A Sombra e a Escuridão

Capítulo 7

"Pode abrir os olhos agora."

Eriol ficou olhando para o vazio, pensando no que havia feito. Não se atrevia a olhar para ele agora. Tudo dera errado, tinha certeza. Sabia muito bem o que aconteceria se fosse assim, e algo lhe dizia que era. Não enxergava o escuro do quarto, não enxergava mais a cama e nem as formas que ondulavam com a luz da vela. Enxergava que havia acontecido. Não queria pensar no quê.

Spinel Sun estava ficando impaciente e começou a sacudir Paul.

"Não faça isso, vai acabar derrubando-o da cama!"

"Esse preguiçoso dormiu! Não acredito que ele dormiu no meio da brincadeira!" - Estava muito aborrecido com isso.

"Paul! Acorde..." - Na verdade ele não parecia estar dormindo, ele parecia de fato morto. Estava gelado.

"Por que ele não quer acordar, Eriol?" – Voltou-se para ele, falando quase num rosnado, um som parecido com o que fazem gatos pequenos quando rosnam. – "O que você fez com ele, Eriol! Você disse que era só brincadeira!"

"Mas..."

"Você machucou o Paul!" – Exclamou, agora em um ameaçador tom de queixa, furioso. – "Por que ele não quer acordar?"

Eriol engoliu em seco, procurando ver o que poderia estar errado. Fácil. Estava tudo errado. Talvez não devesse ter feito nada daquilo. São coisas de adultos, não de meninos.

"Não sei!" – O olhar de Spinel Sun estreitou-se, ele não parecia mais tão inofensivo, ou apenas magoado. – "Não olhe para mim assim, eu não sei!" - Eriol sacudiu-o pelo ombro, um pouco mais vigorosamente.

Afastou a mão, olhando perplexo. Nada havia acontecido. Por um lado sentiu alívio, por outro, um peso maior ainda, o peso de ter falhado com Paul. Não conseguia saber se ele estava respirando e nem sabia se estava morto, mas era a impressão que tinha.

De repente Paul respirou muito fundo, muito ruidosamente, fazendo um chiado, como o som de um afogado que consegue puxar o ar novamente. Nisso, ele sentou-se bruscamente na cama, respirando muito forte, apressadamente.

"Ah... Desculpe, Eriol... Eu acho que eu dormi...!" - Ele falou, foi a primeira coisa que disse, quando acordou. Esfregou os olhos como se estivesse mesmo dormindo antes, mas algo dizia a Eriol que não estava. - "Eu estraguei a brincadeira?"

"Não. Está tudo bem. Como você esta se sentindo depois de dormir?"

"Com fome." - Disse, fazendo uma careta. - "Com muita fome."

Eriol sorriu e lembrou-se de que ele não deveria estar sentado daquela forma e nem falando com tanta disposição depois de ter visto o que havia no seu peito. Pediu licença e abriu novamente o pijama dele. Não soube se o que sentiu foi um susto ou medo, quando viu as linhas dos pontos caídas sobre o lençol branco.

Spinel Sun olhava para Paul bem de perto, como se o estivesse cheirando ou tentando reconhecer. De repente Paul pareceu lembrar-se de algo e olhou para a palma das mãos.

"Onde está a minha borboleta, Spinel Sun?"

"Eu não sei." – Olhou ao redor, arregalando os olhos. Arranhou a cabeça, e subitamente pareceu ficar triste ao encarar Paul. – "Você sabe onde ela está, Eriol?"

Ele engoliu em seco, sentindo-se sem forças. De alguma maneira aquilo parecia ter sugado dele toda e qualquer energia. Riu, porque também não sabia onde estava a borboleta de papel, e acabou pensando naquela outra, que havia ido embora do seu quarto pela janela. Seu riso sumiu ao refletir que não estava lidando naquela noite com uma borboleta de verdade, e que este menino à sua frente também não era mais um menino de verdade...

"Eu também não sei..." – Suspirou, cansado. – "Não fique triste. Ela ainda está aqui. Escondida, eu acho. Mas ela não foi embora. Acho que agora ela continuará com você, mesmo que você não a veja."

"Ah, Sim..." - Ele pareceu conformado, mas não sorriu quando assentiu. Pareceu levar as palavras de Eriol muito à sério, quase à sério demais para a sua idade. Spinel Sun agarrou sua cabeça, num abraço desajeitado.

"Paul, você não está sentindo nada?"

"Não."

"E a dor? A dor passou?"

Ele fez que sim, alegremente. Continuava com uma aparência horrivelmente magra a pálida, doentia, mas um pouco de cor voltara a seus lábios ressecados e rachados. Seu peito estava sem marca alguma, não havia nem uma única sombra de ter havido um corte tão feio quanto aquele de antes. Eriol olhou cuidadosamente para seus pulsos finos, de ossos aparentes e mesmo pegou a vela para olhar melhor. Os hematomas haviam sumido também. Sem querer, ou conseguir se conter, acabou deixando um soluço escapar, alarmando os dois pequenos.

"Não é nada. Eu nem sequer estou triste. Ou eu acho que estou... Mas não sei o motivo." - De repente Paul esticou os braços para ele, como se pedisse colo, mas assim que Eriol se aproximou, na verdade ele recebeu um caloroso abraço.

"Você fez a dor passar!"

"Vamos logo, Paul." - Era a voz autoritária de Spinel Sun, enquanto ele pulava de cima da cama para o chão e puxava Paul pelo pijama para que ele descesse também.

Eriol desfez-se do abraço, sentindo o rosto pegar fogo, e até um pouco tonto. Nada parecia ter dado errado. Não tinha como saber se ele havia estado há três dias sem comer, bebendo no máximo água ou se alguém não o havia molestado (Eriol não entendeu esta parte, quando a leu no diário, que havia sido escrito por um adulto, porém imaginou que não fosse algo bom...). Levando em conta a sua magreza e palidez, não podia ter muitas dúvidas sobre o jejum absoluto.

"Estou com fome. Vamos para casa comer:" - Spinel Sun parecia ter muita pressa em ir embora e uma obstinação completa em levar Paul consigo, sem nem mesmo perguntar a Eriol se era isso o que iria querer.

"O... O quê?"

"Eu disse que eu vou voltar para casa e quero levar o Paul comigo. Nós vamos comer biscoitos!"

"Mas você não pode levá-lo assim!"

"Por que não?"

"Por que ele estava doente."

"Agora ele não esta mais. Você quer ir para casa comigo, Paul?" - Ele segurou Paul pela mão e foi na direção da janela, já abrindo-a.

Ele assentiu vigorosamente. Parecia perfeitamente bem, melhor do que nunca havia estado, apesar de tão magro e pálido, mas... A aparência de Spinel Sun estava quase pior do que a dele quando o encontrara naquele porão. Talvez não houvesse o que pudesse se preocupar agora.

"Você não vai conosco para casa?" – Spinel Sun perguntou, já subindo para a beirada da janela.

Como discutir com ele? Eriol perdia as discussões para um garotinho de cinco anos, era difícil acreditar.

"Você vai explodir de tanto comer biscoitos, Spinel Sun!"

Ele parou, sentado sobre a pedra, parecendo bastante alarmado com aquela ameaça. Eriol pegou a sacola, metendo de qualquer jeito dentro dela o livro, e pegando seu casaco que estava encima da cama.

"Então... Então eu vou explodir de tanto comer biscoitos!" - Ele declarou, decidido a fazer isso, e colocou uma das pernas para fora da janela, procurando um jeito de pular. E Paul ria daquela discussão. Seu riso era límpido, ele não havia tossido uma única vez até agora.

"Então exploda!" - Devolveu, irritando-se de vez por nunca se fazer respeitar por ele.

"Vamos, Paul. Vamos comer até explodir." - Provavelmente Spinel Sun não entendia o significado do que estava falando. Deu a mão para ajudar Paul a subir, e Eriol ajudou-o, suspendendo-o para sentar-se também na pedra da janela. O céu clareou um breve instante com outro relâmpago, mas continuava escuro, notou. Talvez houvessem saído de casa mais cedo do que imaginava. Escutou um estalo e imediatamente escutou também um rangido. A porta.

Olharam na direção da porta, e uma robusta e grisalha enfermeira ia entrando, trazendo uma bandeja de aço, igual a em que Eriol havia acendido a vela dentro - e que continuava acesa, e foi a primeiro coisa a chamar a atenção da enfermeira quando ela entrou, logo em seguida olhando para a cama vazia e para eles, que tentavam apressar- se e com custo Eriol conseguia fazer Paul pular para o lado de fora. A enfermeira gritou para que parassem e gritou também pelas outras e logo havia uma gritaria pelos corredores, que ecoava para dentro do quarto e de repente as luzes do corredor fora, acesas, um rumor de vozes se elevou e quando Eriol ia subir na pedra para sair também, a enfermeira o agarrou pela gola da camisa.

"Sua peste, o que pensa que esta fazendo?"

Ela era muito maior do que ele, quase tão grande quanto um homem e o puxão que dera em sua gola quase o engasgara. Ele caiu no chão, a sacola indo parar no meio do quarto e ele batendo as costas no duro chão de ardósia. Logo outra enfermeira, magra e mais alta, acendia as luzes do quarto.

"Diabos, responda, sua peste! Vou arrancar seu couro à pancadas, moleque dos infernos!" - Ela estava furiosa, e ficou mais ainda quando viu que Paul estava do lado de fora. Mas ela não podia seguí-lo, então gritou para dois enfermeiros irem buscá-lo. Mas assim que ela afastou-se da janela, soltou um grito, do qual Eriol não soube o motivo, porque agora a outra enfermeira, que havia acabado de entrar o estava arrastando pelo cabelo, pelas roupas, debaixo de safanões, pelo quarto, tentando levá-lo para o corredor.

A enfermeira gritou de novo e de novo, até que ele conseguiu entender o que ela estava dizendo:

"Acudam! É o demônio! Acudam! Misericórdia!"

Tentou virar a cabeça na direção dos gritos, mas não conseguiu. Um safanão em cheio em seu rosto o fez quase desmaiar, um estalo de dor o manteve acordado, somente. Conseguiu ver as pernas de mais dois enfermeiros entrando pelo quarto, e um deles o pegou pelo braço, como um fardo mal cheio de grãos, e o jogou no chão. Eriol soltou um grito de dor, porque o lado de sua costela foi em cheio em uma das pernas da cama de ferro, que embora pesada, a pancada de seu corpo contra ela fora tão forte que a fez sair do lugar. Com isto, perdeu totalmente o senso de direção e o ar, além do equilíbrio. Com custo conseguiu olhar ao redor, e viu a primeira enfermeira que havia entrado no quarto gritando, tentando livrar-se de alguma coisa, e a outra, a magra que o havia arrastado, ela de repente ficou pálida, ao tentar ajudar a outra, e recuou, com a boca horrivelmente aberta, como se não tivesse forças de gritar, mas não conseguiu ver o que era. Enquanto tentava levantar-se, o mesmo enfermeiro que o jogara contra as pernas da cama o derrubou de vez com um chute, que o fez dobrar-se completamente sem ar. E mais outro. E estava quase achando que ia morrer, quando viu somente um esguicho de sangue passar na frente de seus olhos, como se em uma velocidade muito mais lenta do que o normal. Talvez fosse a dor do espancamento, ou o nervosismo daquela gritaria.

Imediatamente quando aquele jato de sangue voou pelos ares, Eriol conseguiu livrar-se do enfermeiro, ou ainda: o enfermeiro afastou-se dele, e o outro também saiu do quarto, e gritando algo que Eriol não conseguiu entender.

Escutou uma voz diferente, e desta vez conseguiu levantar a cabeça para olhar. Sua vista estava turva, ainda que o quarto estivesse iluminado, e a primeira, coisa que fixou, foi uma grande mancha de sangue espalhada na parede, que lhe pareceu chocante, no meio da parede branca. Olhou para trás, tentando encontrar apoio em algo, e viu uma das enfermeiras desmaiada, o avental manchado e a outra gritando, retorcendo-se no chão, com um ferimento na perna que deixava escapar tanto sangue que o piso todo estava sujo. Então conseguiu ver Spinel Sun, terminando de cuspir alguma coisa no chão. Eriol olhou e seu estômago contraiu- se ao ver que era um pedaço de carne, um pedaço da perna da enfermeira, junto com um pedaço do tecido branco de suas roupas, que fora arrancado.

Spinel Sun olhou para Eriol e correu em sua direção, agarrando-lhe a roupa e dando-lhe um puxão tão forte que o fez mover-se do lugar e depois outro, que o fez conseguir impulso para colocar-se de pé. Era a força de um adulto. Ele arrancara um pedaço da perna da enfermeira e Eriol quase pensou se a outra não estaria morta. Não, estava apenas ferida, o sangue em seu avental era da outra. E aquela mulher não parava de gritar.

"Paul! Onde ele está?" - Lembrou-se, apertando o estômago dolorido, e sem conseguir parar de alternar olhares entre o pedaço de carne ensangüentada caída no chão e Spinel Sun, que tentava limpar o sangue em seu queixo, quando iam de volta para a janela.

"Ele se escondeu" - Quando falou, seus dentes eram perfeitamente visíveis no rosto negro. Eram afiados e longos, muito diferentes do que Eriol vira até aquele dia. Seus olhos estavam arregalados, e deveria estar apavorado com toda aquela gritaria, que inclusive, não havia cessado.

Os gritos continuavam pelo corredor. Eriol voltou para a porta e estava tentando fechá-la, para ter certeza de que ninguém mais entraria, pelo menos para tentar retardar outra confusão pior ainda, mas em vão. Quando estava quase conseguindo virar a chave no trinco, um empurrão fez a porta abrir-se de novo, e quase o jogou no chão.

"O que estão fazendo aqui?" - Uma voz que parecia um estouro ecoou no quarto. Eriol olhou para cima e não viu imediatamente quem era. - "O que esta havendo aqui? Onde esta o menino Crowley?"

Eriol fixou a vista e não conseguiu deixar de sentir um estremecimento de pura raiva. Era o mesmo médico que cuidava de Paul. Conseguiu juntar fôlego e força para correr na direção dele e empurrá-lo, o fez perder o equilíbrio e cair, deixando a bandeja que estava em sua mão cair, uma seringa de vidro partiu-se contra a ardósia e as agulhas se derramaram no chão, e antes que conseguisse levantar-se, Eriol o atacava aos chutes e murros, que mesmo inúteis, serviam para irritar ainda mais o médico, que não conseguia livrar-se.

"Eriol!" - Era a voz de Spinel Sun, que o distraiu somente tempo o bastante para o médico empurrá-lo e levantar-se, indo em sua direção. O corredor estava perigosamente agitado, outros médicos e enfermeiras corriam para aquele quarto.

"Vai me pagar caro por este atrevimento, seu diabinho dos infernos" - A voz do homem era um rugido, quando ele foi atrás de Eriol pelo quarto - "Ah, maldito" - Ele gritou, levando as mãos aos olhos, desesperado.

Eriol deixou o vidro que tinha em sua mão cair. Ele bateu no chão e rolou. Não acreditava no que havia feito. Era o vidro de álcool que era deixado na mesa do lado da porta, ele havia atirado álcool encima do rosto do médico, que tateava tentando pegá-lo, e ao mesmo tempo tentando livrar os olhos, tão furioso que não media mais as palavras e deixava escapar os mais terríveis impropérios contra ele.

Eriol lembrou-se de tudo que Paul já havia passado naquele Sanatório.

"Sua peste;" - O médico gritou, quase agarrando-o quando Eriol pegou a bandeja onde estava a vela que deixara acesa, e a jogou na sua direção.

Não ficou para ver o que aconteceu. Um grito horrendo ecoou pelo quarto. Não quis olhar para trás, apenas firmou as mãos na pedra da janela e depois um dos pés, e se jogou para fora, a sacola na outra mão, e quase não conseguiu mais ficar de pé.

"Spinel Sun! Paul! Onde vocês estão?" - Olhou ao redor, sem conseguir ter muita noção de para qual lado deveria correr. As janelas do Sanatório estavam todas com as luzes acesas, e as luzes do alojamento também. O céu estava agora de um violeta pesado e cinzento no horizonte. Eriol tinha a impressão de que era aquilo o de pior que poderia ter acontecido a eles. O grito continuava. Eriol correu na direção das árvores do fundo do jardim, e escutou seu nome sendo chamado. Parou bruscamente, mesmo que visse enfermeiros indo naquela direção, vindo do alojamento. Olhou ao redor, até ver uma mãozinha pálida acenar do meio de um arbusto seco.

Paul parecia um fantasma, uma assombraçãozinha, naquele pijama branco, sentado no meio dos arbustos mortos, descalço, com as mãos e os pés sujos de terra. Eriol o chamou e ele correu em sua direção.

"Onde está Spinel Sun? Você o viu? Ele sumiu de dentro do quarto!"

"Ele continua lá"

"Onde?"

Eriol estava quase voltando, quando escutou um farfalhar de folhas entre as árvores. Era ele. Como havia conseguido?

Não havia tempo de perguntar, Eriol segurou Paul pela mão e o levou pelo meio das árvores. Não conseguia correr tão rápido, porque o pequeno não conseguiria acompanhar seu passo e ele mesmo não conseguia se manter endireitado para andar, porque seu corpo todo doía das pancadas que levara.

"Eu mordi ele, Eriol! Eu mordi o homem grande!"" - Para Spinel Sun, qualquer adulto era um "homem grande", mas ele gritava isso com tanto entusiasmo enquanto corria ao lado de Eriol, que chegava a ser de um prazer sádico. - "Eu mordi ele bem forte!"

Eriol não respondeu. Estava sem ar e quase tropeçou nos galhos secos do caminho. Escutava as vozes dos enfermeiros praguejando contra a lama que se acumulava na trilha, mas eles corriam por fora dela. Ainda não haviam nem chegado na alameda que servia de limite da propriedade da família. Estavam bem longe, inclusive. Seguir para lá por dentro da mata era o caminho mais longo. Deveriam ir pela estrada principal para chegarem logo, mas era claro que também deveriam estar procurando por eles ali. Era muita sorte que não tivessem cães atrás deles.

"Eu mordi! Eu mordi!" - Spinel Sun estava felicíssimo, embora não se soubesse quem ele havia mordido. Ele apenas repetia aquilo, trazendo seu feito com um troféu. Paul soltou uma exclamação de susto. Escorregou quando tropeçou em uma raiz de faia e caiu. Estava agora todo sujo de lama, e quando tentou ajudá-lo, Eriol caiu também. Não tinha forças de suspendê-lo do chão, então ficou ali, ao lado dele, arfando. Viu dois vultos brancos correndo pela mata seca, com lampiões nas mãos.

"Spinel Sun, esconda-se!" - Apontou para os enfermeiros. Continuou deitado na lama, com Paul. A lama fedia a madeira apodrecida. Estava talhada de folhas secas. Lembrou-se de que Paul estava vestido de branco, e tirou seu próprio casaco e o vestiu em Paul.

Spinel Sun havia sumido outra vez. Fez Paul continuar com a cabeça abaixada e nem ouvia a respiração dele. A lama estava gelada. Prendeu involuntariamente a respiração, quando os enfermeiros passaram mais perto. Estavam usando galochas e sobretudos de oleado, e um deles, o mais velho, estava com uma vara na mão, batendo com ela de encontro aos arbustos e moitas. Uma certa porção de mato não deixava que eles os vissem. Pura sorte. Outro relâmpago silencioso clareou o horizonte, só um instante.

"Você está machucado?" - Eriol perguntou, num sussurro que quase nem ele mesmo poderia escutar.

"Não." - Paul respondeu, tão baixo quanto. Estava bem quieto, o queixo encostado na lama gelada. Os enfermeiros estavam se afastando na outra direção. Era muito fácil vê-los agora, caso se levantassem.

"Quando eu levantar, nós vamos correr."

"Está bem, Eriol." - Havia folhas secas e lama no cabelo de Paul. Engoliu em seco. De tudo o que já havia acontecido naquela madrugada, esta talvez fosse a parte mais fácil.

Lentamente, apoiou um joelho e firmou-se nas mãos. Queria poder saber onde estava Spinel Sun. Era incrível como ele sumia rápido de suas vistas. Era apenas o tempo de um piscar de olhos.

Escutou os enfermeiros gritarem. Não importava, era a distração de que precisava para fugir. Levantou-se e disparou a correr com Paul ao seu lado. No entanto não havia apenas dois enfermeiros no meio da mata.

Eles não podiam parar de correr, mesmo que ambos vissem a luz dos lampiões do enfermeiros aproximando-se de onde estavam, quase à frente deles. Logo ali estava o choupo que havia brotado na beira da alameda que cercava a propriedade. Estavam quase perto de casa.

Pisavam em falso, o chão estava amolecido, escorregadio de tantas folhas e lama.

"Spinel Sun?" – Eriol chamou, olhando em torno.

Parou apenas por um instante, procurando-o nas sombras do bosque. Ele não estava em parte alguma. As luzes dos lampiões estavam mais próximas. Encolheu-se com Paul junto ao tronco de uma árvore. Não havia mais como correr. Eles eram apenas meninos. Paul agarrou-se no seu braço, ambos trêmulos de cansaço e medo.

Viu o mais velho dos enfermeiros aproximar-se, com uma expressão furiosa, e levantar a vara para acertar-lhe a cabeça. O outro vinha mais atrás, segurando os dois lampiões. Eriol fechou os olhos e encolheu-se mais para tentar proteger Paul. Porém, antes mesmo de fechar os olhos, escutou um rugido estridente e muito longo, que vinha de cima.

O homem deixou a vara afrouxar em seu punho e ele estremeceu, recuando um passo. O outro, boquiaberto, deixou os lampiões caírem no chão, as alças escorregando de suas mãos enluvadas, subitamente trêmulas. Eriol olhou para cima enquanto se levantava e trazia Paul para correr. Teria sentido tanto medo quanto os outros, se seus olhos não encontrassem Spinel Sun e não o reconhecesse de imediato. Ele havia arrancado um pedaço da perna daquela mulher no quarto do Sanatório. Agora ele estava pendurado no vórtice dos galhos da árvore, e o rugido estridente que escutara era o seu rosnado para os enfermeiros, que agora corriam de volta. A chama dos lampiões que haviam deixado cair se extinguia, sufocada pela lama. Ele se comportara como uma pantera de verdade. Agora estava ofegante, tão felicíssimo quanto antes, quando se gabava de ter mordido só Deus sabe quem quando fugiam.

"Como você chegou aí encima? Desça agora mesmo, não podemos ficar aqui!"

"Eu não sei descer" - Reclamou, balançando os braços para Eriol ajudá-lo.

Segurou-o e com custo conseguiu colocá-lo no chão. Depois correram, mesmo que as luzes dos outros lampiões estivessem perto demais para que tivessem segurança, mas mesmo assim não pararam. Escondiam-se no meio das árvores, entre arbustos, e finalmente atravessaram a alameda, que era estreita, mas agora parecia tremendamente larga. Voltaram para as sombras do bosque já do outro lado dela, e mesmo assim, já dentro da propriedade, os enfermeiros entraram em busca deles, e agora os viam mais claramente, porque o dia já era mais claro, apesar do céu estar carregado. Era impossível esconder-se ali. Estavam ainda por sair do bosque para chegar até onde pudessem ver a casa. E mesmo assim não era possível pedir ajuda, não havia a quem pedir ajuda, porque até mesmo o encarregado da criação de ovelhas não ficava daquele lado, e sim, do outro lado da propriedade, supervisionando os pastos, àquela hora. Já conseguiam ver o fim do bosque, as árvores ficando rarefeitas.

Paul estava ofegante, mas não reclamou, e nem pediu para que parassem. Eriol achava que ele sabia o que estava acontecendo, perfeitamente bem. E para Spinel Sun, era tudo uma aventura. Este sim, parecia não ter noção alguma do perigo que estavam correndo. Eriol escutou as vozes chegando mais perto e olhou por cima do ombro, quando estavam quase alcançando as rochas que demarcavam o fim do bosque. Teve a impressão de ter visto pessoas ali também, vultos negros, mas era fácil confundir-se, estava exausto, havia árvores menores no fim do bosque, e sentiu mais medo de encontrar com alguém ali do que de ser pego.

O bosque encontrara seu fim, agora havia o resto de mato alto, galhos e raízes trançados no chão, lama e poças de água no meio deles e por toda a parte.

Eriol tropeçou e rolou pelo chão, não viu mais nada. Com a queda, acabou fazendo Paul cair também, ao seu lado. Ficaram ali, no meio do mato alto.

"Spinel Sun! Spinel Sun!" - Gritou, olhando ao redor e não conseguindo ver onde ele poderia estar. Não havia mais onde se esconder, nem o que fazer a não ser esperar a perigosa aproximação dos homens que os perseguiam. Esfregou os olhos para tentar tirar a lama e a água que estavam neles e chamou mais alto. Mais desesperado. Arrastou-se pelo meio do mato, e puxou Paul para que ele fizesse o mesmo. Estava sem forças para fazer qualquer coisa que fosse. Sentiu os braços dormentes, e ficou simplesmente imóvel, esperando, como antes, que ninguém os visse, mas era tarde demais, os homens estavam apontando em sua direção, aproximando-se. Ouviu um miado próximo. Era Spinel Sun. Pegou-o, indiferente a ele estar coberto de lama e com algo na boca, e o segurou firmemente no colo.

Esperou. Ficou olhando para aqueles estranhos aproximando-se, muito mais furiosos do que antes.

"Cavalheiros, retirem-se de minha propriedade."

Não era um pedido, era uma ordem. Era uma ordem dada com firmeza, por uma voz que pareceu-lhe um fim de trovão. Olhou em torno e desta vez definiu que o que vira não eram troncos, eram pessoas. Uma delas era o capataz, Sr. Sullivan, que olhava para eles com curiosidade, as sobrancelhas ruivas unidas numa expressão intrigada. Estava em trajes de caça e segurava uma espingarda, que Eriol não precisava de esforço algum para saber que estava carregada. Havia uma pistola em sua cintura magra, também carregada, apenas esperando no coldre. Um vulto negro estava ao seu lado, e Eriol demorou bastante a reconhecê-lo.

"Eu disse para retirarem-se de minha propriedade." - Era Quincey, também em trajes de caça, e com um rifle, o qual ele tranqüilamente carregava. Desdobrou o rifle e engatou o cão. - "Ou eu terei o prazer de atirar."

Eriol não entendeu muito bem o que os homens responderam a Quincey, mas estavam apontando para ele e para Paul. Mas seja o que tenha sido, não pareceu agradá-lo muito. Ele Apontou e atirou. Os homens perguntaram se ele estava louco.

"Posso enlouquecer o quanto quiser e atirar em quem eu bem entender dentro de minhas terras." - A resposta foi dura e seca, resoluta. Ele carregou o rifle novamente e voltou a atirar, desta vez quase acertando o pé de um dos enfermeiros, que recuou e mandou o outro, mais jovem, desistir. Lançou um olhar cheio de raiva para Eriol.

"Você vai me pagar caro, seu filho da puta."

Desta vez Quincey não carregou o rifle, ele pegou o que estava na mão de Sullivan, apontou, disparou e não errou. Derrubou o homem com um único tiro. Eriol apenas estremeceu, enquanto cobria os olhos de Paul para que ele não visse aquilo. Um bando de pássaros levantou-se do bosque com o grito que escapou do homem que debateu-se no chão, com o ombro atravessado. O tiro praticamente arrancara-lhe um pedaço do ombro, a carne e os pedaços do oleado da sua capa estavam pendurados de uma maneira terrível.

Ele tombou de joelhos, tentando aparar os pedaços, o sangue, e o outro voltou para ajudá-lo. Eriol nunca havia visto, ou tido notícia de que seu pai fosse capaz de algo assim. Ele mandou secamente que Sullivan chamasse alguém para tirar aquele homem dali. Enquanto dava a ordem, carregava de novo seu próprio rifle, e o pendurou no ombro.

Eriol estremeceu, perdendo o ar definitivamente. O homem com ombro atravessado da bala ainda estava gritando, e nem seria preciso que o Sr, Sullivan fizesse algo para tirá-lo dali... Como por encanto, os dois pareceram lembrar-se do caminho de volta, e mesmo a passos lentos, foram embora por entre as árvores. Viu Quincey virar-se, de uma maneira indiferente, como se fosse embora. Ele engatou o cão da arma e disparou um tiro para cima, e este último tiro ecoou durante um tempo.

Seu hálito fumegava, Eriol notou, quando ele chegou mais perto. Descalçou as luvas, depois de ter posto o rifle no ombro novamente, e aproximou-se deles. O Sr. Sullivan veio logo atrás, tirando o boné xadrez e arranhando a cabeça ruiva, perplexo.

Spinel Sun mexeu-se no colo de Eriol, olhou para Quincey e soltou um ruído que não chegou a ser um miado, ele continuava segurando algo na boca que não se podia saber logo o que era. Eriol não disse nada quando foi içado do meio do mato, puxado pelo braço e posto de pé, com um gesto só de seu pai. Ficou imóvel, imaginando se não viria um tapa, uma palavra de censura ou algo assim. Quincey não disse nada. Parecia ainda mais alto agora, e mais sério do que nunca. Abaixou-se de novo e suspendeu Paul pelas axilas, era como um boneco magro, apenas o excesso de tecido com um pequeno esqueleto no meio. Mal lhe dispensou um olhar. Entregou-o no colo de Sullivan. Depois quando já começava a andar, olhou para baixo. Era Spinel Sun arranhando o couro de suas botas, tentando chamar a atenção. Havia conseguido. Quincey o pegou no colo e espalmou a mão, para receber aquilo que estava na sua boca, e fez isso com uma expressão curiosa, intrigada. Sullivan aproximou-se para olhar também.

"Meu Deus..." - O capataz deixou escapar, quebrando o silêncio, ao ver o que estava na palma da mão de Quincey.

Eram dois dedos humanos, um dedo mínimo e um anular, ainda inclusive com um anel.

Horrorizado, Quincey os deixou cair no chão, bem como Spinel Sun, que desta vez foi para o colo de Eriol, que o juntou. Puxando um lenço do bolso, Sullivan pegou os dois dedos que estavam no chão, embrulhando-os, com cuidado para que as crianças não os vissem. A base dos dedos estava dilacerada, como se houvessem sido arrancados.

"Dê-me aqui, Sullivan." - Pediu, olhando aquilo novamente. Tornou a fechar o embrulho no lenço e mesmo com uma expressão surpresa, guardou-o no bolso da casaca.

"O que vai fazer com isso?'

"Vou devolver ao dono." - Respondeu. Pegou Spinel Sun no colo novamente e o afagou. - "Foi um presente bastante criativo."

Eriol nem imaginava a quem teriam pertencido aqueles dedos. Paul estava no colo do Sr. Sullivan, com o polegar na boca, olhando ao redor, perdido dentro de um pijama e de um casaco imundos. Seu rosto estava sujo também. Os três estavam sujos. Começaram a andar na direção da casa, Quincey à frente, em silêncio, com Spinel Sun em seu colo. Eriol achava que tanto silêncio poderia ser considerado mau sinal, e talvez não estivesse errado.

"Eriol!" - Ele chamou, de uma maneira tão seca quanto havia falado qualquer coisa até o momento.

Ele aproximou-se de um pulo, mas não teve coragem de caminhar ao lado de seu pai. Spinel Sun estava agora cuidadosamente equilibrado sobre o ombro de Quincey.

"Beba um gole disto e não se atreva a cuspir ou tossir." - Empurrou-lhe uma garrafa de bolso que tirou de dentro da casaca. Eriol sabia o que era aquilo e porque deveria obedecer. Ele mesmo já não sentia as mãos, de tanto frio, e nem controlava seu tremor, além do cansaço e das dores pelo corpo, da surra que levara.

Desatarraxou a tampa prateada e olhou para o gargalo. Nunca havia bebido antes. Respirou fundo, fazendo força para não deixar a garrafa e nem a tampa caírem no chão. Obrigou-se a beber três goles grandes e longos, de uma só vez, tentando não pensar. Arfou quando sentiu o uísque descer queimando sua garganta e seu estômago. Teve vontade de tossir, de cuspir e até de vomitar aquilo, mas parou por um momento, fingindo não conseguir fechar a garrafa, mas na verdade tentava respirar. Imediatamente começou a sentir um pouco menos de frio e uma certa tontura desagradável. Entregou a garrafa de volta, e olhou para Paul. Estava imundo, à luz do dia parecia mais magro e pálido do que antes, e até mesmo lembrava um espantalho. O Sr. Sullivan o segurava no colo com cuidado, um tanto desconfortável, como se achasse que poderia quebrá-lo como a um boneco, no menor descuido.

Já estavam perto de casa. Mas não passaram pelo jardim, foram dar a volta na casa e ir pelos fundos, e Eriol pendurou, como sempre fazia, sua sacola no prego das tábuas das paredes do galinheiro. Tomava o máximo de cuidado para manter-se longe das vistas de Quincey, e nem teve coragem de levantar a cabeça quando o Sr. Sullivan se despediu deles, depois de deixar Paul no chão. O capataz desenrolou as rédeas de seu cavalo que estavam presas numa trave destinada a isso ao lado do cercado onde eventualmente ficavam as ovelhas para abate.

Escutou o passo dos cascos sobre o chão encharcado, e olhou. Logo ele apressou o galope, só podendo definir o movimento. Uma fina neblina começava a elevar-se pelos campos, da grama molhada. O céu ainda era de algum tom entre violeta e um branco leitoso, mas ainda não estava perfeitamente claro, como um dia deveria ser.

"Explique-se." - Escutou seu pai falar, sem entonação alguma, e era impossível saber o que se passava por sua mente.

"..." - Olhou para Paul. Se mentisse Quincey saberia. Se dissesse a verdade... Não, não poderia fazer isso também. Talvez uma meia-verdade, mas do que adiantava?

"Eu vi você sair de madrugada, quando ainda estava escuro. Eu estava limpando o rifle para ir caçar. Você saiu descalço, e escutei um grande barulho na cozinha. As criadas me contaram que... o gato derrubou as panelas."

"..." - Corou violentamente ao escutar isso. O que mais elas teriam dito?

"Se elas disseram que foi o gato, eu não tenho porque duvidar." - Disse. - "Agora explique-se, Eriol."

"Eu... estava com problemas."

"O seu problema começa agora, portanto. Primeiro de tudo, quem é esse menininho que parece um boneco de espantar corvos?"

"Eu... Eu não sei. Ele estava..." - Não acreditava na próprio descaramento da mentira que estava construindo ali. - "Perdido no bosque depois da alameda, fora da propriedade."

"E o que você foi fazer lá, tão longe? E sozinho?"

"Fui brincar com o gato... Como você me mandou fazer, pai."

"Apenas isso?"

"Apenas."

"Quer dizer que esta coisa que você trouxe para casa estava perdida, de madrugada, no frio e na lama?" - Quincey sacudiu a cabeça, pensativo. Estava surpreso. - "E o que você me diz daqueles homens que estavam correndo atrás de vocês? Eles pareciam bastante zangados."

"Eu não sei quem são."

"Exatamente onde você encontrou este menino?"

"..." - Pensou se valia a pena arriscar seu pescoço por causa disso. - "No jardim do Sanatório."

"O que diabos você estava fazendo lá?" - Sibilou, furioso, tão irado que não conseguia nem falar alto.

"Ele estava gritando por socorro, e estava fugindo de algumas pessoas."

"E o que você poderia dizer para explicar sobre isto que estava na boca de Spinel Sun?" - Ele agarrou Eriol pelo braço e o trouxe para perto com um puxão. - "Você viu o que é. Eu espero que explique como eles vieram parar aqui!"

"Eu não sei!" - Gritou de volta. - "Eles o estavam machucando!" - Apontou para Paul. Era evidente que estava passando fome, e não adiantava negar, porque seu pijama era um pijama de hospital. - "Tentaram nos pegar, mas nós fugimos!"

Quincey estreitou os olhos e voltou-se para Paul. Seu olhar foi tão intenso que ele encolheu-se como se fosse chorar. Cobriu a boca com as mãos. Ele todo estava perdido dentro daquele casaco velho e sujo.

"Isso é verdade, menino?"

Paul assentiu positivamente, realmente assustado.

Quincey ficou em silêncio, olhando fixamente para ele, como se lesse seus pensamentos. Eriol imaginou se seu pai não era mesmo capaz disso, pela maneira que encarava o pequeno. Sua expressão pareceu abrandar-se um mínimo. Ele pegou Spinel Sun e o entregou no colo de Paul.

"Hoje eu atirei em um homem, e bastou muito pouco para que eu o matasse. Não me arrependo disso. Eu deveria ter acertado a cabeça daquele desgraçado." - Suspirou, não parecendo, porém, menos furioso do que antes. - "Se o que você queria era ficar de castigo, Eriol, saiba que conseguiu."

Ele virou-se bruscamente e entrou, deixando a porta aberta. A cozinha estava um caos, e as criadas olharam para Eriol com certa admiração. Provavelmente elas escutaram toda a conversa. Eriol sentou-se no degrau de pedra e tirou os sapatos sujos. Ele entrou descalço, levando Paul pela mão. Ele ainda estava com Spinel Sun no colo, e ele soltou um chiado de ameaça contra uma das criadas que estavam mais perto de por onde eles passaram.

"Pai..."

"Sim, Eriol?" — Ele não estava tão longe assim, mas a casa estava mal-iluminada, mal o enxergava no corredor. Ele se virou, e Eriol o achou subitamente parecido com...

"O que você vai fazer agora?"

"Bom..." - Ele suspirou. Estava definitivamente mal-humorado, e talvez assim como Eriol, ele rezava para que Eloise voltasse logo, ela tinha um peculiar talento para diplomacia, e talvez acalmasse os ânimos naquela casa. - "Vou esperar que venha alguém aqui para tirar satisfações pelo tiro que eu dei naquele homem. Não que eu não esteja em meu direito de fazer algo assim em minhas terras. Há mais de cem anos estas terras são nossas. Porque eu economizaria chumbo para um qualquer?" - Sua vez soou com um certo desdém ao se referir ao tiro.

"..."

"E então, Eriol, assim que este alguém vier, eu vou ficar sabendo das partes de sua história as quais você não quis me contar."

Atravessaram o salão, e estavam quase no jardim de inverno quando um ruído de cascos sobre as pedras e de rodas fez-se ouvir. Spinel Sun torceu-se no colo de Paul como se quisesse ir para o chão de qualquer maneira. Quincey pestanejou.

"Acho que a sua mãe chegou. Teremos os três muito a conversar." - Ele estreitou os olhos, desta vez numa velada ameaça. Olhou para Paul e não conseguiu evitar uma expressão de descontentamento e pena. - "Ou melhor... Nós quatro teremos muito a conversar. Ao menos de vocês, o gato me parece inocente."

Ele alisou a casaca e foi para os cômodos da frente da casa, ignorando a mesa posta do café (que esfriara havia muito) no jardim de inverno. Paul queixou-se baixinho de fome.

"Espere só um pouco mais, até meu pai ficar um pouco menos furioso" - Eriol sussurrou de volta. Agora teria de encarar Eloise e isso não era muito reconfortante.

"Por que Spinel Sun está tão pequeno?"

"Ele é assim."

"Ele estava grande..."

"Quando não tiver mais nenhum adulto por perto, ele vai ficar grande de novo." - Tentou sorrir, e pegou-o no colo, e ele miava e se retorcia. Conseguiu escapar para o chão e correu na direção em que Quincey fora.

Sem opção, Eriol seguiu o mesmo caminho, sentindo com desconforto o piso frio da casa sob os pés descalços. Sentia muitas dores nos ossos, e não sabia se do frio ou das pancadas que levara. Paul foi logo atrás.

Escutou o som do coche diminuindo a marcha quando chegou à frente da casa, e assim que chegou ao corredor, pôde vê-lo. A criada estava segurando a porta da frente aberta, e Quincey estava na calçada, esperando Eloise. Primeiramente, o coche parou, mas ele não esperou que o cocheiro viesse abrir a portinhola, tomou a frente e fez isso.

"Quincey! Mas...?" - Ela mal pôde falar. Ele ajudou-a a descer do coche, e nada poderia prepará-la para o que estava vendo. - "Eriol?" - Notou imediatamente que ele estava sujo, e logo um arranhão feio em sua testa chamou-lhe a atenção, assim como um hematoma do lado do rosto. Dirigiu a Quincey um olhar tão intenso que Eriol quase poderia jurar que seu pai recuou. - "O que aconteceu com o meu filho, Quincey?"- Eloise terminou de descer a escada do coche, ignorando totalmente seu chapéu que caía no chão e a mão que seu marido ainda oferecia. Foi diretamente para Eriol, pegou-o pela mão e o trouxe para a luz do dia e sua surpresa não foi nada agradável. Olhou para o chão por um momento. Era Spinel Sun tentando escalar sua saia pendurando-se com as unhas pela renda. Seu horror em vê-lo coberto de uma espessa camada de terra e lama não teve medida, e quase desmaiou ao voltar um olhar para o menininho ao lado de Eriol e constatar que ele era pele sobre osso. "Mas... Mas o que aconteceu nesta casa? E por que você está com este olhar? Não posso virar as costas por um único instante e..." - Ela tentou fazer da aparência de Paul algo menos desagradável, mas seu lenço não seria suficiente, ela descobriu, ao tentar limpar o rosto dele. - "... pobrezinho."

Abaixou-se para pegá-lo no colo e ele deu um largo sorriso. Eriol achava absurdo vê-lo vivo ali, como pouco tempo antes jamais estaria. Mesmo assim, ele não parecia muito diferente, seus dentes amarelados, com as falhas dos dentes de leite. Sua mãe estava encantada. Eriol sabia que não precisava mais se preocupar se Paul ficaria.

"Quincey, diga-me o que aconteceu nesta casa enquanto eu não estive aqui E não ouse ocultar nenhum fato. Por mais escabroso que seja" - Ela afagava cuidadosamente Paul em seu colo, enquanto entrava com ele, chamando Eriol e Spinel Sun, para dentro da casa. Seu lindo vestido cor-de-rosa pálido estava arruinado agora. - "Eriol, onde estão os seus sapatos?"

"Estavam sujos e eu os tirei, mãe. Papai está muito zangado. Comigo."

"Eu sei. Tenho a impressão de que ele tem bons motivos."

Eloise sentou-se no jardim de inverno com Paul em seu colo, desta vez tentando limpar seu rosto com um guardanapo. Spinel Sun pulou para uma cadeira e foi para cima do colo dela também, e depois, ficando no colo de Paul, que parecia adorar vê-lo daquele jeito. O segurava com cuidado e ficava afagando sua cabeça, e também brincando com a ponta de seu rabo, como se enrolasse a ponta de um dedo nele. Eriol quase gritou quando sentiu as duas mãos de seu pai em seus ombros, segurando-o firme no lugar, impedindo-o de fugir, e ficando em pé justamente na saída do jardim de inverno. Ele contou detalhadamente o que sabia, desde o comportamento de Eriol até o que havia acontecido naquela madrugada. Não economizara detalhes, e nem poupou Eloise de saber sobre os tiros que dera na direção dos homens que estavam na propriedade, perseguindo Eriol. E ao final, ainda restava a pergunta:

"E quem é este garotinho?" - Eloise perguntou, oferecendo a ele uma xícara de chá morno, que não foi recusada. O pequeno em seu colo bebeu tudo e pediu um biscoito. Eloise quebrou um na metade e deu metade a ele e a outra para Spinel Sun.

Eriol não podia virar-se, não podia sair do lugar, e não tivera coragem de encarar Eloise e nem de negar nada do que seu pai acabara de falar, pois era tudo verdade. Seu pai apertou as mãos em seus ombros.

"É o que eu estou me perguntando desde o momento em que o vi." - Ele disse. - "E nem sei dizer se isto faz alguma diferença."

"Para mim faz." - Ela quebrou outro biscoito na metade. - "Qual o seu nome, garotinho?"

Ele prestou atenção no que ela disse. Olhou para ela, olhou para Quincey, e depois para Eriol. Spinel Sun deixou escapar um miado de protesto, pedindo pelo resto do biscoito de sal.

E então Paul abriu as mãozinhas, num gesto de desconhecimento, tão ingênuo quanto se não soubesse do que todos eles estavam falando. E como se fosse impossível ele parecer mais inocente do que isso, seu sorriso foi tão apagado quanto ele mesmo.

"Talvez Eriol saiba responder isso." - Quincey soltou seus ombros e afinal entrou. Sentou-se na cadeira oposta a de Eloise.

"Eu não sei quem ele é."

"Eriol... !" - O tom de Eloise não era amigável. - "Melhor começar a falar a verdade."

"..."

"Se ele não falar, de qualquer maneira eu saberei a verdade. Acredito que alguém virá aqui reclamar pelo roubo de seu espantalho."

"Não fale assim deste menininho, Quincey." - Ela não o deixou terminar de falar.- "Ele está faminto, veja estes ossos!"

Ele baixou os olhos.

"Talvez se eu torturar o gato ele fale."

"Quincey! Está assustando as crianças!"

"Como acha que eu me sinto, então? O seu filho sai no meio da madrugada e volta com dois estranhos querendo pegá-lo de qualquer jeito. E só Deus sabe o que ele fez! Eu não me admiraria em nada que Eriol houvesse matado alguém enquanto esteve do lado de fora desta casa! Nada mais de surpreende! É assustador não fazer mais a mínima idéia de como lidar com esse menino, e ele ainda nem tem onze anos! Sim, eu estou assustado, e muito." - Estava tão furioso quanto antes, sua raiva não diminuíra em nada. - "E veja mais esta! Ele traz uma criança para casa, e nem quero imaginar como deu-se isto! Não me preocupo com as conseqüências de eu ter atirado naquele homem, eu estava em meu direito. Mas as coisas não serão tão simples ao que se trata deste menino que está no seu colo!"

Eloise não respondeu. Quincey tirou a garrafa de uísque do bolso e bebeu um longo gole. Era muito raro vê-lo beber durante o dia, mas ninguém poderia tirar-lhe a razão. Com zombaria, ofereceu a Eloise, e sua surpresa foi maior ainda quando ela aceitou e praticamente secou a garrafa sozinha.

"Eu me sinto bem melhor agora. Obrigada." - E desta feita, chamou a governanta e mandou que ela preparasse um banho para o menino em seu colo. Quincey desconfiava seriamente que o uísque dera-lhe idéias demais, e também desconfiava que Eloise não pretendia deixar aquele espantalho ir embora, mesmo que alguém reclamasse por ele. Ela também mandou que alguma das criadas desse um banho em Spinel Sun.

A governanta não quis segurar Paul no colo, enojada, e nem quis chegar perto de Spinel Sun, ainda comentando sobre o que houvera, das panelas terem sido derrubadas.

Quando Quincey e Eloise ficaram sozinhos à mesa posta no jardim de inverno, ele tirou o lenço que estava em seu bolso e sem dizer nada (não era preciso, seu olhar grave já servia para prepará-la para qualquer coisa que não fosse boa), mostrou-lhe o "presente" que tão carinhosamente Spinel Sun lhe entregara.

Ao ver o que estava no lenço, Eloise compreendeu perfeitamente a preocupação de Quincey, mas apesar do choque, quando recuperou-se de ter visto aquilo, uma pergunta permaneceu entre eles, e muito certamente sabiam que talvez jamais teriam uma resposta:

"E afinal, quem é aquele garotinho?"

CONTINUA