A Sombra e a Escuridão

Capítulo 1

Inglaterra,

A casa me parece maior e mais escura, incrivelmente parecida com aquele palacete de Hong Kong. O primeiro rosto que vejo é o de Akizuki, vindo pelo corredor, fácil de confundir com uma mulher, fácil de confundir com um rapaz, e suas perguntas, sua curiosidade quase mórbida em relação a tudo o que acontece com Eriol, sua maneira de fingir que ele retribui sua dedicação. Não consigo responder-lhe muita coisa. Eriol está aqui. Pergunte a ele. Passo direto por Kaho, ela não se incomoda comigo, não mais do que deveria esperar dela. Pode ser providencial. Enquanto o bombardeiam de perguntas, posso chamar discretamente uma das empregadas e mandar que ela arrume uma mala de viagem. Não, não esta que está nas minhas mãos, esta não servirá. Você não viu nada. Todos os empregados desta casa têm a vantagem de serem acometidos de amnésia, cegueira e surdez, de vez em quando.

Tranco a porta do quarto para que ela faça seu trabalho. Procuro detrás dos livros do armário da parede do meu quarto, entre a madeira e a parede forrada de cetim verde-esmeralda, e encontro a passagem que tinha guardado. Paris não pode mais esperar, agora mais do que nunca. Afago sem querer a carta que está no bolso de meu sobretudo, quando guardo a passagem, e estremeço só de imaginar o que Eriol poderá fazer.

Se ele sabe que esta carta está comigo, ele está apenas esperando para fazer alguma coisa. Daria tudo para poder dormir agora, nem que fosse preciso me esconder naquela forma de animal e me enfiar debaixo de algum sofá da casa. Ainda não tivemos tempo de parar para conversar, mas sinto em seu olhar que ele deve ter algo a me perguntar, e tem a ver com o que Cerberus conversou comigo e com Frost.

Não, não adianta pensar neles agora.

Sinto falta de Frost andando pela casa – Ele é um bom menino, gostava de conversar, e gostava de ficar revirando meus bolsos atrás das balas de menta que trazia para ele, e quando Akizuki não tinha seus ataques de ciúmes, o ajudava a fazer seus deveres –, porém é melhor que não esteja aqui para ver isso.

Respiro fundo e procuro por documentos necessários para a viagem, enquanto a empregada me pergunta indiferentemente se prefiro que coloque o terno branco ou o cor-de-vinho na mala. Eu não confio no seu bom-gosto, Betsy, mas faça o que quiser. Ela coloca os dois. Guardo os documentos e o dinheiro francês dentro de uma mesma carteira. O nome que há nestes documentos não é o mesmo pelo qual sou chamado nesta casa. Isso não importa. Pego as chaves da casa e coloco-as no bolso. A casa é minha. Quando chegar lá, poderei dormir o quanto quiser. Qualquer coisa é melhor do que aturar as perguntas de...

"Eriol?"

Ele está parado à porta, o ombro encostado na madeira do umbral, displicente, tranqüilo, parecendo mais cansado do que antes. Nunca viajamos tanto com tanta urgência, e ele mal pregou os olhos durante os vôos, sempre pensando. Ele pensa demais, coisas difíceis de adivinhar. A única pessoa que conheço que sabe até com que humor ele vai se levantar pela manhã é Akizuki. Ele sabe, inclusive, quantos torrões de açúcar Eriol gosta de ter em seu café, e respeita o fato de ele gostar de chá adoçado com mel. Kaho jamais engoliu não saber tanto assim sobre ele.

"Se já terminou seu serviço, Betsy, pode sair agora."

"Sim, senhor Hiragizawa." – Ela some literalmente de vista quando passa pela porta.

Eriol então dá mais um passo para dentro do quarto e acende a luz do interruptor da parede. Apesar de ser de manhã, o tempo está carregado e chuvoso, e o sol não consegue atravessar as janelas altas. A luz da lâmpada invade o quarto. Pela primeira vez em todos estes anos não consigo depositar confiança no que ele pretende, fechando a porta delicadamente detrás das costas. É estranho, sempre tive confiança nele, amizade... Até dois dias atrás. Estava tão cansado e irritado, tenho certeza de que falei mais do que deveria, quando conversei com Cerberus. E ele... É tão diferente da última vez que o vi, achei que eu era o único que podia manifestar uma forma humana, e foi uma surpresa vê-lo se mover como um humano. De todas as maneiras, ele é muito diferente do que imaginei, e bem diferente também do que estava descrito no diário de Lead Clow.

Mais estranho ainda...

Estou olhando nos olhos cor de chumbo do próprio Lead Clow, quando Eriol levanta a mão, me mostrando a chave que é cópia da que fecha a porta deste quarto. Ainda não disse nada, é do seu feitio esperar que os outros comecem o assunto. Olho para o relógio na parede e conto os minutos que levarei para chegar ao aeroporto. Uma vez fora desta casa não terei de responder nenhuma pergunta e nem aturar nenhuma exigência. As coisas mudaram entre nós rápido demais. Esta carta deve valer muito mais do que eu posso imaginar. As páginas do diário de Clow que falavam sobre ela estavam cobertas de rabiscos quando não estavam completamente rasgadas. Eu gostaria de ter podido conversar mais com Cerberus sobre isso tudo... Sobre o passado e sobre nós. Todos nós.

Se não estivesse tão perto da porta, eu sairia sem nem olhar para ele. Não estou com a mínima vontade de dar explicações, nem de conversar, ou de falar sobre essa coisa que está no meu bolso. Eu poderia viver sem ela, mas talvez só o que me garanta viver agora seja...

"Eriol, eu quero falar com você!" – Akizuki invade o quarto, empurrando a porta com toda a força, quase a arrancando da moldura, tanta a sua força para abri-la. O que deu nele? O olhar de Eriol é assassino quando se volta para Akizuki.

"Depois, Nakuru."

"Eriol, eu disse que quero falar com você!" – Parece surdo. Agarra Eriol por um braço e tenta arrasta-lo para fora. O que esse louco está tentando fazer?

"Não pode esperar?" – Eriol acaba se distraindo, tentando se soltar das mãos de Akizuki e de suas delirantes acusações.

Ele está inventando mais uma crise de ciúmes. Que hora para isso. Não são nem oito da manhã... Está fazendo um escândalo, está inventando coisas inacreditáveis... Não digo nada. Apenas vejo-o levar Eriol debaixo de uma avalanche de protestos e expressões de raiva. Ele se esqueceu de mim, vai durar apenas um momento, tenho certeza. Akizuki estava ouvindo detrás da porta de novo, seu balanço de cabeça e seu olhar para mim, quando leva Eriol para o corredor não negam que ele sabe mais ou menos o que está havendo. Vamos, mexa-se, ele me diz nesse gesto, não sei quanto tempo ele ainda vai acreditar em mim!

Tem razão.

Agarro a alça da mala e apenas procuro fazer menos barulho do que nunca ao pisar, quando passo correndo pela parte do corredor entre meu quarto e as escadas, e daí para frente, com toda a pressa do mundo.

Fugindo...

Eu nunca achei que um dia fugiria dele.

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Inglaterra, 1876.

"Será apenas uma viagem de negócios. Será bom para nós viajarmos todos juntos, em lugares tão exóticos, entre povos tão diversos. Será bom para a educação do pequeno..."

"Não. O oriente é um lugar selvagem... Eu ouvi as histórias. Neste tal país, as pessoas curam doenças com infusões de escorpiões!.."

"Eram os tempos antigos. Agora há modernidade! Há progresso!" – Ele argumentou, enquanto folheava mais uma vez aquele livreto colorido, repleto de desenhos sobre as terras do oriente. – " Pela Europa iremos no Expresso do Oriente. De resto, o navio. E diversos portos e cidades para conhecer. Será uma experiência única para todos nós!" – A idéia de desbravar aquele lugares tão distantes o enchia de expectativa e ânimo. Nunca havia conhecido o berço de seus antepassados e de seus pais, queria ao menos mostrá-lo ao seu filho.

"Não!" – Ela estava menos relutante do que a princípio, porém ainda irredutível. Era uma mulher que nascera e se criara em torno de luxos e sedas. Educada em Paris, entremeava suas palavras com expressões em francês e um ligeiro sotaque, tão agradável de ouvir que até seu marido poderia esquecer que ela era tão inglesa quanto a casa em que viviam. Tão inglesa quanto ele mesmo. Embora neto de orientais, ele já sentia-se tão inglês quanto qualquer outro, e tratado como tal, com modos refinados como tal, com uma fortuna construída com boas sociedades, tecelagens, funilarias, importações e estradas de ferro na América Ocidental, onde o progresso chegava nas linhas de trem e telégrafo.

"Você conhecerá afinal legítimas sedas chinesas."

"Sedas? Oh, não! Meu filho não conhecerá aqueles bárbaros!"

"Vai escolher as sedas que quiser. Sombrinhas, biombos, pentes... E não se esqueça de que é casada com um bárbaro, portanto!"

"Oh, não se atreva!..."

"Oh, sim, eu me atrevo. O Expresso do Oriente parte quinta-feira. Hoje ainda é sábado." – Ele se levantou e afagou delicadamente o ombro daquela mulher que parecia feita de porcelana, que cruzava os braços, falsamente indignada. – "Vai ter tempo de sobra para arrumar as malas."

E assim eles partiram. Uma das famílias mais ricas de Londres partia rumo ao oriente em uma viajem que deveria durar no mínimo dois anos. Eram felizes. Isso era inegável. Quincey Hiragizawa não tinha com o que se preocupar, e nunca economizou para dar boa educação ao seu filho e conforto para sua mulher. Ela era quase trinta anos mais jovem do que ele, educada em Paris e herdeira de várias casas em Montparnasse e nas proximidades do Bois de Bologne. Embora negasse querer ir naquela viagem, não disfarçou nem um pouco seu sorriso de exultação quando embarcou no vagão reservado a eles, no Expresso do Oriente. Apertou com mais força o pequeno Eriol no seu colo, que pressionava o rosto redondo contra o vidro, enquanto o trem estremecia e acelerava, o apito e a fumaça se espalhando na estação lotada, os amigos acenando do lado de fora...

A viagem de trem pareceu muito mais breve do que imaginavam que pudesse ser, e quando, após atravessarem de navio, de Constantinopla até o Cairo, e em seguida, pelo Mar Vermelho, até Bombay, nas Índias Inglesas, o mar tornou-se calmo, o vento, veloz. O Capitão que comandava aquela escuna alemã que transportava especiarias apenas bendizia o bom tempo. Mas as passagens por aqueles portos não eram desperdiçadas. Havia mais de duas semanas entre uma viagem e outra, e aquela família aprendia sobre o lugar, palavras, hábitos, sem se deixarem perder em seus hábitos ingleses e ensinava o mais que podia, sobre aquela estranha e minuciosa, particular maneira de fazer sua diplomacia. Em quase nenhum daqueles lugares exóticos, portos repletos de estrangeiros, e hotéis cheios de aventureiros e estranhos, alguém já ouvira falar deles, daquela família tão rica. Isso lhes dava uma segurança tremenda.

Estranhos galanteavam aquela jovem mulher, e seu marido permitia que ela dançasse com eles nos bailes das embaixadas. Estranhos encantavam-se com a educação de seu filho e com seus olhos azuis. Estranhos vinham até ele, conversavam sobre tudo e sobre nada. Liberdade. Poderiam passar o resto da vida vivendo suas pequenas aventuras nas seculares cidades do oriente.

De Bombay em diante, para mares mais quentes e agitados, as paradas tornaram-se mais freqüentes. Habituaram-se a voltar a aprender, e de repente o mundo que era suas vidas antes daquela viagem parecia frio e pequeno demais para tudo o que haviam visto até então. Quincey tomava Eriol nos braços e apontando-lhe várias direções nos horizontes, na proa do navio, contava-lhe sobre piratas, pescadores de baleias, e toda sorte de lenda que o mar inspira. Eriol crescia assim. Aprendia com facilidade palavras estrangeiras, aprendeu a língua de seu pai antes dos cinco anos de idade, e agora aprendia cada vez mais. Aprendia a de sua mãe, escutando-a conversar com outras senhoras à bordo. Aprendia até o que não deveria, escutando as conversas dos estrangeiros, enquanto brincava pelo convés ou pelos corredores dos salões internos dos navios.

"Irmão maçom..."

"Salve filho do dragão..."

"Ave Satani..."

Palavras perdidas, significados diversos. Nunca vira seu pai participar de nenhuma daquelas conversas que se iniciavam sempre com cumprimentos como estes, embora ele conhecesse alguns daqueles homens. Alguns eram ingleses, franceses, austríacos e belgas, e haviam também outros... Árabes, tailandeses e chineses. Destes e apenas destes Eriol atreveu-se a se aproximar tanto que um dos estranhos, parando a conversa, naquele canto do convés ensolarado, entre mulheres de sombrinhas rendadas e marujos de branco impecável, chamou-o e sorriu. Disse-lhe polidamente que sua curiosidade era demais para alguém tão pequeno, e que esta vontade de saber demais poderia destruí-lo, um dia. E afagou-lhe o cabelo muito preto, sobre o boné azul. Apenas isso.

Eriol sentiu-se tão mais curioso que por pouco não teria perguntado o que significava aquela conversa ligeira no canto do convés, aquelas palavras, sentidos misteriosos. Raramente escutava conversas assim, e nunca com tanta clareza quanto escutou essa.

Sua mãe o chamou, e olhando fixamente para aquele chinês gordo como uma estatueta de louça e vestido com tantas cores quanto possível, Eriol afastou-se dele, e não voltou a escutar nenhuma daquelas conversas, ainda que as palavras, as saudações, fossem vivas em sua mente.

Passaram ainda por Calcutá, Singapura, Jacarta, e demoraram-se longos seis meses ainda em Xangai, impedidos de viajar por conta das chuvas, e por conta do impedimento dos navios ingleses aportarem, por causa de uma epidemia de cólera. Mas isto não os amedrontou, sentiam-se aventurosos como qualquer estrangeiro no oriente.

Quando a epidemia já não era tão perigosa, embarcaram para Fiji, Bora-Bora e Taiti, onde Quincey Hiragizawa fez negócios, tomou acordos e adquiriu sociedade em uma das Companhias Inglesas de navegação. Estavam no ponto máximo de sua longa viagem e Eriol já contava nove anos recentes, comemorados numa noite em que se via, à milhas de distância no mar aberto, o céu avermelhado a leste, do fogo de um vulcão em Java. Os negócios do oriente estavam fechados, restava apenas um porto para visitar, e então, fariam o caminho de volta, com tanta pressa – ou falta dela – quando o fizeram no começo desta aventura.

O próximo porto a conhecer era Hong Kong.

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Paris,

Aqui é o único lugar do mundo em que posso estar escondido. Ele sabe onde fica esta casa, o nome da rua e até o número da frente do portão. Mas ele não se atreveria a vir aqui, embora um dia já tenha tentado tirá-la de mim. Esta casa não tem telefone, televisão, o único rádio é um antigo modelo – arrematado em uma obscura casa de leilões na rua adjacente ao Champs Elysees – onde por alguma espécie de superstição, há anos a única rádio em que está sintonizado é a que toca as músicas mais antigas. Nesta porta não chegam correspondências (não freqüentes, ou de pessoas que não saibam exatamente a razão de escreverem), não são entregues jornais e nem revistas (não os leio, por mais tentador que seja saber de qualquer notícia de fora) e as contas são entregues diretamente ao banco, e quando há assuntos para serem resolvidos fora, mensageiros experientes e extremamente discretos são enviados para repassar breves recados verbais, ou apenas envelopes marcando horas, convites, reuniões, saraus e óperas. De tudo, não freqüento quase nada, os lugares que freqüento são pouco e selecionados, as pessoas com que tenho contato são poucas e com todas tenho laços de amizades antigos. Muito antigos.

Também não costumo sair durante o dia, embora acorde quase sempre muito cedo. Gosto de sair logo que anoitece e evito lugares vulgares. A vulgaridade de hoje nada tem da elegância de antigamente. Nesta casa vivo quase que o tempo todo sozinho, e apenas uma velha criada vem observar a ordem das coisas, oferecer-me chá e às vezes sentar-se ao meu lado na sala-comum, como não fosse apenas a criada, enquanto uma outra empregada, mais jovem e que vem com ela, limpa o pouco que há para ser limpo nesta casa.

Em meus armários há ternos feitos sob encomenda, camisas italianas e sapatos de couro. Também há perfumes finos e caros sobre a cômoda, ao lado de um pente de madeira de dentes largos e de um aparador onde costumo deixar as gravatas que usarei à noite. Minha cama é larga e coberta sempre por uma colcha vermelha – Mais uma superstição estranha. Desde que a última pessoa que realmente tinha valor deitou-se nesta cama, que todas as colchas sobre ela tem sido vermelhas – e durmo sozinho nela. Sempre. Salvo apenas por duas vezes, nunca trouxe nenhum amante ou conquista para esta casa e apenas amigos muito raros e confiáveis tiveram este endereço e souberam que eu vivo aqui.

Nesta época do ano, o vento traz pelas portas abertas do jardim de inverno as folhas secas das plantas do jardim interno – o jardim de inverno – , elas se espalham no mármore do chão e quando as piso, sinto que estou em casa e seguro. Não gosto da solidão, mas ela me conforta. Aqui, pisando sobre folhas secas que estalam sozinhas e com esta maleta no chão ao meu lado, eu sei que estou em casa. Aqui eu não preciso ser o que quiseram que eu fosse, eu sou apenas o que eu quero ser. Aqui, eu não sou Spinel Sun.

Aqui eu sou Sheridan. Mais nada.

E eu realmente gostaria de saber se Eriol faz alguma idéia sobre eu ter um nome que não tenha sido o que ele deu a mim. Eriol sabe muito pouco, quase nada, sobre mim, embora nos conheçamos quase que por uma vida inteira. E até além dela.

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Inglaterra,

Eriol não fuma, somente quando oferecem-lhe cigarros de tabaco fino, e destes ele prefere os que tenham anis. Ele também gosta de chá de anis, e Akizuki sabe que deve cuidadosamente quebrar um dos torrões ao meio, pois ele prefere apenas um torrão e meio em sua xícara, isto quando não prefere que o chá seja adoçado com mel. Ele não está mais calmo, apesar de ter sorrido para a empregada que acaba de colocar ao seu lado a correspondência do dia. Ele está furioso e amaldiçoa Spinel Sun em voz baixa, mas Kaho ouve cada palavra, com curiosidade e ânsia pelo que acontecerá agora. Ela sabe o quanto vale aquela carta, embora nunca a tenha tido nas mãos e compreenda a natureza a qual pertence, e esta natureza não é tão diferente da sua.

"Akizuki, onde estão meus óculos?" – Ele pergunta, casualmente, depois de terminar o chá. Afrouxa um pouco a gravata e não parece disposto a dormir. Duas horas atrás era como se fosse colocar a casa abaixo, quando descobriu que Spinel Sun já havia conseguido ir embora da cidade. Parece outro, sua frieza voltou a reinar, a casa quase parece em paz, e mandou que Betsy, a empregada, deixasse sua mala no mesmo lugar, ao lado da porta da frente. Não pediu uma muda de roupas, ele continua com as mesmas com que chegou, o terno de risca-de-giz cinza, lustrosos sapatos de verniz. Kaho olha para ele como visse alguém que pensou que nunca mais veria, e ela descobre que nunca havia visto-o, em todas as formas que ele já vestira, com a barba por fazer, como agora. – "Akizuki?"

Akizuki pede que ele espere. Abre outra gaveta e finalmente encontra os óculos de Eriol. Os que levara para a viagem se quebraram. Ele os entrega e se senta no sofá oposto ao de Kaho. Eriol está sentado sozinho em sua poltrona vermelha, e a poltrona ao seu lado está vazia, e normalmente Kaho estaria ali. Uma tensão paira entre eles e Eriol Hiragizawa sabe que de nada adianta gritar com Akizuki, ele apenas vai fingir que nada escutou e continuar como se nada houvesse acontecido. Kaho? Talvez possa confiar nela, mas sua curiosidade dias antes, não serviu-lhe de bom sinal.

Ele coloca os óculos e a sala torna-se mais nítida, até suas idéias se tornam mais claras. Ele pede a Kaho a agenda de telefones. Antes de terminar de falar, Akizuki estende o livro a ele.

"Não sei o que seria de mim sem você." – Ele diz para Akizuki, que solta uma exclamação de alegria ao ouvir isso. Eriol, como poucas vezes, é sincero ao dizer isso. Mas uma recordação antiga e que não deveria pertencer-lhe faz com que pare um pouco, olhando para ele e pense em Cerberus. Clow, aquele que Eriol foi um dia, também deveria ter-lhe dito isso, pois nunca houve servo tão leal quanto aquele. Eriol também pensa naquele estranho de olhos verdes que estava com Cerberus, o curandeiro, e sua raiva retorna tão intensamente que Akizuki pode senti-la como uma onda passando pela sala.

Eriol folheia a agenda e pega o telefone que está na mesa ao seu lado. Silenciosamente disca e espera. Dois minutos depois desliga, procura outro telefone e disca novamente. Espera. Pede por um dos nomes de seus amigos e rapidamente anota na beirada da agenda outro número. Desliga. Telefona este que anotou e espera. Cumprimentos gentis, gentilezas, inicia-se uma conversa de velhos amigos e assuntos banais. Pede um momento.

"Saiam. Se escutarem pelo outro telefone, eu saberei." – Ele sabe que Akizuki não faria isso, mas Kaho?... Eriol já não tem tanta certeza.

Eriol fica sozinho na sala e resguarda um longo silêncio antes de retomar a conversa com seu amigo.

"Apollinaire, está tudo bem agora. Você deve saber que este telefonema não é apenas por amizade."

"Eu sei que não. Esta manhã, quando acordei, eu sabia que hoje você me cobraria por aquele antigo favor."

"E quanto vale aquele favor que você me deve? O quanto posso contar com você, Apollinaire?"

"Até se quiser dormir com a minha mulher ou com a minha filha, será pouco para pagar. Peça o que quiser, Hiragizawa."

"Eu preciso de alguém que não tenha medo. Eu quero que você encontre este alguém aí mesmo, na sua cidade. Este alguém deve ser capaz de cortar o pescoço de sua própria mãe pelo preço de uma moeda furada, você compreende?"

"Eriol, você quer o quê? O diabo em pessoa?..."

"Não é uma má idéia."

"..."

"Eu preciso de um caçador. Paris é uma selva de luzes e espelhos, eu preciso de um caçador que se mova nesta selva sem medo de absolutamente nada."

"Eu não conheço tal pessoa. Se estivesse em outra cidade?... Paris é um lugar para poucos, para passantes..."

"Você vai querer me dizer que nunca ouviu falar de ninguém assim? Apollinaire, eu quero um caçador. Impossível, sendo você quem é, que não conheça tal pessoa."

"Eu conheço."

"..."

"Ele é o diabo em pessoa, Hiragizawa."

"Que seja."

"Você o conheceu. Na mesma época em que você me conheceu. Ele estava no leilão do Renoir."

"Não brinque comigo. Diga-me se conhece ou não esta pessoa, este caçador de que preciso."

"Eu conheço. Ele esteve sentado ao seu lado."

"Havia apenas uma mulher sentada ao meu lado, naquele leilão."

"Era ela. E também era o ancião que deu-lhe boa noite assim que você entrou no salão, e também era o rapaz que serviu a sua taça de champagne."

"... E como se chama esta pessoa?"

"Já disse. Ele é diabo em pessoa."

"Sendo ou não, então chame-o e faça dele o meu caçador em Paris. A cidade é grande, mas ele não precisa procurar muito para achar."

"Qual seria esta caça?"

"Uma pantera."

"Se eu disser isso a ele, ele entenderá isto como uma piada."

"Que entenda, mas quero que esta pessoa que você diz que é o demônio cace esta pantera para mim, em Paris e eu..."

"Você?..."

"Eu estou partindo agora mesmo. Enquanto ele estiver caçando uma pantera, eu estarei à caça de um leão. Mas você estava falando sério sobre deixar que eu dormisse com a sua mulher?..."

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Paris,

Acordo sem saber onde estou. Reconheço o teto de lambris pintados de branco fosco, pintado com flores pastéis, e respiro fundo. Também reconheço o branco das paredes. Minhas roupas estão sobre a cadeira ao lado da cama e a porta do quarto está aberta, lá fora está escuro e o que ilumina as coisas é a luz do corredor. Tudo é familiar. Isso é reconfortante. Os sons são os da rua, entrando pelas janelas abertas. É o meu perfume, e apenas ele, nos lençóis da cama. Dormi o dia todo, e nem achei que estivesse com tanto sono assim, mas eu sempre durmo demais, e às vezes em momentos inacreditáveis, e nas horas mais estranhas, consigo cochilar. Talvez faça parte de nossa natureza, do modo que fomos criados. Estranho que nunca parei para pensar que fosse o único, embora soubesse disso, porém, a imagem de Cerberus sobre duas pernas, uma forma humana como a minha, esta imagem ainda está no fundo dos meus olhos como uma imagem aterrorizante e chocante. Não, não sinto medo, sinto o choque de tê-lo visto assim. E seu nome não é mais Cerberus, nunca foi e eu compreendo isto, porque meu nome também nunca foi esta piada de mau-gosto de que Eriol gosta de me chamar. O sorriso de Eriol nunca me foi estranho e nem consigo saber a razão. O rosto de Cerberus também não me é estranho, aquele rosto tão jovem e tão antigo... Em uma das partes do diário de Clow havia algo escrito sobre ele, sempre havia algo escrito sobre ele, e nem posso imaginar ou perguntar o motivo de tanto interesse de Clow, e muitas vezes penso que nem mesmo Eriol sabe responder isso, levando em conta a irracionalidade das coisas que fez, dias atrás. Nós não somos tão poucos quanto sempre gostei de pensar, reconheço, e esfrego os olhos, afastando o torpor do sono definitivamente. Nós somos quatro, cada qual a seu tempo, cada qual a sua tarefa junto ao mestre. Cerberus, não me recordo seu nome, ele poderia responder muitas perguntas que teria a fazer-lhe, sobre Clow, sobre o passado, sobre as cartas, e talvez sobre o que devo fazer agora. Talvez aquele homem da rosa-cruz que escutei falando ao público anos atrás estivesse totalmente enganado ao afirmar que algumas pessoas podem estar em dois lugares ao mesmo tempo, pois eu gostaria que isso fosse verdade neste momento. Minha natureza é a de qualquer coisa, menos de algo que pertença a este mundo e até eu temo por isso, mas não creio que seja possível isso.

Porque fico aqui, deitado, pensando bobagens, e coisas impossíveis, se Eriol deve estar querendo minha cabeça, do outro lado do Canal da Mancha? Ele não viria aqui, embora até saiba onde guardo a cópia da chave desta casa, ali, dentro da lombada do Saramago, o segundo livro da primeira prateleira. Ele sabe cada detalhe daquela casa como conhece cada parte de seu próprio corpo, já o vi saber até a hora exata em que um copo iria se quebrar na copa, então não me espanta que Eriol saiba também de detalhes de minha vida, mas ele não sabe meu nome, e o que sabe chega até ele como pedaços de um livro rasgado. Ele consegue ler algumas palavras, compreender algumas partes, mas nunca conseguirá juntar a página inteira.

Há uma semelhança entre esta sensação e as coisas que Clow dizia em seu diário, sobre o Leão, de estar perto dele e nunca atingi-lo, nunca saber o que havia dentro dele, e que ele era tão inumano que tentar compreendê-lo, de qualquer maneira que fosse, era algo capaz de enlouquecer um ser humano.

E tudo isso foi feito pela mão de Clow. Assustador. Eu também fui feito pela mão de Clow. Ele apenas mudou o animal, a função a que eu devo prestar-me para Eriol, é exatamente a mesma. E quando eu deveria afinal cumprir estes mandos, eu fiquei parado, e admito para mim mesmo que ansioso em ver Eriol ser humilhado.

Eu mesmo não me compreendo e me surpreendo com este tipo de sensação. A quietude da casa parece vibrar quando sinto toda a raiva de ter Eriol me chamando por aquele nome estúpido, todos estes anos. Cerberus deveria também se sentir tão mal quanto eu, sendo chamado pelo nome de um monstro, e eu, por uma piadinha idiota inventada por alguém com um senso de humor muito duvidoso.

Fico por muito tempo escutando o que se passa ao redor, por fim olho para o sobretudo jogado no sofá do canto e penso na carta em seu bolso. Mal olhei para ela desde que a guardei. Vai ficar aí, dentro do sobretudo, e o sobretudo sobre o sofá até que eu pense em algo. Há muitos anos que não pratico feitiçaria, mas creio que será fácil lembrar de como fazer um círculo de defesa em torno da carta, apenas para que ela não chame mais atenções para si do que já tem feito.

Levanto da cama sem me importar com o lençol que fica meio sobre ela e mais da metade no chão. Aqui posso me dar a este luxo. Não acendo luz alguma, consigo enxergar perfeitamente na escuridão, vou para o banheiro e percebo o vapor da água quente da banheira, quando viro as chaves. Eu gostaria de sair hoje. Não um lugar em específico ou um lugar da moda, mas andar, sem pensar num rumo e ver pessoas. Ir a um café... Chocolates recheados de calda de laranja, outros com glacê e avelãs. Não, não, isso não. É perigoso. Doces me fazem fazer coisas estranhas. Entro na banheira, a única luz é a que entra pela janela alta e de vidro fosco, agora embaçado. Sei que a água está muito quente, mas sinto apenas um morno acolhedor. Posso também segurar ferro em brasa e nada irá me acontecer, sinto o calor, mas não me queimo, e algumas vezes percebi que também consigo atear fogo em algumas coisas, se realmente quiser, ou ter uma razão que justifique o esforço. Não que seja tanto esforço assim, mas... Eu tenho preguiça.

Tento lembrar se há algum livro que queira ler, posso ir a uma livraria e comprar alguns. Minha mão se ergue no escuro e vai certeira sobre o sabonete na beirada de mármore ao meu lado. Eu tenho preguiça de fazer qualquer coisa quando estou em Paris.

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Escolho roupas ao acaso dentro do armário, mas não há erro. O paletó marfim, a gravata cor de vinho. Tenho preguiça de sair e talvez seja ainda cedo demais, se pelo menos eu tivesse um relógio nesta casa para ter certeza. Meu Rolex está parado há anos, descubro quando o encontro na gaveta. Vou andar pelo Bois, e depois, quando for mais tarde, irei para Montparnasse. Vou para aquele café centenário do fim da rua, na curva da esquina do teatro. Se eu soubesse que dia é hoje poderia ir para a frente do teatro, sentar nas escadas e escutar o eco da ópera. Como eu consigo pensar em óperas quando estou com um problema daquele tamanho dentro do bolso do sobretudo? Sinto que não estou sozinho nesta casa, e que esta companhia não são os ratos que vem pelo telhado roubar as sementes que a empregada deixa para os passarinhos na pedra da janela.

Sinto que estou acompanhado muito de perto por alguém que não posso ver, mesmo sendo quem sou, mas ainda que não seja humano, não costumo, como diz Akizuki... Ver assombrações. Nem creio que existam, apesar de saber que pessoas como o irmão da morta Sakura não apenas falam com os mortos como os vêem por toda parte. Nunca perguntei, mas algumas vezes que vi Eriol ficar muito tempo quieto num canto da biblioteca de sua casa para depois mudar de idéia repentinamente sobre algo, quase tive certeza de que ele também é capaz de escutá-los. Kaho nunca se aproxima nestas horas, ela nunca entenderia, mas deveria...

Não vou pensar neles, nem quero. Akizuki diria que eu estou com medo realmente de ter assombrações nesta casa. Não tenho medo disso, e nem das cadeiras que se arrastam sozinhas no andar de baixo, e sei que se movem, livros se abrem sobre as mesas e de tempos em tempos as folhas viram. Não tenho medo disso, ou da sensação que percebo, sozinho neste quarto escuro, numa casa quase toda silenciosa. Vou até perto da porta e acendo a luz do teto. Agora sim tenho medo, não gosto de me assustar comigo mesmo no espelho. Tenho medo de mim mesmo mais do que de outra coisa.

Minha pele é toda negra. Eu não sou um raio de sol como aquele nome pelo qual Eriol me chama quer dizer. Minha pele é toda negra assim como meu cabelo, que é liso e vai até minha cintura, completamente reto. Completamente negra, como houvesse sido pintada, e meus traços são finos, a despeito disso. O que me separa de parecer como qualquer humano é a cor de minha pele. Meus olhos são verdes e muito claros, muito mais chamativos do que gostaria. Eu mesmo assustei-me quando olhei-me num espelho pela primeira vez. Eu talvez um dia tenha tido a pele branca e os olhos comuns de um humano? Não sei, mas quando vi o quanto era negro, a primeira vez que constatei isto frente a um espelho, eu acreditava que sim. Não sei se gostaria de saber, mas... Isso importa?

Minhas roupas estão alinhadas, escolho um perfume de aroma ligeiramente cítrico, mas não adocicado para sair esta noite. Não será uma noite como as outras, talvez pela manhã Paris inteira, ao menos a parte que se interessará pelo assunto, estará toda sabendo que estou aqui, e dentre estes, os que mais se interessarem ainda, estarão dispostos a vender a alma ao diabo para obter esta carta que está comigo. Que vença o melhor. Não vou enlouquecer por isso agora. Eu gostaria de conversar com Cerberus para saber mais sobre isso, mas o que faço é antes de sair para a rua, é passar pela biblioteca e pegar aquele livro que anos atrás desisti de tentar entender.

O diário de Clow.

Esta será a melhor companhia para uma noite tão inquieta.

Nunca gostei de ler este diário, é invadir e vasculhar as gavetas de um morto, olhar cada detalhe dos seus armários, não gosto de ter lido este diário mais vezes do que deveria, e li muitas vezes, algumas partes são incompreensíveis, as páginas estão rasgadas, e cheias de desenhos. As páginas ainda têm, detrás do cheiro de mofo e papel antigo, um cheiro de um perfume que nunca foi de todo desconhecido. Vou pela rua folheando-o rapidamente. Vou começar do começo, pelo menos do que parece ser um começo, pois as páginas estão rasgadas, mas sei que não adianta. Este diário não ajuda a desvendar o passado, apenas a deixar o presente mais preocupante.

Eu deveria estar louco quando aceitei aquela carta nas minhas mãos. Ela jamais deveria ser minha. Quanto mais me afasto da casa, deixando seu portão decorado para trás, e desço a rua para o Bois, mais sinto a importância disso tudo. Preciso me distanciar o mais que posso, e quando estou já nas largas calçadas do Bois, olho para trás, na direção de minha casa, e percebo que estou em perigo, pela primeira vez em minha vida. Não, não é a primeira...

CONTINUA