A Sombra e a Escuridão

Prólogo

"Não sei se estou cometendo um erro mais grave do que os que já cometi, não sei se estarei cometendo uma vil traição contra mim mesmo. Eu erro ao revelar meus segredos nestas páginas que um dia, eu sei, serão a minha ruína, e, no entanto, é tarde demais para deter o fluxo desta corrente. Que meus segredos morram todos nestas páginas, como eu morri, naquela vivenda de bárbaros, a leste..."

"Sim, eu sou um homem morto... Eu morri quando abandonei tudo o que tinha, em busca de um sonho negro que me perseguiu por noites e noites, a ponto de ele estar frente a meus olhos, e não mais em meus sonhos.

- Venha – Ele disse, sumindo na escuridão da noite. – Você está destinado a ter a todos nós, mas você precisará conquistar a mim, antes de trazer os outros para as suas mãos.

Saí pela noite afora, correndo, chamando pelos criados da casa, ordenando que os cavalos fossem preparados. Paguei em ouro e minha única bagagem era minha coragem e desespero quando embarquei naquele navio de especiarias, para atravessar em meio a uma negra tormenta até a costa do Japão. Eu era jovem, não sabia o que era, ou quem era, aquela força que viera até mim, mas ela inspirava poder, inspirava a realização de negros desejos. Eu era jovem... Mal havia me tornado o único senhor de meu palacete, assim que minha mãe havia falecido, e era ávido por conhecimento. Havia viajado muito, conhecido lugares do Oriente e do Velho Mundo, mas nem tudo o que aprendi saciava aquela ânsia.

A noite era negra, eu fui para a proa do navio, e não enxergava nada. O navio deslizava rapidamente entre a tempestade, sem deixar rastro, sem rumo... Eu me sentia como ele, negro por dentro, sem rumo. Apenas a Escuridão... Sempre ela... Guiando meu caminho."

"Era uma terra de bárbaros. Naquela época eu quase nada compreendia o que diziam as pessoas que se afastavam de meu caminho, desde quando desembarquei do navio, na costa do Japão, quando reconheciam-me como estrangeiro. Vaguei por dias, atormentado por visões mais terríveis e perturbadoras do que todas as que tivera em minha vida até então. Eu só via a Escuridão à minha frente, sempre um passo adiantado de mim, me guiando, levando-me por praias repletas de rochedos pontiagudos, carcaças de grandes animais do mar, encalhados e mortos, espalhando o contraditório cheiro da morte e o perfume delicado do âmbar-gris de brotava de suas entranhas apodrecidas. Havia também carcaças de embarcações destruídas pela tempestade. Assim eu me deixei arrastar pelo inferno de um país desconhecido..."

"Rostos estranhos, pessoas estranhas, eu despertei um terror antigo nestes corações bárbaros, meu rosto era o mesmo rosto ocidental dos piratas que violam suas mulheres e queimam suas aldeias, no litoral. Meu rosto era o dos missionários que tentam salvar suas almas à força. Nenhum deles se atreveu a ficar no meu caminho, quando cheguei a esta aldeia pequena, miserável e faminta chamada Tomoeda, como tantas outras. Nenhuma autoridade veio encontrar-me, questionar-me.

Somente um homem abriu as portas de sua casa humilde, de chão de terra batida, e me ofereceu um punhado parco de arroz, um gole de seu único saquê. E à noite, este homem cansado e marcado pelo tempo, pelo trabalho e pela miséria, me ofereceu sua jovem esposa, para me satisfazer. Ela veio chorando. Pela manhã, suas lágrimas já se esgotaram.

Esta é uma terra de bárbaros. Eu não desejaria por nada fazer essa mulher sofrida e faminta sofrer mais ainda, tendo a mim em seu corpo, sem que fosse essa a sua vontade. Eu não a forcei. Mas também eu não poderia recusá-la.

A Escuridão me fez ser cego para suas lágrimas..."

"Era ali... Ali... Longe dos olhos de todos, onde a Escuridão tinha seu recanto e seu templo. Um pássaro morto estava pregado na estaca que sustentava o pórtico do templo, do caminho de pedra, indo para o interior daquele bosque de bétulas e pinheiros. O pássaro tinha o bico aberto e a língua ressequida projetada para fora da garganta. Sua carcaça era retorcida. Ele foi pregado vivo ali. Um pássaro negro. Eu não poderia estar errado. Apesar da miséria a qual aquele lugar todo estava entregue, e que este templo estivesse quase destruído pelo abandono e pelo esquecimento, cerejeiras floresciam livremente ao redor dele.

Entrei respeitosamente, deixei uma moeda no chão, antes de entrar.

O templo tinha o chão forrado de folhas secas, e então escutei meu nome dito como se por alguém que nos conhece e há muito não nos vê. O templo era então um reino de trevas.

E num mundo de sombras, eu encontrei, afinal, a Escuridão."

"Naquele dia, eu tive a minha morte. A dor de todas as mortes. E dentro de minha alma, quando o silêncio e a dor invadiram meu corpo, não havia mais nada. Minhas mãos fecharam-se em folhas secas, que estalavam a cada movimento, quando despertei. Neste momento eu era outro. Eu me senti o que homem nenhum sonha em ser. Eu me descobri um deus, com poder, com vontade, com desejos e coragem para satisfazer a todos eles.

Jamais voltaria a ver este templo, tinha quase certeza disso, e agora acredito nisso. Jamais voltarei aquele templo humilde, nem que fosse para atear-lhe fogo. Deixo algo que faço com meu próprio poder, a partir da mesma moeda de bronze que deixei no chão do lado de fora. É um presente. Ainda não sei para quem, mas a quem couber este sino, saberá o que fazer com ele, quando a hora – não sei do quê – chegar. Pouco importa. Em alguns anos não mais me recordarei de nada disso, e mesmo agora quase me esqueço dos motivos pelos quais deixei aquele sino ali, debaixo das tábuas do altar.

Eu não voltei a ver a escuridão. Não da forma que antes, ali, antes meus olhos. Eu passei a vê-la, como vi na manhã em que despertei da minha morte, em minhas mãos, aprisionada de bom grado, olhando-me através de olhos vermelhos, naquele gasto cartão de couro pintado de ocre e índigo negro.

A primeira das cartas. A primeira, mas não a última, e não a menos importante de todas. A Escuridão. Ela jamais teria ido ao meu encontro, como veio apenas uma outra, depois dela, se não escutasse em mim um eco de si mesma. Minha mãe possuía este mesmo eco, e todas as mulheres antes dela. Este eco era tão intenso que matou meu pai, e a matou. Este eco de Escuridão também me matou, mas trouxe-me de volta. E ela, totalmente dentro de mim... Numa treva tão absoluta que para tentar iluminar meu caminho dali em diante, nem todas as outras cartas seriam capazes de fazer."

"Era uma carta como eram as cartas das ciganas da Europa, e não muito distante, em forma, tamanho e em sua ilustração, daquelas que interavam as de Marselha. Com o tempo, e após as sete primeiras, descobri que elas poderiam ser usadas quase que da mesma forma. Quase. O que acontecia mais freqüentemente era o espírito preso nelas se manifestar. Algumas vezes, como a carta do Fogo, de uma maneira selvagem e descontrolada. Mas sempre de uma forma consciente e ardilosa. Muitas vezes sinto receio por estar lidando com arte tão delicada, mas cada morte cometida em nome do poder, é um assassinato cometido com prazer. Nenhuma mente vulgar poderia compreender tais coisas em toda sua grandeza."

"As cartas completaram-se quando aquela que chamei de Justiça veio ao meu encontro. Sei o que ela significa frente às outras e em relação a meu futuro. Mas não farei nada que contrarie o menor de meus desejos. Não sou um homem, sou mais do que um homem. Não sou um camponês ou um jesuíta crédulo, para temer quaisquer destas coisas, ou a conseqüência delas.

Meu conhecimento amplia-se, eu me sinto crescer como sábio. Não hesito em dizer que terei meu nome escrito com sangue nos tomos das sociedades secretas de todo o mundo, e serei lembrado ao lado de outros que como eu estudaram esta arte tão refinada.

Mas por tudo se paga um preço.

Pessoas rondam minha casa, e acumulo mais inimigos do que acumulo conquistas amorosas.

Recordo-me de um antigo sonho, de quando ainda era um rapaz, estudando na Europa, e que neste sonho, adentrava uma sala de chão de mármore, com o chão repleto de cacos de espelho, e via um leão no chão, à direita de uma cadeira, e à esquerda, uma estátua de gelo, transparente como vidro. Eu também via uma pantera passar à minha frente, antes de conseguir me aproximar da cadeira vazia, e quando estendia a mão para tocar na madeira envernizada do espaldar, e no veludo vermelho da forração, tudo desaparecia. No meio da Escuridão, tudo o que eu via era uma sombra... De mim mesmo, e de uma única borboleta, circulando em torno de minha mão."

Fragmentos do Diário do Barão Lead Morrisey Clow,

gentil-homem inglês em terras pertencentes à Coroa Inglesa, em solo do Oriente.

1746. Ano do Senhor.