A Sombra e a Escuridão

Capítulo 4

Antes de ter visto Eloise pela primeira vez, Quincey nunca pensara em casar-se. Casar-se para quê, ele perguntava aos amigos e chegou a perguntar isso para o pai de Eloise quando ele propusera o casamento. As mulheres se tornavam literalmente loucas por ele, quando o conheciam e a seus galanteios. Ele foi educado nos melhores colégios de Londres e havia estudado na América, quando jovem. E desde muito jovem, ele foi o terror e o sonho das boas famílias inglesas: desvirtuador das mulheres casadas e sedutor de virgens, querido nos bordéis de Paris e mal-falado em várias das casas mais tradicionais. E mesmo assim, fazê-lo casar-se era um perfeito desafio. Não era jovem e ainda assim, nada diminuía-se sobre o que se falava dele, muito pelo contrário. Ele era um homem muito atraente, de cabelo completamente negro, curtos, penteados para trás, muito lisos e por vezes desalinhados quanto voltava das tardes em caçadas, e olhos escuros, entre cinza e azul, bastante densos e penetrantes, parecia sempre muito sério, mas seu sorriso era fácil e seus modos, muito educados, especialmente com as mulheres, era galanteador e envolvente, principalmente com as bonitas. Gostava de fazê-las apaixonarem-se por ele, e cultivava este amor também em Eloise. E também um pouco sem querer, Quincey ensinava estes modos a Eriol, um certo olhar, uma maneira de ser educado bastante diferente das outras crianças de sua idade. A própria viagem ao oriente dera-lhe um ar mais misterioso, fizera-o mais silencioso, e Eloise nunca disse-lhe nada, mas achava apenas consigo, que o tempo fizera-lhe muito bem, além do próprio sol e calor do oriente.

E Eloise era trinta anos mais jovem do que seu marido, conhecera-o apenas no dia do casamento, e por muito pouco não mandara o padre encerrar logo a cerimônia, tão impressionada ficou com ele, de quem só conhecia os sujos boatos das criadas, e logo esqueceu-se de como eram "terríveis as obrigações de esposa", pelo que dissera-lhe sua mãe e suas tias. E de fato, Quincey, que já a conhecia de vista, e apenas assim até o dia do casamento, fez o melhor que pôde para que estas obrigações se mostrassem o menos terríveis possível. Eloise quando casou-se era pequena e bastante magra, quase uma menina, seu cabelo era castanho escuro, espesso e até os ombros e por seu próprio peso, era liso, depois, formavam cachos que iam até as pontas. Usava-o preso por pedido de Quincey, que gostava de vê-la de brincos. Os olhos de Eloise eram grandes e castanhos, e usava barras de carvão encerado, como as espanholas, em torno deles, o que fazia seus olhos muito marcantes e vivos. As pessoas que a conheceram em Londres, ao lado de Quincey, nunca julgaram que ela fosse sua mulher, e sim sua amante, tantas eram suas liberdades e tantos os cuidados com ela. Também era de admiração que Quincey andasse ao lado da amante livremente nos cafés, teatros e passeios, a qualquer hora que fosse e tivesse prazer em dar a entender que Eloise não era sua esposa, e tanto para isso, que os vestidos que ela encomendava tinham o mesmo corte da última moda de Paris e tal era a mesma ousadia que possuíam. Quando ela voltara do oriente, descobriu que as sedas que ganhara de presente na China, fora os tecidos que comprara em outros portos do oriente estavam completamente dentro de tudo o que a moda exigia naquele momento, e Quincey não incomodou-se quando ela anunciou-lhe – Não, ela não pedia-lhe permissão para nada do que queria fazer, ao contrário do que uma legítima esposa inglesa deveria fazer, apenas anunciava-lhe a decisão – que iria até Londres sozinha, encomendar vestidos e comprar algo "para fazer-lhe uma surpresa". Ele imediatamente entendeu daí que seria um espartilho de cor forte (vermelho ou preto, unicamente), rendado e feito de seda, quase sempre muito parecido com aquele que ele lhe dera de presente de casamento, alguns anos atrás.

Realmente, ela nunca pareceu-se com o que deveria ser uma esposa inglesa, mas que diabos, ele pensava, eu também não me pareço com um marido inglês. E este nosso filho, ele também pensava, quando olhava para Eriol, que colocava o gato dentro do bolso do casaco para correr melhor pelo jardim, brincando com os cães, este nosso filho também não se parece com uma criança inglesa. Eriol se parecia bastante com seu pai, mas tinha o formato dos lábios e o sorriso de sua mãe. Também tinha dela a mesma falta de talento para tocar piano ou cravo, ao passo que saia-se muito bem nas aulas de violino que tomava no colégio. Eriol tinha cabelos lisos como seu pai, e também pretos, embora quando fosse pequeno, seu cabelo não fosse tão liso e de fato, se o deixassem crescer livremente, seu cabelo tomava as pontas tão enroladas quanto as do cabelo de Eloise. Eriol tinha olhos estreitos, e como seu pai, azuis e escuros. Não era muito diferente de uma criança inglesa comum, quando estava no meio das outras, mas olhando-o com atenção, seu olhar era diferente, um pouco mais penetrante, e sua pele, um pouco mais branca e lisa. Seu cabelo também nestes momentos parecia um pouco mais negro. Sua educação também era diferente, ele beijava a mão das senhoras que o agradavam, quando ele ia até a delicatessen comprar balas e confeitos, com aquele estranho e pequeno gato preto enfiado dentro do bolso do casaco, e quando fazia isso, as mulheres por vezes coravam, como se ele fosse um rapaz, e não um menino. De fato, não era como uma criança inglesa, ou talvez se parecessem com ele as crianças de uma Inglaterra que ainda não era aquela que conheciam, ou mais provavelmente, ele não fosse tão criança assim. E Quincey fechou as cortinas, pois era hora de trabalhar.

Eloise ainda estava em Londres. Ninguém preocupava-se muito com o que Eriol fazia depois do almoço, então ele poderia sair e brincar com os cães, ou andar mais um pouco e ir brincar com os carneiros que eram criados na propriedade. E se andasse mais, ninguém sentiria sua falta, porque ele não era uma criança barulhenta, e estava sempre com Spinel Sun – E as criadas e empregados tinham pavor de Spinel Sun, por ele ser um gato preto, e gatos pretos serem de mau-agouro, e não apenas por isso, mas em certa madrugada, a governanta foi até a copa buscar água, e encontrou-o sentado sobre a bancada, "um duende negro como carvão, chamuscado do fogo do inferno, de dentes afiados como facas, babando como um demônio, com o rosto sujo de sangue", e gritou, e quando Quincey desceu para ver o que estava acontecendo, encontrou a governanta branca como cera, em choque, e o gato encima do balcão, quase dormindo, tonto, sujo, lambuzado e empanturrado de cerejas e geléia de morango de um pote que fora esquecido aberto. Quiseram atirar Spinel Sun dentro de um poço seco, mas ninguém permitiu. E em outra ocasião, duas criadas viram o gato, "num piscar de olhos, se transformar numa criatura deformada, coberta de escamas e que soltava fumo pelo nariz, com garras no lugar de dedos" entrar no quarto dos donos da casa e ir até o baú onde Quincey guardava suas camisas, no quarto de trocar, tirar uma delas e a vestir. Desde então o pânico instalava-se entre os empregados, de imaginarem-se sozinhos com Spinel Sun em casa. Faziam questão que ele fosse com Eriol a quase todos os lugares e até costuraram uma parte de tecido a mais dentro do bolso de seu casaco, para que o gatinho coubesse melhor ali.

E eles tinham a tarde toda para fazerem o que quisessem. Desta feita, foram para o bosque da propriedade, sentaram-se nas partes em que ele era mais escuro e Spinel Sun, caminhando como um menino, folheava ainda aquele livro, o diário do filho do barão, e soletrava o nome das folhas e das raízes que estavam descritos ali. Também havia nomes de cogumelos, e alguns deles cresciam nos troncos caídos no bosque, e tinham nomes complicados demais. Não sabiam ao certo para quê serviam aqueles cogumelos, exceto alguns tipos que no diário, ao lado do desenho e do nome, havia algo como uma receita culinária, um modo de prepará-los. Eriol e Spinel Sun recolhiam um pedaço de raiz, um pedaço de casca e um pouco de cada uma das coisas que eram descritas no diário, guardando-as numa sacola de linho velho. Sujavam-se muito, mas não se preocupavam, Eriol vestia roupas de brincar quando saía assim, e Spinel Sun vestia as roupas antigas de Eriol, que não lhe serviam mais, embora protestasse por conta dos sapatos e reclamasse da falta das meias iguais as que exigia. Eles andavam muito, brigavam muito e às vezes saíam da propriedade, chegando até os limites do bosque, atravessado de alamedas por todos os lados e moitas podadas. Muitas pessoas andavam ali, e tinham de tomar especial cuidado com isso. Ao escutar qualquer estranho se aproximando, Spinel Sun voltava a ser o gato preto de antes e escondia-se na sacola de linho. Mas isto estava se tornando raro, o inverno estava chegando, e eles andavam lado a lado falando muito, assustando codornas nas moitas e juntando galhos secos para uma eventual fogueira.

Spinel Sun não gostava de ir tão longe e sempre lembrava-se de Eloise e dizia que ela não ia gostar se soubesse.

"Já tenho idade para me afastar da casa, e estou cuidando de você." – Eriol respondeu, pensando se aqueles cogumelos ficariam realmente bons assados, quando fosse hora de pararem um pouco. O dia estava claro e morno, e sentia-se faminto.

"Então não há problema?"

"Não. Nenhum." – Não haveria, realmente, problema algum, a não ser que alguém visse Spinel Sun. Para quem se deixasse levar pela surpresa, ele pareceria mesmo assustador, um autêntico monstro, mas assim, pequeno, com as mãos escondidas nas barras da camisa era apenas uma criança com roupas grandes. Cinco anos, quase seis, desajeitado e travesso.

Um coche veio pela alameda cercada de árvores e Spinel Sun escondeu-se detrás de uma moita e ninguém o viu. Eriol ficou um momento em suspenso, esperando que o coche negro ficasse bem longe para poder continuar. Viu dois olhos verdes encarando-o pelas sombras da moita, quando olhou para trás.

"Está tudo bem."

Spinel Sun levantou-se e correu até ele. Não entendia bem porque tinha de esconder-se, mas fazia isso, e dizia que tinha medo "daquelas pessoas grandes que gritam o tempo todo". Claro que referia-se aos empregados da casa, os poucos que chegaram a vê-lo ainda que rapidamente nunca esqueceram-se e suas imaginações encarregaram-se de fazê-lo algo inominável.

"Eles vão voltar?"

"Não." – Segurou a mão de Spinel Sun e continuaram. Saíram da alameda e chegaram em uma pequena colina, onde uma estradinha fazia uma curva, e dali poderiam olhar para a cidade, e descendo mais um pouco estava o Sanatório, Eriol explicou, apontando uma construção branca, no meio de amplos jardins podados à perfeição. Ele encontrava-se fora da cidade, nesta parte alta da região, e sem construções por perto, a não ser o alojamento dos empregados, que era de tijolos vermelhos. O Sanatório também tinha um chafariz, com um grande peixe de pedra jorrando uma corrente fina de água pela boca, no alto da coluna. Não havia portões e nem grades em torno, a não ser em uma ala anexa, que era a dos loucos, mas apenas nas janelas mais altas. De resto, as janelas eram todas livres. Eriol ainda não havia chego tão perto do Sanatório, mas tinha curiosidade, e pelo que seu pai dizia, que era como um grande hospital, onde as pessoas iam curar-se da tísica, doenças do peito e do tempo, e alguns, da loucura.

"Tem pessoas ali?"

"Sim, mas acho que muitas estão doentes e não vão nos ver."

"Então por isso não tem ninguém nos jardins?"

"Sim."

Pelo menos a parte dos jardins que podiam ver dali, da estradinha de calçamento de pedra, estava vazia, habitada apenas por borboletas no chafariz e abelhas. Uma enfermeira vestida inteiramente de branco passou por uma das calçadas, trazendo uma pilha de lençóis brancos nos braços, e mesmo depois de muito tempo somente olhando, a única pessoa a passar por ali fora ela.

"Você quer ir até lá?"

"Nós podemos, Eriol?"

"Não tem ninguém, e não há portões. Depois podemos voltar para a propriedade e assar os cogumelos."

"Podemos também brincar no balanço quando voltarmos para casa?"

"Claro."

Foram caminhando naquela direção. Os jardins eram ainda maiores e mais bonitos de perto. Por fim foram andando cada vez mais rápido até correrem para chegar logo. A água do chafariz era limpa e era bastante fria quando eles a provaram. O dia estava quente, sentaram-se ali, na borda de pedra por um momento, como a esperar se alguém fosse surgir em alguma das calçadas, mas ninguém apareceu. Logo esqueceram-se do perigo e começaram a andar por todo o lado, olhando tudo com atenção. O jardim do Sanatório não era lugar para crianças, mas não havia adulto nenhum para mandar que saíssem. Por fim Eriol sentou-se debaixo de uma árvore, depois de ter escapado de levar uma ferroada de abelha e depois de ter sujado um pouco mais suas roupas, lutando com Spinel Sun pelo gramado, numa briga que era só risos e ameaças exageradas demais para serem verdadeiras. Ele ficou olhando para a construção do hospital, branca, de frontões triangulares e rígidos. Quase todas as janelas estavam fechadas, ou com as cortinas brancas cerradas.

"Eles estão dormindo?"

"Não sei. Mas sei que estão doentes, todos ou quase todos dos que estão aqui." – Eriol apontou, sentindo de repente vontade de voltar para casa, só de imaginar-se sozinho num lugar tão branco... Tão... Frio.

"O que eles têm?"

"Meu pai disse que muitos deles têm tuberculose."

"Tu-ber-cu-lo-se..." – Soletrou, tentando entender aquela palavra e perguntou o que ela significava. Eriol não sabia, mas era uma doença do peito, pior do que uma asma, do que a inflamação dos brônquios, ou uma pneumonia.

Tentou explicar o melhor que podia, e não era muito, ou o suficiente, mas conseguiu fazer-se entender. Era uma doença comum naqueles tempos, muitos estavam morrendo e era triste estar com ela, e doente num lugar como o Sanatório, porque ele tinha jardins bonitos, borboletas e abelhas, mas não havia ninguém neles.

"Nós estamos aqui."

Eriol apenas acenou com a cabeça, cabeceando de sono, logo em seguida. Era um dia quente e confortável. O vento era persistente, fazia-o fechar os olhos...

Spinel Sun o chamou, tentando continuar a conversa, mas Eriol dormia pesadamente, preguiçoso, recostado à árvore, com as pernas soltas sobre o gramado e impecável. Não havia a menor graça falar e nem brincar sozinho. Sentou-se perto de Eriol para esperar que ele acordasse, já que havia tentado sacudi-lo. Tentou chamar uma última vez, e desistiu. Logo desistiu também de ficar sentado e deitou-se na grama, sob a sombra, e sem querer, dormiu também.

Eriol acordou um pouco confuso. O sol havia dobrado e estava um pouco menos quente. Levantou a cabeça, e lembrou-se onde estava. Era o jardim do Sanatório, e haviam passarinhos brincando na borda do chafariz, mas como antes, não havia ninguém andando ali, e as únicas crianças eram eles. Spinel Sun estava dormindo ainda, mas já havia rolado para o lado e estava com a cabeça encima de suas mãos. Apenas por sorte e talvez unicamente por ela que ninguém o havia visto.

"Vamos, acorde. Temos de ir para casa..."

"..."

"Acorde!" – Eriol o sacudiu com um pouco mais de força e o pequeno acordou esfregando os olhos.

"É hora de comer, Eriol?"

Eriol colocava o livro dentro da sacola de cogumelos e tentava espanar um pouco do excesso de terra das suas roupas. Quando Spinel Sun se levantou, fez o mesmo com as roupas dele, pois de branca, sua camisa estava quase marrom, e aquela camisa um dia fora de Eriol.

"É hora de comer?"

"Afinal, para onde vai tanta comida?" – Amassou a barriga de Spinel Sun (ele havia engordado bastante desde que viera para a Inglaterra, e da magreza quase assustadora que possuía quando Eriol o viu pela primeira vez não restava nada, ele estava sem um único osso aparente, e mesmo como um gatinho, no colo de Eloise, ele gostava de cócegas) com a ponta do dedo e ele se torceu, rindo.

Seu riso estava bastante alto, e era difícil vê-lo rir, e muito menos rir alto, a não ser quando comia doces, e mesmo assim, quando depois de se encher de algum doce, Spinel Sun a princípio ria como se estivesse se divertindo muito, e depois, o riso sumia, ele se escondia debaixo de algum móvel, mesmo como um menino, como já havia acontecido de ficar dentro do armário do quarto de Eriol e chorar uma noite toda, mas não o fizera como uma criança. Ele chorou silenciosamente como um adulto. Eriol assustava-se quando fazia essas coisas. Outras vezes, ele comia doces e agia como um bêbado impertinente, risonho, sonolento, e fosse onde estivesse, o meio da sala, a copa da cozinha, o corredor dos quartos ou o jardim, ele caía sentado, tombava para o lado e dormia pesadamente, e nada conseguia acordá-lo antes do dia seguinte. Mas vê-lo assim, rindo alto? Era difícil, e era cada vez mais raro vê-lo sorrir.

"Vamos para casa de uma vez..."

E já estavam indo, e talvez apostassem uma corrida até os arcos do portão do Sanatório. Spinel Sun começou então a empurrar Eriol, como se ele que não quisesse sair do lugar, e lembrou-se de que aquele não era um lugar de risos. Não viu ninguém, nenhuma enfermeira.

Olhou para o outro lado, a parte do prédio que era voltava para o jardim. Havia janelas sem grades ali, e todas estavam fechadas e com cortinas cerradas. Não, não estavam. Havia uma aberta, bem no primeiro andar, logo acima dos arbustos podados. Eriol estancou, olhando para ela. Não estava assim quando chegaram. Esperava que ninguém os houvesse visto, e principalmente que ninguém houvesse visto Spinel Sun. Não saberia o que fazer se o vissem, e nem idéia do que aconteceria, mas tinha certeza de que não seria bom. Estava mentindo então? Não, definitivamente, Eriol não considerava aquilo uma mentira, e sim que o protegia. Sentiu um medo profundo, uma dor e uma náusea que o fez esquecer totalmente a fome que estava sentindo.

Spinel Sun também parou, como se percebesse que havia algo errado e olhou ao redor. De repente ele se afastou de Eriol, indo na direção da janela aberta, acenando com os bracinhos vestidos naquela camisa grande.

"O que está fazendo? Vamos embora!"

Spinel Sun correu na direção das moitas. Eriol viu que havia uma mão acenando dali. Alguém os havia visto. Aproximou-se correndo, tentando parar Spinel Sun, mas ele não parava e parecia muito curioso. Engoliu em seco, quando pôde ver quem estava lá. Era um menino. Só um menino.

"Olá..." – Spinel Sun falou, com seu inglês de pronúncia estranha, como se fosse muito natural ser visto por estranhos. Mas sempre fugira de olhos de qualquer pessoa... No entanto eram todos adultos. Talvez acreditasse estar à salvo se quem o visse fosse outra criança, e aquele menino na janela do Sanatório não tinha mais idade do que ele próprio.

"Olá!" – Ele respondeu, aproximando-se mais, e só podia ver seus olhos e suas mãos apoiando-o na pedra.

Eriol lembrou-se de que o Sanatório não deveria ser um lugar para crianças. Nunca havia imaginado ver crianças ali. Imaginava que havia apenas adultos, mas ele poderia estar apenas visitando alguém.

"O que você está fazendo aqui?" – Spinel Sun perguntou, depois de um momento de curioso silêncio, olhando. – "O que há neste quarto em que você está?" – E disparando perguntas, começou a procurar um jeito de subir pelas trepadeiras que esticavam-se do chão pelas paredes muito brancas de cal. – "Qual é o seu nome?"

Eriol escutou um riso quebrado, muito parecido com o de Spinel sun, vindo de dentro do quarto.

"Spinel Sun, não suba!"

"Mas por que não? "

"Por que não é seguro! Alguém pode ver você!"

"Mas eu quero subir!"

"Fique aqui no chão! Você não vai subir! Vão me matar se você cair e se machucar!"

"Mas eu quero subir, Eriol!"

"Spinel Sun, eu mandei você se comportar! E do que você está rindo?"

"Você parece aquele homem grande falando..."

Emudeceu por completo. Spinel Sun... Ele disse que Eriol estava falando como Quincey! Aterrorizou-se de pensar que estava crescendo para ser igual ao seu pai. E enquanto ficava totalmente sem ação de responder, Spinel Sun terminava de escalar o pedaço de parede que os separava e já caía dentro do quarto e ele, por sua vez, achava-se sozinho do lado de fora. Seria pior ainda se alguém o visse ali, sem ter como explicar o que estava fazendo naquele jardim, e com certeza em casa gostariam menos ainda de saber onde estava. Agarrou-se nos ramos de trepadeira e mais rápido do que podia notar, levado pelo medo de ser pego e pelo medo de deixar Spinel Sun fazer algum tipo de arte, quando deu por si, já estava estatelando-se num duro chão de ardósia cinza. Colocou-se para levantar quando viu os pés calçados de Spinel Sun andarem ao redor, largando pequenos torrões de terra onde ele pisava, e ele não parava de perguntar e apontar para tudo o que havia no quarto, e não havia muita coisa, em verdade. Eriol também viu os pés, por debaixo da cama ao lado, do outro menino, de quem vira somente uma parte da cabeça e a mãozinha acenando. Eram pés pequenos descalços, e havia a barra de uma calça de pijama e de um camisolão inteiramente brancos.

"..."

Eriol levantou penosamente do chão, vendo que seus sapatos também deixavam marcas de terra onde pisava e que havia ralado um joelho subindo a janela. Arregalou os olhos quando o menino que havia visto estava aproximando-se e o viu frente a frente. Ele estava segurando a mão de Spinel Sun, como se fossem antigos conhecidos. Aquilo o apavorava muito. Tinham a mesma idade e teriam até o mesmo tamanho, se o menininho de camisolão branco não fosse um pouco mais alto. Eriol sentiu que seu rosto estava muito vermelho e não sabia a razão, porque haviam várias de estar tão envergonhado assim, e uma delas era que alguém finalmente havia descoberto Spinel Sun, havia falado com ele, estava ao seu lado como se o conhecesse a vida toda e não demonstrava nada, nem o mínimo espanto, surpresa, nada. Apenas curiosidade, e ele próprio sentia-se assustado com tudo isso e ver a porta do quarto, fechada, logo atrás das costas deles não servia de alívio algum. E se alguém mais entrasse?

"Eriol, este é o Paul. Ele mora aqui, e é a única criança em todo este sana... Sana..."

"Sanatório." – O outro menino inteirou, e eles riram. Era tão pequeno quanto Spinel Sun, e não estava assustado em tê-lo ali.

"Você mora aqui?"

Ele fez que sim e subiu na cama, com um pouco de custo, posto que era uma cama alta de hospital.

"Mas porque você está aqui?" – Eriol aproximou-se mais. Se ele era o único menino naquele Sanatório, então deveria haver um motivo, pois que soubesse, só havia adultos lá.

"Eu estou doente!"

Spinel Sun subiu na cama também e sentou-se do seu lado, olhando tudo ao redor.

"Onde está a sua mãe?"

"Eu estou sozinho aqui!"

Eriol sentiu algo opressivo em torno de si. O olhar do menino não era triste.

"Meu nome é Eriol... Hiragizawa. Eu... Nós moramos aqui perto."

"Vocês estavam brincando?"

"Sim... Você não pode sair para o jardim?"

Spinel Sun parecia interessado. Ficou muito quieto, olhando para o menino e para as mãos dele.

"Não, eu estou doente. As enfermeiras não me deixam sair!" – Ele falava animadamente, apesar do rosto lívido, da palidez perturbadora, um branco quase como de cera.

Fosse qual fosse sua doença, e Eriol não perguntou unicamente por polidez (e porque lembrou-se de sua mãe recomendando nunca fazer este tipo de pergunta), não era a tísica. Eriol sabia, porque tinha visto nas viagens pelo oriente, pessoas padecendo de tuberculose, e a maioria delas tossia quase incessantemente, e tinham, embora da palidez, uma tal cor nas faces que era um falso arremedo de saúde. E este menino tinha em lugar do rubor da tuberculose, olheiras fundas, azuladas, e suas veias também transpareciam através da pele macilenta. Seu rosto magro era também um rosto bonito, e talvez ele sentisse dor, mas mesmo assim sorria para Spinel Sun, e com um estremecimento, Eriol olhou para seus olhos, e viu que eram azuis. Não como os dele, que eram escuros, mas de um intenso e vivo. E eram apenas aqueles olhos que traziam vida ao rosto pálido.

"Você também não pode brincar?"

"Não. Elas dizem que eu vou ficar mais doente se eu brincar."

"Onde está a sua mãe?" – Spinel Sun perguntou, ajoelhando-se na cama, olhando bem de perto para a cabeça do outro menino. O cabelo dele era castanho, mas não era escuro, era um tom de castanho como o de mel queimado, curto e cortado de qualquer jeito, e Spinel Sun deveria estar curioso, pois em casa, todos tinham cabelos muito escuros e as criadas sempre tinham cabelos atados debaixo das toucas. – "Quem cuida de você aqui? Você tem giz de cera para desenhar?"

"A minha mãe está em casa com os meus irmãos! E... Eu... Eu... Não tenho giz para desenhar. As enfermeiras disseram que são coisas de crianças! E elas levaram meu urso embora..." – Sua voz tremeu quando falou do urso. Eriol lembrou-se de animais feitos de veludo, muito delicados, de olhos de vidro, que eram vendidos em Paris, na maioria ursos, e talvez fosse de um assim que Paul estivesse falando. Ele parecia sentir-se mais pela falta de seu brinquedo do que pelo resto.

"Mas você é criança! Não tem brinquedos?" – E Spinel Sun olhou ao redor, vendo as paredes brancas e nuas do quarto. A cama era de ferro e além dela, e de um criado mudo, de uma cadeira simples de madeira escura e de uma mesa de ferro ao lado da porta, não havia mais praticamente nada. Melhor dizendo, havia: vidros escuros de remédio e álcool estavam sobre a mesa do lado da porta, e uma bandeja com uma seringa de injeção, de vidro já embaciado, ao lado de vidros menores, alguns pela metade. Eriol aproximou-se, olhando bem para ter certeza e arrepiando-se de pavor. Nunca adoecera a ponto de estar num hospital, mas do que vira durante o tempo em que ficaram em Xangai, durante a epidemia do cólera, esperava jamais ter de por os pés em um. E, no entanto, onde estava agora?

"Não..."

"Qual é o seu nome?" – Eriol perguntou de repente, e os dois pequenos voltaram-se para ele, embora soubesse a resposta.

"Paul Crowley. Ele é o seu irmão menor?" – Ele olhava para Spinel Sun com curiosidade. – "Ele parece um gatinho... Quantos anos você tem, Eriol?"

"Dez. Eu tenho dez anos. Ele é meu irmão... Há pouco tempo."

"Mas ele é escuro..." – Ele riu, investigando o quanto era negra a pele de Spinel Sun.Esfregou a ponta de um dedo na testa dele, e olhou. – "Você está sujo de carvão?"

"Não é carvão! Eu sou uma pantera!"

"O que é uma pantera?"

"É como um gato, mas é muito maior! Grande assim!" – E abriu os braços, mostrando o tamanho que queria dar a idéia.

"Mas você é menor do que eu..."

"Mas eu sou uma pantera!" – Spinel Sun insistiu.

Eriol estremeceu. As palavras sumiram na sua garganta. Não encontrava um lugar naquele quarto em que estivesse à vontade, sem parar de pensar que alguém entraria a qualquer momento. Não conseguia parar de pensar o que fazia uma criança num sanatório, e no nome dele que não era estranho de maneira algum. Ele era tão pequeno... Tão pequeno quanto Spinel Sun, e parecia tão doente e sozinho, e aquele quarto era tão triste e vazio... Não tinha mais de seis anos e não tinha brinquedo algum, o quarto era todo branco e ninguém entrava, por mais que eles estivessem rindo alto, lutando encima da cama, rolando no meio de uma bagunça de lençóis. Ninguém escutava do lado de fora? Ou ninguém se importava? Olhou para as mãos de Paul, e sobre seu dorso, haviam várias marcas arroxeadas, fundas e escuras, em torno de pontos onde havia recebido injeções, e enquanto ele brincava, podia ver que as marcas de furadas e hematomas prosseguiam por seus braços, no caminho das veias mais aparentes.

A náusea estava voltando, de puro desconforto.

"Nós temos de ir, Paul. Spinel Sun!"

Ele virou-se.

"... Temos de ir para casa."

"Vocês já vão?"

"Vamos comer cogumelos!" – Spinel Sun disse, enquanto escorregava de cima da cama para o chão.

"São gostosos?"

"O cheiro é bom. Acho que são gostosos!"

"Eu nunca comi..."

Eriol engoliu em seco. Havia cogumelos em sua sacola, mas estavam crus e não sabia se poderia dá-los a Paul, ou se isto lhe faria algum mal. Puxou Spinel Sun pela mão até a janela, e o suspendeu do chão fazendo o máximo de força possível, para que ele pulasse de volta no meio das moitas. Quando ele preparava-se para descer também, e já havia pensado em nunca mais ir ao jardim do Sanatório, olhou para o lado e viu-o sentado no meio da cama, tão branco quanto os lençóis, pálido, triste, seus olhos azuis muito baços, olhando para ele.

"Eu vou trazer cogumelos amanhã. E giz para você desenhar também! Mas você vai ter de prometer uma coisa!..."

Ele pareceu animar-se subitamente e fez que sim. Concordaria com qualquer coisa para provar os cogumelos de que Spinel Sun falou e nada poderia alegrá-lo mais do que giz para desenhar. Giz de todas as cores que só via pela janela do Sanatório, e nunca dentro das paredes do quarto.

"Vai ser o nosso segredo. Prometa que não vai dizer a ninguém que falou conosco, e nem que viu Spinel Sun! Ou as pessoas irão machucá-lo!"

"Eu prometo! Eu prometo! Vai mesmo trazer cogumelos?"

"Vou!"

"Traga biscoitos de manteiga também, Eriol!"

Eriol sentiu-se corar e apenas disse que sim. Não olhou para trás, embora os olhos de Paul lhe fossem de tal forma fascinantes, por serem tão diferentes, que não conseguia parar de olhar para eles, e sabia que era esta uma extrema falta de educação.

"Eriol!"

Spinel Sun estava chamando e já estava afastando-se, rumo aos portões.

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Voltaram para casa ainda antes da hora do chá, e mesmo que Spinel Sun tenha entrado na casa já como um pequeno gato dentro do bolso do casaco de Eriol, quando a governanta os viu, apressou em mandar que tomasse um banho, ao qual Spinel Sun não escapou. Enquanto Eriol tinha os braços violentamente esfregados pela criada (que não escondia o asco frente a tanta terra) com a bucha, na tina de banho, ao lado, num balde de folha de flandres, o gato também era mergulhado em água e limpo com um esfregão, em meio a uma confusão de miados e água espalhada. Ao final, limpos e um pouco tristes, enrolados em toalhas, eles estavam sozinhos novamente. Spinel Sun lambeu o dorso de uma pata e passou-a pelo focinho, como a consolar-se de mais um banho tomado a força. Eriol não protestava contra os banhos, mas não gostava de ser pego à força e ter os braços esfregados assim. O quê poderia fazer? Seu cabelo estava pingando, e esfregou a orelha de encontro à toalha. Já havia uma muda de roupas sobre a cama. Terminou de enxugar-se e vestiu-se. Havia deixado a sacola de cogumelos pendurada num gancho ao lado do galinheiro, nos fundos da casa. Spinel Sun ainda estava enrolado na toalha menor em que a outra empregada o deixara.

"Está triste?"

Eriol pegou a toalha maior e esfregou a cabeça de Spinel Sun, até que escutou sua voz e suas mãoszinhas de menino afastaram a toalha de sua cabeça. Seus olhos verdes estavam úmidos.

"Estou. Estou muito triste, Eriol."

Não disseram mais nada. Procurou em seu baú por roupas que não lhe serviam mais, porém que poderiam servir em Spinel Sun. A criada bateu levemente na porta do quarto, dizendo que era hora do chá e eles logo em seguida desceram. Eriol, como um bom e bem educado menino, e Spinel Sun, como um bom e bem educado gato. Chegaram à sala de chá e encontraram Quincey ainda sonolento. Ele trabalhara a tarde inteira – e quando fechava-se em seu escritório dizendo que estava trabalhando, todos sabiam que na verdade, ele cochilava pela tarde afora, pesadamente, no divã de sua sala – e perguntou a Eriol o que ele fizera durante a tarde. Disse a verdade, que estivera com Spinel Sun colhendo cogumelos.

"Você trouxe algum para casa?"

"Estão do lado de fora, perto do galinheiro."

"Alguns cogumelos ficam ótimos assados..." – Ele suspirou, enquanto a criada servia o chá nas três xícaras. Logo em seguida, o leite. Spinel Sun pulou do colo de Eriol para o chão e foi para o lado de Quincey, e ele se sentou numa cadeira, desconfortável, e nunca havia sentido-se assim antes na hora do chá, que para ele fora uma conquista desde que completara seus dez anos e já podia estar junto com os adultos pelo menos neste momento. – "Mas eu prefiro-os servidos com carne. Quando eu tinha a sua idade, sempre ia colher cogumelos."

"Eu ia assar alguns, para mim e para Spinel Sun. E trazer para casa também."

"Deixe para amanhã. Só não se esqueça de trazer a sacola para dentro antes que escureça. Serão ótimos para o almoço de amanhã..."

Eriol concordou. Melhor deixar para o dia seguinte. Lembrou-se de que tinha de separar os venenosos e os alucinógenos dos cogumelos para comer, embora tivesse vontade de largar uma porção de cogumelos venenosos dentro do bule de chá da governanta, que evidentemente, havia comentado de alguma coisa com Quincey.

"Por que você está tão calado?"

Eriol ocupou-se com um biscoito. Era de manteiga, e provando-o, lembrou-se de Paul Crowley, o menino do Sanatório, que lhe havia pedido para levar daqueles. Sabia que ainda deveria ter na cozinha. Uma vez por semana, as criadas faziam daqueles biscoitos amanteigados, simples, com amêndoas, ou polvilhados de açúcar branco.

Quincey pegou a terceira xícara de chá e ofereceu-a a Spinel Sun, e o gato aceitou, bebendo todo o chá, e depois lambia o focinho, como a dizer que gostava, e miou baixo, subindo para o ombro de Quincey. Ele gostava muito daquele animalzinho preto, e quanto mais escabrosas as histórias que se contavam na casa, sobre ele ser um pequeno demônio, mais gostava dele, porque isso excitava seu gosto por mistérios e por coisas assustadoras. O gatinho subia por seu braço para seu ombro para poder escorregar de volta ao seu colo, deslizando pelo veludo negro de suas roupas e tornava a subir.

"Não me respondeu, Eriol."

"Nós fomos um pouco longe demais hoje. Estou cansado..."

"Longe demais?"

Eriol estremeceu e provou o chá. Queimou-se nele, mas manteve-se firme. Não era uma mentira, de todo. Ou era?

"Andamos muito, apenas isso."

"Você não falou com estranhos, falou?"

"...Não." – Não conseguia considerar o menino do Sanatório um estranho e nem considerava-o com desconfiança, como seus pais o preveniram sobre desconhecidos. – "Pai... Você conhece algum Paul Crowley?"

"Ele já veio até nossa casa. Era dono de várias minas de carvão em Liverpool, e depois, comprou algumas ao norte de Londres, e sempre há um escândalo sobre ele. Porque está perguntando-me isso?" – Quincey bebeu sem pressa alguma seu chá, estava fumegante. Depois passou a mão pelo cabelo preto, tirando uma parte dele de cima de seu rosto. Spinel Sun estava quase dormindo em seu colo, tornado agora apenas uma bola de pêlos negros, muito quieto depois de duas xícaras cheias de chá. – "É uma pena que gatos não falem..."

Eriol esteve tentado a dizer o quanto queria que gatos fossem mudos... Mas saber que seu pai conhecia alguém com tal nome era de algum alívio. Mas era apenas um nome.

"Eu escutei o nome dele hoje. Na alameda do bosque, havia pessoas falando o nome dele."

Sabia que Quincey reconhecera sua mentira, pois ele demorara a responder, olhando-o atentamente. Por fim, ergueu um pouco as sobrancelhas e deu de ombros.

"Não há quem não fale sobre ele, principalmente depois de ter assassinado o marido de uma de suas amantes. Mas não diga a sua mãe que eu estou lhe contando estas coisas, ela detesta este tipo de conversas, mas você tem idade bastante para entender. Não tenho negócios com Crowley e espero jamais ter de fazer isto. Um dia tudo o que eu tenho será seu e espero que siga o que estou lhe dizendo."

"Por que? Por que está me dizendo estas coisas? Eu não conheço este homem, apenas perguntei sobre quem ele é."

Quincey fez um gesto para que ele se aproximasse. Eriol deu a volta na mesa de centro e sentou-se ao lado de seu pai.

"Paul Crowley é um homem sem moral alguma. Ele não possui boa conduta para seus sócios, para suas amantes e tampouco para sua família, e sua esposa combina perfeitamente com ele. Eles estão partindo para a América ainda neste Natal."

"..."

"E deixaram um de seus filhos largado em um sanatório, apenas porque o pequenino não tem saúde." – Ele não escondia sua indignação. Respirou fundo e continuou. – "Se um homem tem tal conduta em sua família a ponto de fazer isso com um dos seus, então não queira imaginar o que este tipo de pessoa é capaz de fazer em seus negócios. Entende, Eriol?"

"Entendo, pai."

"Por isso eu quero mantê-lo longe de pessoas assim. Eu não estou educando-o para ser como ele, ou ser indolente e permissivo como vários jovens que conheci. Eu estou educando-o para ser um homem de palavra e dignidade. Que você não preste quando adulto, o problema será seu, mas leve consigo a educação que lhe foi dada. Cuide dos seus e tenha-os com estima. Isso vale até para o gato." – Ele sorriu, e baixou os olhos escuros para o chão. – "Porque é por coisas pequenas e por coisas grandes que se mede um caráter. Se tiver de ser uma má pessoa, pelo menos não faça maldades pequenas."

Eriol sorriu também. Olhou para seu joelho machucado, logo abaixo da barra do calção de linho preto. Não sabia se concordava com seu pai, mas ele sempre parecia saber de algo, e também quando estava mentindo, e afinal de contas, qual era a verdade por detrás da mentira.

"E o filho dele?"

"Está em algum lugar da Inglaterra, morto, muito provavelmente, e enterrado em uma vala comum, ao lado de pessoas sem nome, pois é isto o que ele é agora. E se estiver vivo, pobre menino... Realmente, pobre menino... É apenas pelo dinheiro que enviam a quem estiver lhe cuidando. Ele vale mais vivo do que morto. Todos comentaram sobre isso quando os Crowley o abandonaram em um hospital público."

"Ele tem alguma doença?"

"Sim, sim..." – Quincey balançou a cabeça, pensativo. – "Quem o viu disse que é algo de partir o coração. Uma doença de nome indizível... Logo que os Crowley largaram o menino à própria sorte, a mãe dele não esperou nada para anunciar um novo herdeiro para seu marido. E ela procriou como um coelho, e jamais falam do pequenino, como se ele houvesse morrido, ou nunca houvesse existido. Ele é a vergonha dos Crowley. Pobre menino..."

"..."

"Se ele tiver tido sorte ao menos uma vez na vida, deve estar morto agora. Quem o viu disse-me que era de partir o coração..."

"..."

Quincey ficou por longos momentos em silêncio, afagando Spinel Sun em seu colo. Não o fazia como se afagasse um animal, mas como a uma pessoa, mas isto não era de todo espantoso, pois ele tratava-o assim. Eriol observou como sua mão era cuidadosa, viu a aliança de casamento ao lado do anel de formatura, e no dedo mínimo, um anel pesado, com uma negra pedra de ônix. Sem querer, olhou para a sua própria, uma mão de dedos longos, de criança, com as pontas sujas de um pouco de farelo de biscoito. Seu pai sabia que estava mentindo e já não tinha tanta certeza quanto antes, ao dizer que o filho de Paul Crowley estava morto. Mas nomes eram apenas nomes, e certamente era apenas uma coincidência, mas para o inferno se fosse, ou deixasse de ser. Era o que menos importava. Como ele mesmo havia dito, os Crowley haviam partido para a América, e este filho, se houvesse, estava à própria sorte e sendo assim, era o mesmo que ter nascido como órfão. E de fato, talvez tivesse mais valor morto do que vivo, do que o contrário. E afinal de contas, Eriol descobriu que não importava quem era o menino do Sanatório, e tampouco tornou a falar do assunto. Logo seu pai mandou que fosse buscar o saco de cogumelos e pediu para olhar quais eram. Eriol obedeceu, e mesmo em parte mais tranqüilo por seu pai saber que estava mentindo e não falar nada sobre isso (como um consentimento para ver até onde ele iria), ainda estava inquieto.

Mais tarde, ele recusou o jantar e seu pai não insistiu, mas mandou-o cedo ir dormir. Eles separaram juntos os cogumelos, e Quincey não conhecia vários dos que estavam na sacola, mas os que serviam para comer ele reconhecia de pronto. Foram deixados na copa, com a ordem de serem servidos no próximo almoço.

No dia seguinte, depois que Quincey anunciou que ia trabalhar, Eriol saiu, com seu casaco preto, pois o dia não estava tão acolhedor quanto o anterior, e com o gato dentro de um dos bolsos. Estava novamente em roupas de brincar e com a sacola de linho, e dentro dela, um guardanapo feito um embrulho de biscoitos, e outro, com cogumelos assados com queijo. Tinham a tarde toda para fazerem o que quisessem, e tão furtivamente quanto no dia anterior, atravessaram a propriedade, a ponta do bosque e chegaram à estrada, e depois de touceiras desfolhadas de madressilvas, viram os portões sem muro do sanatório, apenas arcos de pedra, cercados de flores pelo caramanchão ao lado deles. Era um lugar muito bonito, seria mais bonito se houvesse pessoas no jardim. Spinel Sun continuava calado e triste.

Desta vez, andaram sentindo-se um pouco mais tranqüilos pelo jardim, pois não viram ninguém, e fora os passarinhos e as folhas das árvores estalando no vento, havia uma completa quietude. Havia um nó no fundo de sua garganta quando reconheceu a janela, que desta vez estava com as cortinas cerradas, ainda que com as folhas abertas. Fez um gesto de silêncio para Spinel Sun quando chegou mais próximo e escutou vozes adultas. Havia pelo menos duas enfermeiras no quarto e a voz de um homem também poderia ser ouvida. Eriol chegou mais perto da janela e olhou para dentro, vendo as enfermeiras indiferentes saindo e ainda um médico ao lado da cama, fechando um estojo de flandres, e pelo tilintar de vidro e metal, aquela seringa de injeção havia sido usada, e ele recordou-se imediatamente das marcas roxas pelos braços do menino.

"O que você está vendo, Eriol?" – Spinel Sun o puxou pela roupa, tão ansioso que falava de uma maneira quase impossível de compreender. Ele fez um chiado e sentiu o coração bater mais forte quando o médico olhou naquela direção, com olhar severo. Eriol teve a impressão de que fora visto e então largou a beirada da janela e encolheu-se no chão, rés à parede e as heras e puxou Spinel Sun para esconder-se também. Em verdade o esconderijo não adiantava de absolutamente nada, e a sacola ainda fora esquecida bem à vista, logo embaixo da janela, mas o médico não notara nada disso.

"Este menino custa muito caro para morrer tão rápido..." – Eriol escutou mas não acreditou, e estremeceu com o susto de ouvir a janela batida com força, sendo fechada e o trinco puxado. Mesmo assim escutou ainda o médico dizer alguma coisa, e novamente o tilintar da bandeja. Um momento depois, escutou a porta do quarto ser batida e esticou-se para olhar novamente por cima da pedra da janela. Bateu as unhas no vidro, tentando chamar atenção, mas não via ninguém, e nenhum movimento mais. Era como se o quarto estivesse vazio de tão quieto e então resolveu forçar a janela. Empurrou e sacudiu até que o trinco de cima escorregasse para baixo e então a janela cedeu e enfim estalou, abrindo. Chamou Spinel Sun com um gesto e ajudou-o a subir, entregando-lhe a sacola, depois subiu, tomando mais cuidado com seus joelhos do que da última vez. E mal havia entrado, e já via Spinel Sun escalando a beirada da cama, pendurando-se nos lençóis da cama alta.

Foi então sua vez de aproximar-se da cama e viu que era Paul quem estava nela, um pouco sonolento, com olheiras fundas e rosto abatido. Mesmo assim, ele sorriu quando os viu, e fez um aceno quando Spinel Sun sentou-se ao seu lado na cama.

"Olá!" – Ele disse, e sua voz saiu fraca, tão débil quanto seu sorriso. Parecia sinceramente feliz por vê-los em seu quarto de hospital.

"Olá, Paul. Eu trouxe os seus biscoitos."

"Obrigado, Eriol. Eu gosto muito de biscoitos."

Eriol precipitadamente puxou a sacola que estava no chão ao lado da cama e achou o embrulho do guardanapo. Abriu-o e mostrou ao pequeno, que sorriu largamente, mostrando uma falha de um dente que havia sido trocado havia pouco tempo, e seus dentes eram amarelados e transparentes, marcas de anemia profunda. Eriol sorriu também. Era de partir o coração.

Paul fez esforço para sentar-se na cama, e pegou os biscoitos. Parecia faminto, pois sua atenção era toda para eles.

"Paul, você está doente?" – Era a voz de Spinel Sun. – "A minha mãe diz que temos de comer devagar!"

"Desculpe..." – Um certo rubor voltou ao rosto do pequeno, envergonhado de sua falta de modos, mas ele não fazia aquilo por grosseria, e sim apenas por fome. – "Eles não me deixam comer nada, só beber leite à noite. O doutor disse que qualquer comida vai me fazer mal."

Eriol preocupou-se. Talvez não devesse ter trazido os biscoitos e muito menos entregá-los assim.

"Você... Você se sente mal quando se alimenta?"

Ele fez que não com a cabeça, lambendo as migalhas em torno de seus lábios. Ele não estava mais em um batão branco, como no dia anterior, e sim em um branco e azul, listrado. Seu cabelo parecia frágil como barba de milho.

"Então porque eles não lhe deixam comer nada?"

"Não sei."

Pronto, ele acabara os biscoitos.

"São muito gostosos, Eriol, muito mesmo. São os biscoitos mais gostosos que eu já comi em toda a minha vida." – Ele passou a língua nos lábios novamente e realmente pareceu mais disposto depois de comer. Spinel Sun chegou mais perto e disse-lhe que haviam trazido os gizes de cera e papel. Ele se alegrou mais ainda quando puseram os papéis na sua frente. Eriol sentou-se no chão e fez desenhos para ele colorir. Não era bom para desenhar, mas para o menino Paul, isso não importava. Ele disse que estava muito feliz e não havia modo de duvidar. Por outro lado, Eriol sentia-se cada vez mais desconfortável ao olhar para ele, principalmente quando arregaçava as mangas do batão listrado, para riscar melhor encima da folha de papel, colorindo aquele barco que havia desenhado.

"Eu nunca vi um barco..." – Disse, mostrando o desenho já pronto, o céu era azul, mas o casco do barco era violeta e as velas eram amarelas.

"Nós estivemos em um barco, não foi, Eriol? Era um barco enorme e cheio de ratos..." – Spinel Sun pulou, olhando de perto o desenho de Paul.

"Sim, estivemos."

"Eu também nunca vi um rato..." – Ele baixou os olhos azuis. Eram olhos impressionantes e por eles era possível enxergar cada mudança de luz. Neste momento eram um pouco desapontados por nunca ter visto um rato, ou qualquer outra coisa além da janela do quarto. – "Eu quero ver um rato!"

"Ratos são sujos..." – Eriol teve de sorrir, lembrando de seu próprio pavor no porão da casa da família, na China, no que parecia ter sido há muitos anos atrás, pois a lembrança do que acontecera era embotada, mas a sensação do medo ainda era viva.

"Ratos mordem..." – Spinel Sun encolheu-se, um pouco enojado.

"Eu vou ver um rato um dia? Eu vou ver um barco? Comer mais biscoitos?" – As perguntas saíam de qualquer jeito, e estava aflito. Ficou subitamente pálido e tossiu, como se houvesse engasgado com alguma coisa, mas tossiu uma única vez, o bastante para um filete largo de sangue correr por sua boca, descendo pelo queixo. Spinel Sun arregalou os olhos e chegou mais perto, engatinhando pela cama. Eriol assustou-se tanto com o sangue, que era escuro, quase negro, ensopando a gola do batão de Paul, que nem lembrou-se de que ali era um hospital, sentiu tanto medo quanto estivessem sozinhos, e apesar do choque que causava em ambos, Paul apenas pegou a ponta do lençol e começou a limpar o queixo, parecendo ser aquilo tão normal que não havia motivo de surpresa.

"..." – Ele baixou os olhos um momento, deixando o lençol sujo de lado. Parecia achar que era normal o que acontecera. – "Desculpe-me Eriol. Mas eu queria muito ver um rato de verdade."

Estremeceu, sentiu-se nauseado de horror. Olhou para Spinel Sun, que tentava ajudar a limpar seu queixo, sem muito sucesso. Aquele fluxo de sangue parecia continuar e não acabar nunca. Ele estava doente e ia morrer. Seu pai estava certo, era de partir o coração.

"Eu estou com sono. Está doendo..." – Ele pegou o mesmo lençol com que havia limpado o sangue de sua boca e de seu pescoço e o puxou desajeitadamente para seu colo. Spinel Sun chegou mais perto, se sentando ao lado de onde ele estava.

Paul olhou para eles, como se houvesse sido pego no meio de uma mentira. Brincou com os dedos sujos de giz de cera azul e de sangue, como se não houvesse nada neles.

"Eu estou doente. Vocês não gostam mais de mim porque eu estou doente..."

CONTINUA