lhe depositaram. A presença de Saiyame abafava a presença da carta, por isso não a percebia, percebia apenas os efeitos dela sobre ele, aquela espécie de transe em que estava, antes mesmo do Carrasco ter vindo. Frost Fica com sua carta sobre o peito, com olhos distantes, pensamentos distantes, um ar adulto demais para ele.
Saiyame chama por Touya. Apenas uma vez, como a ter certeza de onde ele está. Frost se senta de novo na cadeira de antes e olha para o chão, como se estudasse cada veio do mármore, e seus olhos param sobre aquela mancha infiltrada nas pedras, ali, perto de onde o livro está sepultado. Ele então ergue uma das mãos e segura a de Saiyame, com familiaridade, com carinho, como a lhe dizer para ficar. Yue. Saiyame sabe que Frost é apenas uma ilusão, e que cada palavra, cada gesto, pertencem a Yue. E embora há um ano atrás Saiyame estivesse fazendo todo o possível para matar sua presença humana, Yue não guarda raiva, não sabe o motivo, mas não tem ressentimentos por isso.
Saiyame puxa sua mão da dele. É um toque frio, delicado. É como tocar porcelana.
Vai recuando, recuando, até afastar-se. Não se espanta em ver que Hisashi está sozinho, percebeu quando Touya saiu do salão. Percebe que Eriol já sentiu a presença da carta que está com Spinel Sun e volta para cá. Não se preocupa com Yue, Touya faria qualquer coisa para defende-lo, e o que mais interessa a Eriol de fato não está com ele, e tem certeza de que Spinel Sun saberá se defender.
Aproxima-se de Hisashi, mas não por querer fazer isso, mas porque é inevitável, ao passar para sair também. Nota que ele se aproxima, e não olha na sua direção. Já está no escuro do corredor quando Hisashi fica bem ao seu lado, sem dizer nada, apenas olhando firmemente para ele, uma de suas mãos tocando seu braço, segurando-o com força, fazendo-o parar, até que tudo o que lhe cabe fazer é retribuir este olhar. É um olhar estranho e com algo de diferente, e seus lábios entreabertos estão a ponto de dizer-lhe algo quando...
"Cerberus... Meu leão de olhos dourados..."
É Eriol Hiragizawa, seu cabelo negro ligeiramente desfeito, caindo sobre os olhos azuis, e sua voz... Ele está sorrindo... E esta voz e esta maneira de pronunciar com todo o cuidado o nome de Cerberus... Finalmente e mais do que nunca Hisashi descobre que não era um absurdo dizer que ele é o próprio Lead Clow, e que era esta presença forte e insuportável que impregnava a mente de Siaoran Li quando ele estava perto de Saiyame.
Ele está há três passos atrás deles, parado debaixo da larga faixa de luz amarela que vem pela porta do salão.
CONTINUA
1 "O laço foi partido e nós ficamos livres..."
