A Sombra e a Escuridão
Capítulo 2
I started a joke
Which started the whole world crying
Oh, but I didn't see
That the joke was on me... oh, no
Hong Kong, 1883
Quando Quincey Hiragizawa, sua mulher e seu filho chegaram à Hong Kong, e foram do porto até a casa da família da qual Hiragizawa era parente, ele lhes contou, dentro da carruagem negra, qual era exatamente a misteriosa descendência que os unia. Algumas gerações antes, o velho Barão, comandando um de seus navios negros, dirigiu-se para as terras do oriente, e ali desapareceu. De sua morte, sua mulher e seus filhos tiveram apenas a notícia, na Inglaterra. Na verdade ele havia se casado com uma mulher do oriente, uma mulher que, dos que vieram depois, nada com certeza podia-se dizer. Deste casamento, o Barão teve um filho, que herdou seu título e a parte de sua fortuna que ele construiu no oriente, pois era seu único filho homem. Na Inglaterra ele deixara sua esposa viúva e três filhas, mas deixou-lhe também uma boa herança e um certo conforto, se ela soubesse usar bem a herança. Mas o que houve com esta falsa viúva não é importante agora, disse Quincey, preciso contar antes o que houve com o Barão, no oriente. O Barão morreu antes de ver este filho nascer, cujo nome ninguém tem certeza, e esta segunda viúva, depois deste filho, ainda teve uma filha, de um outro homem, também um estrangeiro, mas como é o costume desta terra, e naquela época mais ainda, esta filha foi entregue à sorte, ou melhor: entregue a outra família, pois esta mulher do oriente não queria sujar o nome do Barão com uma filha bastarda. Não importa agora o que houve com ela. O herdeiro do Barão foi educado com primor, estudou na Europa e em Pequim, diziam que era um homem de muita educação e senso de humor. Nunca casou-se, e nem sabia-se com certeza de seus romances, e possuía um criado ocidental, quase um escravo, muito fiel e silencioso, que amedrontava as criadas. Ah, sim, as criadas... Ele preferia que seus empregados fossem todos ingleses, e talvez este homem soubesse de suas irmãs por parte de pai, na Inglaterra. Quando ele morreu, e ele ainda estava na flor de sua idade quando isto aconteceu, seu corpo só foi encontrado pelos empregados no dia seguinte, e não havia nada que desse um motivo para seu suicídio. Ele tinha uma faca na mão e em uma das salas da casa foi encontrado um livro com capa de bronze. Se ele estivesse na Inglaterra teria sido queimado, naquela época. Seu criado desapareceu, e no dia seguinte à sua morte, apenas uma pessoa além dos empregados esteve em seu velório. Era uma mulher que alguns dizem ser a irmã dele, outros, dizem que era sua amante, mas o certo é que tudo o que pertenceu àquele homem passou a ser dela e de seu filho. O tempo passou e este filho cresceu, se casou, deu-lhe vários netos, e ela continuou naquela casa, vivendo no quarto do antigo senhor do palacete e sem nunca sair. Um dia bateu-lhe à porta do palacete uma mulher, um rapaz e um empregado que os acompanhava. A mulher era neta do barão, o rapaz era seu sobrinho, acompanhando-a. Eles entraram e viram nas paredes retratos do barão e sua esposa chinesa, o retrato do filho do barão e chegaram a falar com a senhora do palacete. Ao rapaz, ela ofereceu uma de suas netas, que lhe foi presenteada como quem dá um objeto a alguém. Envergonhado, ele aceitou, e sem saber o que fazer com a menina, a levou consigo, e sua tia, confusa, partiu sem mais dar palavra.
Eles nunca falaram sobre aquela visita, em que tudo o que gostariam de perguntar à dona do palacete, que em um dos retratos das paredes era mostrada em todo o frescor de sua juventude, e que mesmo idosa, conservava traços desta beleza. Tudo o que queriam perguntar a ela sumiu em suas gargantas. O rapaz levou a menina para sua casa e ela foi tratada com a cordialidade de alguém da família, e a verdade era esta, aquela menina de roupas chinesas, traços ocidentais e olhos que não eram negros era parte de sua família e ele, parte da dela. Quando ela cresceu, ele viu nela a mesma beleza do retrato da mulher que casou-se com o Barão, e que o fez desistir de sua amada Inglaterra. Ele também não resistiu a esta beleza e casou-se com ela.
No dia de seu casamento, ele recebeu uma carta vinda do oriente, com o mesmo brasão do Barão no selo, felicitando-o por este casamento, como se houvesse maneira de alguém no oriente saber disso, e celebrando-o como parte daquela família meio chinesa, meio inglesa, do palacete da Colônia Inglesa. Ele nunca mostrou esta carta a ninguém, mas guardou aquelas palavras. Não era a menina que trouxera consigo que entrava em sua família, e sim ele que fora trazido para a dela. Eles tiveram três filhos, uma moça, a mais velha, e dois rapazes. Quando todos seus filhos estavam adultos, ele mostrou a carta que recebera no dia de seu casamento. Os dois rapazes então, movidos por curiosidade e espírito aventureiro, usaram o nome da família de sua mãe e partiram para o Oriente, e até onde se soube, foram recebidos muito bem pelo filho daquela antiga matriarca, já morta. Era, disseram em uma carta, como se já esperados lá. A moça, a filha mais velha, ficou fazendo companhia aos pais, e não pensava em casar-se. Mas um dia, tão por acaso quanto tudo acontecia a todos naquela família, um homem veio fazer sociedade com seu pai, e ele a viu, e acabou por casar-se com ela. Talvez a última tragédia tenha ocorrido apenas com o filho do Barão, mas daí já se vão muitos anos...
"E o que houve depois, Quincey?"
"E daí que este homem se chamava Hiragizawa. Eu sou o neto desta mulher. São várias gerações, encontros e desencontros, mas inegável é que temos todos muito de sangue em comum. Meu avô chegou a Inglaterra com tecidos e especiarias, nunca havia pensado em casar-se, e quando viu minha avó... Ele deve ter pensado... Atravessei um mundo, fugindo de algo que finalmente encontrei." - Quincey riu, e acariciou o rosto da esposa. - "Não há tratado diplomático melhor do que este. O que eu passei a vida procurando, a vida deu-me quando era quase tarde demais."
Sua mulher riu suavemente. Não fora apenas um casamento de acordo. Ela gostaria de ter dado mais filhos a marido, além de Eriol.
O coche começou a sacudir quando as rodas passaram sobre as pedras da alameda, Olharam pela pequena janela e viram grandes jardins, mansões e palacetes se mostrando entre portões e árvores centenárias, do outro lado apenas um paredão de pedra que sustentava a elevação do bosque do outro lado. Em breve, no alto da colina estava o palacete negro, de telhado de ardósia e jardins repletos de roseiras e madressilvas, e perto das janelas, quase encobrindo-as, haviam touceiras de romãs.
Curiosamente, todos os criados eram ingleses, alguns, mestiços. Um deles quando viu a carruagem, correu para dentro, e os outros esperaram para receber o coche. Veio o então senhor do palacete, que já não herdava o título de Barão, o qual morreu junto com o filho do primeiro Barão. A casa era ampla e repleta de crianças, era uma família numerosa e eram educados dentro dos moldes ingleses, então nenhum deles estranhou qualquer coisa, a não ser a familiaridade, como fossem sempre esperados. O senhor do palacete era um homem já bastante idoso, e imediatamente considerou Quincey um velho amigo, as mulheres da casa, mesmo as de traços mais ingleses, correram a convencer sua esposa a usar um vestido chinês. De certa maneira era o mesmo que estar em casa.
Uma criada levou Eriol para vestir roupas comuns, naquele caso, roupas comuns das crianças da casa, roupas chinesas, tão coloridas quanto as das outras crianças, e deixou-o brincar livremente com as outras, todas da sua idade ou pouco menores, que lhe mostraram as ninhadas de gatos siameses que haviam nascido naquela casa, não muito antes, e o convidavam a brincar de esconder pelos cômodos. Os adultos o tratavam com igualdade, e todos eram sobrinhos, irmãos e tios de algum deles, quando senão, padrinhos e madrinhas de batizado, de maneira que todos os laços de parentesco encerravam-se entre a mesma família. Todos os cômodos, as salas de leitura, eram abertos, as janelas eram todas abertas e a casa, muito iluminada, mas quando as crianças mais velhas correram para cima para se esconderem nos quartos vazios, Eriol parou por um momento, tentando escutar ou ver seus pais no salão de baixo, mas não estavam lá, embora escutasse a voz de sua mãe e das outras mulheres, as mais jovens querendo saber como eram as modas de Paris e Londres, pois embora tão longe e com tanto sangue oriental, no fundo, elas todas possuíam algo muito inglês, talvez ainda estivesse no sangue, desde os tempos do filho do primeiro Barão. As outras crianças chamaram por Eriol, e ele foi, sem pressa, pelo corredor, admirando os quadros, e em um deles, no fim do corredor, já perto de onde as crianças estavam rindo, ele sem querer viu-se em uma das telas na parede. Não. Ele parou e recuou um passo, a sola de seus sapatos engatou-se na beirada de uma das pedras e fez com que se sobressaltasse, a casa era toda muito familiar, e não apenas pela maneira amistosa da família. Aquele homem da tela era familiar, e não apenas por ter visto alguns daqueles traços no próprio rosto de seu pai, especialmente quando ele sorria, mas por ter visto aquele rosto em si mesmo. Sim, Eriol era uma criança, porém via-se um adulto naquela tela. Vestido de negro, com roupas de um século perdido no tempo, uma sombra que escurecia seus olhos azuis, e maldade em um sorriso que apesar de doce, também era insano. Talvez a casa tivesse fantasmas.
Eriol correu quando lembrou-se disso, e foi encontrar as outras crianças. Não olhou para trás com medo de ver os fantasmas que imaginou, e lembrou-se da história que seu pai contara, de que o filho do primeiro Barão havia se suicidado. Também se lembrou de que em uma das ilhas, dos inúmeros portos que visitara com sua família, eram deixados doces sobre as pedras, para que os espíritos dos mortos não entrassem na casa para assustar os vivos. Talvez fosse apenas isso, deixar alguns doces para o homem do retrato.
"O que houve?" – Um dos garotos mais velho, pouco mais alto que Eriol, deu de encontro com ele no corredor. As crianças todas falavam inglês, algumas com menos sotaque do que as outras, mas todas se compreendiam, e mesmo que ela houvesse falado em mandarim, Eriol teria compreendido. – "Viu o fantasma?"
"Fantasma? Então há um fantasma aqui?"
O menino fez um gesto de silêncio e chamou as outras crianças.
"Todos nós já vimos o fantasma. Ele vem quando há trovões. Mas hoje ele veio porque a sua família veio nos visitar. Ele fez o leite todo azedar hoje pela manhã, e também fez a cozinheira gritar de medo, quando atravessou a sala de jantar..."
"Ah..." - Nunca Eriol escutara alguém lhe falar sobre isso sem que dissessem que fantasmas não existiam. As outras crianças confirmaram com silenciosos gestos de cabeça, e as menores se encolheram. - "É aquele homem do retrato?"
"Sim, sim, ele mesmo." - O garoto olhou ao redor, como se pudesse estar sendo ouvido. - "Minha mãe me disse que ele sempre esteve aqui, ele não faz nada, apenas olha e sorri. Está vendo aquela porta? É o único quarto que nunca é aberto. Ele sempre anda a casa toda, uma vez eu estava com a minha ama e o vi perto da adega, e outra, uma das criadas o viu andando pelo salão de festas, onde as crianças não podem entrar." - Este menino mais velho levou as outras crianças até o corredor, onde todas ficaram muito juntas e apontou para o retrato e para o homem vestido de preto. - "Este homem era o filho do Barão inglês que foi o primeiro dono desta casa. Ele nunca teve descanso, ele ainda vem derrubar livros de estantes, quebrar copos de cristal e procurar seus óculos nas gavetas da casa."
"Ele vem sempre?" - Eriol perguntou, com medo da resposta e sentindo que não estavam apenas ele e as crianças naquele corredor. Tentou convencer-se de que era um adulto espionando-lhes a conversa. - "Ele não diz nada?"
"Minha ama!" - Uma das meninas, de rosto redondo como o de uma boneca de louça, gesticulou, no meio das outras, afobada em falar. - "Minha irmã mais velha uma vez escutou o fantasma falar!"
Todas as atenções voltaram-se para ela.
"Ele perguntava onde estavam seu livro e seus óculos."
Elas se aproximaram mais umas das outras e nisto, uma das criadas os chamou, do fundo do corredor, perto da escada, mandando aquele, o mais velho, parar de assustar os menores com histórias sobre o filho do barão. Todos eles referiam-se ao pai daquele homem do retrato com o mesmo respeito como se ele ainda vivesse na casa, e falavam daquele fantasma vestido de preto e azul como se a casa fosse dele, e apenas dele, e todos os descendentes da família nada mais fossem do que ocasionais hóspedes.
Eriol ainda perdeu um longo momento olhando para aquele homem e naquela mesma tarde ainda voltou aquele mesmo trecho do corredor para olhar de novo para ele, enquanto ainda não fosse noite. Mas naquela noite, apesar de ter demorado para dormir, pensando nas histórias do fantasma que ainda procurava por seus óculos, não se preocupou tanto. Estava dormindo no mesmo quarto das outras crianças, enquanto os adultos conversavam num salão cor de rosa, cheio de espelhos, onde as crianças não tinham permissão de entrar, somente os rapazes e as moças que já tivessem quinze anos e os adultos. Eriol logo esqueceu-se daquele fantasma e dormiu. E quando a madrugada era alta, ele despertou com um sonho estranho. A casa toda estava silenciosa, e sentiu muita sede. Levantou-se e desviou de pisar sobre a coberta das crianças que estavam no chão, junto com ele. Foi até o aparador, junto à parede e ao lado da porta, uma cômoda de madeira escura e pesada, quase impossível de arrastar, como eram todos os móveis maiores da casa. Antigos e escuros. Uma das meninas rolou entre os travesseiros da cama e as outras resmungaram, e logo ficaram quietas de novo. Eriol ficou parado até que o movimento cessasse, e aí sim serviu o copo de água e bebeu. Encheu-o de novo e desta vez bebeu mais devagar, olhando ao redor, para o quarto grande e escuro, somente com uma cama ampla. As meninas dormiam nela e os meninos dormiam em colchões no chão. Os pequenos que choravam ainda à noite ficavam com as amas no quarto ao lado. E apesar de ser noite, um grande luar entrava pelas janelas.
Eriol já quase terminava de beber a água quando outro menino se mexeu, e sentou-se, pedindo água também. Eriol encheu o copo e entregou-lhe.
"Por que você está acordado?"
"Estava com sede."
"Mas eu vi você acordado a noite toda."
"Estava sonhando, eu estava dormindo aqui." - E apontou para o lado.
O outro menino olhou-o, desconfiado. A única coisa oriental naquele menino que falava com Eriol era seu cabelo preto e liso.
"Mentira. Você estava falando com o fantasma. Você achou os óculos dele."
Eriol engoliu em seco. O outro menino entregou-lhe o copo vazio e deitou-se de novo. Era um menino pequeno, talvez houvesse sonhado. Mas o que ele lhe falara era exatamente o mesmo que Eriol havia visto em seu sonho. Ele deixou o copo ao lado do jarro do aparador e foi deitar-se de novo, pensando naquilo. Logo cochilou, e acordou novamente com alguém sacudindo-o pelo ombro.
"O que houve?"
"Levante, antes que as amas acordem! Vamos brincar de nos esconder!"
"Ainda não é dia!"
"E porque vamos esperar? No escuro podemos assustar uns aos outros!" - E o menino o puxou pela mão, até que levantasse, esfregando os olhos de sono e confusão. Estavam todos os outros de pé, como pequenos fantasmas, todos de pijamas brancos e risos escondidos detrás das mãos. Riam de Eriol, que não entendia as brincadeiras deles.
Desceram as escadas correndo descalços, para não fazer barulho, e foram todos se espalhar nos cômodos de baixo, debaixo do piano de cauda, atrás das cristaleiras, debaixo de mesas e entre as cortinas das janelas. Eriol sem querer acabou divertindo-se naquilo, escondeu-se também enquanto outros tentavam achá-los, e se o perigo de ser surpreendido por outros meninos em um canto aumentava, corriam para outro, seguravam a vontade de rir e de falar alto. Em dado momento, uma das meninas que estavam com eles deixou a boneca cair no chão, era uma boneca de pano recheada de arroz, e fez um leve baque quando bateu na madeira corrida. Entreolhou-se com Eriol e ambos perceberam o barulho, outras das crianças que estavam escondidas pelos outros cantos da sala (que de tão escura era difícil saber qual era), fizeram um gesto de silêncio. Correram então, desta vez, para uma porta aberta, para um canto muito escuro, e pela fresta da porta viram os outros também mudarem de lugar. Logo haviam outras crianças amontoadas no mesmo lugar que eles, todos juntos, ansiosos e travessos. Um menininho começou a reclamar bem baixo que a adega cheirava mal. As outras chiaram, e viram que o menino que vinha procurá-los ia para outra sala. Eriol quase tropeçou em algo de ferro caído no chão, e uma menina, quase da sua idade tirou das dobras da manga do pijama uma caixa de fósforos. Eriol descobriu que tinha um lampião nas mãos, e eles o acenderam, e então se viram cercados de garrafas, numa sala repleta de armários vazados, garrafas vazias, de vinho, vinagre, aguardente e licores. A sala era maior do que parecia, e para não serem encontrados por causa da luz do lampião, encostaram a porta sem a fechar completamente. Haviam pelo menos cinco crianças, contando com Eriol, e todos riam, até que, nunca se soube de quem partiu a idéia, talvez dele mesmo, um impulso do medo ou curiosidade por aquela adega, decidiu-se por brincarem de se esconder alí dentro mesmo.
Um deles saiu e esperou que os outros se escondessem, e depois de contar, voltaria, enquanto isso, fez-se no escuro uma correria de crianças por todo o lado, por entre as estantes cheias de garrafas e atrás das caixas fechadas de vinho da Europa. Eriol descobriu que os lugares que sobravam não eram para o seu tamanho e quando olhou para o chão, nem lembrou-se do seu medo por aquela casa estranha, e se fez o que fez, foi por apenas não querer perder aquele jogo. Ele olhou para o lampião em sua mão e achou melhor levá-lo consigo, a menina ainda tinha seus fósforos, se algum deles tivesse medo de escuro.
E ele abriu a porta que encontrou no chão.
Talvez soubesse onde aquela porta daria, ou apenas estivesse, fazendo isso, dando vazão a uma curiosidade que não o abandonava desde que viu-se naquela adega. Desceu com o lampião na mão pelo degrau que a luz fraca do lampião mostrou-lhe, e não sem importou que o limo das pedras sujasse seus pés e quando abaixou-se para passar por debaixo da pesada peça de madeira escura, seu pijama também ficasse sujo. Sua mãe o mataria... Mas ela não estava na adega para mandá-lo parar, e seu pai talvez risse de vê-lo todo manchado como sabia que estava. Se algo acontecesse... As outras crianças estavam lá e viam onde ele estava entrando. Fechou a porta, mal sustentando com o braço livre o peso na hora de abaixar a tampa do alçapão. Escutou tilintar o aro quando ela se fechou totalmente, e por um breve instante, estava tudo na perfeita escuridão. Depois a chama do lampião revigorou-se e iluminou ao redor.
Estava sentado no alto das escadas, Eram escadas de degraus largos, de pedra escura e úmida, as paredes iam até embaixo, onde a luz não alcançava. Cheirava a limo, como um porão de navio há muito fechado e também a piche. Olhou para cima, e o teto era negro, calafetado como um porão de navio, mas inutilmente. A umidade das pedras gotejava e era esse som que quebrava o silêncio, junto com a breve movimentação dos ratos. Estava acostumado com ratos nos navios, aqueles não o assustaram. O meio dos degraus era mais baixo do que as laterais, como se houvesse sido muito usado em alguma época. Levantou de onde estava sentado e desceu. Viu uma aranha do tamanho da sua mão correr e sumir em uma fresta na parede, rés ao chão, quando se aproximou com o lampião. Ela era toda de um amarelo pálido e sujo. Andou por toda aquela parte, mas sabia haver outra, depois da curva do fim da escada que seguia reta, havia mais uma descida, mais ou menos oculta por pedaços de madeira encostados na parede, velhas telhas de cerâmica, um rolo de corda com um esqueleto de um rato encima. Naquele espaço já não haviam insetos ou ratos, como se os animais evitassem aquela parte. Só havia muita umidade e pó, sujeira acumulada por anos a fio, talvez séculos, Eriol pensou. Lembrou-se do fantasma do filho do barão, que procurava os óculos pelas gavetas da casa e quase sentiu-se seguro. Depois sentiu medo, quando lembrou-se que os seus próprios óculos estavam esquecidos encima da cômoda do quarto das crianças, ao lado do jarro de água.
Estranho como lá embaixo o ar era pesado e muito frio, como uma estufa de guardar frios, cheirava um pouco a serragem e também tinha algo doce no ar. Um cheiro de perfume, que se misturava ao desagradável cheiro de terra e sujeira. Não sabia que perfume era esse, mas era um tanto adocicado, familiar. Eriol olhou para as paredes, haviam coisas escritas, mal apagadas na terra. Havia um símbolo chinês e logo embaixo, mais uma coisa, escrita, que não conseguiu ler. As letras de giz estavam quase sumidas, e olhou para baixo, para o fosso da escada que abria-se, mais estreita e com degraus mal acabados, à sua frente. Sentiu algo próximo ao terror: o teto deste nível era mais baixo, a luz do lampião parecia sufocada por mãos invisíveis. Na descida desse segundo lance de degraus, notou que ao invés das paredes do primeiro, nestas haviam apoios para tochas e candelabros de velas amareladas e apagadas. Algumas são velas de sebo, e estas estavam negras, embaciadas pelo tempo.
Desceu as escadas, um degrau de cada vez, esquecido do tempo e de tudo lá fora. Um silêncio total, pulsante, apertando suas têmporas. Estendeu o braço para a frente e tateou com nojo a parede úmida, com medo de pisar em falso. Quase nada podia enxergar. Viu uma parede no fundo do compartimento à frente e mais um outro, unido a este por uma porta sem banda, à sua direita, além desta porta escancarada, um arco dava para algo como um salão, com antigas luminárias de óleo de baleia, tão antigas quanto Eriol jamais vira. Um lampião enferrujado tombado no chão chamou sua atenção. Ao lado dele, um brinquedo de criança, um pião de madeira já podre, mas mesmo escurecido, com nuances das cores que teve um dia. Não entrou mais do que o necessário para ver isso. O chão era quase negro nesta parte do porão, escuro e fétido, com cheiro de ferro, ferrugem, sangue, difícil saber. Tudo fedia. Quem deixara aquele brinquedo num lugar tão escuro?
Eriol teve medo de continuar ali, e quando afastou-se daquele salão de teto baixo, andou de costas, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Sentiu que as paredes vibravam ainda que fossem paredes de pedra, de mais de três dos seus palmos abertos de largura, era muito pouco, mas sentiu quando prendeu a respiração, para escutar isso melhor. Era um eco, as paredes ressoavam com gritos. Se houvesse tido coragem e fechado os olhos, escutaria-os com toda a força. Mas nem isso era necessário, ele escutou ecos silenciosos de gritos que não estavam lá, de choros desesperados, de dor e de muito medo. Sentiu seus pés presos ao chão de tanto medo de estar naquele lugar imundo, tão longe de sua mãe, de seu pai, das crianças e de qualquer outra pessoa que lhe dissesse que não havia nada de errado com aquele porão. Forçou-se a andar de costas e quando chegou na frente daquele compartimento sem porta, ergueu o lampião acima de sua cabeça, e a luz refletiu-se no chão úmido e também em algo mais. Colocou-se bem debaixo do umbral e estendeu somente o braço para dentro, com a respiração em suspenso. O cheiro era o de uma cova aberta, sem diferença alguma. Olhou ao redor e viu que o que rebrilhou no chão era um prato de bronze perto da parede à direita. Também havia um lampião enferrujado, mas deixado em pé. Nesta parede, haviam argolas, grilhões e correntes, entrelaçados de musgos negros e farrapos de roupas. Olhou para o fundo do compartimento e viu uma grande gaiola... Uma jaula. A porta dela estava aberta, e estava vazia. O ferro estava enferrujado. Olhou para a esquerda e certamente não esperava ver aquilo, daquela forma. Assustou-se com algo coberto por um oleado negro e apodrecido, e a curiosidade o fez esquecer-se da cautela e entrar na galeria. O cheiro era muito pior do que o de uma cova aberta. Era o cheiro da garganta de um cadáver. Insuportável.
Abaixou-se e segurou a ponta do oleado. Suspendeu-o brevemente, lentamente, e aproximou o lampião para ver o que era. Eriol viu então um amontoado de ossadas enegrecidas e brilhantes, mal-cobertas por farrapos de roupas antigas, quase todas azuis. Olhou com espanto e horror para aquilo tudo, e notou que uma mãozinha, muito menor do que a sua estava pousada perto do seu pé, como se arranhasse o chão. Não contou quantos crânios haviam embaixo da lona apodrecida, mas soube que eram todos corpos de crianças. Crianças pequenas... Aquilo fedia tanto que o deixou desnorteado, ele largou o oleado, deixando a pilha de mortos em parte descoberta, e afastou-se correndo, e nisso perdeu o rumo, acabou voltando para o salão do fundo da galeria, e suspendeu num susto o lampião, quando quase tropeçou em algo no chão, algo muito macio...
Olhou para baixo e descobriu que pisava numa massa ressecada e disforme, seca como um pergaminho, e da cor de couro velho. Ele olhou para aquele rosto... Um rosto... Uma face disforme como se vista pelo fundo de um copo sujo, uma face naquele chão, apenas a pele, e pelos buracos dos olhos, apenas o negro do chão, como num abismo infinito. Eriol pisava exatamente sobre o cabelo. Alguém esfolara uma criança. Uma criança pequena!
O inferno existe, ele pensou, lembrando-se do que escutava os pastores de bordo de alguns navios pregarem, e ele ouviu aquilo tantas vazes que sabia cada palavra de cor... O inferno existe. Foi um demônio quem fez tudo isso, matou as crianças... Ele matou as crianças! Ele está aqui e também vai me matar! Este cheiro é o perfume dele. O perfume dele está em mim. Ele também irá arrancar a minha pele!
Recuou nervosamente e sem querer viu algo rebrilhar no teto. Olhou para cima, aterrado. Garrafas. Garrafas penduradas, e de modo que se esticasse bastante seu braço, poderia pegar. Estavam na altura dos olhos de um adulto. Eram três garrafas de vidro branco e sujo, e aproximou bastante o lampião delas, estavam uma ao lado da outra, os gargalos atados por cordas finas, que estavam presas no esteio do teto, e estavam imóveis. Estavam fechadas, havia um líquido ligeiramente amarelado dentro delas, e o que as diferenciava era apenas... Duas delas estavam com um farrapo de tecido azul, igual ao tecido das roupas dos cadáveres do outro compartimento, dado um nó em torno da base do gargalo, e entre estes, um tinha uma mecha de cabelo louro, anelado e empoeirado, amarrada nele. O outro tinha um pedaço de cabelo fino e liso, de um louro mais claro, quase branco, como são os cabelos de crianças muito pequenas. A terceira garrafa estava atada com um pedaço de renda que um dia deveria ter sido branca, mas como os outros, era apenas um pedaço de tecido podre, e mantinha amarrada uma mecha de cabelo negro e liso. Ele olhou mais de perto, os olhos arregalados e rasos de lágrimas de horror, e viu que este olhar aterrado também lhe era devolvido.
Dentro de cada uma daquelas garrafas um par de olhos azuis olhava de volta para ele, globos oculares conservados no álcool, em garrafas vedadas, penduradas num esteio do teto, como troféus. Três pares de olhos muito azuis, arregalados, olhando-o como fosse ele o culpado por tudo aquilo. Sentiu que algo além de si mesmo movia-se. Olhou de novo para o chão imaginando ver algum rato, mas não havia nada além daquela pele morta, aberta pelas costas. Havia esqueletos também deixados no chão, nos cantos. Eram maiores do que de crianças, eram esqueletos de animais grandes, maiores do que bezerros. Os restos de uma caixa de madeira, cercada de restos de serragem.
Eriol quase não percebeu quando as lágrimas desceram por seu rosto. Um monstro havia estado alí. Matara as crianças, arrancara os olhos delas e os deixara como prêmios naquelas garrafas. Três crianças tiveram seus olhos arrancados. Olhos azuis.
Eriol lembrou-se de seus próprios olhos azuis, azuis como os da sua mãe. Começou a tremer e a chorar, soluçou de pavor, e voltou-se, correu de volta até a direção das escadas, quando escutou algo, não os pingos de umidade, ou ratos. Não havia ratos. Não deveria haver mais ninguém além dele mesmo, mas Eriol sabia que a mesma pessoa que arrancara a pele e os olhos das crianças ainda estava lá, estava tão perto dele... Eriol pensou no filho do Barão, aquele rosto no quadro, aquele sorriso, e seus olhos, estreitos, penetrantes e azuis. Olhos azuis. O filho do velho Barão tinha olhos azuis. Mal colocou um pé no primeiro degrau, estancou. Desta vez não havia imaginado nada. No silêncio absoluto, quebrado apenas por sua respiração, escutara passos, passos macios e leves. Passos muito próximos de si. O terror o paralisou. Foi quando levantou um pouco mais o lampião. A chama animou-se mais e iluminou-o. Mas a luz era pouca, todo o seu redor ainda era de escuridão. Nesta escuridão, Eriol viu um rosto completamente negro, olhos grandes e verdes. Era o rosto de um monstro, de uma fera, era um rosto que não era humano, a um palmo do seu, olhos verdes fosforescendo no escuro, olhando nos seus olhos.
Eriol gritou com todas as suas forças e deixou o lampião cair no chão. O óleo espalhou-se e o fogo que fez-se dele iluminou um pouco mais o seu redor. Eriol viu com susto e pavor que as pernas e os pés daquele monstro também eram absolutamente negros. Eriol gritou, ofegante, tentava lembrar-se de suas orações de todas as noites, mas todas fugiam de suas recordações. Pensava no rosto da mãe, no sorriso de seu pai, nas histórias de antes de dormir, mas todas as lembranças eram atravessadas de alguma forma pelo sorriso do quadro, do filho do Barão.
Eriol caiu sobre os degraus quando tentou correr por eles, na escuridão. Não enxergava nada a sua frente por mais que arregalasse os olhos, sentiu que esfolava as palmas das mãos nas pedras, e subiu o mais rápido que pôde, ofegante, com pavor de voltar-se para trás e ver aquele monstro de rosto negro, olhando para ele, exatamente a sua frente. Esfolou também um dos joelhos, quando tentou em vão colocar-se de pé. Engoliu em seco, e subiu o mais que pôde. Estava longe da saída, mas estava também perto demais daquela coisa negra que estava alí embaixo, e sentia que não podia parar, por mais dor e medo que sentisse, e deveria continuar fugindo, aquela vibração das paredes aumentava, talvez fosse sua imaginação, talvez não fosse, mas o que importava agora? Estava apavorado e queria fugir. Mas o som estava aumentando, a viração tornou-se eco, ele definia com exatidão gritos desesperados, choros, vozes de crianças. Vozes de crianças chamando pelas mães, rezando, chorando, implorando por comida, por água, implorando pela morte em palavras sem sentido... Ele mesmo sentia-se repleto de todo aquele desespero, quando o som aumentou tão absurdamente que invadia tudo e fazia seus pulmões vibrarem...
"Tire-me daqui."
O som dos gritos desapareceu quando a voz de uma criança falou com Eriol. Ele quase parou neste instante, mas o alto das escadas ainda estava longe, embora achasse o contrário. Quase olhou para trás, quase gritou novamente, mas silenciou e respirou dificultosamente o ar abafado do porão, sentindo que o fedor também aumentava. Fedia como a garganta de um cadáver, fedia mais do que o cadáver que uma vez viu resgatarem do mar, meio devorado por tubarões, perto de uma das ilhas de Java.
"Me ajude! Tire-me daqui!"
Aquela voz... Havia uma criança alí embaixo? Como poderia? Quem deixaria uma criança para morrer deste jeito? Talvez outra das crianças da casa houvesse descido e não conseguira sair, assim como ele. Talvez nunca mais consiga sair daqui, Eriol pensou, quando seu pé resvalou no limo e escorregou mais alguns degraus para baixo, terminando de esfolar o seu outro joelho.
"Tire-me daqui, por favor. Antes que ele volte!"
Eriol não escutou seu próprio grito desta vez, mas gritou como se fossem os seus próprios olhos que fossem arrancados, quando a mão tocou-lhe o braço, impedindo que ele rolasse pelas escadas abaixo. Era o monstro! Estava alí! Bem alí, ao seu lado. Era impossível fugir. Eriol viu apenas seus olhos, quando o grito morreu no fundo de sua garganta seca e dolorida.
"Quem... Quem é você?" - Eriol perguntou, arquejante, enquanto desistia de apoiar-se para fugir. A voz que pedia-lhe ajuda falava-lhe também em inglês, um inglês antigo e difícil de compreender.
"Deixe-me ir com você. Não me abandone aqui!"
Era uma voz sussurrada. Eriol definiu mesmo na escuridão absoluta aqueles olhos verdes brilhando na escuridão. Era a voz de uma criança, a mão no seu braço, segurando-o daquela queda que não teve. Eriol aquietou-se mais, sentindo seu corpo todo esfriar, e não era, com toda a certeza, o contato de suas costas com a parede gelada de umidade, na lateral da escada.
"Tire-me daqui antes que ele volte. Ele disse que voltaria! Leve-me com você! se ele o encontrar, ele também irá arrancar seus olhos, da mesma maneira que fez comigo!"
Eriol sentiu suas mãos geladas e se não estivesse com tanto medo, teria desmaiado, de tanta exaustão. Algo lhe dizia que aquela criança, que deveria ter a sua idade estava falando da mesma presença que o assustava. Abriu a boca para falar, mas a voz chiou e os olhos verdes que brilhavam no escuro estreitaram-se.
"Ouça."
Ele escutou, fizeram silêncio longamente. Eriol escutava apenas a vibração das paredes, crescendo de novo, lentamente, independente de que falasse ou tivesse consciência de tudo ao redor.
"Eles não param de gritar. Eu acordei quando você entrou aqui. Eu escutei você me chamar..."
"Eu não chamei. Quem deixou você aqui?"
"Ele. O Homem de Chumbo. Você me chamou, você os acordou também. O Homem de Chumbo está aqui, ele acordou todos os outros e eles não param de gritar. Eles não querem ficar sozinhos, aqui, no escuro."
"..."
"Tire-me daqui! Eu não sei como sair daqui! Eu tenho medo! Ajude-me!"
Eriol escutava também as vozes subindo de altura, gritos agudos de crianças e pensou naqueles olhos azuis, dentro das garrafas. Talvez o próximo par fossem os seus próprios, então pensar nisso... Ele agarrou a mão que segurava o seu braço e sem querer saber como, desatou a correr pelos degraus acima, sem direção, apenas guiando-se pelo medo e pelo horror. Sua mão resvalava em pedras, e também no que pareciam ser pedaços de carne, duras, moles, fétidas. Sentia-se rastejando sobre cadáveres, na escuridão, tentando desesperadamente lembrar-se do caminho até encima. Para cima. Chegara na curva para a escada que dava para o adega.
"Estão aqui! Estão aqui e não querem ficar sozinhos! Eles não querem ficar sozinhos, eles tem medo do escuro!"
Eriol sabia que isso era verdade, sentia mãos tentando agarrá-lo pelo cabelo, e ele apertou mais a mão daquela criança que estava presa alí embaixo com ele. E ela ficava mais leve, já não o escutava falar, ou sentia-o arrastar-se o mais depressa possível pelos degraus acima. Agora estava apenas àquele lance de distância da saída, e com nojo, escutando aqueles gritos de crianças bem perto de si, como se tentassem agarrar-se em suas roupas, Eriol apertava-se junto ao canto da escada com a parede do lado. Do outro lado havia apenas um fosso que era impossível saber a profundidade, mas algo lhe dizia que o fundo de toda a escuridão em que estavam perdidos era o próprio inferno. Chegou ao fim da escada quando sua cabeça e seu ombro bateram contra a madeira do alçapão, e com a mão livre, esmurrou a madeira repetidas vezes, gritou, esmurrou mais, até que perdesse o fôlego, até que sentisse pequenas mãos agarradas nas suas roupas, até que a mão com que batia na madeira se machucasse, ardesse e ferida, não pudesse mais fazer nada com ela, e nem pudesse fazer nada além de gritar, gritar, até que seu peito quase explodisse, e da sua lembrança, não saísse o sorriso daquele homem do quadro. O sorriso do filho do Barão, seus olhos azuis, escuros. Olhos de chumbo.
Era aquele homem, o Homem de Chumbo. Era o filho do Barão, que ainda viam procurar por seus óculos pelas gavetas da casa
Eriol então começou a soluçar, não tinha mais como gritar, sua voz estava toda sumida, estava perdido. Estava morto. Esquecido junto com aquela criança que pedira-lhe ajuda para fugir daquele monstro negro, para sair daquela cova. Eriol sentia-se culpado por não poder tirá-lo de lá, por ter descido até o fim daquele porão, por ter de morrer assim, sozinho com aquele menino assustado, no escuro, com tanto pavor... O ar faltava-lhe, o fedor o sufocava. Começava a desfalecer, sem suportar mais a dor de sua mão ferida e de seus joelhos, mãos e cotovelos esfolados. Não sentia mais o menino perto de si, e não sabia nem o que seria de si, quanto mais dele. Mas lamentava, estava com frio, o suor que descia de sua testa era gelado e ensopava suas roupas, assim como a umidade que pingava das pedras do teto, e quando fechou os olhos, perdendo o ar completamente, não chegou a perceber a porta abrindo-se logo acima da sua cabeça.
Eriol não escutou o alarido das crianças desesperadas que ajudavam a ama a puxá-lo e precipitadamente fechar o alçapão de volta, e nisto, nenhuma deu atenção ao que Eriol tinha nos braços, muito menos quando o levaram carregado, sem sentidos, para fora da adega.
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Acordou somente muito tempo depois. Acordou suando muito e exausto, no quarto que havia sido emprestado a seus pais, e sua mãe estava ao seu lado. Eriol olhou para o rosto dela tentando reconhecê-la, mas apenas via o quanto ela era bonita. De repente todas as recordações do porão vieram à sua memória de uma única vez e ele fechou os olhos para não ter de chorar na frente daquela mulher tão bonita que passava a mão por sua testa úmida.
"Você está bem, Eriol? Fale comigo."
"Está tudo bem." - Respondeu, no mesmo tom baixo que ela usava. O sol estava amarelado, quase cor de açafrão, do lado de fora, e a luz atravessava as cortinas coloridas, enchendo de cores o quarto. Esta sensação de luz em toda a parte era reconfortante, e pensar no anoitecer seria desconfortável, se não estivesse com sua mãe ao lado.
"..."
"Onde está o papai?"
"Lá fora. Ele também está muito preocupado com você." - Ela disse, de uma forma um pouco grave.
"Perdoe-me, mamãe..."
Ela fez um sinal delicado para que silenciasse. Eriol tentou mover-se na cama larga e notou que estava com um pijama novo, e não estava mais sujo. Sentiu as bandagens em torno dos joelhos, dos cotovelos e das mãos, mas não foi essa dor que o paralisou. Descobriu que havia bandagens ainda mais grossas em volta de seu tornozelo esquerdo.
"Não peça desculpas. Os parentes de seu pai estão muito envergonhados pelo que aconteceu. Aquela porta deveria estar lacrada há anos..."
"Mas a culpa foi minha!"
"Não por tudo. Aqueles porões são como labirintos. Outras crianças já haviam se perdido lá, antes de você."
A porta do quarto estalou, de repente.
"Eloise?"
"Estou aqui, Quincey. Eriol já acordou."
Ele entrou. Para Eriol, seu pai envelhecera quase dez anos apenas naquele espaço de horas. Quincey puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama, passou a mão pelo cabelo grisalho e trocou um olhar estranho com Eloise.
"Você quase quebrou o tornozelo nesta sua aventura. Eriol, você estava tão branco quanto este lençol quando a ama das crianças tirou você daquele alçapão. Nunca mais dê um susto como este no seu velho pai!"
"Acordamos com as crianças gritando, elas não conseguiram levantar a tampa sozinhas, mas disseram que você fez isso com facilidade, quando desceu. Aquele lugar horrível...! Deveria estar repleto de ratos! Espero que em breve fechem com argamassa aquele lugar! Ninguém nunca desce lá, ninguém faz idéia sequer do tamanho dos porões." - Eloise não tentava falar sobre os ratos com naturalidade. Ela sempre falara em ter um gato em casa, na Inglaterra, para ter certeza de que não haveria rato algum.
"...Eu..."
"Não diga nada. Até mesmo febre você teve. Não vai poder brincar com as crianças tão cedo, portanto fique nesta cama, comportado e sem dar sustos assim em ninguém. O seu tornozelo está horrível, sem falar dos seus joelhos, você os esfolou quase até os ossos!" - Eloise levantou-se, incomodada de falar de coisas desagradáveis, sem contar a expressão de asco ao falar dos ratos. - "Se estiver com fome, tem chá, pães e biscoitos aqui." - E apontou para um carrinho de chá encostado ao lado dos pés da cama.
Eriol estava bastante perplexo de não ser castigado pelo que havia feito, mas de qualquer maneira, seu castigo era ficar naquela cama sem poder brincar e sem poder sair. Sua mãe despediu-se dele com um beijo na sua testa e disse que ia sair com seu pai, que iriam conhecer melhor a cidade.
"E fique longe de problemas. A ama das crianças vai cuidar de você, enquanto não voltarmos." - Seu pai disse, depois de abrir as cortinas da janela, o que fez a luz entrar com força pelas vidraças, bem sobre a cama, iluminando todo o resto do quarto. Eriol olhou durante este momento para seu pai, vendo a sombra do rosto do filho do Barão fazer coincidir traços que de alguma forma eram comuns a todos eles que descendiam daquela casa. Teve medo por um momento, mas estava tão envergonhado de causar problemas em casas de estranhos, que calou-se. Quincey também abriu as vidraças para o ar entrar. Então sua mãe, que havia saído para o vestíbulo voltou com algo nos braços, e entregou para Eriol. A luz que entrava pela janela o ofuscou, e não viu o que estava encima da colcha da cama, até Eloise dizer:
"Aqui está. Ele lhe fará companhia agora. Pode segurá-lo, Eriol, nos já demos banho nele, estava imundo de fuligem e teias!" - Eriol arregalou os olhos, uma vez que ela falava como se estivesse se referindo a alguém, uma pessoa. - "Vamos, vamos, Eriol, abrace o seu irmãozinho!"
"Irmãozinho?"
"Ele não é lindo?" - Eloise não deu-lhe tempo de ver o que era aquilo empurrado no seu colo e fez de conta que não escutou a pergunta do filho. Quincey apenas riu, tolerante, abrindo uma gaveta e procurando por seus lenços, do outro lado do quarto. Para Quincey, não havia nada mais divertido do que estar em família, nada mais deliciosamente caótico.
"Eu já disse que este filho não é meu." - Quincey riu, dando a volta na cama e sentando-se ao lado de Eriol, que segurava um gato preto, pequeno e arrepiado, que olhava diretamente para eles, como se entendesse o que estavam dizendo. - "Ele nem se parece comigo!"
"É claro que é seu, Quincey, esta coisinha fofa, assim como você, não queria sair de debaixo da minha saia!"
"Eloise!"
"Oh, desculpe!" - Ela cobriu os lábios com a ponta dos dedos.
Durante o constrangido silêncio que estendeu-se por muito tempo entre eles, Eriol não escutara o que sua mãe dissera, e ficara olhando para o gato, lembrando-se do rosto negro olhando para ele na escuridão do porão. Lembrou-se de arrastar-se pelas escadas, com aquela coisa, aquele monstro, fugindo do demônio que vivia alí, no fundo do porão. Pensou nos olhos dentro das garrafas. Se falasse algo diriam que era mentira. Melhor silenciar...
"Mas é um gato..." - Reclamou, um pouco decepcionado, uma vez que já passara desde pequeno pedindo por um irmãozinho.
"Não é um gato, Eriol, ele é o seu irmãozinho! Ele estava escondido na adega e deve ter se assustado com as crianças. Quase não conseguimos tirá-lo de detrás das tábuas do armário."
"Mas é um gato...!"
"Vamos, Quincey? Já estou pronta!" - Ela afastou-se e alisou a saia do vestido e pegando a sombrinha rendada que estava pendurada no encosto da cama, olhou-se ainda no espelho da parede. O gato torceu-se no colo de Eriol e miou, vendo os pais de Eriol saírem, como se quisesse ir junto.
O gato olhou para Eriol, olhou para a porta e miou novamente.
Eriol ficou pensando se havia visto mesmo tudo aquilo no porão. Sua mãe dissera que teve febre, poderia ter sido um sonho. Talvez nem houvesse chegado ao fundo do porão, e sim apenas tropeçado e caído nas escadas. Ajeitou-se melhor no meio das cobertas e conseguiu ver que na bandeja do carrinho de chá ao lado da cama, num prato sobre o guardanapo de cambraia, havia bolinhos de arroz, dourados, de tão bem fritos. E também havia algumas frutas carameladas, ao lado. Sentiu-se faminto e olhou para o gato, que estava sentado embolado encima dos lençóis, olhando-o fixamente.
"Eu quero os bolinhos, e você? Quer as frutas ou os biscoitos?"
Eriol esticou-se para pegar um guardanapo e um dos bolinhos. Gemeu quando amassou seus joelhos feridos e sentiu a vista turvar com a dor do seu tornozelo esfolado e torcido. Nunca mais se meteria em um porão, pensou. O gato continuou imóvel, a não ser pela cauda arrepiada, que balançou de um lado para o outro.
"Eu quero que você feche estas cortinas. A luz está me machucando!"
Eriol quase cuspiu o pedaço de bolinho de arroz que havia mordido.
Largou imediatamente o bolinho com o guardanapo e saltou da cama, quase caindo, e foi pulando em uma só perna até a janela, tão assustado que nem parou para pensar de onde vinha aquela ordem com voz de criança autoritária. Quando fechou as cortinas, a luz ainda entrava, no entanto menos intensa, e Eriol tomou coragem de olhar para trás.
"Ah..." - O ar faltou. Eriol segurou-se na pedra da janela, escorou-se nela para não cair e quase esqueceu-se e apoiou-se no tornozelo machucado. Não acreditava no que estava vendo. Cambaleou para a frente e segurou-se na cortina. Escutou o coche com os seus pais afastando-se, os cascos dos cavalos batendo nas pedras da alameda, distante, sumindo. Sentiu seu corpo todo esfriar e pensou em todo o medo do porão, pensou naqueles olhos azuis nas garrafas. Sentiu vontade de gritar, mas a voz sumiu, perdeu todo o ar que tinha.
Sobre a sua cama, estava a criatura mais estranha que já havia visto em toda sua curta vida. E com certeza, de todas as que estava ainda por ver, seria uma das mais assustadoras. Não soube precisar imediatamente o que era, só sabia que já a havia visto antes, na ameaça do porão, e aqui, agora, sob o sol, à luz do dia... O terror que Eriol sentiu não tinha tamanho. Era uma coisa completamente negra, na ponta da cama, que olhava para ele com os mesmos olhos que vira brilhar no escuro do porão. E era bem maior do que apenas um gato, embora Eriol tivesse certeza de que estava apenas ele e aquele filhote que sua mãe lhe entregara. Mas ele fora achado na adega. Talvez houvesse conseguido sair de lá, do porão. Talvez houvesse vindo para buscá-lo de volta, para o fedor daquela cova... Talvez fossem seus olhos os próximos a estar em uma garrafa, pendurados no teto. Eriol descobria que o monstro que o aterrorizava no porão estava bem a sua frente, havia poucos passos de distância. Ele era absolutamente negro e apavorante. Parecia-se com a pantera que Eriol vira, quando sua família estivera em Bombay. Era tão negro quanto ela e os olhos eram exatamente os mesmos, até a maneira de ficar imóvel e encará-lo. Eriol tremeu, sentiu os olhos arderem e a garganta fechar-se, tornando inútil gritar, e ainda assim... deu um passo a frente e mordeu a língua para não trair a vontade de desesperar-se em frente aquele demônio.
Mas quando deu aquele passo... Eriol descobriu que o demônio negro, aquela criatura que estava sobre a sua cama... Eriol quase decepcionou-se em ver: não era maior do que ele mesmo, e inclusive, talvez fosse menor. Então, não foi mais o medo, e sim o choque de ver como aquela coisinha negra se encolhia no meio dos lençóis que o intrigou, que fez ficar imóvel. Aproximou-se, cautelosamente, mais um passo da cama, mancando e apoiando-se numa perna só, e quanto mais se aproximava da cama, mais aquele... aquilo... se encolhia.
Eriol engoliu em seco e já não sentia medo. Sentia curiosidade e raiva de si mesmo por ter tido um susto tão grande com algo... com alguém tão pequeno.
Não agüentava mais estar ali de pé, com os joelhos esfolados e com aquele tornozelo inchado, então, muito devagar, para aquela coisa não fugir antes que descobrisse o que era aquilo. Olhou-o com atenção e cuidado. Procurou por seus óculos na cabeceira e os colocou, enxergando com muito mais clareza, e a luz mostrava-lhe que não era um animal, ou um monstro, e sim, uma criança como ele mesmo, de fato um pouco menor, e com absoluta certeza, com muito mais medo de Eriol do que o contrário.
Ele tinha o tamanho e o medo que seriam de uma criança de sete ou oito anos, e estava bastante emagrecida, como se houvesse passado fome por dias... Seus rosto fino, suas mãos pequenas e todo o resto de sua pele e seus cabelos eram completamente negros. O que quebrava esta cor era o brilho de sua pele, que fazia-a parecer como se ele fosse feito de cetim, e os olhos, que eram grandes e verdes, muito claros. Por isso parecia-lhe uma pantera, pois era negro como uma, mas pelo tamanho e pelo tremor, pelos olhos arregalados, Eriol achou-o mais parecido mesmo com o gato que vira antes, encima da cama. Olhou com mais tenção e viu que era apenas sua pele que era negra, que aquele menino não era como os africanos que Eriol vira pelo Mar Vermelho, ou nos navios de baleia, os traços dele eram muito finos.
"Quem é você?" – Eriol respirou fundo e pensou no que sua mãe faria se visse isso. Talvez desmaiasse, ou talvez se encantasse de vez com o pequeno. Isso o fez sentir um ardor de ciúmes, em pensar em como aquele... gatinho, era querido por sua mãe. Mas como era possível que aquele gato arrepiado fosse aquele menino?
"... Eu... Eu não vou dizer!" – Ele falou com a mesma voz de quem pedira ajuda a Eriol no porão. Voz de criança. Era uma criança, e muito assustada.
"O que você estava fazendo no porão?"
"Alguém me trancou lá!"
Eriol já havia notado que era um menino, e que estava sem roupas. Seu cabelo estava cheio de pontas, embora muito liso, bastante desalinhado.
"Eles me deram um banho de água fria!" – Reclamou ainda, indignado.
"Quem?"
"Aquela mulher de saia azul!"
"Ela é a minha mãe." – Eriol baixou os olhos, lembrando de que ela dissera mesmo isso sobre ter dado um banho no gato. Se ele mesmo já sofrera o bastante com os banhos que sua mãe lhe dava, o menino com certeza achou que ia morrer! – "Mas quem trancou você no porão?"
"O homem de chumbo!"
"Como?" – Eriol ajeitou os óculos, tentando entender melhor o que ele lhe dizia naquele inglês antigo, quase uma outra língua. Era uma pronuncia estranha e muito complicada de entender, mas Eriol não tinha outra opção a não ser habituar-se a ouvir as palavras pronunciadas como se sílaba a sílaba e com erres puxados. – "Quem deixou você ali?"
"O homem de chumbo." – Ele apontou para Eriol, encolhendo-se mais, quase no canto da cama. – "Você é igual a ele. Você tem olhos de chumbo."
"Eu não sei quem é esse homem, e acho que não sou como ele. Onde está a sua mãe? Onde está a sua família? Você vive nesta casa?"
"Eu não sei. Eu estou com fome." – Voltou-se, com seus grandes olhos verdes, claros e brilhantes, para o carrinho de chá. Eriol teve pena, e imaginou se ele estivera passando fome naquele porão, ou quanto tempo estivera lá.
"Pode pegar."
O menino olhou para Eriol com desconfiança.
"Eu posso?"
"Pode. Eu estou lhe dando."
"Os bolinhos também?" – Ele engatinhou encima da cama, indo para o lado do carrinho de chá.
"... Ah. Claro." – Eriol por pouco reclamou pelos bolinhos, mas ele era menor e estava com fome. Eloise não gostaria de saber que não queria repartir com o pequeno. Aqueles bolinhos tinham queijo dentro, e o arroz era temperado com curry e por fora, depois de fritos, ficavam dourados e deliciosos.
Quando Eriol levantou-se, pulando num só lado da perna, o pequeno apontou e perguntou o que era.
"Eu me machuquei no porão."
"Eu não empurrei você."
"Mas eu não disse que você me empurrou!"
"O que você está fazendo? Não me deixe sozinho aqui, eu tenho medo!" – Largou um bolinho de lado e fez menção de seguir Eriol a qualquer lugar que ele fosse.
"Eu vou procurar roupas para você. Não pode andar sem elas!"
"Você vai demorar?"
"Não, eu vou estar bem aqui."
Eriol parou na frente do quarto de vestir, respirou fundo e se conteve para não fazer mais perguntas. Um estava tão curioso sobre o outro que não havia como poder saber de onde aquele gato, que também era um menino que parecia uma pantera, havia vindo, e nem porque estava ali, na sua cama, comendo os seus bolinhos e bebendo o seu chá. Eriol teve de pular várias vezes até alcançar a prateleira em que estavam as camisas de seu pai, e nisso, soltou um pequeno grito quando teve de se apoiar no tornozelo machucado para não cair. Esperou a dor passar e pensou se não era melhor chamar um adulto para cuidar do pequeno. Sempre quisera e pedira por um irmãozinho, e se soubesse que seria assim, nunca teria pedido. Mas por que a pele dele era tão negra? Por que ele na frente de Eloise era um gato e na frente de Eriol era um menino? Mas com certeza não era um monstro. Monstros são feios, pensou. Voltou para o quarto trazendo uma camisa de Quincey e um pente de madeira que era de sua mãe, disse para o menino vestir aquela roupa, e neste momento é que ele pareceu notar que estava sem elas.
"Mas onde estão as minhas roupas?"
"Eu não sei. Você não está com frio? Não há ninguém que cuide de você?"
"Hm... A mulher de saia azul."
"Não, ela é a minha mãe, não a sua! Onde está a sua mãe?"
"Ela é a minha mãe, agora!" – O menino sorriu, e entre seus lábios negros surgiram seus dentes brancos e perfeitos, com caninos um pouco agudos e de aparência afiada. Ele balançou-se, enfiando-se na camisa de Quincey, que ficava-lhe tão grande quanto um batão de dormir. Depois que havia se vestido, continuou comendo os bolinhos, os pães e vendo que Eriol não estava nada feliz com o que escutara, ofereceu-lhe um pedaço de fruta caramelada como a tentar abrandar esta raiva. Mas estava sentindo-se pleno de todas as razões: – "Você ouviu! Ela disse que é a minha mãe agora!"
"Então você não tem ninguém? Quanto tempo você esteve no porão?" – Pegou a fruta e sentou-se, comendo também, pois estava com fome e aquela fatia de pêra era tudo o que iria sobrar do seu lanche. Não gostava nem um pouco de pensar em dividir sua mãe com aquela coisa preta e de sotaque engraçado. E mesmo desconfiado em ficar perto dele por muito tempo, não podia ficar em pé, de qualquer maneira, e também assim poderia ter certeza de que ele era todo como uma criança pequena e mimada, até a impertinência..
"Não sei."
"Quantos anos você tem?"
A resposta foi apenas sua mãozinha negra espalmada. Pela idade então ele deveria estar com a ama e com as crianças menores, e não no quarto com Eriol...
Ele terminou de comer tudo o que havia no carrinho de chá e perguntou se Eriol iria querer as frutas.
"Não, obrigado. Você já comeu tudo mesmo..." – E olhou com pena para as migalhas dos bolinhos.
"Agora eu quero tomar um banho!"
"Mas a minha mãe já lhe deu um banho! Você não está sujo, o seu cabelo ainda está molhado! Eu vou pentear...!"
"Não, eu não quero! Eu quero tomar banho!"
"Você já tomou!"
"A água estava fria! Eu não gosto de água fria!" – Reclamou novamente, enquanto comia pedaços de calda de açúcar que caíram das frutas. À medida que comia as coisas que eram doces da badeja, sua voz ficava arrastada e ele parecia sonolento e mais teimoso do que antes.
"Ah, como eu vou conseguir água quente para o seu banho? Eu nem consigo me levantar! Eu posso levar você para a ama!"
"Não! Não! Eu estou sujo e eu tenho medo deles!"
"Você não está sujo!" – Irritou-se de uma vez. – "E não fique insistindo em querer tomar banho ou eu mando a ama lhe dar outro de água fria!"
"Não, não!"
"..."
"Mas eu estou sujo. Veja só... Estou sujo de carvão! Eu quero a minha mãe!" – Mostrou-lhe o braço, puxando a manga da camisa. O braço era negro, e a pele, muito lisa. Eriol passou um dedo e esfregou, com cuidado. Olhou depois o dedo e viu que aquela era de fato a cor de sua pele, e não havia sujeira alguma.
"Mas... Mas eu não sei onde ela está!"
"Ela saiu com aquele homem grande!" – Ele parecia prestes a começar a chorar, e pulou da cama, correndo para a porta e se encolhendo no canto do quarto. – "Quem é aquele homem? Eu quero ficar com ela..."
Eriol piscou várias vezes e fez um gesto para que o pequeno falasse mais baixo. E se escutassem no corredor? As crianças teriam medo dele, se o vissem tão negro. A ama não iria querer cuidar dele, e se Eloise visse desse jeito o seu... gatinho, não ia mais querer ficar com ele.
"Você não quer brincar? Vamos brincar! As crianças vão gostar de você."
"Mas eu não gosto delas. Eu quero a minha mãe! E eu quero tomar banho!"
Mas que insistência para tomar banho...
"Ela é a minha mãe! Você não tem mãe! E aquele homem é o meu pai!"
"Mas eu quero tomar banho..." – Soluçou, começando a chorar. Eriol entrou em pânico quando viu que ele estava chorando, soluçando, inconsolável, reclamando que queria tomar banho.
"Não, não, não chore!..." – Pulou da cama e foi mancando até onde ele estava, antes que a ama ou algum criado escutasse aquele choro e o encontrasse. Ninguém ia querer ficar com ele, se o encontrassem ali. – "Eu vou cuidar de você, eu vou conseguir água para você tomar banho!"
O menino de pele negra esfregou os olhos, fungando. Lentamente ele parou de soluçar e olhou para Eriol de maneira mais branda.
"Eu não gosto de água fria."
"Está bem..."
Ficou calado, piscando os olhos verde-água... De repente começou a soluçar tudo novamente e empurrou Eriol, que tombou sentado no chão, fazendo um esforço para não gritar de dor no tornozelo machucado. Aquilo irritou-o demais, e esperava que ninguém escutasse aquela confusão toda, pois nem ele saberia explicar como o gato era aquele menino. Mas isso não fazia diferença, ia ter de cuidar dele tendo ele duas ou quatro patas mesmo...
"Mas por que você está chorando desta vez?"
"Vo-você disse que eu não tenho mãe! Eu não tenho mãe! E quem é que vai cuidar de mim?..."
E continuou a chorar copiosamente, esfregando os olhos, no canto do quarto. Para fazê-lo parar, Eriol teria sido capaz de dizer qualquer coisa, e de fato o fez, mas no fundo sabia que deveria ter escolhido melhor as palavras:
"Não fique assim, eu deixo você ficar com a minha mãe! Você pode ficar com ela! E eu também vou cuidar de você!"
E ele parou de chorar imediatamente.
CONTINUA
