A Sombra e a Escuridão

Capítulo 5

"Eu gosto de você, Paul." – Spinel Sun disse, um pouco triste. Falou baixo. Paul sorriu fracamente ao escutar, mas foi um sorriso sincero, que quase fez seu rosto pálido voltar a parecer o de uma criança e não de uma criaturinha magra e quase morta. – "Eriol, podemos levar ele para casa?"

"Eu..." – Eriol com toda a certeza não sabia o que responder.

"Você não gosta mais de mim, Eriol..." – Paul disse, com um fio de voz, como se soubesse que ninguém gostava dele justamente por isso, ou, maduro demais para seu tamanho, imaginasse bem o desconforto que trazia às pessoas em volta.

"Eu gosto de você, Paul. Como gosto de Spinel Sun. Você é como meu irmãozinho..." – Respondeu, tentando acalmar-se. Não queria fazê-lo chorar, e lembrou-se de Eloise recomendando que tratasse bem dos menores e não os fizesse chorar, porque ele era um menino bem educado e não um monstro sem coração. – "Eu queria que você fosse para casa conosco..."

"Eu posso ir? Posso mesmo ir?" – Apertou a ponta do lençol nas mãos pequenas.

"Mas... Não! Você está doente. Eu não posso cuidar de você..." – Eriol sentiu o rosto corar violentamente ao ver que o sorriso de Paul sumia e ele voltava a falar com aquele fio de voz de antes, que era de partir o coração, pedindo por favor, com uma educação que o fazia comovente. Mas o que diria Quincey se ele aparecesse com aquele menino em casa? Já bastava-lhe os apuros em que aquele gatinho preto o metia. E Eloise? Sua mãe desmaiaria, teria passamentos e síncopes, ela não era uma mulher tão frágil assim, mas seus nervos não suportariam tal coisa. – "Você tem de ficar para que cuidem de você, Paul."

"Mas eu não quero ficar... Eu quero ir com você, Eriol, e com Spinel Sun. Eu quero ver ratos e barcos..." – Ele ficou olhando para seus próprios dedinhos roliços e curtos, desolado, sentado no meio daqueles lençóis sujos. De repente olhou para um dos desenhos que havia feito e o pegou. O papel estava amarfanhado e cheio de rabiscos de giz. – "Para você, Eriol. É um presente."

Ele pegou o papel, sentindo que estava mais vermelho ainda, sentindo-se muito culpado por não ter coragem de fazer Paul passar por cima da pedra da janela e correr com eles até em casa. Lá não haveria injeções, mas quem poderia cuidar dele? Fosse o que tivesse, aquela golfada de sangue vinda do nada dizia tudo. Eriol pegou o desenho e o ele sorriu-lhe. Enquanto olhava para a folha de papel, Spinel Sun afagava desajeitadamente a cabeça de Paul, mais ou menos como Quincey fazia, mas sem a menor leveza. Eriol viu em suas mãos um desenho de uma borboleta vermelha, e tudo em volta pintado de azul-celeste, formando nuvens e um risco verde fazia o chão. A borboleta estava no chão e era de um vermelho que uma borboleta verdadeira dificilmente teria. Lembrou-se daquela borboleta que soltara da janela de seu quarto, ao lado de Spinel Sun, várias noites antes. A idéia pareceu-lhe a pior coisa que poderia ter pensando naquele instante.

"O-obrigado, Paul. É um desenho muito bonito."

Paul sorriu, parando um momento de retribuir o carinho desastrado de Spinel Sun. Seu sorriso alargou-se, mostrando uma falha de dente de leite que estava sendo trocado e um rubor subiu em seu rosto. Eriol viu-se o monstro sem coração que Eloise dizia que ele seria se fizesse mal aos menores.

"Você pode ficar!" – Ele disse, e enquanto falava, parecer engasgar de novo com alguma coisa. Não uma tosse de verdade, apenas um breve engasgo e apesar de seu sorriso, novamente um largo filete de sangue escuro descia por sua boca. Spinel Sun puxou a ponta do lençol e tentava ajudá-lo a limpar, mas não adiantava muito.

"..." – Eriol engoliu em seco. Como ajudar, se nada que pudesse fazer estava a seu alcance? Paul estava morrendo. Eriol teve medo de chorar na frente dele, mas era... era de partir o coração. Ele tomou a frente, deixando o desenho de lado por um momento e procurou o lenço pelos bolsos do casaco, e enfim, pediu licença a Spinel Sun e foi limpar o queixo de Paul. O lenço ficou ensopado de sangue. – "É o melhor que posso fazer, Paul..."

Ele forçou um sorriso, embora desta vez sua palidez voltasse. Não possuía um único momento de sossego, sentia dor constantemente, ele compreendeu isso quando viu que enquanto brincava com os dedos das próprias mãos, Paul tremia e suava frio. O pensamento que tivera retornou, e envergonhou-se ainda mais dele.

"Vamos para casa, Spinel Sun!"

"Eu não quero ir, Eriol! Eu só quero ir se o Paul for conosco!"

"Ele não pode ir conosco. Paul está doente e só aqui há adultos para cuidar dele!"

"Há uma porção de adultos em casa... Porque não podem cuidar de Paul?"

"Porque eles não vão saber cuidar de Paul. Vamos embora de uma vez... Estamos deixando-o cansado e triste. Você não vai querer deixar Paul triste, vai, Spinel Sun?"

"Não..." – Ele respondeu, hesitante, olhando para Paul e para Eriol.

Spinel Sun estendeu os bracinhos, pedindo ajuda para descer da cama, que era alta demais para ele. Ela rangeu quando ele desceu e Eriol esticou os lençóis que haviam se repuxado. Tentou não olhar para as manchas de sangue pelos lençóis brancos, que começavam a coagular em borrões escuros, quase negros. Lembrou-se dos cogumelos assados e pegou o embrulho em que estavam, de dentro da sacola.

"Aqui estão os cogumelos, se você ainda os quiser. Se quiser, vai ter de comer agora, antes que as enfermeiras voltem, Paul." – Não tinha certeza se isso poderia fazer-lhe mal, mas ele parecia também sofrer de fome tanto quanto de sua indizível doença. Ele pegou avidamente o guardanapo e começou a comê-los, com tanta vontade que esqueceu-se de agradecer, como menino educado que mostrou-se a eles desde o começo. Depois que terminou, Eriol ainda usou a ponta limpa do lenço para limpar seu queixo.

"Se eu pudesse comeria até explodir, Eriol!"

Ele se obrigou a sorrir ao escutar isso. Tentou agir o mais naturalmente possível. Paul perguntou se ainda voltariam no dia seguinte, e ele não respondeu. Logo em seguida, arrumaram a bagunça que fizeram e esconderam debaixo do colchão os gizes de cera e as folhas de papel para Paul desenhar. Saíram apenas com um breve aceno e tampouco afirmaram se voltariam no dia seguinte. Não que não fosse esta a intenção de Spinel Sun, mas ele apenas prolongou o angustiado silêncio de Eriol. Em seu bolso, havia o desenho que ganhou de presente, que vez por outra sua mão esbarrava por cima, na ponta do papel que saia pela abertura do bolso, e a cada vez que isso acontecia, lembrava-se daqueles grandes olhos azuis, tristes e úmidos.

x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x

Eriol não quis tomar chá e nem jantar quando voltou. No dia seguinte não quis sair e nem comer o dia todo. À noite, Quincey, em mangas de camisa, ainda chegou a ir ao seu quarto, verificar se estava com febre. O pai de Eriol ficou um longo tempo sentado ao seu lado, na cama, sem nada dizer, afrouxando a gravata. Estava com o gato adormecido no colo, afagava-o e pestanejou, enfim, respirando fundo, em seguida.

"Se a sua mãe estivesse em casa ela saberia o que fazer com vocês dois, nem que fosse trancá-los no celeiro."

"..." – Eriol olhava para as mãos de Quincey, que eram mãos de adulto, e Spinel Sun praticamente cabia na palma delas. – "Eu não estou doente, papai..."

"Eu sei que não." – Ele fez um gesto para que Eriol chegasse mais perto e quando ele obedeceu, fez um afago sobre seu cabelo muito negro. – "Vamos fazer de conta que somos dois adultos, Eriol... A partir de agora eu não sou mais seu pai, serei apenas seu amigo."

Eriol fez que sim.

"Sendo desta forma, acredito que confie em mim. Pelo menos para dizer-me afinal, o que anda acontecendo aqui."

"Não há nada... Hoje eu fiquei em casa, aqui, com você."

"Não estou falando de hoje, Eriol. Estou falando do que está acontecendo há dias nesta casa. Aliás, nem sequer nesta casa. A cada vez que você sai das minhas vistas, tenho certeza de que está fazendo algo que eu desaprovaria."

"..."

"Onde você tem andado quando sai para brincar?"

"Na propriedade."

"Está mentindo, Eriol."

"Eu não vou mais sair..."

"..."

"Eu juro que não vou mais sair..."

"É perigoso ir muito longe, eu já avisei. Por onde você esteve andando, que a cada vez que voltava para casa, estava mais pálido e assim como está agora?..."

"... E como eu estou agora?"

"Pálido, sem comer e sem dormir. Você ainda não tem nem onze anos, Eriol, não pode passar as noites em claro. Eu passo noites inteiras escutando você virando as páginas dos livros. Por isso eu pergunto o que você e este gatinho andam fazendo de tão errado que eu não posso saber."

"..."

"É melhor que conte-me agora antes que eu descubra por mim mesmo."

Eriol sentiu um frio subir por seu estômago, como se algo gelado atravessasse suas costas. Seu pai estava falando muito sério, desta vez.

"Eu... Nós não fizemos nada." – Disse num sussurro. Quincey olhou para ele de lado, de uma forma que pareceu-lhe como outra pessoa, de tanta a estranheza daquele olhar e a forma penetrante que dirigiu-lhe. – "Quero dizer... Não há nada para fazer."

"Nada com o que eu concordaria, ao que me parece. Tenho certeza de que se ainda você não fez nada, Eriol é porque está ainda por fazê-lo e eu me irritaria muito em saber o que será."

"..."

"Eu espero que você não esteja fazendo amizades pouco recomendáveis ou nada que pudesse envergonhar a sua mãe... Lembre-se ao menos de que este é um lar cristão, ainda que nem sempre seja o que pareça."

"Pai, não é nada disso..." – Mentira. Quincey parecia saber de tudo, até mesmo daquele seu pensamento imundo que quase fez com que corresse para se confessar na igreja do vilarejo e apenas não fez isto, pois lembrou-se de que o único sacramento cristão que possuía era o Batismo, e faltava-lhe a Crisma e a Primeira Comunhão. Mas não havia modo de seu pai saber de nada, nem dos passeios, nem daqueles livros que lia (que escondia muito bem, tinha certeza) e nem sobre sua ida ao Sanatório. E não havia ninguém que pudesse dizer-lhe sobre isso. – "É... é uma coisa muito séria. Mas você não aprovaria de qualquer maneira qualquer coisa que eu fizesse. Eu não sei como resolver isto sozinho, mas eu não posso pedir pela sua ajuda. Você não entenderia. Eu não sei o que fazer."

"..." – Quincey ficou surpreso. Não esperava uma resposta com aquela, e teve dificuldade em manter-se impassível como antes. Eriol notou sua reação e calou-se, baixando a cabeça. O gato no colo de Quincey mexeu-se, espreguiçando-se. Ele o afagou. – "Não me diga mais nada, Eriol."

Levantou-se e entregou Spinel Sun no colo do filho.

"Eu realmente nem quero imaginar o que você vai aprontar desta vez!" – Fez um gesto para que Eriol não dissesse nada. – "Seja o que for, eu não quero saber. Mas não tente deixar a sua mãe viúva, entendeu? E não tente acabar com os nervos dela..."

Spinel Sun encolheu-se, miando, escutando-o falar daquela forma. Eriol também encolheu-se, sentindo um calafrio de medo pela irritação de Quincey. Era como se seu pai soubesse o tamanho de seus problemas melhor do que ele mesmo.

"E não se atreva a aparecer nesta casa com mais um gato." – Avisou por fim, antes de sair do quarto.

x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x

Por mais aquela noite não dormiu. Também soube que não era o único, escutando os passos de Quincey no corredor, e depois descendo as escadas. Teve vontade de sair do quarto e ir contar tudo o que vinha acontecendo, desde quando descera ao porão daquela velha casa na China até este momento, em que Spinel Sun dormia mordendo a ponta do travesseiro, ao seu lado. Talvez seu pai não acreditasse em nada, mesmo se visse Spinel Sun como um menino, e certamente o repreenderia por ter trazido consigo aqueles três livros que não lhe pertenciam. Preferiu não arriscar tanto, pois se Quincey desconfiasse de que passava mais uma noite em claro, daria-lhe a surra que nunca tomara em todos os seus quase onze anos de vida. E levando em conta o que ele lhe dissera naquela tarde, sobre ser aquela ainda uma família cristã, não era, de maneira alguma, uma boa idéia falar-lhe sobre livros em que eram detalhados desde sacrifícios de animais, passando por receitas de geléia de uva, feitiços de magia negra, indicações de ervas e até um pequeno bestiário, descrevendo figuras apavorantes que habitavam um certo lugar chamado de Obscuro.

Talvez Spinel Sun fosse um destes seres do tal Obscuro. Olhou para ele com cuidado. Estava quieto, dormindo ao seu lado. Paul, magro e quase morto, era do seu mesmo tamanho, mas era magro, e recordou-se das horríveis marcas roxas em seus braços, de suas olheiras profundas em torno dos olhos azuis. Eriol estremeceu e sentou-se na cama, cortado por um arrepio. Também sentia-se muito nauseado. Ainda estava escuro. Tinha a impressão de que já era dia. Ajoelhou-se na cama e se esticou para olhar pela janela e não estava tão escuro lá fora, viu as árvores movendo-se com o vento como numa onda, e essa onda estendia-se sobre o campo da propriedade, que então não era verde e sim azul, e o céu, de um violeta pálido, as nuvens eram rosadas de chuva. Sentiu-se sufocado e abriu a janela, apenas uma fresta, e respirou fundo o ar frio e muito úmido. Era outono, havia uma árvore no jardim da casa que estava quase toda vermelha e o gramado mais próximo estava tomado de folhas enroladas pelo chão. Abriu mais a fresta da janela e sua respiração tornou-se inquieta. Spinel Sun resmungou alguma coisa enquanto dormia, e cobriu a cabeça com a coberta. Se ele acordou, Eriol não percebeu, mas ele próprio estava desperto havia muito tempo, completamente lúcido e apavorado. Um trovão clareou o horizonte e gota a gota, ele viu a chuva formando-se, e quando ela era densa e o céu deixava de ser lilás para tornar-se cinza e mais escuro, desabou. Eriol então cuidadosamente desceu da cama, vestiu-se em silêncio e procurou embaixo da cama, entre o estrado da cama e as bandas de madeira do lado. Quando encontrou o que queria, escolheu um dos três diários do filho do barão e escondeu-o junto de si, dentro de seu casaco. Sentia-se trêmulo de frio quando deixou os outros dois no mesmo lugar. Abriu a porta para o corredor e saiu para a casa, que não estava escura como esperava. Havia luzes acesas no corredor, e embaixo também, e vinham do escritório de seu pai. Passou na ponta dos pés pelo resto da casa, e tomou mais cuidado ainda para atravessar a copa e abrir a porta dos fundos. Estava muito frio do lado de fora, e o vento quase o derrubava. Seu primeiro impulso foi correr de volta para dentro da casa e esquecer todo o resto, mas ele estava em um ponto que não havia mais retorno. Andou quando passou pelo galinheiro e pelo canil, mas quando os cães o reconheceram e latiram, deixou-se desesperar e então correu... Correu até pensar que não seria mais capaz de parar.

x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x

Apesar da longa distância e de estar encharcado da chuva, não parou de correr até ter chego debaixo da janela do quarto de Paul. Não tinha dúvida alguma do que deveria fazer agora, e preparou-se para bater sobre a madeira da janela, quando viu pelo vidro embaçado, que havia pessoas no quarto, havia adultos. A lâmpada incandescente do teto estava acesa, pois ainda não era propriamente dia, e fazia daquela movimentação algo incômodo. Eriol pestanejou, a água da chuva passando insistentemente sobre seus olhos, e apoiou-se na beirada, na ponta dos pés, esticando-se ao máximo para olhar o que estava acontecendo, e principalmente, onde estava Paul. Ninguém o viu, e o ruído da chuva não o deixava escutar o que diziam. Uma enfermeira toda vestida de branco e o médico que já havia visto ali uma vez estava de costas para o rumo da janela, por outro lado, um médico quase completamente calvo e de bigode em forma de guidão de bicicleta aproximava-se do leito, esticava o estetoscópio, fazia um gesto e uma segunda enfermeira trazia-lhe a bandeja de aço que estava na mesa de ferro do fundo do quarto, aquela mesma que Eriol vira outra vez, repleta de agulhas e com a seringa de vidro no fundo, repousando numa poça de álcool. Arregalou os olhos ao reconhecer o objeto nas mãos daquele homem, e principalmente, porque ele passava de mão em mão, um frasco escuro de álcool era aberto e falavam mais alguma coisa. Uma risada foi dividida entre os médicos e também entre as enfermeiras. Uma enfermeira mais jovem esperava na porta do quarto, vestida de uma outra maneira, como um comprido jaquetão com avental.

Eriol pestanejou novamente e sentiu os sapatos pesados de tanta água, tremia de frio, mas agarrou-se com dedos trêmulos na beirada da pedra da janela, e subitamente encheu-se de um ódio grande demais para caber em alguém tão jovem, quando viu que o médico de bigode testava a seringa e estendeu-a para a enfermeira, que inclinou-se para a frente e suspendeu no ar um bracinho branco e fino, cheio de marcas roxas e escuras, e eles todos continuavam rindo, até mesmo quando – e mesmo com o ruído da chuva e do vento, Eriol podia escutar – Paul gritasse e soluçasse. Uma outra enfermeira forçou para que continuasse quieto, afundado no meio do colchão, até que a injeção fosse esvaziada nas suas veias. Ele continuou chorando, e todos riam, como se nada estivesse acontecendo, e certamente conversavam sobre qualquer outra coisa, menos sobre Paul. Eriol sentiu toda sua raiva atravessar-se na garganta, e agora via, não podia ter dúvida alguma, que a doença de Paul, dos males talvez fosse o menor. Antes o matassem de uma única vez, antes o sufocassem com o travesseiro, seria menos doloroso. Ele continuava soluçando alto, como se sentisse muita dor, apavorado. Uma das enfermeiras trouxe um frasco de vidro amarelo, menor do que o de álcool, e derramou um pouco do líquido num pequeno amontoado de gaze, na palma de sua mão, e assim que teve certeza de que a gaze estava bastante ensopada, entregou-a na mão do mesmo médico de bigode que preparara a injeção para Paul. Ninguém manifestava qualquer atenção em relação ao choro dele, apenas a enfermeira segurou-o com mais força, durante o instante em que o médico pressionou a gaze em seu rosto, sobre sua boca e sobre seu nariz, esfregando, e ele gritou até perder as forças, fazia tanta força para escapar da gaze que de repente tossiu e o médico afastou-se, praguejando alto. Paul havia tossido uma golfada cheia de sangue, que sujara a gaze e até a mão do médico, a beirada da manga de seu jaleco. Irado, o médico deu-lhe um violento tapa no rosto e a enfermeira que estava na porta por um momento arregalou os olhos e logo os baixou. Mas aquela que havia preparara a gaze sorriu, e logo preparava outra. Paul soluçava, e tentava soltar-se, que desta vez o médico de barba que Eriol já havia visto outra vez no quarto também ajudava a mantê-lo quieto no meio da cama, segurando seus tornozelos finos, também cobertos de hematomas.

Ele gritava com toda a força que conseguia, e novamente uma gaze foi esfregada no seu rosto, apertada de encontro ao seu nariz e sua boca, mesmo sujos de sangue e ele pareceu desmaiar ou morrer. Seu corpo ficou todo mole, perdendo o pouco de cor que lhe restava. Eriol teve certeza de que estava morto, e mesmo os médicos pareceram crer nisto. Quando o médico tirou a mão de cima de seu rosto, sua boca estava aberta, inerte. Não se sabia se havia desmaiado por conta do que fora derramado na gaze, ou apenas desmaiado de cansaço. Eriol acreditou que seus pulmões não haviam agüentado a falta de ar, que os gritos haviam sido fortes demais.

A chuva continuava, um trovão estourou no céu. O médico de barba esticou o estetoscópio e auscultou o peito de Paul. Disse ainda alguma coisa e saiu, rindo ao lado do outro, ainda como se nada de extraordinário estivesse acontecendo, e talvez não estivesse mesmo. Não para eles. As outras enfermeiras saíram logo em seguida e aquela, que estava vestida com o jaquetão na porta do quarto entrou, e ela ao menos parecia ter mantido o bom-senso, ou um resto de humanidade, porque se aproximou da cama e levantou Paul no colo, pegando-o enrolado na coberta branca e manchada, mas seu olhar era da mesma perplexidade de antes. Sua atitude era neutra, apesar de seu olhar. Virou-se de lado na hora de passar pela porta, ajeitando-o melhor, e Eriol viu que ele estava absolutamente pálido e inerte, tal como um cadáver.

Seus dedos perderam a força na beirada da janela, ele cambaleou para trás, e outro trovão estourou ao longe, e logo em seguida o céu se iluminou por um segundo e voltou a ficar escurecido e sujo. Viu-se mais uma vez sem saber se Paul estava ou morto, ou se estava vivo, o que seria dele enfim. De uma coisa também conseguia ter certeza, se Paul não estava morto, estaria em breve.

Lentamente começou a andar, sem estar muito certo se o fazia no rumo da propriedade, ou para outro lugar, só sabia que para longe... para muito longe daqueles gritos horríveis que escutara, e que ainda estavam marcados em seus ouvidos. Abraçou o livro que estava metido dentro do casaco e estava junto a si, e arrependeu-se cada vez mais daquilo que queria ter feito.

x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x

Ao final de dois dias, ele estava visivelmente mais magro e abatido. Não tivera de maneira alguma como contar a Spinel Sun o que vira, por mais difícil que fosse desviar das perguntas de uma criança de cinco anos.

Quincey não chegou a saber que Eriol havia saído escondido naquela madrugada, durante a chuva. Também continuou sem saber a razão de seu comportamento estranho. Quis chamar um médico, mas isto causou um pânico tão devastador em Eriol que o fez tremer de pavor e implorar para que não fizesse isso. (Isso fez Quincey então pensar em chamar um padre para tentarem juntos fazer algo por Eriol, mas logo desistiu, lembrando-se que a última vez que vira um padre à sua frente fora quando se casara, e mesmo assim, não prestara muita atenção nas coisas que ele disse...)

Eriol conseguiu manter Spinel Sun por dois dias sem saber o que vira. Por estes dois dias ele o perseguiu repetindo as mesmas perguntas, e era muito mais fácil fugir de seu pai do que dele... A cada recusa, a vingança de Spinel Sun era despejar sua ira de criança sobre as criadas, enlouquecendo-as um pouco mais, nem que fosse derrubando as panelas pelo chão da cozinha, no meio da madrugada. Até Eriol já começava a concordar em atirá-lo dentro do poço seco.

"Nós sabemos quem vai parar dentro aquele poço, debaixo de algumas carradas de argamassa, se este alguém não se explicar." – Eriol escutou, por fim. Seu pai não falara do assunto antes de ter dito isso e não voltara a falar depois. – "E que explique-se muito bem, porque a mãe desta certa pessoa estará chegando amanhã de Londres... E ela é bem menos paciente do que eu a respeito de segredos."

Ao ouvir isso, Eriol apenas retirou-se da sala de jantar, deixando a xícara de chá pela metade e as torradas intocadas. Spinel Sun o seguiu até o quarto, tentando morder-lhe os tornozelos, seguindo-o muito de perto.

"Espero ao menos que o gato conte-me algo, se ele tiver mais sucesso do que eu ao descobrir..." – Escutou um tilintar de xícaras e a voz de Quincey resmungando, sozinho, enquanto quebrava um biscoito no meio. Não quis olhar para trás, porque sabia que a criada estava rindo.

E mesmo já trancado com duas voltas de chave em seu quarto, não conseguiu encontrar sossego. Um menino em roupas grandes demais o perseguia. Aliás, em momento algum desde quando vira Paul pela última vez – e a lembrança disso era terrível e nauseante – tivera paz, e aquele pensamento também estava lá, num canto escuro de sua mente. Às vezes parecendo uma lembrança que não era sua, e ele sentia-se como uma outra pessoa, quando este pensamento ressurgia no meio da noite. Tudo isto estava no lugar mais oculto de sua mente, assim como o desenho que Paul lhe dera estava escondido num canto de uma gaveta.

Desta tentou dormir mais um pouco nesta noite do que nas outras, mas Spinel Sun estava ali ao seu lado, como uma sombra pequena, tagarela e impertinente, e só sabia que ele estava lá porque o escutava falar e via seus olhos e suas roupas. De outra forma, ele se misturava com o escuro do quarto perfeitamente.

"Você vai dormir, Eriol?"

"Se você deixar..."

"Eu quero ouvir uma história, Eriol!"

"Agora não. Outro dia, está bem?"

"Então eu quero ir brincar com o Paul amanhã."

"Você não pode. E acho que ele também não."

Spinel Sun meteu-se na sua frente, quando tentou atravessar o quarto para ir mudar de roupas. Queria saber porque não podiam voltar ao Sanatório e brincar com Paul. Eriol não sabia o que responder e disse que Paul estava doente. Mesmo assim Spinel Sun pendurou-se na manga de sua camisa e insistiu quase aos berros em querer vê-lo.

"Pelo Amor de Deus, fique quieto, ou meu pai vai nos matar se ver você aqui!" – Tentou desesperadamente fazer Spinel Sun se calar, o que nunca foi uma tarefa fácil, e ele jamais soube e nunca aprenderia a lidar com birras devastadoras como aquelas.

"Eu quero brincar com o Paul!" – Spinel Sun bateu o pé no chão, furioso e falou mais alto ainda ao ver o gesto pedindo que parasse.

"Eu já disse que não!" – Eriol respondeu, tão cortante que Spinel Sun aquietou-se de uma vez, estreitando os olhos, e parecendo mais uma pantera (uma pantera pequena e roliça, é verdade...) do que o menininho que mostrava-se sozinho com Eriol.

Ele recuou um passo ou dois e ficou olhando para Eriol como se esperasse alguma coisa, ou achasse novo vê-lo irritado e impaciente.

"Você não pode ver o Paul e nem brincar com ele! E nós não poderemos voltar nunca mais ao Sanatório! Não insista!"

"Nunca mais?"

"Nunca mais..." – Eriol respirou fundo, imaginando quando acharia forças de dizer a Spinel Sun que Paul talvez estivesse morto.

"Por quê?"

"Porquê não!"

"..."

"Agora comporte-se! É muito feio você se portar assim! Ou eu vou deixar você de castigo, Spinel Sun! E se eu não por você de castigo, vou dizer ao meu pai para fazer isso!"

Um silêncio total imperou no quarto. Estava cansado demais para agüentar mais uma birra de Spinel Sun. Mas não tinha coragem de dar-lhe a palmada que sabia que aquela coisinha negra e tagarela merecia. Spinel Sun, sem dizer nada, recuou mais um pouco e foi para ficar parado, como um fantasma em roupas grande demais, ao lado do aparador e da cômoda. Eriol respirou fundo e foi, enfim, tentar vestir roupas de dormir, mas não chegou a dar um único passo.

"Eu quero ir brincar com o Paul!" – Spinel Sun berrou com toda a força, e mais assustador foi vê-lo fazer ranger a cômoda, quando quase subia sobre ela, pegando e tudo o que pudesse ser quebrado e atirando pelo chão.

"Pare com isso!"

Spinel Sun parou um momento, com um vaso nas mãos e então jogou-o no chão, com um estouro de cacos para todas as direções. Eriol não conseguia se aproximar e realmente acreditava que a próxima peça pudesse vir na sua direção. O que mais poderia acontecer agora?

"Eriol, o que está acontecendo aí?" – Era a voz de seu pai do lado de fora do quarto. Sua voz sumiu no fundo da garganta e apavorou-se com o escândalo. De repente ouvia a voz de seu pai e também a voz das criadas do lado de fora do quarto. Já escutava o tilintar da chave mestra que a governanta possuía e...

"Eu quero! Eu quero!" – Spinel fazia entre as coisas que dizia, um som diferente, como o rosnado gutural dos felinos, um rosnado, uma expressão que fazia surgirem seus dentes muito brancos no meio do rosto, e ele desta vez agarrava um bibelô e o estourava de encontro ao chão, bem perto dos pés de Eriol, que sentiu os cacos resvalarem sobre o couro de seus sapatos. – "Eu quero!"

"Eriol, que diabos está havendo no seu quarto?" – Era a voz de Quincey novamente. Desta vez ele não estava batendo na porta, ele deu um murro sobre a madeira, e Spinel Sun simplesmente não se calava de modo algum e...

"Está bem! Está bem! Eu vou levar você para brincar com o Paul, amanhã! Mas fiquei quieto!" – Sussurrou para Spinel Sun, que já preparava-se para jogar um candelabro de porcelana no chão. Sentia-se apavorado de que alguém mais presenciasse aquela visão do inferno de louças e vidros quebrados.

Spinel Sun ficou imóvel onde estava, piscando. Estava sorrindo, vencedor e travesso. Deixou o candelabro de volta na cômoda e correu na direção da porta, como se assim fugisse de algum castigo de Eriol pela bagunça que fez, agora que havia conseguido o que queria. Eriol foi logo em seguida e abriu a porta, e quando fez isso e a luz do corredor iluminou mais ainda seu quarto, e viu Spinel Sun correr para fora, mas não viu um menino e sim um gato. Quincey olhou para ele por um momento antes de dirigir-se a Eriol, quase todas as criadas da casa em torno da porta, ansiosas em saber que guerra estava sendo travada que a casa inteira parecia sacudir.

"Não me diga que foi o gato..."

"Foi o gato. Eu juro que foi o gato, pai. Ele ficou furioso comigo e começou a atirar tudo o que havia encima dos móveis pelo chão. E inclusive encima de mim..." – E era a mais pura verdade o que dizia. Tinha certeza absoluta que desta vez levaria uma surra.

Seu pai entreolhou-se com as criadas. Spinel Sun havia pulado para dentro de seu cesto, embaixo de um console, no corredor, e estava olhando para eles. Uma das criadas lembrou-se de uma manhã em que estava atiçando o fogo do fogão, na cozinha, quando viu aquele "gato que era um servo do demônio" subir encima de uma cadeira, "na forma de um duende negro e chamuscado, de dentes pontudos", para derrubar as panelas pelo chão e correr em seguida.

"Ora, cale a boca..." – Quincey perdeu a paciência e as criadas afastaram-se um pouco, quando ele mandou que fossem dormir.

"Deveria chamar um padre! Este lar é de infiéis! O mal reina nesta casa! Este povo do oriente não conhece a Palavra de Deus e..." – A governanta apressou-se em dizer, e o que ela dizia, era o mesmo em que as outras acreditavam, em relação às origens daquela família.

"Eu deveria chamar a polícia para trancafiar num hospício um bando de mulheres histéricas que vê o demônio em tudo, quando tudo o que desejam é um demônio no meio de suas pernas...! Sumam daqui, bando de alcoviteiras!" – Ele falou alto, mas não chegou a gritar, mas mesmo assim, sua voz foi um estouro no silêncio do corredor, fazendo Eriol estremecer e Spinel Sun encolher-se dentro de seu cesto. Expulsou-as com palavras duras, e fez com que elas corressem para as escadas quase gritando quando fez que ia avançar em sua direção.

Quando viu-se sozinho com Eriol mais uma vez, no fundo de sua consciência sentiu-se mal por ter dito aquelas coisas – ainda que tivesse razão de estar furioso com as asneiras que ouvia das criadas – na frente do filho. Não queria dar um mau exemplo a ele, e sabendo ser inútil justificar o que havia feito, respirou fundo e achou melhor fingir que nada havia acontecido. Eriol estava com olhos arregalados de espanto, porque não costumava ver seu pai tão irritado.

"Quer dizer, Eriol... Que o gato foi o responsável por esse barulho?" – Ele dirigiu-se até o console e abaixou-se, puxando o cesto e segurando nas mãos Spinel Sun, trazendo-o no colo. – "Spinel Sun não é um gato pequeno demais para fazer um estrago tão grande?"

Apesar do absurdo, Quincey sabia que ele não estava mentindo, e por mais arteiro que ele sempre houvesse sido, era estranho pensar que havia quebrado de propósito todos aqueles objetos. Entendeu Spinel Sun para o colo de Eriol, que tudo o que conseguiu receber foi um arranhão no dorso da mão e um rosnado pretensioso demais para um gato tão pequeno. Spinel Sun ficou, portanto, no colo de Quincey e todos eles ficaram em silêncio por um momento.

"Ele parece bastante furioso com você, de fato..." – Observou, vendo que o arranhão na mão de Eriol não fora feito por brincadeira. – "Agora diga-me a verdade."

"Spinel Sun derrubou as coisas pelo chão."

"Por que ele faria isso, Eriol?"

"Porque ele quer passear amanhã e eu quero ficar em casa."

Quincey não conteve um sorriso de perplexidade. Olhou bem para Spinel Sun, que já subia no seu ombro, escalando com as unhas o seu colete de cetim brocado. Conteve a custo sua curiosidade de saber como Eriol tinha tanta certeza do que o gatinho queria. Mas crianças são sempre crianças...

"Saia com ele, o que há de errado?"

"Mas..."

"Saia com Spinel Sun, vão brincar um pouco... Colham cogumelos, brinquem com as ovelhas... Que mal há? Mas voltem cedo. Sua mãe chegará à tarde, e quero vê-los limpos aqui quando Eloise atravessar os portões."

"Mas..."

"Faça o que o seu..." – Difícil manter-se sério para dizer isso, e impossível não lembrar de Eloise tratando Spinel Sun como uma criança... – "... O que o seu irmãozinho pediu. Veja o tamanho dele. É só um bebê."

"Sim, senhor."

"Melhor assim. Agora vá dormir."

"Boa noite, pai. Sua benção."

"Deus o abençoe, Eriol."

Impotente, Eriol, antes de entrar no quarto e receber um último afago sobre a cabeça, viu que seu pai colocava Spinel Sun no cesto debaixo da mesa e o empurrava para o lugar. Spinel Sun também recebia um afago, e lembrou-se que era assim o carinho de Spinel Sun para com Paul. Lembrar-se dele fez seu coração doer. Não fechou a porta do seu quarto, sabendo que Spinel Sun, assim que Quincey fosse embora, viria. De fato, não demorou nada, para que Spinel Sun entrasse correndo no quarto e se jogasse na cama. O arranhão na mão de Eriol estava um pouco ardido, mas isso não o magoou. Pelo contrário. Quincey pareceu acreditar que a bagunça fora feita de fato pelo gato. Os cacos de louça e vidro estavam pelo chão. No dia seguinte alguma criada viria limpar tudo isso. Neutramente, e em silêncio, Eriol foi para o quarto de vestir e trocou de roupas. Depois trocou as roupas de Spinel Sun para dormir. Apagou as velas e o lampião.

"Vamos mesmo brincar com o Paul, Eriol?"

"Sim..."

"Você está triste comigo, Eriol?"

"Com você não. Mas eu estou triste..." – Deitou-se do lado de Spinel Sun, na cama, esperando que ele não começasse com suas brincadeiras de todas as noites, e ficasse pulando no colchão, bagunçando os lençóis e os travesseiros. Lembrou-se de Quincey lembrando-o de que ele tinha apenas onze anos. Eu sou apenas um menino, pensou consigo mesmo, desejando que sua mãe estivesse em casa para poder ficar ao lado dela, sabendo que ali tudo estaria bem. O que eu quero fazer não pode ser feito por um menino..., pensou, com certa aflição. – "Estou muito triste, mas não é por sua culpa, Spinel Sun. Você viu como as criadas correram quando meu pai as espantou?"

"Sim, sim! Mas... Eriol..." – Ele riu com vontade, batendo as mãozinhas sobre as cobertas.

"O que é?"

"O que é 'demônio entre as pernas' que o homem grande disse que elas queriam?"

Eriol engasgou. Tossiu um pouco, lembrando das conversas dos alunos mais velhos, que escutava pelo pátio do colégio...

"Quando você crescer você vai saber." – Respondeu, uma vez que ele próprio não entendia completamente o sentido disso.

"Quando eu crescer eu vou ter a minha mãe só para mim." – Disse, antes de fechar os olhos.

Eriol tentou ignorar o ciúme que sentia quando escutava isso.

Esperou Spinel Sun dormir e então desceu da cama. Como tornava-se cada vez mais comum de fazer, meteu a mão entre o estrado da cama e a beirada, por debaixo dela, e encontrou o que queria. Pegou um dos diários do filho do barão, e sem fazer nenhum barulho, foi para o quarto de vestir e acendeu uma vela no candelabro da parede. Fechou a porta e arrastou um baú para perto da parede, quase embaixo de onde estavam as velas e sentou-se, escorando as costas na lateral de um armário de madeira escura. Quando sentiu que estava absolutamente sozinho e no silêncio quebrado apenas pelo ruído dos grilos lá fora, respirou fundo e abriu o diário na página em que parara.

Havia esquecido seus óculos do lado de fora, mas era tarde demais para parar. Estreitou os olhos e mesmo assim, leu e releu aquelas linhas. Lia em silêncio, a princípio. Depois, lia em voz baixa, como se lesse para alguém. E logo sentiu que escutava uma voz que não era a sua lendo com ele, e o que escutava não era o que lia. Parou de ler e olhou ao redor. Era uma voz muito parecida com a voz de seu pai. Parecia a voz de Quincey, na verdade, mas num tom mais baixo, como um sussurro. Tinha certeza de que seu pai não estava ali. Tinha certeza de que aquela voz não poderia vir de lugar algum senão sua imaginação. E o que lia o assustava. Encolheu-se encima do baú, e de repente teve a impressão de que não estava mais sozinho e que este alguém estava bem ao seu lado, e Eriol olhou rapidamente nesta direção. Não era nada, apenas uma impressão deixada por roupas em um cabide de pé. Engoliu em seco.

Foi abaixar-se para pegar um casaco que estava quase escorregando de cima do baú e o livro tombou no chão, de quina, com um baque surdo. A encadernação soltou-se, o miolo costurado indo para um lado e a capa de couro velho, para outro. Pegou ambos, com cuidado, sentindo a aspereza da goma arábica seca na lombada do miolo costurado. Deveria ter algum vidro de cola em algum lugar. Sua bolsa de colégio estava ali, deveria ter deixado por perto dela o vidro de cola. Não. Lembrou-se de que ele estava do lado de fora, perto de seus óculos. Mas porque tanta preocupação? O dono daquele diário estava morto havia mais de cem anos. Certamente ficaria furioso ao saber que seus diários caíram nas mãos de duas crianças bisbilhoteiras.

Ao pensar nisso, de repente Eriol sentiu uma vontade tremenda de rir, sem nenhuma razão. Não havia piada alguma. Ou talvez houvesse. Talvez a piada estivesse nele mesmo. Mas nada disso fazia sentido, porque enquanto ria, olhando para aquele livro desbandado e velho, escutava um outro riso, que era um riso baixo de adulto... Olhou novamente ao redor e em seguida para o livro em suas mãos. O miolo em uma e a capa em outra. Ainda continuava escutando o riso que não era seu. Pestanejou e abriu a capa para encaixar o miolo, pelo menos até o dia seguinte, e enquanto olhava a capa dura, aberta, viu que entre o papel do forro da encadernação e o papelão duro e amarelado da capa, havia uma folga e uma ponta de papel saía para fora. Deixou o miolo de lado por um momento e olhou de perto para a ponta do papel. Se ao menos seus óculos estivessem ali... Passou a ponta do dedo sobre o papel e ele esfarelou, soltando alguns pedacinhos, não maiores do que migalhas. Mas foi apenas a ponta que se desfez, assim que conseguiu segurar a beirada, tentou rasgá-la, como se fosse uma rebarba, mas escorregou, e logo mostrou-se como algo que fora posto ali deliberadamente. Lentamente trouxe-o para fora, e assim que teve o papel em sua mão, olhou ao redor como a certificar-se de que estava sozinho, e se aquela sensação de antes o havia abandonado. Ainda sentia que não estava sozinho no quarto de vestir, e isso o incomodava. Sabia que estava com medo do escuro e sabia que não havia motivo para disso. Olhou o papel e lentamente o desdobrou, e era fino como papel de arroz, mole como papel de seda, e salvo pelas beiradas, era bastante resistente e fibroso. Tratava-se de uma carta? Aproximou o papel do rosto, cheirava a mofo e antiguidade. A caligrafia era clara, um tanto rebuscada demais e fazia lembrar a de alguns dos professores mais antigos e tradicionais de seu colégio, e era perfeitamente legível, embora o topo estivesse borrado, como se a umidade ou água, houvesse feito a tinta violeta dissolver-se em círculos desbotados. Havia partes ilegíveis, mas a maior parte da carta estava intacta. Era uma carta escrita em um inglês antigo e difícil de interpretar, mas as palavras eram simples, os termos eram muito diretos. Respirou fundo para tentar captar se o perfume que sentia exalava de debaixo do cheiro de papel velho daquela carta, ou se vinha de outra coisa. Mas do quê, se estava sozinho ali e aquele quarto sempre tivera o cheiro neutro da alfazema das roupas?

Eriol então começou a ler, com o mesmo prazer que têm as pessoas que abrem uma correspondência que não lhes pertence e com a mesma surpresa de descobrir ali algo que na verdade parece ter sido escrito para elas...

x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x

(...) encontrar-nos aqui? (...) tempo. (...). Não creio que você deva se surpreender. Estamos sós aqui, em lugar algum, no escuro de um lugar que não consigo ver qual é. Você me terá bem ao seu lado. (...) nome em lugar algum. Não é preciso relutar. Não cometa novamente um erro que já foi meu. Nós estamos tendo uma chance que é valiosa demais para ser desperdiçada.

(...) por mim. Você me conhece, eu nunca serei um estranho para você. Minhas palavras também não serão estranhas. Eu era jovem quanto você quando (...). Agora nós estamos aqui, eu gostaria de ajudar, mas você deve escolher, se quer dar este passo (como eu fiz), ou após ver o que (...) afinal queimar esta carta. (...) então desista (...) tarde demais. Mas antes de qualquer coisa, não tenha medo. Jamais permita-se conhecer o medo, aquele medo que o deixe paralisado. Nós não somos assim. Nós nos deixamos como uma folha ao vento. Sem medo de cair ao solo, sem medo de se erguer no vento. Talvez (...) fim na correnteza de um rio, ou na lama. Eu estarei sempre aqui. Estarei sempre aí. Estarei sempre com você.

Não levante sua cabeça agora que chegar a estas linhas. Apenas levante seu rosto quando chegar ao final. Não pare antes de chegar à ultima palavra. Não duvide de que eu estarei ao seu lado. (...) o que fazer? Não existe o certo ou o errado, quando é a coragem o fogo que tempera o aço da sua alma. Não (...) o conhecimento de que acha que precisa. Não pergunte. Não olhe ao redor agora. Não se atreva a me esquecer. Não se atreva a queimar os livros que roubou antes de terminar de ler e entender o que há neles. (...) O conhecimento que há neles é muito caro. Lembre-se do quanto custará caro a sua vaidade, o quanto custou a mim. Não se esqueça antes de se lembrar de que o preço é alto. Eu era jovem e (...) e agora nós (...) estaremos sempre juntos. Todos nós deveremos estar juntos novamente, quando a hora chegar. Tenha coragem, a coragem que eu não tive e agora deverei ter.

(...) procure-a e mantenha-a consigo até o fim. (...) tempo (...) por mais (...) impressão (...) o trairá. Não tenha piedade, mas saiba que (...) ninguém a terá por você. (...) preço alto e (...).

Não tenha medo de estar só, você nunca estará. (...) menino de ébano, a pantera negra. (...) olhos azuis (...) Saiba escolher, você saberá o que fazer, mas não poderá fazer sozinho. Saiba escutar, isso é valioso. Saiba decidir a (...) . Um dia nos veremos novamente e você saberá quem eu sou. (...) custará caro. (...) vermelho (...) o vermelho. Vermelho s... (...). Lealdade (...). Sentirei falta de você, sentirei falta de mim mesmo. Espero de você a prudência que eu não tive, não pise onde eu pisei, mas olhe onde ficaram minhas pegadas para que nós não cometamos este erro. Não levante os olhos ainda. Um dia você levantará os olhos e nós nos veremos novamente. Antes disso, nós deveremos esperar, e nós não devemos apressar nada. Você os verá novamente, verá a mim, verá a todos os outros, e antes de vê-los, saberá o nome de cada um deles. De cada um de nós. Saberá o meu nome. (...) O meu nome é o seu nome, e o rosto que um dia você temeu um dia será o seu. Você será o que você temia. Você será. Você verá. Eu estarei com você neste dia e em todos os outros até qu (...).

(...) fim chegar. (...) olhar. (...) maneira que (...).

L. M. C.

x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x

Eriol chegara ao fim da carta. Seu coração estava em disparado e sentia um enjôo terrível, sabia que o ar do quarto de vestir estava abafado e quente, mas mesmo assim suava frio, o papel tremia em suas mãos e sem querer o amassou, esfarelando suas beiradas. Não conseguia tirar os olhos do papel, não conseguia deixar de pensar que aquela carta de alguma maneira parecia endereçada a ele. Como saber? Coincidência? Não poderia ser coincidência. Fosse quem fosse, que houvesse escrito aquilo sabia quem ele era, e mesmo falava de Spinel Sun naquelas letras violeta. Menino de ébano. Eriol tapou a boca com força para não vomitar, embora não houvesse sequer o quê. Não conseguia levantar os olhos e nem a cabeça. Estava muito escuro. Já devia ser madrugada, ou quase. Eu estarei sempre aqui. Engoliu em seco, sua garganta ardendo e seus olhos também. Estava tão apavorado que não conseguia mover-se do mesmo lugar. Mais do que quando descera ao porão e vira aqueles esqueletos, vira os olhos azuis dentro das garrafas, encontrara Spinel Sun... Desta vez não conseguia ter reação alguma, não conseguia nem respirar mais fundo. No porão havia conseguido fugir. Aqui não havia para onde fugir. Estava em sua própria casa, em seu quarto e sentia que a mesma coisa que estava tão perigosamente perto de si no porão estava aqui também, como se houvesse chamado sua atenção, como se ela sempre houvesse estado lá, apenas aguardando o momento de aproximar-se dele. Sentiu um fio de suor gelado descer por sua têmpora, pelo meio do cabelo. Não olhe ao redor agora. Eriol teve forças de mover os olhos apenas um pouco sobre o chão escuro. A madeira era toda de uma única cor, não havia nada ali que pudesse produzir uma sombra, exceto a vela do candelabro da parede que estava agora pena metade. Eriol reconheceu sua própria sombra no chão, com um entrecortado suspiro de alívio. Tinha de ter certeza de que estava só para tentar controlar seu medo. Pensou em Spinel Sun, que estava dormindo sozinho no quarto. Olhos azuis. Sentia, sabia com toda a certeza de que não estava só no quarto de vestir, ou pelo menos sabia que havia algo esperando-o do lado de fora. Temeu por Spinel Sun, que era pequeno demais para qualquer coisa. Mas e ele que sentia tanto medo que não conseguia mover-se do lugar? Seus olhos corriam pelos contornos da própria sombra no chão, que ondulava brevemente com a chama. Mas estremeceu com violência, cerrando os dentes com força e sua mão também, terminando de esmigalhar o papel, quando viu que a sombra no chão não era apenas a sua.

CONTINUA