Meu Destino é Pecar Epílogo

Saiyame ofega.

Achou que este momento nunca chegaria. Passou toda sua vida, depois que foi aprisionado naquele maldito livro, imaginou que jamais voltaria a olhar nos olhos de Clow mais uma vez. Este que está de pé na sua frente, as pernas ligeiramente afastadas e a postura empertigada, ele não é Eriol. Esta pessoa tem olhos de chumbo, os óculos estão no chão, quebrados, poucos passos atrás, e as lentes esmigalhadas rebrilham com a luz das velas do salão. O corredor é largo e escuro como nas recordações mais antigas de Saiyame. Há cheiro de cera, cheiro do perfume de Clow... Tudo parece arrancado de sua memória, tudo tem a familiaridade do que aconteceu séculos antes.

"Meu leão... Onde pensa que vai? Você ainda é meu servo."

"Não. Você não é meu mestre."

"Eu sou. Desde quando você arrancou o coração da menina. Você teve prazer ao matá-la?... O mesmo prazer que teria ao me matar?..."

"Maldito..." – É um sussurro. Hisashi nunca sentiu tanto ódio na voz de alguém antes. É um ódio tão intenso, tanto nojo, que sua voz rouca treme, faz vibrar algo dentro de Hisashi, aquele mesmo algo que o fez sentir raiva de Eriol assim que colocou os olhos sobre sua figura. – "Você nunca foi nada para mim. Você impôs a minha lealdade. Destruiu cada dia da minha vida desde quando me trancou naquele porão... Você nunca soube nada a meu respeito."

"Eu sei que você me pertence."– Ele avança um passo, e depois outro. Seu sorriso, Hisashi observa, chocado, é idêntico ao sorriso do homem daquele quadro. Ele parece mais velho, mais antigo, e talvez até mais alto, ou é apenas a impressão que pode ter, pela maneira que seu rosto se ergue, de súbito, o cabelo escorregando de cima dos olhos, e estes parecendo mais azuis do que antes. – "E que ninguém jamais poderia tocar o seu corpo além de mim, Cerberus..."

Silêncio.

O olhar de Eriol... De Clow... Eles são o mesmo, não há diferença entre eles, a não ser este perfume de sândalo e notas de estoraque e patchouli, pairando finamente no ar pesado do corredor desta casa antiga. Os outros, no salão, sabem que não devem se aproximar. Saiyame espera que Touya também perceba que não deve se aproximar deles. E Hisashi... Ao seu lado?...

"Está enganado. Eu quase me entreguei ao seu inimigo..."

"O quê?... Do que está falando?"

"Eu quase pertenci a outro que não você... Naquela noite em que mandou que eu ficasse trancado na sua biblioteca... Aquele homem, que você viu morto ao meu lado, quando o dia amanheceu... Ele acendeu em mim o desejo que você jamais seria capaz de despertar!"

"O que?..."

Ele arregala os olhos, fica assim, arquejante, por muito tempo, tentando engolir cada palavra, cada vírgula de desprezo e ira. Depois, seus olhos se estreitam, e ele fala então entredentes:

"... O curandeiro... Aquele homem era meu inimigo, ele queria roubar meus livros, meus segredos...!"

"Não era em busca de seus segredos que ele me encontrou naquela sala... Ele tocou a minha pele... Ele me deu prazer... Eu permiti a ele o que nunca permitiria a você."

"... Você se envolveu com aquele curandeiro!..." – Sua voz some no fundo de sua garganta, emudecido de raiva. – "Seu animal imundo... Você não passa de um animal... Você nem sequer tem uma alma..."

Ele ergue a mão para bater em Saiyame, mas antes que faça isso, é Hisashi quem ergue a sua, para deter esse gesto. Ele se posta entre eles, e nem sabe a razão de fazer isso. Só sabe que tem vontade de matar quem erguer sua mão para machucar Saiyame. Eriol olha para ele com surpresa, e depois, olha para sua mão, segurando seu pulso com firmeza. Suas mãos... Ele vê aquela maldita estrela na mão que detém a sua. Uma onda de ira o faz recuar, alternar olhares de desprezo entre Saiyame e Hisashi, ele se afasta mais, os olhos se arregalando, um súbito reconhecimento fazendo-o descobrir algo que sempre esteve bem debaixo de seu nariz, algo tão evidente, tão claro... Por que nunca pensara nisso? Sempre esteve bem evidente, ainda que a mente de Cerberus fosse fechada para a sua, não era preciso muito para saber... Não é preciso nada para ver isso agora.

"O curandeiro... Ele ainda é seu amante... Por isso, por causa dele... Você nunca me quis." – Ele olha diretamente para Hisashi, vendo nele apenas as estrelas em suas mãos. – "Sempre ele."

Clow se amaldiçoa infinitas vezes por nunca ter se perguntado o que de fato houve naquela madrugada em que Cerberus matou aquele homem. Que pior maneira de descobrir?...

"Sempre ele! Pois se despeça dele, seu animal imundo! Você me pertence! Eu o criei, você pode ser apenas meu!..." – Ele grita, se contorcendo de uma forma nervosa, quase louca, e aperta as mãos, uma na outra, as separa e bate uma contra a outra, furiosamente. Os estalos das batidas parecem cada vez mais altos, vibrantes.

Cada batida de suas mãos parece um abalo correndo pelas paredes e pelo chão do corredor. Hisashi sente que todo este ódio é contra e unicamente voltado a ele. Bate mais uma vez as mãos, e desta vez, com mais força do que as outras, o som ecoa como um estrondo, e o chão vibra intensamente, como num abalo de terremoto, e este terremoto estivesse somente no corredor.

"Eu vou despedaça-lo... Vou mata-lo de um modo que sua alma jamais terá descanso..." – O corredor parece ficar absolutamente negro, quando ele diz estas palavras, como se tudo ao redor se voltasse unicamente pela sua vontade.

Algo reluz na escuridão, rebrilha como se fosse de metal, de aço, se move em torno deles, rangendo pelo chão, como se fosse alguma coisa arrastada pelo chão de pedra, em um círculo, e Saiyame observa que essa coisa deixa um rastro de faíscas avermelhadas pelo caminho. E Clow olha intensamente para eles... Não. Ele olha apenas para Hisashi, desta forma cruel, e sorri, com escárnio, em que a coisa que se arrasta pelo chão enfim silencia e desaparece. Hisashi olha ao redor, tentando seguir os sons, está confuso, não sabe o que está havendo, mas sabe que há algo muito perto de si, quase tocando-os. Ele aperta mais sua mão em torno do braço de Saiyame e sente o calor da mão dele sobre a sua, e experimenta uma preocupação maior ainda, por ele, quando os dedos se enlaçam nos seus.

"...Obscurum per obscuris. Ignotum per Ignotius..."1 – Sua voz atravessa as trevas, apenas seu sorriso mais cruel iluminando um rosto pleno de prazer pela vingança.

Hisashi estremece um segundo antes de sentir-se puxado para trás, jogado no chão, arrastado, e tudo acontece mais rápido do que tem condições de ver. Ele se debate, vê Saiyame tentar segui-lo, e acabar sendo envolvido por uma treva tão intensa que não consegue mais vê-lo. Alguma coisa o arrasta pelo chão de pedra, ele tenta se segurar, mas as pedras são lisas, escapam de suas mãos, e esta coisa... É como se garras de metal, geladas e invencíveis, o agarrassem pelo cabelo, puxando, fazendo seu pescoço dobrar para trás, e ele não consegue respirar. Ele não consegue emitir som algum, outras mãos de metal negro e gelado atravessam a escuridão ao seu redor e apertam seu pescoço, abrem sua camisa e deixam seu peito exposto. Tenta gritar por Saiyame, tentar saber onde ele está, se está bem, mas sua voz morre... Tudo o que consegue é gemer o nome dele.

"Saiyame..."

"Ele não pode escutar você, curandeiro. O leão será apenas meu, novamente..." – É a voz de Clow, o seu perfume, quase imperceptível, porém marcante.

Hisashi tenta se debater com mais força ainda, se arqueia inteiro, em desespero, temendo mais por Saiyame do que por si mesmo. Teria respondido se pudesse falar. Agora é forçado a ficar no chão, todo seu corpo preso por estas mãos que surgem do solo, de entre as pedras, que o deixam imóvel, apenas os olhos arregalados para enxergar com clareza Eriol se aproximar dele, lentamente, um cajado negro entre as mãos, surgindo como se as trevas se solidificassem em sua forma, o adorno do topo, reluzindo em um dourado que quase desaparece na escuridão.

"Saiyame!..." – Ele tenta, e consegue chamar mais alto, sentindo uma lágrima escapar pelo canto de seus olhos, ao ter apenas o silêncio como resposta. – "Não!..."Deixa tombar sua cabeça, tomado de desespero e tristeza.

Saiyame não pode escuta-lo, as trevas o envolveram. Talvez ele esteja morto... Não é possível... Ele jamais morreria assim, mas o seu calor... Hisashi não sente mais o calor dele, sua presença. Ele não sente nada, somente o vazio e o desespero de ver Eriol estar de pé, bem à sua frente, olhando-o de cima, com este sorriso sádico e cruel, de puro capricho. É assim que ele trata a todos ao seu redor, como se fossem seus brinquedos. Ele os destrói, ele os descarta... Foi isso que fez com Cerberus... Sim... Eriol ergue este cajado, e Hisashi vê através de olhos turvos que a extremidade que aponta para ele é aguda e afiada... Na verdade não é um cajado. É uma lança negra... Erguida no ar, apontando para o seu peito, e a força que o segura no chão, o deixa exposto a este golpe é tanta que é como se fosse partir seus ossos e juntas. Eriol tem os lábios entreabertos de prazer, ele se delicia com os momentos de antes da morte. Nada lhe dá mais prazer do que isso...

"Diga adeus ao seu amante, curandeiro...!" – Ele diz, descendo em um só golpe a lança, e neste momento Hisashi somente tem ação de fechar fortemente os olhos. Sim. Isto sim é um adeus...

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Um estouro. Um relâmpago estridente atravessa todo o silêncio da escuridão, um clarão cáustico toma conta de tudo, com dor, com ira. Hisashi pensa que esta luz que é tão intensa que pode vê-la até com os olhos fechados é afinal a morte, e esta dor atravessando seu corpo inteiro, livrando-o das mãos de aço que o agarravam, é a dor do golpe. Abre os olhos, e se descobre momentaneamente cego por esta luz tão intensa e quente. É como se... De repente, no meio da escuridão, amanhecesse um imenso sol, iluminando tudo. Ele tenta se levantar, e percebe que o chão também está quente, e que o cajado de Eriol está quebrado em duas partes, bem no meio, os pedaços largados no chão estão queimando lentamente, se consumindo em chamas. E o próprio Eriol está acuado num canto, os olhos estreitados, tentando, assim como ele, enxergar o que se passa em meio à luz que atravessa e consome as trevas que se ergueram em torno deles.

Hisashi passa a mão por seu peito e percebe que a lança nem chegou a toca-lo...

"Illumina oculos meos, ne umquam obdormiam in morte..."2 – É uma voz forte como um rosnado que o faz erguer os olhos. É a voz rouca de Saiyame, e ela lhe dá arrepios pela espinha, porque então, Hisashi reconhece que esta voz não é a dele...

É a voz do Carrasco que fala através dele.

"Saiyame!" – Hisashi chama por ele, mesmo sabendo que não é Saiyame, e que não há nenhum traço de sua consciência, dentro do coração fatal do Carrasco.

Ele tenta cobrir os olhos com as próprias mãos, tentando enxerga-lo em meio a toda a luz, e... Ele o vê. É ele que emana esta luz, é o sol dentro dele, quente, lindíssimo e assassino. Ele tem algo nas mãos. Uma espada de luz na mão baixa, e alguma coisa que Hisashi não consegue saber o que é, na outra. Suas costas estão nuas e cobertas apenas daquela cicatriz. E agora, ele vê, que atrás do Carrasco se estendem vastas e esguias asas. Hisashi tem certeza de que nunca viu nada igual, e nem nunca verá em toda a sua vida.

"Saiyame!... Eu sei... Eu sei que você está aqui... O seu coração está aqui...!" – Hisashi sente vontade de chorar, novamente aquele vazio, em pensar que o Carrasco é apenas um assassino sedento de sangue, e que toda a alma de Saiyame se consome, quando ele surge. E desta vez... Desta vez o Carrasco, algo lhe diz, virá apenas para tomar-lhe o lugar. Saiyame, seu coração, suas recordações, está tudo perdido... Tudo de... Humano. – "Saiyame, olhe para mim! Por favor... Pelo amor de Deus!... Eu sei que seu coração ainda está aqui...!"

O Carrasco simplesmente não parece escutar nada, é estivesse apenas ele e Clow neste lugar iluminado. Ele estende uma das mãos no rumo de Eriol, como se quisesse entregar-lhe algo, mas Eriol recua mais ainda, como se isso, esse gesto tão simples tivesse o poder de faze-lo temer algo.

Então, o Carrasco ergue esta mesma mão, e atira o que tem nela contra o chão duro de pedra, e ele o faz com tanta força que seja lá o que atira no chão, não rebate... Enterra-se na pedra, se encrava nela firmemente, com um agudo estalo metálico, bem próximo aos pés de Clow, e ele estremece violentamente, olhando para isso, até ceder junto à parede, cobrindo o rosto com uma das mãos... Nesse momento, a luz que o Carrasco emana começa a amarelar, como se o sol estivesse se pondo. Assim, Hisashi pode olhar para seu rosto, quando consegue se levantar, e apenas vislumbra seu olhar selvagem, seu cabelo cor de ouro velho... E suas lágrimas grossas, correndo pelo rosto impassível.

"Saiyame!... Oh, Saiyame... Não... Não se afaste de mim!... Não se esqueça de mim..." – Sente que sua voz é apenas um lamento, que não chega aos ouvidos de Saiyame, pois ele não está aqui. Sua alma não está mais aqui...

Hisashi silencia. A luz entardece mais, amarela, quente, até se avermelhar suavemente, e neste instante, sua alma se enche de algo que ele não sabe dizer o nome, quando apenas e tão somente, o Carrasco volta o rosto na sua direção, os lábios entreabertos, os olhos úmidos...

"Hisashi..."

A luz se avermelha mais, até sumir na penumbra do corredor.

Tudo volta a ser como antes. Não há perigo, apenas o corredor, e Saiyame, é ele mais uma vez, mas... Hisashi sabe, ele escutou. O Carrasco disse seu nome. Ele o reconheceu. O coração de Saiyame estava lá. Ele está aqui, de volta, está entre seus braços, quando tenta ajuda-lo a manter-se de pé. Está junto a si, abraçando-o com força, ofegante, quase desmaiado, cedendo para o chão, por um momento antes de abrir os olhos para Hisashi, e olhar, ele próprio sem saber dizer o que acabou de acontecer, para o chão, para o que está enterrado nas pedras aos pés de Eriol.

É aquele pedaço de espada, que um ano antes, Touya havia lhe entregue. Ele ainda não havia devolvido aquele pedaço da espada de Li. Simplesmente havia esquecido-se completamente daquele pedaço de aço... Sabe que foi o Carrasco que empunhou aquilo contra Eriol, apenas o Carrasco teria força de trazer para suas próprias mãos algo que estivesse longe de si. E Eriol... Saiyame levanta-se e aproxima-se, com curiosidade, a despeito de Hisashi tentando arrasta-lo para longe dali. Eriol está encostado na parede, tremendo violentamente, ofegante, escorando-se na parede, uma das mãos cobrindo o rosto. Sente seu ódio, ele não diminuiu em nada, pelo contrário. Saiyame tem certeza de que ele não está mentindo ou exagerando quando sussurra, a voz entrecortada e enfraquecida:

"... Eu irei até o inferno em busca desta vingança..." – E olha-o diretamente nos olhos, quando diz isso.

Saiyame não sente medo. Respira fundo, e aceita Hisashi aproximar-se dele, um braço em torno de sua cintura, amparando-o, e sua mão tocando-lhe o rosto, os dedos trêmulos enxugando com cuidado as lágrimas que o Carrasco havia deixado. Os olhos azuis de Eriol faíscam quando vê isso, e ele os fecha com força e com tanta raiva que não se sente capaz de olhar para Saiyame sem que seja para mata-lo.

Saiyame olha para Hisashi, e como nunca, se deixa fascinar por sua humanidade, por sua simplicidade. Está ofegante. Não sabe que tristeza é essa que sente agora... Sabe apenas como foi grande seu desespero de estar sufocado de trevas, e ver Clow erguer aquela lança para matá-lo. Está totalmente entregue, sente-se capaz de matar qualquer um que ameace Hisashi, e é capaz de quebrar todas suas promessas, passar por cima de qualquer coisa...

"Vamos..."

Hisashi o arrasta pelo braço, trazendo-o com força, com muita pressa, pelo corredor. Saiyame não olha para trás, por mais que saiba que o sussurro de Clow é ele, chamando seu nome, desejando que ele olhe para trás, desejando ardentemente que Saiyame retribua a milésima parte de seu desejo insano. Mas ele não olha. Tudo o que tem por Clow é o antigo ódio, que o tempo não teve forças de amainar, e vê-lo tentar matar Hisashi... Maldito seja, o inferno será pouco para você, Saiyame diz, só consigo, seguindo Hisashi, correndo com ele, passando pelos outros cômodos da casa, rumo à porta da frente.

"Vamos!"

Yue estará bem, Touya cuidará dele. Spinel Sun tem mais força do que nunca se permitiu descobrir. As cartas... Elas estão bem guardadas... Principalmente aquela... Não há razão de se preocupar. Mas Hisashi... Eriol quis mata-lo, não terá sossego enquanto não conseguir o que quer. Como é alto este preço... Nada é de graça. Se tiver de fugir ao lado dele, irá a qualquer lugar, mas nenhum lugar é seguro, quanto menos em que escuta a voz de Eriol, que é idêntica a voz de Clow ecoando pelos corredores, enchendo-o de asco:

"Eu irei até o inferno para buscar você, Cerberus!..."

Sim, eles não têm dúvida alguma de que isso acontecerá.

Hisashi pega sua bolsa que estava caída no chão, e também pega a de Saiyame. Não há peso, isso não irá atrapalha-los. As janelas da casa se iluminam por um momento, num relâmpago silencioso que atravessa a madrugada, e em seguida, um estrondo pelo céu, rompendo o silêncio. Eles correm, um ao lado do outro, a porta ainda está aberta, escancarada para um dia que ainda está nascendo, azulado, violeta, salpicado de gelo misturado à chuva que começa a desabar, em gotas grandes de chuva e granizo. O vento é intenso e uiva nas pontas agudas do telhado, e esse som torna tudo mais apavorante.

Eles correm e Hisashi vai à frente, e quando Saiyame passa pelo umbral da porta, nota um olhar sobre si. Ele estanca por um momento, sentindo o ar faltar, e seu hálito fumega no ar gelado desta primeira madrugada de inverno. Ele encontra os olhos castanhos e escuros de Touya, seu rosto intrigante e misterioso. Esse rosto nunca diz nada do que se passa detrás dele. Ele sustenta o olhar de Saiyame com coragem, como somente poucas pessoas se atrevem a olhar nos olhos dos servos de Clow. Ele entreabre os lábios, tenciona dizer algo, mas somente silencia. Um sorriso indefinido surge nos lábios de Touya, sempre tão sérios, e ele vira o rosto para o outro lado, soltando as costas contra o umbral da porta. Seu rosto fica completamente mergulhado nas trevas que tomam conta da casa. Hisashi volta para segurar Saiyame firmemente pelo pulso, e o leva consigo, e eles vão correndo, pelo caminho de pedras da frente da casa, e somem na chuva e na neblina, desaparecem na penumbra azul do dia que ainda não nasceu, se perdendo no inverno que está só começando, e Touya quando volta a olhar, jamais poderia dizer se eles realmente cruzaram os portões escancarados e enferrujados do jardim. Ele não escuta mais os passos apressados deles pelo chão.

Touya escuta apenas os passos correndo dentro da casa, vindo até ele, e aquele riso de menina, como antes, no salão, o farfalhar das rendas... E o riso solto de Sakura, ecoando por este palacete negro.

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Touya volta a olhar para dentro da casa quando sente a presença dele se aproximar. Emana uma aura intensa de insatisfação e raiva. Está desfeito e muito pálido. Claro que Touya sabe o que houve no corredor. Aquela luta foi tão intensa, havia um poder tão concentrado entre eles, que seria impossível não sentir, e somente não fez nada para intrometer-se naquela luta porque... Por que, afinal? Porque, Touya pensa, vendo Eriol se aproximar dele, trêmulo, exausto e ainda assim com os olhos vermelhos de raiva, como se fosse chorar ou enlouquecer, seria muito gratificante ver Saiyame, ou o Carrasco (Sim, sabia que ele estivera ali, Touya o sentiu, assim como o quanto ele estava diferente desta vez...) varrerem a existência de Clow definitivamente da face da terra. Ele poderia ainda vencer a morte e voltar, como havia retornado, na vida de Eriol? Sim. Mas isso com certeza iria demorar... Touya admite para si mesmo que apenas por isso que não foi meter-se naquela luta violenta que fez vibrar todos os alicerces do palacete.

"Você sabia que ele... Aquela aberração... Entregou cartas... As minhas cartas... para Spinel Sun e Yue?"

"Eu percebi. As duas cartas têm presenças intensas."

"Por que você permitiu isso?"

"Não sei. Eu não saberia lhe dizer um motivo Eriol."

Silêncio. Eriol pára sob o umbral da porta, olhando demoradamente para a neblina recortada de chuva e gelo. O granizo se espalha sobre a grama queimada do jardim. Sua voz é dura e direta quando fala com Touya:

"Onde eles estão? Você viu aonde foram?"

Touya balança a cabeça, negativamente, lentamente. Está mordendo a própria língua para não desatar a rir de Eriol. Céus, ele pensa... Como é bom vê-lo desesperado. Onde está toda aquela fria calma inglesa? Ele não tenta mais sequer dissimular sua loucura... Eriol não dissimula mais em nada o temperamento de Clow que domina seus atos.

"Você sabe para onde eles foram. Eles fugiram..." – Ele diz, respirando fundo o ar frio, passando as mãos pelo cabelo desfeito, pelo terno preto que o veste, sempre clássico demais para seu rosto de traços joviais. Eriol se deixa aparentar quantos anos, agora? Vinte e cinco? Vinte e seis? Ele tem naturalmente estes traços adolescentes, que não somem nem quando a maior das iras comanda seus atos.

"Era o destino deles."

"Você deve entender bem de destino."

"Sempre há algo a aprender. Não concorda?" – Touya espera que ele note, e note bem, o escárnio que transparece em sua voz. Espera que Eriol não sinta dúvida alguma que nestas palavras ele se vinga lentamente da arrogância perene de Eriol.

Ele apenas olha, se voltando para dentro da casa e chamando por Spinel Sun, como se momentos atrás ele não estivesse fazendo tudo aquilo, e dizendo aquelas coisas terríveis.

"E o seu, Eriol?..."

"..."

"Qual é o seu destino?"

Eriol olha para Touya com olhos azuis e cinzentos. São olhos de chumbo, como se torna o céu, neste amanhecer de inverno. Ele fala, mas é a voz de Lead Clow, que um dia foi o senhor desta casa e cujo sangue ainda mancha o mármore deste chão, que responde:

"Meu destino, Touya?"

Ele dá um meio-sorriso, e segue para dentro da casa, sumindo na escuridão, restando apenas sua voz, reverberando no vazio, ecoando para todo o sempre, infinitamente, numa certeza que não está apenas nele, mas em todos os que o conheceram, em qualquer uma de suas vidas, em qualquer uma das épocas em que viveu, este espírito tão antigo:

"O meu destino é pecar..."

FIM

1 "Ir para o obscuro e o desconhecido. Por aquilo que é ainda mais obscuro e desconhecido."

2 "Iluminai meus olhos, para que eu não adormeça na morte."