A Sombra e a Escuridão

Capítulo 3

Eriol pediu para a criada que lhe preparasse um banho, ela estranhou, pois ele já havia tomado um, mas mesmo assim fez o que ele pediu. O menino era educado, e estava convalescendo daquele acidente no porão. Ela encheu a tina na sala de banho nos altos da casa de água quente e mandou que ele tivesse cuidado e chamasse se precisasse de ajuda. Ele agradeceu e quando teve certeza de que ninguém voltaria tão cedo, foi mancando, segurando-se nas paredes, até o quarto de seus pais e abriu a porta.

"Vamos, eu já consegui a água!"

Ele saiu do quarto olhando para os lados, suspendendo as pontas da camisa branca para não arrastá-las no chão, e quando passou ao lado de Eriol foi que este notou que ele era mesmo menor e pelo excesso de tecido sobrando, o quanto estava magro.

Ele foi correndo pelo corredor, como uma pequena assombração de cabelo desalinhado, e Eriol foi mancando atrás, até chegarem no quarto de banho. Lá, Eriol fez menção de abrir as cortinas, mas o pequeno não deixou. Disse que a luz fazia seus olhos arderem, e deixou apenas que abrisse um dos pares de cortinas, e Eriol ficou daquele lado da sala de banho, perto da porta, atento a qualquer um que tentasse entrar. Ele tirou a camisa e a deixou no chão, e antes que Eriol conseguisse dizer-lhe para tomar cuidado que a água estava muito quente – na verdade, a criada derramara-a ali ainda fervendo –, ele já havia subido no banquinho ao lado da tina e se jogado dentro dela. A água estava fumegante.

"Você... Você não se queimou?" – Eriol aproximou-se um pouco, o vapor que a água soltava era denso e fazia a sala de banho ficar enevoada, e realmente sabia que a água estava terrivelmente quente.

O pequeno tossiu, tendo afogado-se um pouco e fez que não com um aceno de cabeça. Sua pele não tinha uma única mancha mais clara, e nem de longe parecia estar suja, mas mesmo assim ele esfregava os braços com aquela água quente e fumegante, sem parecer sentir o calor e muito menos se queimar.

Eriol ficou parado no mesmo lugar, no fundo, também um pouco ansioso em descobrir que aquele garotinho tinha razão em dizer que estava sujo e que sua pele não era tão negra assim. Mas passaram-se vários minutos, e ele tentava limpar-se já de uma maneira desesperada, e Eriol já começava a ficar também, só de imaginá-lo chorando novamente, e do corredor...? Então a ama escutaria, e o que seria deles? O que seria do pequeno? Trancado no porão de novo? E ele próprio? Posto de castigo? Talvez cinturadas de Quincey - embora nunca houvesse levado surra alguma em toda sua vida?

"Aqui... Use isto!" - Entregou-lhe uma bucha de alga, que estava sobre o aparador do canto. Mancou até perto da banheira e ficou vendo o pequeno esfregando os braços com aquilo, violentamente, tentando limpar a pele, que Eriol sabia (por mais que tentasse se enganar)... Era negra e não era de carvão ou de qualquer outra coisa.

"Não quer sair..." - Ele olhou para Eriol com olhos grandes e verdes, terrivelmente tristes e assustados. - "Não quer sair! Eu estou sujo de carvão!" – Soluçou, baixinho, tentando desta vez esfregar os joelhos, mas a cor de pele continuava intocada. – "Eu não quero ficar sujo assim...!" – Começou a chorar, largando a bucha de alga de lado e ficou sentado no meio da tina, com o cabelo muito liso e desalinhado, molhado, jogado encima do rosto arredondado, soluçando que estava sujo de carvão.

Eriol ficou parado, apreensivo, tão apavorado que quase sentou-se no chão para chorar também. Por que a pele dele era tão negra, se ele tinha um rosto tão delicado quanto o de qualquer criança ocidental, qualquer criança inglesa? Talvez estivesse queimado? Não... Não estava. Não estava sujo, queimado e não era um africano, com toda a certeza. Ele se parecia com uma pantera, negro como era, mas soluçando, mergulhado na água fumegante da tina... Aquele monstro era só uma criança.

"Eu quero a minha mãe...!" – Chorou, fazendo o coração de Eriol, se apertar. Ele não sabia cuidar de crianças pequenas, e não poderia pedir ajuda a ninguém. – "Eu estou sujo... Ninguém vai gostar de mim se eu estiver sujo!"

"Não, não... Pare de chorar. Você não está sujo, e a minha, quero dizer... A sua mãe, vai gostar de você de qualquer maneira!"

"Não, não vai! Ela vai me dar banho de água fria de novo! Eu não gosto de água fria! Eu não quero ficar sujo!..."

E começou a chorar mais alto, sem parar, arquejando. Eriol olhou ao redor realmente preocupado de que a ama ou as criadas escutassem aquele choro. Estava com o coração tomado de pena, e quase chorando junto, quando viu um espelho de cabo esculpido, esquecido sobre o mesmo móvel onde encontrara a bucha de alga. Pegou o espelho e olhou para o próprio rosto, vendo o olhar daquele homem do quadro, tendo certeza de que era a si mesmo naquele espelho embaçado. Esfregou o espelho na beirada de seu pijama até enxugá-lo e mancou para mais perto (um tanto que cautelosamente, pois embora aquele na banheira fosse pequeno e não fosse feio... Sua pele continuava negra, e estava naquela água fumegante sem sentir nada... Talvez fosse um monstro de fato, mas muito, muito pequeno... Quem sabe o mesmo que o assombrava no porão) e colocou o espelho na sua frente. Mas o pequeno estava de cabeça baixa, chorando e só olhou quando Eriol o chamou. E por que fez isso, pensou, quando ele gritou, assustado com o que viu.

"Não grite! Não! Acalme-se! Não grite!"

O pequeno arquejou e se encolheu no fundo da banheira, tapando os olhos com as mãos, chorando mais ainda, quando seu grito perdeu força.

"Olhe aqui! É um espelho... Veja só!" – Eriol colocou sua mão na frente do espelho, tentando argumentar, mas não conseguia. – "Pare de chorar. Você não está sujo! Você está molhado e eu tenho de pentear o seu cabelo, mas não está sujo. A sua pele é negra... Mas não é carvão ou algo assim..."

"Eu quero a minha mãe!" – Soluçou. Eriol pensou que seria melhor mesmo que Eloise estivesse ali, ainda que quando o pequeno estivesse com ela, por alguma razão misteriosa, o visse como um gato.

"Está bem, está bem... Mas olhe aqui. Mostre-me a sua mão. Olhe aqui!" – Eriol puxou a mão dele até perto do espelho e olhou. Era de um total contraste com a cor de sua própria pele. –"Está doendo?" – Respondeu com uma negativa e olhou desconfiado para o espelho de cabo. Talvez por curiosidade, pois o cabo era dourado e trabalhado, esticou as mãos para pegá-lo, e acabou dando com seu rosto de novo no reflexo e por pouco não gritou da mesma maneira que antes. Antes de gritar, olhou, assustadíssimo, para Eriol, e conteve-se. Dos dois, Eriol era o que mais se mantinha calmo, embora a curiosidade sobre tudo o que aquele gato que era um menino que lhe parecia uma pantera fosse maior do que todo o resto. Talvez nem tanto, o medo de ser descoberto e de deixá-lo voltar para o porão era maior.

Ele ficou calado, alternando olhares de medo para o espelho e para Eriol.

"Eu não sou assim..." – Choramingou baixinho, erguendo os olhos. No escuro, eles pareciam brilhar de uma maneira anormal, exatamente como os de um gato.

"..." – Desta vez, foi Eriol quem se assustou. Abaixou-se, segurando-se na cadeira e pegou a camisa de Quincey, que estava no chão. – "Como assim?"

"Eu sou como você. Mas por que eu estou sujo?"

"Você não está sujo, eu tenho certeza! Mas não sei porque você é assim!"

"Eu não sou assim!" – Fungou, olhando no espelho, olhando para o próprio rosto e inconsolável com isso.

"Ah, não importa. Vamos para o quarto, você não pode ficar o dia todo nessa água! A ama vai voltar e se nos encontrar aqui, estaremos em apuros." – Tirou o espelho das mãos do pequeno e puxou-o pelo braço. – "Não chore... Vamos, pequenino! A sua mãe não vai gostar de ver você chorar. Ela vai colocar nós dois de castigo!"

Ele disse algo que Eriol entendeu como um "sim", engrolado de soluços e cheio daquele modo estranho que ele tinha de falar. Estava cada vez mais complicado entender o que dizia, mas ele aceitou sair da banheira e ser enrolado numa toalha de algodão, enquanto Eriol arregaçava a manga do pijama e puxava a corrente da tampa do ralo. Eles escutaram e olharam juntos a água limpa e fumegante descer pelo ralo de bronze. Depois a banheira ficou vazia e o pequeno continuou olhando para a banheira vazia, e Eriol mancou, segurando-se no aparador e depois na parede, e puxou a cortina, abrindo-a somente numa estreita faixa.

"Qual é o seu nome, pequenino?"

"Eu não vou dizer!" – Emburrou-se. Já não soluçava e nem tremia, mas seu rosto estava molhado, e não era apenas da água que escorria do seu cabelo despenteado. Continuou resmungando baixo. – "Eu não quero dizer o meu nome para você!"

"Eu vou chamar você do que eu quiser então!" – Foi para a porta e esperou que o menininho correr para lá também, quando viu que ficaria sozinho se não se apressasse.

Foram em silêncio pelo corredor, passando por portas fechadas e Eriol sentia o tornozelo machucado doer, assim como os joelhos, os cotovelos, e pensando bem... Seu corpo todo doía e ele queria voltar para a cama. O pequeno alternou um olhar entre o chão e Eriol. Também parecia cansado e triste. De repente queixou-se de fome.

"Você acabou de comer!"

"Mas eu estou com fome. Dê-me algo para comer!"

Seu tom era autoritário, apesar da voz de criança e daquele modo de falar confuso. Algumas palavras Eriol mais adivinhava do que entendia. Não era como o falar de crianças pequenas, eram palavras formais e ditas de maneira antiga. Isso mesmo: pareceu-lhe que era uma maneira muito antiga de falar inglês.

"Menino!" – Chamou.

"Meu nome é Eriol." – Entraram no quarto, e o garotinho correu e jogou-se na cama

"Eriol." – Repetiu, como se fosse quase um palavrão, o erre da palavra tão puxado que doía, e todas as vogais eram fortíssimas. – "Como você vai me chamar?"

Eriol olhou para os lados no corredor e fechou a porta com cuidado para não fazer barulho. Estavam sozinhos no quarto e o sol já estava dobrando e a luz entrava por uma fresta da cortina de voal, projetando-se na parede do fundo do quarto.

"Como você vai me chamar!" – Insistiu.

Eriol olhou para o pequeno, fazendo um esforço tremendo de se acostumar com ele, com as perguntas que ainda tinha para fazer e mais ainda com sua aparência, sua pele negra, seus olhos de pantera.

"Raio de sol." – Conteve um riso que surgiu do nada, sem razão nenhuma, e nem sabia porque havia respondido isso. – "Spinel Sun."

O pequeno arregalou os olhos e depois se encolheu. Estava furioso, mas nada disse. Continuou num silêncio terrível, ignorando o riso de Eriol, que mesmo sabendo ser aquela uma brincadeira de péssimo gosto, não conseguia evitar. Deixou-o que sentasse ao seu lado e penteasse com custo e dificuldade seu cabelo, que afinal, mostrou-se mais longo do que parecia, e completamente liso. Logo depois de terminar, o vestiu de novo na camisa de Quincey e sem mais nada que pudessem fazer, ficaram em silêncio. Começava a escurecer do lado de fora e o pequeno pulou da cama, rodeando-a. Quando virou-se para ver o que ele estava fazendo, não havia mais o menino, Eriol arrastou-se sobre a cama somente a tempo de ver a ponta da cauda do gatinho preto sumir debaixo da beirada da coberta que chegava ao chão. Ele entrou debaixo dela e ali ficou, até a hora que Eloise e Quincey chegaram. De então em diante, o gatinho continuou dormindo na cama dos pais de Eriol ou no colo de Eloise, por quase todos os dias em que continuaram na casa. Mesmo assim, (e mesmo sem saber as razões de tantos mistérios) Spinel Sun – era assim que até os pais de Eriol já o chamavam – ia perturbar Eriol, como um fantasma com voz de criança, comilão e impertinente, e talvez por vingança pelo nome que lhe dera, o perseguia. Mas Eriol nunca irritou-se com ele, afinal... Afinal, Eloise mesmo dissera: agora ele era o seu irmãozinho.

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Quando não o estava perturbando, Spinel Sun acompanhava Eriol pela casa, mas afastava-se das outras crianças, e voltava para o colo de sua dona. Quando estavam somente os dois, ele caminhava como um menino, às vezes vestido nas roupas de Eriol, outras na camisa de Quincey. Ele era mais bem educado do que Eriol gostava de imaginar, e bem mais impertinente e mimado do que as outras crianças. Perguntava por tudo, e principalmente, onde estava o dono daquela casa, e apesar de todas as respostas que Eriol julgava adequadas, nenhuma era a que o satisfazia. Eriol não chegou a mostrar-lhe o retrato do filho do Barão, pois se o mesmo já lhe dera pesadelos, o que faria com o pequeno? Tentava com custo acostumar-se de vê-lo assim, de pele negra e olhos assustadores no rosto de criança. Ao lado daquele pequeno e inofensivo monstro, Eriol explorou toda a casa de Hong Kong, pelo menos os lugares que escapavam à vigilância de seus pais e das amas. Ao lado dele recuou respeitosamente um passo à frente do salão de festas, no qual apenas adultos podiam entrar, e não ateve-se de bisbilhotar com tanto interesse outro lugar que não a própria biblioteca. Lá, Eriol revirou prateleiras como se procurasse por algo. Spinel Sun olhava sem perguntar nada. Assim deu-se por várias vezes, até que no último dia, já de roupas trocadas, no costume preto de viagem próprias de meninos ingleses, ele escutou:.

"Eu quero roupas!" – Spinel Sun segurou-o subitamente pelo braço, quando Eriol virou uma curva do corredor, já a caminho da biblioteca. Seus pais estavam ocupados nas longas despedidas da família, nas trocas de presentes e últimas formalidades. Pareciam não querer nunca mais ir embora e Eriol não sabia se também queria ficar, ou a ansiedade era apenas vontade de voltar para casa. Uma casa, que, pensando bem, ele mal se recordava. Para todas suas recordações, lar era um camarote de navio, um convés cheio de senhoras de sombrinhas brancas rendadas e homens de jaquetão azul, lar era isso, e também eram salões de hotéis, plataformas de embarque de trens, portos, ruas e lugares estranhos, de ar saturado de aromas intensos, línguas exóticas e todo um passado ao qual ele sentia que poderia pertencer. O passado daquela casa, todas as paredes dela, encerravam segredos dos quais ele também queria fazer parte, e era aquela casa um lugar que ele também desejava chamar de lar.

"O quê?"

"Eu quero roupas!" – Spinel Sun puxou com mais força, quase derrubando-o desta vez. Isso o arrancou de seus pensamentos e por um momento esqueceu das saudades que já antecipava. Voltou um olhar que se ele mesmo pudesse ter notado, saberia-o estranho e Spinel Sun, mesmo pequeno, mesmo com sua fala estranha e sua intransigência de criança, notou esta diferença e largou seu braço. Ele estava vestido naquela camisa de Quincey, e certamente metade dela era arrastada pelo chão. – "O que você está fazendo, olhos de chumbo?"

"..."

"O que você vai fazer agora?" – Eriol arrepiou e estremeceu, e recuou até o outro lado do corredor quando escutou Spinel Sun falar assim. Era apenas uma criança falando com ele, mas parecia ter dez vezes mais aquela idade e dizendo aquilo... Não. Eriol sabia que não era a primeira vez que alguém o chamava daquela forma.

"O... Do quê você me chamou?"

"..."

"Você me assustou." – E continuou no caminho em que estava. Spinel Sun ficaria em silêncio, de qualquer maneira. Duvidava que ele surgisse daquela maneira para mais alguém, e tinha certeza de que isso jamais aconteceria. – "Eu já lhe dei o que comer! Você come o dia todo!... Não sei como você é tão pequeno se come tanto!..."

Eriol foi pelo corredor e escutou-o andar ao seu lado, mais um farfalhar de tecido solto do que passos. Ele nunca fazia barulho quando andava, talvez por andar sempre descalço, e enquanto o acompanhava olhava para ele insistentemente, até que o agarrou pelo braço, pendurando-se nele e fazendo Eriol arrastá-lo por boa parte do corredor. Parecia uma brincadeira, até que ele notou que talvez o quisesse impedir de andar naquela direção. Perguntou a razão de estar fazendo isso, mas o não respondeu. Spinel Sun então, como um animal, cravou os dentes na manga de seu casaco e puxou. Eles estavam exatamente à porta da biblioteca.

"Do que você está com medo? Aqui está vazio. Não tem ninguém, como de todas as vezes que estivemos aqui." – Eriol empurrou a porta com cautela, percebendo que Spinel Sun estava com medo e que este o contaminava com isso. – "Vazio!"

Spinel Sun largou o braço de Eriol e tomou a frente, empurrando-o e entrando. O lugar estava escuro, nem as janelas conseguiam iluminar a biblioteca e o cheiro de mofo fazia a garganta de Eriol arder, e ficou parado na porta, respirando fundo, como se pudesse aspirar o que havia naqueles livros. Viu Spinel Sun andar por ali, viu seus olhos, e eles reluzirem quando entrou entre as estantes e saiu pelo outro lado da biblioteca.

"Me diga o que você quer que eu irei buscar para você." – Ele falou como um adulto.

"O que eu quero?... Do que está falando?"

"..."

"Vamos embora daqui, Spinel Sun. Minha mãe vai enlouquecer se eu não estiver nas despedidas."

"É isto o que você queria?"

Eriol estranhou o que vê a sua frente. Spinel Sun, talvez já havia um bom tempo estava parado à sua frente, no escuro da biblioteca, segurando nos braços de criança três livros que não eram exatamente finos. E eram livros muito velhos. Tremeu em pensar se alguém os visse ali, mas o corredor estava vazio, apesar das vozes não estarem tão distantes assim.

"O que são estes livros?" – Eriol sabia, no entanto, muito bem o que eram aqueles livros. Por causa deles voltara tantas vezes à biblioteca, algumas, sozinho, em segredo. Nunca se atrevera a abri-los, embora soubesse onde estavam, na segunda prateleira, ali, entre o Don Quixote e um livro português. Precisava erguer-se nas pontas dos pés para encostar os dedos nas lombadas. Estendeu os braços e recebeu os três livros nas mãos. Eram especialmente pesados, por conta da encadernação de couro. – "Como você sabe?"

"Eu segui você!" – Spinel Sun disse com ar triunfante. Agora parecia de novo uma criança de cinco anos, que triunfa porque sabe algo que outra não sabe. – "O que tem nestes livros?"

Eriol deu um passo para dentro da biblioteca, abraçando os três livros como se fizesse alguma idéia do que houvesse neles.

"Eu não sei. Ainda não li. Você os leu, Spinel Sun?"

"Eu não sei ler! Mas as figuras são bonitas!" – Deu um pulo para tentar alcançar os livros e quase fez Eriol desequilibrar.

Em vez de irritar-se, riu. Spinel Sun não contaria a ninguém que estavam roubando aqueles livros da casa e talvez ninguém nunca notasse. Sentiu uma ponta de inveja da coragem dele em abrir os livros. Pelo menos tinham figuras, pensou com certo alívio por sua preguiça de ler livros sem elas. Riu sozinho, pois Spinel Sun apenas olhava as capas, até que enjoou-se e olhou o resto da biblioteca. Estavam pisando diretamente sobre a pedra. Não havia tapete e nem mobília. A papeleira encostada no fundo da sala estava com as portas abertas e vazia.

"Este lugar..." – Eriol continuou rindo. Desta vez ria mais alto, sem razão alguma que ele mesmo entendesse. Spinel Sun parou e ficou olhando aquele riso. Era de pura alegria, e Eriol olhava o chão como se conseguisse ver algo mesmo muito engraçado. Olhou também e não viu nada.

"Do quê está rindo, Eriol?"

"Não sei. É como se houvesse algo muito engraçado aqui nesta sala. E eu não sei o que é."

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"Eu quero ir!"

Eriol mal havia acabado de esconder os livros no baú de viagem que só voltaria a ser aberto na Inglaterra, quando Spinel Sun puxou seu boné de veludo.

"Devolva-me!"

"Não! Eu quero ir também!" – Spinel Sun agarrou-se ao boné e virou-se de costas, obstinado. – "Eu quero ficar com a minha mãe!"

"Nós estamos indo para muito longe... Você não vai gostar de lá! Agora devolva-me este boné!"

"Eu quero ir!" – Ele jogou o boné no chão e se encolheu no canto do quarto, no meio das maletas e do resto da bagagem. – "Você quer ficar com a minha mãe só para você!..."

"Ela não quer que você vá! Nós vamos viajar de navio e você é muito pequeno... Vai enjoar!"

"Navio? Pelo mar?"

"Sim."

"Eu quero ir!"

Eriol juntou o boné que estava no chão e o espanou. Que hora para discutir com o gato... Se alguém os escutasse, melhor não pensar no que iria acontecer. Não poderia levar Spinel Sun, embora quisesse que aquele encrenqueiro também fosse. Sua mãe adorava animais, mas Quincey já havia dito que não concordaria com gatos na casa, se Eloise também não concordasse com seus cães de caça. Spinel Sun quando estava no colo dela, quando era apenas um gatinho, era tão pequeno e calado, que pensava se pudesse haver um modo de deixá-lo com um gato o tempo todo. Mas ele comia demais, talvez o problema fosse esse... Continuava encolhido no canto, já soluçando e repetindo que queria ir. Parecia uma réplica do dia em que ele insistira em querer tomar banho. Ao menos já desistira de se limpar, todavia continuasse com pavor de estar sozinho na frente de um espelho, mesmo que se comportasse quando estava no colo de Eloise e ela estivesse escovando os cabelos na cômoda...

"Eriol? Você está aí?"

Era a voz de Quincey. Engoliu em seco e olhou para o canto. Spinel Sun ainda estava lá, pedindo para ir e prometendo que não ia comer tanto e que ia se comportar. Eriol olhou de novo para a porta e não teve tempo de responder, pois seu pai já a abria, e pareceu-lhe ligeiramente assustado.

"Pai?"

"Eu escutei um choro, quando passava neste corredor. E quando abro esta porta..." – Quincey entrou e passou a mão na testa. Estava pálido, porém a cor já voltava a seu rosto. – "Estou vendo coisas. Tive a impressão de que havia uma criança bem ali." – Apontou para o canto.

Eriol arregalou os olhos e voltou-se para olhar. Não havia nada. Havia o canto e a camisa embolada alí no chão, detrás das maletas. Quincey riu, e suspendeu Eriol do chão, jogando-o por cima de seu ombro. Nunca havia notado como seu pai era alto, até que viu o corredor daquela altura. Ele também não era jovem, apesar de seu sorriso, apesar de sua disposição para ver o mundo.

"Já vamos, pai?"

"Sua mãe ainda está chorando lá embaixo. Vamos esperar que ela se recomponha... Você está ficando pesado, menino."

Continuou andando com Eriol pelo corredor, até que chegaram até os antigos quadros dos primeiros donos daquela casa. Quincey parou e olhou. Como Eriol estava sobre seu ombro, estava de costas para lá. Seu pai o colocou no chão e apontou para o retrato do filho do Barão.

"Eriol, você acha que eu me pareço com ele?"

Eriol olhou para o retrato na parede.

"Sim, eu acho." – Disse, seguramente.

"Foi a sua mãe quem disse que eu me parecia com ele. Estranho... Acho que você quando for adulto, vai se parecer mais com ele do que eu. Se este quadro estivesse em nossa casa na Inglaterra, quando você fosse adulto, até eu acreditaria que era você em roupas antigas."

"..."

"Vou sentir muita falta deste lugar. E também de todos os que conhecemos."

"Pai?"

"Sim, Eriol..."

"Podemos levar o gato?"

Quincey riu sem pressa alguma.

"É por causa dele que a sua mãe está em prantos lá embaixo." – Riu. Eloise chorava à toa, quanto mais em despedidas, ele disse. Ela jamais deixaria seu filho caçula para trás. – "Você sabe onde ele está?"

"Está no quarto!" – Forçou-se a rir também, e acabou divertindo-se, lembrando de Eloise apresentando-lhe seu irmãozinho. Queria que o pai o levasse no ombro mais uma vez. O tornozelo não estava mais inchado, mas ainda estava em bandagens e doía quando ficava por muito tempo em pé.

"Então vamos pegá-lo. Sua mãe está inconformada de não ter tido tempo de dar mais um banho nele..."

E não precisou pedir. Seu pai o segurou pela cintura e o jogou por cima do ombro de novo. Nisso, Eriol pôde olhar novamente para o quadro do filho do Barão, desta vez com menos desconfiança e menos medo do que antes. Se ele houvesse sido retratado mais velho, seria Quincey, e se quando menino, seria Eriol. Talvez um dia o que Quincey dissera se mostrasse verdadeiro. Talvez fosse isso, que Eriol seria como ele... Talvez um dia se tornasse o mesmo.

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E assim eles voltaram para a Europa. Do navio inglês de Hong Kong até as Índias Inglesas, e depois, um navio italiano que os levou para Marselha, no sul da França, e de lá, o trem, para atravessar o continente rumo ao norte e por fim, a barca para o outro lado do Canal da Mancha. Não contou-se o tempo que este retorno demorou, assim como não economizaram tempo na ida desta viagem. Eram um senhor de sorriso gentil, seu filho de óculos e boné de veludo e uma dama falante com um improvável gato preto no colo. O gato agora tinha um dos braceletes de Eloise em volta do pescoço, como uma extravagante coleira, que passava facilmente por sua cabeça, de tão pequeno que ele era. Esta dama inglesa chamada Eloise chamava seu gato de filho e o tratava assim, e exigiu de toda a criadagem de seu palacete, quando apresentaram-se em revista, no dia em que lá chegaram, que ele assim fosse tratado.

A casa estava exatamente do jeito que fora deixada e o mordomo, da maneira que lhe havia sido ordenada, guardou cada exemplar de jornal e semanário que fosse do interesse de Quincey, daqueles anos em que estiveram fora. Ele resguardaria alguns dias para olhar aqueles jornais, para saber o que acontecera em seu país quando estivera em viagem, e no mesmo passo, para saber das novas intrigas da sociedade, Eloise planejou uma festa, que também serviria para apresentar seu... Filho mais novo aos amigos. E como cada qual tinha seus próprios meios de saber como estavam as coisas de seus interesses, a Eriol coube apenas saber que no mês seguinte começariam suas aulas no colégio, e portanto, deveria começar a estudar desde então.

Quando Eriol entrou em seu quarto, descobriu que não lembrava-se de ter tido um antes de ir naquela viagem, e pensando bem, não sabia muito bem o que significava isto, e teria se sentido muito melhor se fosse ele um camarote de navio. Seu quarto era grande (maior do que um camarote), e suas coisas ainda seriam arrumadas pelas criadas dentro do guarda-roupa e da cômoda. Também havia uma arca para a roupa de cama, e outro armário menor, para as roupas comuns, da mesma feita que agora em seu quarto havia uma escrivaninha para seus estudos e alguns livros de gramática inglesa e francesa. Toda a mobília era de madeira escura e acabamento simples, e as paredes eram forradas de tecido. Estava escuro, e ele quase se esquecera, naquele meio tempo de viagem, de Spinel Sun, que dormia dentro de uma caixa de chapéus de Eloise. Ele estava ali! Eriol arrepiou-se de medo de pensar o que aconteceria se alguma criada o visse, mas ele se comportava bem quando estava com Eloise, não havia o que temer. Escutou alguma coisa arranhar a porta, perto do chão.

Levantou-se e quase tropeçou nos próprios sapatos, que havia deixado no chão ao lado da cama. Abriu a porta e o gato correu para dentro do quarto.

"O que você está fazendo aqui?"

"Eu não quero tomar banho frio, Eriol!"

Quando atravessou o quarto para abrir as cortinas, não havia mais gato, havia Spinel Sun, menino na sua frente. Tão cedo não iria se acostumar, se pelo menos houvesse uma razão para isso, um porquê.

"Como você faz isso?"

"Eu não quero tomar banho frio! E aquele homem grande disse que não vou mais poder dormir com a minha mãe! Ele me colocou num cesto debaixo da mesa do corredor, e eu não quero dormir lá!"

"Está bem, está bem... Você pode dormir aqui! Pode dormir no..."

Spinel Sun puxou um lençol que cobria uma cadeira, enrolou-se e atirou-se sobre a cama, ficando ali, encolhido, com frio. Seu rosto negro aparecia no meio do tecido branco como uma porcelana pintada.

"Sofá..."

"Eu não quero dormir em cestos, e nem em sofás! Eu quero roupas e quero dormir aqui!"

"Está bem. Fique aí..." - Soltou os ombros, derrotado. – "Spinel Sun?"

"O que é?" - Sua voz estava arrastada. Talvez pretendesse dormir.

"Como você faz aquilo?" - Eriol aproximou-se um pouco da cama. Depois de tanto tempo no navio e no balanço do trem, quando olhava para o chão (e tinha de fazê-lo agora, para ter certeza de onde estava pisando) ele ondulava, como se estivesse ainda em alto mar.

"Aquilo o quê?"

Sentiu-se embaraçado em perguntar, pois era tão absurdo quanto improvável.

"Aquilo... Você fica... pequeno... quando está no colo da minha... Da sua mãe."

"Assim?"

E de repente era só um gato pequeno e muito preto no meio do lençol branco. Eriol piscou algumas vezes e se aproximou. O pêlo do gato não era mais tão arrepiado quando da primeira vez que o vira assim, nesta forma, e estava uma autêntica bolinha, de tão roliço.

"Mas por quê?..."

"..." - O gato passou a língua pelo focinho e se sacudiu.

"Mas como você consegue fazer isso?" - Eriol puxou-o por uma das patas, chamando sua atenção. Spinel Sun olhou e ergueu as orelhas. -"Como você faz isso?"

"Eu não sei."

Era a voz de Spinel Sun, mas vinha de lugar algum e ao mesmo tempo vinha de dentro da própria mente de Eriol. Ele estremeceu e suspendeu o gato no colo. Era como segurar qualquer outro gato.

"Então você é um gato? Que estranho..."

"Eu não sou um gato!"

"Então que você está fazendo assim, pequenino e miando no colo da minha mãe? O que você é, se não é um gato?" - Eriol deixou-o de novo encima da cama, olhando-o bem para ter certeza de que quando voltasse a ser um menino, não deixasse de ver aquilo. - "Para mim continua sendo um gato... Um gato mimado e que tem de andar com laços no pescoço!"

"Eu já disse que eu não sou um gato!"

E ao dizer isso, não adiantava o quanto prestasse atenção, era um segundo ou menos, ou ainda, era o tempo de um piscar de olhos que ele levava para voltar a ser um menino, e o fez na frente de Eriol, e já estava pulando para o outro lado da cama. Estava muito irritado e repetiu o que disse, gesticulando e até mesmo parecendo magoado.

"Eu não sou um gato. Gatos têm pulgas! E eu sou grande demais para ser um gato..."

"Mas você não é um menino. Não o tempo todo..." - Arranhou a cabeça, procurando em todas as histórias que escutara em sua vida alguma explicação para a natureza daquele menino. - "E eu sei que você não é uma fada!"

"Eu sou uma pantera!"

"..."

Eriol arregalou os olhos. Não achou aquilo engraçado, e nem achou que ele estivesse brincando ou fantasiando o que estava dizendo.

"Você já viu uma pantera?" - Quis saber. - "Você sabe como é uma pantera?"

E olhando bem, Spinel Sun, de pele totalmente negra e olhos verdes claríssimos, não estava tão longe assim de ser uma. Ele assentiu e aproximou-se de Eriol, como se fosse contar um segredo.

"O homem de olhos de chumbo me mostrou uma, no circo. Era um gato grande e preto... Não era como um gato, mas parecia-se com um. De dentes grandes assim..." - Abriu as mãoszinhas espalmadas, como a mostrar o que achava que era o comprimento dos dentes que vira. - "Eu vi a pantera bem de perto..."

"E porque você me disse que você é uma pantera? Eu não entendo..."

"Agora eu sou uma. Veja..."

"...!"

Ele não mentiu e nem exagerou, Eriol pensou apenas consigo. Spinel Sun era uma pantera, de qualquer maneira. Ele se tornou uma na frente dos seus olhos, mas... Era uma pantera pequenina. Definitivamente um filhote, roliço, negro e parecendo mais com um gato do que com uma pantera. Mas era uma pantera...

"..."

"Do que você está rindo, Eriol?"

"Você é uma pantera... Mas é uma pantera muito pequena!"

"Eu... Eu vou crescer!"

"É claro que vai..." - Não pareceu-lhe outra coisa senão que Spinel Sun continuaria para sempre assim, do jeito que estava vendo-o. E divertia-se muito vendo-o voltar a ser um menino na sua frente, e desta vez, um menino mais furioso ainda. - "Vai ser uma pantera enorme..."

"Eu vou ficar grande, e quando eu crescer, vou ficar grande e vou engolir você, Eriol!"

Teve de se sentar na ponta da cama, dobrando-se sobre o próprio estômago para não cair. Estava achando muito mais engraçado ainda a promessa de que um dia aquela coisa redonda e pequenina fosse engoli-lo.

"Eu vou engolir você e eu... eu... eu vou ficar com a minha mãe só para mim! E eu também vou engolir aquele homem grande que não me deixa dormir com a minha mãe! E eu também... Eu..."

Ficou calado, subitamente, ofegante. Parecia ter descoberto que não havia mais a quem engolir. Sentou-se no meio dos lençóis e ficou pensativo, balançando os pés, com as mãos muito negras sobre o tecido branco.

"O que foi? Não vai mais querer me engolir quando ficar grande?"

"Não é isso..."

"O que é?"

"Estou com fome!"

Eriol parou de rir, e sentiu-se leve. Finalmente achava graça em algo que desde o começo só servia-lhe de preocupação. Estava mostrando-se muito divertido ter alguém com quem conversar e brincar, ter afinal, um irmão menor, mesmo que ele ameaçasse engoli-lo quando ficasse grande.

"Do modo que vive com fome, acho que vai acabar me engolindo mesmo..."

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Depois disso, houve a festa que Eloise queria para fazer-se presente mais uma vez na sociedade. Não aceitou quando convidaram-na para viajar até Paris, e portanto, visitou somente os modistas de Londres para que fizessem-lhe vestidos com os tecidos que trouxera do oriente. Na festa quanto em seus passeios e nos eventuais chás que fosse convidada, fazia-se acompanhar sempre de Spinel Sun. Atava-lhe grandes laços no pescoço e logo tornou-se moda entre as mulheres da sociedade fazerem-se acompanhar de gatos, alguns, de exótica pelagem.

Depois da festa, houveram os jantares longos e densos de conhaque e fumo, onde Quincey discutia negócios e inteirava-se de tudo o que poderia interessar-lhe. Até certa altura, Eriol poderia tomar parte destes jantares, mas a determinada hora, ele deveria dormir. Spinel Sun continuava no colo de Eloise, e mesmo quando ela recolhia-se, ele passava para o colo de Quincey e ali dormia pela noite inteira. Ele tinha antipatia por estranhos, e quanto mais forte fosse o cheiro do fumo que este estranho fumasse, mais antipatia ele conseguia nutrir por esta pessoa. Em certo jantar, sem querer prestou um grande favor a Quincey. Eriol e Eloise ainda estavam acordados, e como a noite fosse mais de diversão do que de negócios, um dos convidados - de quem Quincey nunca gostara, e então menos ainda por ter sido enganado por ele na assinatura de algumas terras em Edimburgo, nada grande, mas que fizera-o perder-lhe totalmente a confiança - tirou Eloise para dançar a música que vinha do gramofone, e vendo isto, enquanto Quincey ainda aprontava-se para levantar do sofá, Spinel Sun já saltava, do ombro de Eriol para cima do convidado. O homem (que contra si próprio já tinha o cheiro insuportável de fumo barato impregnado em suas roupas) gritou e tentou em vão livrar-se dele, que atacava-lhe de garras abertas o rosto e a testa, e por mais que os bons modos mandassem que algo fosse feito, ninguém moveu-se, nem os donos da casa, nem os criados, e nem os outros convidados. O homem saiu correndo pela varanda com Spinel Sun tentando cegá-lo, e de fato conseguiu o que queria. Spinel Sun voltou sozinho, sujo de terra, naquela noite, e uma semana depois o homem chamava Quincey em sua casa, estava cego de um lado do olho, e seriamente ferido do outro, dizia-se arrependido e devolveu-lhe as terras que roubara.

A partir daquele dia, Quincey tivera Spinel Sun como uma companhia de grande sorte em seus jantares, e um ciumento guardião para zelar por Eloise quando ele não estivesse por perto. As visitas já o consideravam um membro da família, e se traziam presentes, charutos ou vinhos finos para Quincey, flores e perfumes para Eloise, ou livros e jogos para Eriol também traziam algo para Spinel Sun.

E daí começaram as aulas de Eriol num colégio católico e tradicional, e em casa, com tutores para que pudesse acompanhar sozinho a escola mais tarde. E não foi o único a aprender. Enquanto estudava, Spinel Sun andava sobre a mesa, e quando o tutor apontava para a lousa verde escura, cheia de lições de gramática de francês e inglês, ele olhava com igual atenção. Os professores tinham medo dele, e não importava se fosse trancado à chave em qualquer cômodo da casa, sempre reaparecia para acompanhar as lições de estudo. À noite, andava como menino e acordava Eriol à qualquer hora da madrugada para que lesse com ele mais um capítulo da Ilha do Tesouro, ou ditasse novamente toda a lição de inglês que Eriol havia copiado na escola e feito em casa. Mostrava-se tremendamente curioso sobre como escrever usando pena e tinta-da-china, e forçou Eriol a acordar na metade de uma madrugada para ensiná-lo como escrever com a pena e com o lápis. Exigiu roupas, e com custo aceitou ficar com as mais antigas de Eriol, que não serviam-lhe mais. Queria sapatos, e quando Eriol mostrou-lhe os seus, disse que não eram como aqueles os que queria, e mostrou-lhe a figura de um livro, com sapatos muito antigos, de mais de um século antes, e Eriol disse-lhe a verdade, que aqueles sapatos não eram mais feitos. Spinel Sun não entendeu de pronto porque escutava aquilo, e disse que eram como aqueles os sapatos que conhecia. Então ele entendeu que estava em um mundo ao qual não pertencia, e Eriol descobriu que tinha à sua frente algo que não sabia explicar, mas que compreendia.

Nesta mesma madrugada desceram em silêncio até um velho quarto onde ninguém nunca habitara e que servia de depósito de coisas velhas, ao lado da cozinha. Lá encontraram os baús usados na viagem e dentro deles, coisas que não foram tiradas de lá, e talvez não o fossem tão cedo. E junto delas, dentro de um baú de couro, estavam os três diários que haviam roubado da casa em que estiveram, na China.

Eriol não entendia, mas compreendia. E esta tranqüilidade em descobrir sobre este mundo que o cercava o assustava, pois quando o fazia, sabia que não eram os olhos de um menino que olhavam ao seu redor. Eram os olhos de um caçador. Eram olhos de chumbo.

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Duas semanas depois deu-se o início da pausa de seus estudos, entre um ano e outro. Eloise estava em Londres, e desta vez ao menos, não levara Spinel Sun consigo. Ela prometera uma surpresa para quando voltasse, e sua ausência na casa fazia-a muito silenciosa e sem atrativos para todos eles. Sendo assim, Quincey armou o rifle e convidou um vizinho para caçar faisões – e eles eram péssimos caçadores... – enquanto Eriol, sem aulas, sem deveres e sem mais o que fazer, saía para andar pelas propriedades da casa, e além delas, pelo parque que estava nos limites das terras e às vezes até pela cidade, para comprar doces ou apenas andar. Spinel Sun sempre estava com ele e pelo menos quando estavam brincando pelo bosque, lendo aqueles velhos diários que pertenceram ao filho do barão e atirando-se em montes de folhas secas que os empregados da casa juntavam pelas alamedas dos jardins, sempre vestia a forma de um menino e continuava usando uma das camisas de Quincey para se vestir, e o dono das camisas nunca sabia o que pensar quando encontrava uma delas pelo chão da biblioteca, ou da sala de chá, ou então na cozinha, então toda manchada de caramelo e farelos de biscoito.

Eriol e Spinel Sun leram o diário do filho do Barão juntos. Na verdade, Spinel Sun definitivamente aprendera a ler naquelas páginas. Algumas partes eram incompreensíveis e eles demoravam-se muito olhando as figuras. Eram desenhos feitos pelo mesmo traçado de pena e tinta azul ou violeta que escrevera aquelas linhas,e alguns eram muito bonitos e bastante seguros. Ainda liam o primeiro volume dos três, o que ainda continha as datas mais antigas, e várias páginas encontravam-se arrancadas, e este diário exalava um estranho perfume, que impregnava-se nas roupas e nas mãos de Eriol, juntamente com o cheiro de poeira e papel antigo. Eles entendiam muito pouco do que liam, até que entenderam, por sorte ou azar, que o filho do barão tratava-se de um homem que não era cristão, que não tinha os mesmos valores que Eriol pelo menos, aprendera como corretos, e que seu tempo estava muito longe dele mesmo, ainda que Spinel Sun compreendesse a época que ele descrevia em seu diário. Ele não lhe era de todo estranho em nada daquilo que dizia. O filho do Barão descrevia experimentos em magia, haviam desenhos intrincados e cálculos nestas páginas, haviam desenhos de selos e observações, e ele as misturava com amenidades, com comentários sobre seu dia, sobre "belas moças de olhos escuros" que ele visitava e as quais levava presentes, falava sobre dúvidas e incertezas. Brevemente, eles notaram que aquele não era como o livro de um feiticeiro, como o que era descrito nos contos de fadas, e mesmo que fosse, então deveria ser um muito diferente.

Spinel Sun um certo dia pediu folhas de papel e lápis a Eriol, pois queria desenhar. Eriol entrou na biblioteca da casa, depois que todos já haviam se deitado, com uma vela num pires e descalço para não fazer ruído algum e abriu a gaveta onde sua mãe guardava seus gizes e pastéis. Ele pegou as pontas soltas, que ela não repararia a falta quando voltasse de Londres e na mesa do escritório de Quincey, buscou algumas folhas limpas e correu de volta ao quarto, levando-os. Lá, Spinel Sun pediu que ele abrisse o diário e que relessem certa parte. Ele começou a rabiscar em uma das folhas de papel e Eriol entendeu o que ele pretendia. Buscou um pastel azul e começou a riscar também, desta vez imitando o que via naquela página. Deixou a folha com seu desenho no chão do quarto e o pires com a vela encima de um móvel. Estava com medo e muito curioso e ansioso em fazer aquilo. Nunca pensara em fazer algo assim, mas o que Spinel Sun estava fazendo o inspirava à mesma coisa. E Spinel Sun terminou seu desenho, e mostrou-o a Eriol. Era uma borboleta, colorida demais para ser uma borboleta de verdade, mas feita com capricho, um desenho de criança, e voltou a ler mais uma parte daquele diário, soletrando, errando letras, mas leu sozinho e Eriol fez o que estava dito ali, ele rasgou as beiradas do papel até que ficasse apenas a borboleta sozinha, e a deixou sobre a folha que estava no chão.

"Agora... Agora me diga o que fazer. Eu não posso fazer isso e ler ao mesmo tempo... Eu acho." – Disse, tirando os óculos e deixando-os de lado. Sentou-se no chão e Spinel Sun sentou-se também. Estavam frente a frente, com aqueles desenhos sobrepostos bem entre eles.

Spinel Sun buscou o diário e começou a ler. Eriol olhou para ele com uma ponta de arrependimento por estar se deixando levar. Não. Sabia muito bem o que estava fazendo e não tinha vontade alguma de desistir agora e algo lhe dizia que sempre quiseram fazer algo assim, desde o dia que soubera que talvez fosse possível. Lembrou-se de quando ainda estavam em viagem, quando prestava atenção na conversa daquelas pessoas à bordo dos navios, tentando entender do que falavam. Um dia perguntara a seu pai e ele também não sabia, mas reconhecia serem eles pertencentes a certas sociedades, certos meios que ele próprio não conhecia e muito menos freqüentava. Nenhum deles voltou a falar do assunto. E agora, no escuro do quarto, escutando Spinel Sun ler, soletrando as palavras mais longas e dizendo o que deveria fazer, pouco importava que Quincey houvesse lhe dito para não ter curiosidade por estas coisas, ou que os padres do colégio contassem com prazer como as pessoas que faziam aquilo eram castigadas em vida e na danação do inferno. Pouco importava e pelo menos o que os padres diziam soava como mentira.

"Agora eu devo repetir o que você disser?"

"Sim."

Spinel Sun começou a ler a parte mais difícil. Eriol fez o que deveria, colocou a mão direita sobre a borboleta de papel e repetiu, inclusive com os mesmos erros de Spinel Sun ao ler. Não era preciso muito. Fechou os olhos e disse mais uma vez as mesmas palavras, corrigindo-as para si mesmo e desta vez sem hesitar, e descobriu que já estavam gravadas em seus ouvidos, e todas estavam na ponta de sua língua.

Ficaram em silêncio, olhando para a borboleta, depois que ele terminou de falar. Devagar tirou a mão de cima do desenho, e olhou mais de perto, sem saber o que esperar. O desenho escorregou um pouco para o lado quando fez isso, e de repente a borboleta fechou as asas, lentamente... E logo em seguida, abriu-as de novo, e as bateu, vigorosamente, levantando-se no ar.

"Borboleta... Borboleta de verdade..." – Spinel Sun disse, seguindo-a pelo quarto enquanto ela voava, pousava no canto dos móveis, e depois circulava em torno da chama da vela. Não havia dúvida alguma. Era uma borboleta de verdade. Mas as asas eram pintadas com desenhos de criança, círculos coloridos, linhas tortas, cada uma de uma cor, e um lado da asa não era igual ao outro. Eriol pareceu acordar de um sonho, e deu-se conta de que aquilo era real e estava acontecendo no seu quarto. A borboleta pousou na beirada do móvel em que estava a vela, parecendo mais colorida ainda e brilhante junto à madeira escura. Levantou do chão e foi olhar de perto. Spinel Sun parecia hesitante em chegar mais perto dela, ainda que ele não costumasse ter medo de borboletas e nem de abelhas ou besouros. A borboleta abriu e fechou as asas, mostrando que era por fora, amarelada e cheia de veios, como um papel amarrotado.

"Ela está viva?"

"É de verdade!" – Spinel Sun estreitou os olhos muito verdes. Na escuridão ele quase desaparecia, era possível ver apenas seus olhos, seus dentes brancos quando falava e o reflexo de sua pele.

Eriol esticou as mãos e pegou-a entre elas, com cuidado. E as asas eram bem maiores do que suas mãos de menino.

"Ela até se mexe!" – Disse, esbarrando a ponta de um dedo fino e negro nas asas coloridas.

"O que faremos com ela? Ela vai morrer se chegar perto demais da vela..."

"Solte-a."

"Soltá-la?..." – Eriol repetiu, um pouco desolado, como se soltar no jardim aquela borboleta o mesmo que se lhe dissessem que iriam decepar-lhe a mão. Sentiu-se aflito e aproximou mais o rosto das mãos em concha. A borboleta era sua... Não, ela não tinha dono, mas se agora abria e fechava as asas calmamente na palma de suas mãos, era por terem feito aquilo. – "Está bem. Abra a janela."

Spinel Sun pulou para cima da cama e abriu as bandas da janela e fez um gesto para que viesse. Eriol ajoelhou-se sobre os lençóis e colocou a borboleta para fora. Ela ficou um momento parada no meio de suas mãos e depois bateu as asas com mais força, indo para longe, na noite clara, perdendo-se no meio do escuro das árvores. Ficou olhando para ela até que sumisse, perguntando-se o que seriam as palavras que repetira, que para ele não faziam sentido algum, e queria saber se voltaria a ver a borboleta de asas coloridas. Ou mesmo até... Recriminou-se só de pensar, e lembrou-se de todas as ameaças que os religiosos do colégio em que estudava fariam se soubessem, e da certeza, quando fosse tarde demais, de que havia mesmo um inferno. Mas ainda assim, Eriol perguntou-se se ainda seriam capazes, ele e Spinel Sun – Que acenava para a borboleta, num adeus alegre e silencioso – de fazer isso de novo.

Um pouco atordoado em pensar que poderia sim fazer isso, não hesitou. Também acenou na direção em que a borboleta se fora.

CONTINUA