A Sombra e a Escuridão

Capítulo 8

Spinel Sun fora levado para o quintal, onde o esperava um animador banho de água recém-tirada do poço, naquela manhã fria. Eriol sabia que ele não ficaria nada feliz com isso. Ele mesmo (talvez como parte do castigo, ou pela urgência de ter de se livrar da sujeira) teria de tomar um banho com água fria, mas isto seria depois. A governanta decidiu primeiramente dar um banho no pequeno. Ninguém sabia quem era aquele menino, e ele não dissera seu nome a ninguém. Apesar da encrenca que havia se metido (uma encrenca grande demais para alguém tão pequeno), de estar apreensivo quanto ao castigo que Quincey prometera e das conseqüências do que havia feito (lembrou-se de médico, lembrou-se dele debatendo-se com álcool nos olhos e até o momento não entendia como pôde ter jogado a vela acesa sobre ele. Esperava que não estivesse morto. Mas e se estivesse? Deveria estar apavorado, mas algo como uma voz ou um pensamento mais forte do que seu dizia-lhe para não se importar...). Estremecia a cada vez que pensava que de fato alguém iria bater à porta da casa naquele mesmo dia para falar do que houvera. Bom, ninguém teria do que culpá-lo pela mordida que Spinel Sun dera na perna da enfermeira e quanto menos era sua culpa que ele houvesse mordido alguém para arrancar aqueles dois dedos, se é que fora isso que acontecera. Curiosamente, apesar do choque, não sentira nada, além disso, quando vira Spinel Sun deixar aquilo na mão de Quincey.

Quando viu-se sozinho em seu próprio quarto, afinal respirou fundo e fixou o olhar na porta. A governanta encarregou-se de banhar Paul, porque achou que era um caso extremo de sujeira. Eriol relembrou absolutamente toda aquela madrugada, nunca se recordaria depois de ter vivido uma noite mais longa do que aquela, e nem mais perturbadora. Estava exausto, estava feliz e ao mesmo tempo, angustiado, se é que aquela apreensão podia ser chamada disto, pois afinal... Eriol era apenas um menino. Todas as vezes que metia-se em alguma encrenca, saia machucado, ferido, ficava de castigo, e a família aumentava mais um pouco. Riu um pouco, aliviando-se da tensão que sentira, ao imaginar que Paul iria ser devolvido. Eloise estava apaixonada por ele, da mesma maneira que se apaixonara por Spinel Sun, mesmo que para ela ele fosse apenas um gatinho. E Quincey, chamando-o de espantalho... Era de partir o coração escutá-lo falando daquele jeito com Paul, tratando-o com dureza, mas fora assim também com Spinel Sun. Eriol não tinha dúvida de ter visto seu pai compadecer-se dele. E ele mesmo estava encantado com Paul. Spinel Sun o adorava. Todos já gostavam dele... Ninguém mais o conseguiria tirar daquela casa, claro.

Mas ele não era o mesmo de antes, era? O que mudara? Queria poder ter a quem perguntar isso, mas não havia. Spinel Sun era resultado de algo que também estava descrito no diário, da mesma feita que os "outros" (era assim que o texto do diário referia-se, e era impossível sequer supor de quem estava falando).

E exceto pelo óbvio, Spinel Sun nada tinha de diferente de qualquer outra criança de sua idade. Esperava que fosse assim com Paul, que desse tudo certo, porque se sentia muito feliz sabendo que ele estava bem, que ele estava por perto.

"Entre, pequenino!" - A governanta abriu a porta para Paul, que entrou correndo no quarto. Estava limpo, todo enrolado numa toalha enorme, cinza. Não sabendo do que chamá-lo, uma vez que ele dissera não saber o próprio nome, era assim que o chamavam. Quincey o chamava de espantalho, mas quando o visse depois de limpo talvez resolvesse chamá-lo de esqueleto.

Apenas seu rosto magro estava de fora da toalha, e entrou contando a Eriol que lhe haviam prometido um prato de mingau, e ele estava tão feliz com isso que para qualquer um que visse, acharia que era o melhor presente de toda a sua vida. A governanta apenas sorriu e pediu que Eriol ficasse com ele enquanto ela ia procurar no quarto onde eram guardados pertences antigos, por roupas de quando Eriol era pequeno, o que era bastante improvável que ela encontrasse, uma vez que ele pegara quase todas para Spinel Sun vestir.

"Mas eu não me esqueci de você." - Preveniu. Normalmente, quando ele chegava em casa sujo demais a governanta só faltava esfolar seus braços de tanto esfregá-los com a bucha, mesmo que havia muito que Eriol não precisasse da ajuda de ninguém para tomar banho.

Ele se esforçou para devolver o sorriso. Continuou sentado na beirada da cama. Ela saiu e fechou a porta.

Paul continuou andando pelo quarto, olhando tudo de perto, olhando pelas janelas, e por fim, encontrou o espelho da cômoda. Voltou-se para Eriol com um largo sorriso, que era impossível não retribuir:

"Quando eu vou voltar para o Sanatório, Eriol?"

"Não vai voltar. Você vai ficar"

"Mas ninguém gosta de mim aqui. Só você e Spinel Sun..." - Seu sorriso murchou. - "O seu pai está muito zangado..."

"Ele está zangado comigo. Não está zangado com você."

"Você vai ficar de castigo, Eriol?"

"Já estou!" - Riu, tentando animá-lo. -"Não fique assim. Minha mãe gostou muito de você!"

"O seu pai me chamou de espantalho..." - Queixou-se, fazendo algo como um beicinho.

"Ele está de mau-humor! Venha cá." - Pegou uma ponta da toalha e enxugou a testa de Paul. Sem a lama, ele parecia outro, até sua palidez havia cedido um pouco, mas não tanto que parecesse ter uma aparência das mais sadias. Eriol sentiu o coração apertar-se ao constatar que os olhos de Paul não eram mais azuis como antes. Eram agora castanhos, claros como amêndoas. O que mais teria mudado? Ele parecia ainda apenas um menino... Desviou os olhos dos dele, tentando não sentir falta do antigo azul, porque na verdade, aquilo não fazia a mínima diferença.

"Estou com fome."

"Eu sei, espere a governanta voltar com roupas para você, e você vai poder descer para comer."

"Por que não tem roupas para mim?"

"Porque eu não tenho irmãos mais novos. Há Spinel Sun. Ele veste minhas roupas que não me servem mais."

"Por que?"

"Porque eu estou crescendo. Depois as suas roupas também não vão mais lhe servir, pela mesma razão."

"Eu vou crescer como você?"

"Claro..." - Olhou para o criado-mudo, procurando pelos óculos. Se os houvesse levado, haveriam de estar quebrados agora.

"Spinel Sun também vai ficar grande como você?"

"Ele come tanto que acho que vai ficar maior do que nós dois!"

Paul riu. Era muito bom vê-lo longe daquele quarto de hospital, de pé, fazendo tudo o que nunca havia feito antes, e nem poderia. Quem diria que aquele menininho quase morto poderia ter atravessado o bosque praticamente correndo, com ele e Spinel Sun? E agora estivesse aqui, rindo, fazendo montes de perguntas?

"Eu quero ser grande também."

"Você vai ser, mas vai demorar. Você vai ter de esperar ainda. E eu acho que vai demorar bastante."

Ele riu, dando como pequenos saltos no mesmo lugar. Estava descalço encima do tapete.

"Eu não quero esperar! Eu quero ficar grande logo."- Ele parecia tão feliz com a possibilidade quanto fosse algo que pudesse acontecer a qualquer momento.

Eriol alegrou-se por ele, por ele estar vivo, estar bem e por estar podendo ser o que não era antes. Pensou por um momento no que havia lido no diário, e em como Spinel Sun podia ser tanto o gato quanto um menino, ou mesmo uma pantera (embora que uma pantera pequenina). O mesmo se daria com o pequeno? Ah, nem conseguia mais pensar nele com o nome de antes, era uma criança sem nome na sua frente, como se houvesse nascido agora. Pensando bem, não estava isto longe da verdade. O menino que havia estado tão doente naquele Sanatório estava morto. Este, brincando na sua frente com certeza era outro, ainda que o mesmo. Tinha certeza de que ele acabaria recebendo um nome, já que era evidente que ficaria na casa.

"Você vai poder fazer o que quiser daqui em diante." - Respondeu, meio esquecendo-se que estava falando com uma criança pequena. Mas acreditou que ele entenderia.

"Sem agulhas?"

"Sem agulhas e nem remédios"

"E eu não vou ter de tomar leite? E ninguém vai gritar comigo e me deixar sozinho?"

"Não!"- Estava vendo-o ficar tão alegre em saber destas coisas que estava entusiasmadíssimo. Pareciam as melhores notícias de toda sua vida.

"Posso fazer o que eu quiser? Mesmo?"

"Poderá ser também, o que quiser." - Não sabia porque tinha dito aquilo, porque poderia ser o óbvio, uma vez que para Spinel Sun, mudar de forma era algo muito natural, ao menos era essa a impressão que tinha. Na verdade não fazia a mínima idéia se eles teriam, então, a mesma natureza. Havia lido que Spinel Sun havia sido feito daquela maneira, mas o que ele mesmo havia feito, em nada se parecia com o que havia lido, a não ser a intenção. E se fosse ela o que valesse...

"Então eu quero ser grande! Como eu vou ser quando eu for grande?"

"Eu não sei, não há como saber!" - Rindo, virou-se para buscar seus óculos que estavam sobre o criado-mudo. Sem querer seus dedos sujos esbarraram na lente.

Sorrindo para si mesmo, puxou a barra da camisa que ainda estava limpa e limpou a lente, tentando tirar a mancha. Colocou os óculos e voltou-se para o pequeno novamente. A mancha continuava lá. Tirou os óculos e tornou a tentar limpá-los. Nisso, escutou, e Paul parecia muito sério ao dizer:

"O que eu mais quero agora é saber como eu vou ser quando eu for grande, maior do que você, Eriol!"

"..." - Riu ainda assim. Talvez ele ficasse aborrecido ao ver que não era muito levado à sério, mas era difícil não rir daquela séria obstinação em ficar grande logo.

Tornou a pôr os óculos. De repente sentiu um calafrio pelas costas. Devia estar apenas apreensivo das coisas que aconteceriam ainda naquele dia, e não seriam poucas, e ele ainda nem sabia qual o castigo que Quincey lhe havia reservado. Teve a impressão de que havia algo de estranho em torno, mas foi uma sensação que durou apenas um momento, não havia motivo. Eriol ergueu o rosto e ergueu mais, sem sequer lembrar-se de ser cauteloso.

Não viu Paul em lugar algum do quarto, mas mesmo assim não estava sozinho. Pestanejou, achando que via coisas, e mesmo assim sabia que estava certo. Via coisas até demais. Arregalou os olhos.

"Você..." - Conseguiu o que queria. Não conseguiu terminar a frase e nem precisava. Estava assustado demais com o que via para conseguir falar qualquer coisa. E com toda a razão.

Tinha-o a sua frente, perfeitamente visível. Mas não era um menininho como antes, tinha-o adulto. Visão ou não, não conseguia desviar os olhos. Tudo estava diferente.

Ele olhava-o de frente, de cima, com o mesmo ar de antes, mas os olhos e o rosto de um adulto. Tudo estava diferente. O cabelo, os olhos, o rosto. Continuava enrolado naquela imensa toalha. Eriol tremeu por um instante, fechando as mãos na colcha da cama. Era isso que mudara. Ele agora poderia ser o que quisesse, quando quisesse. E era impressionante. Seu cabelo era mais escuro, mais encorpado, mas ainda da cor de mel queimado, e seus olhos, quase entristeceu-se ao finalmente notar algo que não reparara com tanta intensidade nele menino: também haviam ficado castanhos. Mas como via agora, no fundo do castanho de seus olhos havia uma sombra vermelha, que podia passar como um mero reflexo, mas Eriol sabia que estava lá. Olhou as mãos que escapavam da toalha. Unhas longas e lustrosas, como se houvessem sido polidas, e tinham aparência afiada.

Eriol, ao ser encarado, sentiu o rosto esquentar, bem com todo o resto de seu corpo, e tremia também, apreensivo, sem saber como reagir. Ele então ajoelhou-se na frente de Eriol, mas ainda assim continuava mais alto. Eriol sentiu-se apenas o que era, apenas um menino. E... não sabia como referir-se a ele, não conseguia mais pensar nele com o nome de antes, como se aquele nome não lhe pertencesse mais. Entreabriu os lábios, respirando muito fundo, fascinado com aquele resto. Seus olhos não eram mais azuis, daquela forma que antes o hipnotizava, mas este castanho que via agora de perto causava-lhe uma sensação estranha de inquietação e medo, de forma que não conseguia sentir-se senão perturbado com aquilo.

Ele que um momento atrás era apenas um menino, desviou a atenção para as próprias mãos, com algo de satisfação em seu olhar. Olhou para as mãos com atenção, e fixou os olhos nas unhas, com um certo sentimento de vaidade, evidente como era. Sorriu. Era um sorriso adulto, mas um sorriso inocente como antes.

Sorrindo, tornou a olhar para Eriol. Aproximou-se, como se ele também conseguisse despertar sua curiosidade, e com um gesto um tanto desajeitado, tirou seus óculos, segurando-o pelo lugar onde havia o metal que unia as duas lentes.

Deixou os óculos de Eriol caírem sobre a colcha, ficou segurando seu rosto entre as mãos, como se olhasse algo novo, como se não o conhecesse, mesmo que seu olhar fosse de reconhecimento. Eriol estava ainda mais surpreso do que antes, porque o que via era real, tinha o calor de algo real, e era impressionante. Sentia-se tonto.

"..." - Respirou muito fundo. Não eram duas crianças neste quarto. Eram um adulto e um menino. Era assim que sentia-se, intimidado e nervoso com aquela presença.

As mãos dele o seguraram delicadamente. Metiam-se por debaixo do seu cabelo, causando uma sensação incômoda e ao mesmo tempo, queria que continuasse. Seu rosto aproximou-se mais do dele, até que Eriol não conseguisse olhar para outra coisa além de seus lábios. Fechou os olhos, e sentiu, desajeitadamente, aquela boca sobre a sua. Fora extremamente rápido, desajeitado, infantil, mas era como se houvesse feito algo acontecer, algo acordar dentro dele. Mal haviam se esbarrado, não durara nada.

Abriu os olhos, assustado não com o que houvera, mas de como se sentia então. Não conseguia deixar de lado a sensação de querer continuar, não sabia a razão.

Não o viu mais como era antes. Voltara a ser uma criança, e estava rindo, rindo dele. Eriol sabia que devia estar com cara de bobo. Corou até a raiz dos cabelos, e passou os dedos sobre a boca, tentando fazer passar uma sensação de formigamento que corria por toda sua pele e começava ali, mas apenas a prolongou de maneira perturbadora.

A porta rangeu. A governanta entrou e fez um gesto chamando-o. Ele foi correndo em sua direção e ela ainda disse a Eriol que ele podia ir para a sala de banho, agora. Porém, ele não se moveu imediatamente. Pensou longamente naquele arremedo de beijo, na forma que havia visto-o adulto (agora não conseguia mais chamar Paul pelo nome, quase como se houvesse esquecido qual era seu nome, afinal, ou nunca houvesse sabido), e em como sentiu-se. Mas ele era apenas um garoto e... Melhor acreditar que estava vendo coisas.

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Depois de tudo o que houve naquele dia (e ele ainda nem chegara a metade...), Eriol ainda precisou explicar a seus pais (Quincey furioso, e desta vez, não com Eriol, e Eloise, preocupada, e também furiosa, o que deixava a todos tremendamente mais preocupados) as marcas em seu corpo, que a governanta viu quando foi buscar suas roupas sujas de lama e terra. O mordomo foi chamado (ele havia estado no exército, sabia cuidar de ossos quebrados e de ferimentos nos cavalos, mas ele foi chamado mesmo assim) e descobriu-se que Eriol estava com uma costela trincada, e coberto de manchas roxas e arranhões, fora evidentemente espancado, e com custo aceitara dizer que fora isso o que acontecera, e com mais custo ainda dissera quem lhe fizera isso. Claro que os adultos riram quando ele disse que Spinel Sun havia salvado-o, mordendo a perna de uma enfermeira. Quincey mandou logo em seguida que lhe trouxessem seu rifle, pedindo também o óleo de linhaça para limpar a arma, tarefa a qual negligenciara pela manhã, quando tivera de ir procurar Eriol. Ele nada disse, foi para seu escritório e sentou-se, desmontando e limpando a arma. Não tornou a brigar com Eriol, apesar de estar ainda com muita raiva de tudo. Permaneceu em silêncio, mas mostrou-se especialmente cortês, quando finalmente, quando já era quase a hora de servir o almoço (do qual as crianças foram dispensadas, por terem feito o desjejum um tanto tarde, e mesmo porque Eriol precisava ficar deitado por causa da costela, e o menininho sem nome estava dormindo), uma criada correu para dentro da casa, vinda do portão da propriedade, avisando da chegada de visitas. Era o diretor do Sanatório, acompanhado de um enfermeiro corpulento e calvo, e de uma azeda enfermeira-chefe, de sombrinha na mão. O coche entrou pelo jardim e eles desceram. Quincey recebeu-os no escritório. Ele já havia terminado de limpar o rifle e agora estava polindo uma pistola. Os recém-chegados chegaram, recusaram o chá, e discorreram longamente e com detalhes o que havia acontecido. Ninguém nunca havia visto o filho de Quincey andando por aquela parte da região, e muito menos tinha-se alguma notícia de seu mau comportamento, o que seria fácil de descobrir uma vez que quase todos o conheciam, assim como ao resto de sua família "e aquele repugnante animal preto", como referiu-se a enfermeira-chefe a Spinel Sun. Mas nesta madrugada, quando deram-se os terríveis acontecimentos, e a queixa maior era justamente essa, além, é claro, de Eriol ter levado embora o menino que era o paciente, foi pelo gato. A enfermeira chefe disse que uma de "suas meninas" havia tido a perna mutilada por uma dentada desferida por Spinel Sun, e o diretor do Sanatório, extremamente nervoso e suando muito, à custo pronunciou-se, comunicando a Quincey que um médico, o responsável pela saúde do menino seqüestrado havia sido atingido no rosto por álcool e que ainda lhe haviam ateado fogo, mas que por sorte ele apenas havia perdido as sobrancelhas, os cílios e os cabelos, todos definitivamente, além de queimaduras pelo rosto e pelas mãos, mas que estes sarariam. O que não sararia e nem poderia ser recuperado também fora tirado pelo gato. Spinel Sun, segundo dizia o diretor do Sanatório, havia arrancado, de uma só dentada, dois dedos da mão direita do médico. Antes de solicitarem a devolução do menino seqüestrado, e antes de qualquer outra coisa, eles pediram que fosse tomada uma providência para deter "aquele animal terrível". Em outras palavras, eles pediam que Spinel Sun fosse morto.

"De que tamanho era o pedaço arrancado da perna da enfermeira?" - Quincey havia permanecido calado durante toda a narrativa, e quando falou, foi a primeira coisa que perguntou. Ele não se deu ao trabalho de erguer os olhos, estava agora carregando o tambor da pistola e pegando a Winchester que estava encostada em sua cadeira para carregá-la também. O enfermeiro calvo respirou fundo ao ver isto e engoliu em seco. Nada havia sido dito sobre o enfermeiro baleado.

"Do tamanho de um limão." - O diretor gaguejou. - "Assim... E atingiu uma veia bastante grossa, ela perdeu muito sangue."

"Um limão grande?"

"Sim."

Quincey tocou o sino e fez um gesto para a criada que surgiu na porta. Ela voltou logo depois, com Spinel Sun e o entregou no colo dele.

Quincey prontamente o colocou encima da mesa. A enfermeira soltou um afetado grito de horror quando o viu. Ele a ignorou e solenemente abriu a boca de Spinel Sun. Olhou friamente e declarou:

"Com sorte caberá uma azeitona na boca deste gato."

O enfermeiro, desconfiadamente, olhou também, mais de perto.

"Tentem inventar outra justificativa para o médico ter perdido os dedos e a enfermeira um pedaço da perna. Este animalzinho é um gato, não uma pantera." - Sentou-se de novo e Spinel Sun ficou andando sobre a escrivaninha, pulando sobre o cano das armas e repuxando a estopa de algodão com as unhas.- "Apesar de serem da mesma cor."

"E sobre o menino..."

"Como ele se chama?"

"Paul Crowley, III." - Foi difícil para o diretor responder. O constrangimento era generalizado, e ele mesmo nunca se lembrava dos pacientes pelos nomes, apenas das doenças.

"Qual a doença dele?"

"Hã... Não é tuberculose. Também não se trata dos brônquios. Trata se de uma... proliferação. Houve uma intervenção, há três dias..."

"Ele passou por uma cirurgia? Encontra-se curado?"

"Não. A intervenção foi apenas para fins acadêmicos. Para tanto nós não fizemos uso de nenhuma espécie de anestésico."

"E de que maneira ele fugiu? Ou melhor, de que forma meu filho saiu do Sanatório seqüestrando-o?"

"Correndo. Eu vi." - O enfermeiro falou, arranhando a testa lisa. Quincey ergueu ligeiramente as sobrancelhas.

"Estamos então falando de outro menino. Se este que encontra-se em minha casa houvesse apresentado marcas de uma cirurgia, eu teria sido informado pela criada que o banhou e vestiu. E pelo apetite, ele não me parece nem um pouco doente. A não ser que sua doença fosse fome."

"Temos certeza absoluta de que estamos falando do mesmo menino." - Spinel Sun subiu para o colo de Quincey e depois para seu ombro. A enfermeira soltou uma exclamação de nojo e recebeu um rosnado em resposta.

Ele tocou o sino novamente e outra criada apareceu à porta do escritório. Mandou que a governanta acordasse o pequeno e o trouxesse, e depois ele poderia dormir. De fato, a governanta veio depois de alguns minutos, os quais foram de um silêncio constrangedor. O menininho estava no colo dela sem reclamar, apenas esfregando os olhos. Depois de dois pratos de mingau de aveia, sua aparência havia melhorado muito. Como não havia roupas de dormir para ele, fora vestido com uma camisa de algodão que fazia vezes de batão, e o pijama com o qual chegara à casa fora jogado fora.

Os convidados viraram-se quando a governanta entrou.

"Abra a roupa dele."

Ela obedeceu. Abriu a frente de seu batão e ele não fez nada além de bocejar.

"Não seria de se esperar que houvesse uma cicatriz em algum lugar?" - O diretor gaguejou, tremeu e enxugou o suor da testa. Havia acabado de começar a entrar em pânico. A enfermeira afirmava ser aquele o mesmo menino, que não havia como ocultar a marca da intervenção cirúrgica. O enfermeiro permaneceu calado, apenas os olhos arregalados.

"E não é verdade que os Crowley todos têm olhos azuis?" - Quincey parecia entediado daquilo. O diretor suava visivelmente. Ele engoliu antes de falar:

"Sim... Sim, é verdade..."

"É verdade, a não ser que o Paul Crowley, II que eu conheci não fosse o verdadeiro, se é que há outro."

O diretor baixou a cabeça. Estava preste a desmaiar. A governanta saiu do escritório levando o menino.

O diretor começou a ensaiar uma despedida, e Quincey fez questão de levá-los até a porta. Quando já viravam-se para partir, um constrangimento geral entre eles, aliado a perplexidade do que viram.

"Ah, quase esqueço de citar... Eu gostaria de agradecer ao filho de Deus que teve a idéia de espancar meu filho." - Tal sua tranqüilidade que todos viraram-se, quando já estavam na calçada da frente da casa.

"Fui eu, Sr." - O enfermeiro pronunciou-se, com orgulho na voz, porque realmente acreditara no que escutara. - "Ele precisava de um corretivo!"

Foi rápido demais para que o diretor e a enfermeira vissem de imediato o que aconteceu. Houve o estampido seco e o cheiro de pólvora, mas foi preciso um minuto inteiro até que o enfermeiro começasse a gritar, depois de ter caído pelas escadas da frente da casa e rolasse pelo chão.

"Obrigado por ter se pronunciado, cavalheiro."

O diretor olhou para a mão de Quincey e viu nela a mesma pistola que ele estivera montando, e polindo. Na verdade, ele concluiu, que não estivera limpando suas armas, ele estava escolhendo qual delas usar. O enfermeiro ainda rolava pelo chão com as mãos entre as pernas. O tiro havia despedaçado... As jóias da família, por assim dizer. Suas calças brancas impecáveis estavam ensopadas de sangue. A enfermeira ficou pálida.

"Cuidado com meus cães. Eles estão soltos hoje. Se correrem ou gritarem, poderá ser pior."

E disto isto, Quincey deu a audiência por encerrada, e fechou a porta, passando os trincos, e escutando os latidos de seus cães de caça aproximando-se. Eram dois galgos de excelente corrida, perfeitos para acompanharem caçadas à cavalo, e dois mastifes capazes de quebrar o pescoço de uma ovelha com apenas uma dentada. E havia o perdigueiro, extremamente temperamental, que detestava com particularidade qualquer pessoa vestida de branco, desde quando ele era filhote e o leiteiro dera-lhe um chute. Bom, mas eles descobririam isso em breve...

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Tendo resolvido os problemas com a administração do Sanatório e tendo recusado-se terminantemente a devolver o menino (mesmo porque não havia como provar que ele era o menino que estavam procurando), dias depois, à mesa do jantar, depois de vários minutos de discussões, ameaças, manifestações de ira e indignação, e de Eloise o ter ameaçado com a faca de manteiga, Quincey finalmente aceitou que o pequeno ficasse, disse que lhe deveriam separar um quarto, que ele deveria receber roupas, sapatos, e jurou que não o entregaria a um orfanato. Também parou de chamá-lo de espantalho. Também deu-lhe um nome para ser chamado em casa, até que fosse providenciado que tivesse os documentos para ir para a escola, no ano seguinte. Ele agora chamava-se Akizuki, um nome extravagante demais, mas que causava tanta curiosidade quanto sua presença na casa. Quincey não gostava de discutir a razão do nome, mas Eloise descobrira mais tarde ter sido o nome do avô de seu marido.

E quanto a Eriol? Dali em diante ele teve um longo ano, um ano inteiro para pensar no que havia feito (e os fatos desencontrados só reforçaram a idéia de que ninguém jamais saberia a verdade sobre aquela madrugada), de castigo. Não podia sair para brincar, nem mais tomar parte do chá com os adultos, e mais uma série de coisas, além de ter sido posto em sua responsabilidade cuidar de Akizuki, além de ensiná-lo a ler e escrever. Isso sem contar que durante todo um ano sem poder brincar do lado de fora da casa, tudo o que lhe restava era andar por todos os cantos com Akizuki e Spinel Sun em seus calcanhares.

E Spinel Sun não recebeu nenhum tipo de castigo, o que era de se esperar, pois ele havia animado mais ainda o gosto pelo mórbido de Quincey, que teve o requinte de devolver os dedos para o Sanatório, enviando-os de volta dentro de uma caixa de presente atada com fita.

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Anos depois de Akizuki ter entrado na família (as criadas demoraram mais de um ano para aprenderem a pronunciar seu nome, o que não era fácil para ingleses que nunca haviam escutado uma palavra sequer em japonês ou qualquer língua estrangeira além do francês), ainda não era possível rir do que havia acontecido. Ele passara a ser tratado com igualdade, tinha um lugar à mesa do jantar, tinha um quarto só seu (que dividia agora com Spinel Sun, embora brigassem o tempo todo por causa do travesseiro maior...), e fora para a mesma escola em que estudava Eriol, bem como também acompanhava as aulas diárias de francês que Eloise ensinava, ou pelo menos tentava ensinar, quando não era forçada a dar a aula com o gato no colo.

Assim que encerrou-se seu castigo, Eriol foi para outro colégio, de educação mais rígida (Quincey imaginava se não era por falta de rigidez que Eriol fazia artes como aquela que trouxera Akizuki para a família), também católica, e adequada, onde além das disciplinas básicas, era exigido que os alunos estudassem esgrima, equitação, caligrafia e grego, além do francês e latim, que eram naturalmente solicitados. Muito cedo, pela manhã, Eriol deixava Akizuki (ele acostumara-se a chamá-lo assim pela própria necessidade de sustentar sua mentira, e pensando bem, gostava mais deste nome para ele) nos portões da escola e seguia para a em que estava agora. Eriol tinha 12 anos quando foi transferido para este colégio. Spinel Sun às vezes ia com ele, escondido em sua bolsa, ou ficava em casa, assustando a criadagem, que o surpreendia folheando semanários, revistas e livros que tinham figuras. Ele olhava todas antes de decidir se queria ler ou não alguma coisa, pois tinha preguiça de ler livros que não tivessem figuras. Ele gostava especialmente de ler as publicações de contistas do obscuro, e também de escutar Quincey ler as histórias em voz alta, o que ele fazia, quando estavam apenas ele e Eloise em casa. Se bem que Quincey também lia histórias para Akizuki, e mesmo Eriol fazia isso, lia para Spinel Sun e Akizuki, e nunca se cansava de tê-los por perto. Estavam sempre juntos, quando estavam em casa. E mesmo depois do castigo dado por encerrado, continuavam juntos.

E assim, eles eram uma família. Uma família muito estranha, sem dúvida...

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Paris, 1888

"Está sentindo falta de alguma coisa? Não bebeu nada, não disse nada..."

"..."

"Eriol, você está me escutando?"

Pestanejou e assentiu. Não estava escutando nada. Sentia muitas saudades de casa e não achou que fosse sentir isso justamente naquela noite, justamente naquele lugar.

"Você tem permissão para beber o quanto quiser."

"Não, obrigado." – Recusou distraidamente. Lembrava-se do longo ano que passara de castigo por causa de Akizuki e dos anos seguintes, de estar com ele e com Spinel Sun o tempo todo, até o ponto de dizer aos pequenos que gostaria de livrar-se dele pelo menos por uma única noite. A noite chegara, e não conseguia parar de pensar na falta que eles lhe faziam. Descansou o rosto na mão, debruçado sobre a mesa. Nunca havia estado em um lugar como aquele embora soubesse que existiam, e em Pigalle mais ainda. Era o bairro onde as coisas aconteciam. Mais fervilhante do que Montparnasse, ainda menos recomendável do que Montmartre. Deveria ser empolgante se não fosse tedioso ver as mulheres dançando no palco, com fartas saias de renda vermelha. Era tudo muito escuro e enfumaçado, e só havia homens entre os freqüentadores, as mulheres circulavam entre as mesas, algumas, quase nuas. Era um clube noturno, de muita classe e ótima fama.

Quincey fingia que bebia uma dose de licor de laranja que não acabava nunca. Eriol sabia que era o favorito de sua mãe e sabia que seu pai também sentia falta dela. Estavam tão acostumados um com o outro para não sentirem quando precisavam se afastar.

"Diabos, é seu aniversário! Tente pelo menos fingir que está feliz!" – Eriol levou um empurrão no ombro, como se tentasse fazê-lo acordar, que quase o derrubou da cadeira. Estava quase de costas para o palco, e não prestava atenção em nada, por maiores que fossem os esforços da prostituta loura que insistentemente se atravessava na sua frente.

"Eu o estou envergonhando?"

"Antes estivesse."

"Desculpe, pai."

"Há alguém que você gostaria que estivesse aqui?" – Quincey olhou ao redor, mas não parecia muito mais interessado no que acontecia ao redor do que o próprio filho. – "Alguém especial?"

"Akizuki e Spinel Sun!" – Respondeu prontamente.

"Pelo amor de Deus, Eriol... Um menino e um gato? Cresça, meu filho... Hoje você faz quinze anos... Eu o trouxe para farrear, com quantas vagabundas quiser... E você quer a companhia de um menino e de um gato?..." – Quincey disse, pausada e pesadamente. Sentia que havia deixado algo de falho acontecer ma educação de Eriol, e transparecia isto no olhar preocupado.

"Eu gosto deles..."

"Você está convivendo demais com eles." – Eriol já não era nenhuma criança, e continuava convivendo com aqueles dois, e talvez, pensou, isso não o estivesse deixando sentir-se adulto. Seu descaso para com as mulheres que circulavam entre as mesas era atroz. As vezes olhava, mas logo perdia o interesse. – "Eu penso que você devesse conviver mais com os da sua idade."

"Eu convivo até demais. Todos os dias, no colégio."

"E...?"

"Não tenho nada para falar com eles!"

Quincey sentiu-se perplexo.

"E você tem o que falar com Akizuki?"

"Claro. Ele é meu irmão." – Eriol esboçou um sorriso. As mulheres que estavam por perto passaram perto de enlouquecer quando viram isto. – "Eu sempre cuidei dele!"

"O problema talvez tenha sido este..."

"O que?"

"Nada, filho."

A apresentação no palco havia encerrado. A proprietária do estabelecimento passou e acenou para Quincey. Ela o conhecia desde quando ele era solteiro, embora reclamasse da ausência dele desde então, ela estava visivelmente satisfeita por ele haver levado seu filho para comemorar o aniversário naquele lugar. A melhor casa de todo o bairro de Pigalle. O que mais um rapaz poderia querer? Quincey tinha consciência de que seu filho nunca fora tão tímido quanto poderia parecer agora, e também sabia que ele causava muitíssima boa impressão. Mas algo o incomodava. Não, Eriol também não era apegado demais à mãe, e quanto menos era religioso demais ou demasiadamente respeitador dos valores morais para não sentir sequer curiosidade pelos seios expostos das dançarinas do palco.

"Você é apenas um garoto." – Concluiu, em voz alta, ao se dar conta que Eriol não se interessava por nada daquilo.

Eriol ergueu os olhos. Pareceu-lhe que seu pai estava desolado.

"Você estaria mais feliz se eu o houvesse levado ao cinematógrafo."

"Do que está falando, pai?"

"Eriol... Eu espero que eu não tenha de explicar-lhe sobre os fatos da vida a esta altura dos acontecimentos! Com a sua idade eu entrava sem pagar e saía sem gastar um único centavo, de qualquer bordel de Paris!"

Eriol corou. Sabia, ou pelo menos fazia idéia do que seu pai esperava de seu comportamento. Sabia como era o corpo de uma mulher, sabia o que deveria acontecer, sabia porque estava sentado àquela mesa, naquele lugar, com permissão de beber o quanto quisesse. Por que? Porque era seu aniversário de quinze anos, e aquele deveria ser o presente mais importante para qualquer rapaz de sua idade. Antes havia curiosidade, alguma ansiedade e muita... Muitíssima excitação. E agora, neste momento...

"Eu não quero, pai."

Quincey engoliu em seco. O que Eriol dissera fora tão desconcertante que não conseguia nem falar. Esvaziou o copo de licor e serviu-se de outro, que seguiu o caminho do primeiro. Serviu a terceira dose, fazendo com isso um esforço tremendo de não bater em Eriol:

"A quem você puxou, Eriol? A mim certamente não foi. Sua mãe? Duvido."

"Não podemos simplesmente voltar para o hotel? Ir jogar bilhar?"

"Não." – Apesar do primeiro impulso, Quincey não estava irritado, não com Eriol mas consigo mesmo. Sentia que havia algo em Eriol que nunca imaginou que pudesse haver. Pudor? Timidez? Imaturidade? Depois de vários anos, lembrou-se de quando Eriol seqüestrou aquele menininho. Ele lhe parecera ardiloso e maduro demais para um menino que não tinha ainda nem completado onze anos, e agora parecia o oposto. – "Não pense em sonhos românticos, Eriol. Não imagine que conhecerá alguém especial, porque este é o primeiro passo para um casamento forçado... E eu posso ser velho demais para ser seu pai, mas sou ainda jovem demais também para ser avô."

Eriol ficou mais vermelho ainda. Seu pai não estava de todo errado, e Eriol sabia disso, entendia o que ele estava falando, e sentiu-se absolutamente transparente sob o olhar dele, mesmo no escuro ambiente do clube noturno.

"Você está aguardando pela oportunidade errada. Não espere apaixonar-se para fazer isso. Vai decepcionar-se severamente, e no mínimo irá fazer a eleita odiá-lo pelo resto da vida por sua incompetência. E acredite-me... Poucas coisas são mais irritantes do que compartilhar a cama com um amante inexperiente."

"..."

"E eu não estou falando isso como seu pai, estou falando isso de homem para homem. E então? Prefere apostar numa sorte que não estará com você quando mais precisar, ou prefere levar qualquer destas vadias para o quarto e começar a agir mais seriamente?"

Seu pai nunca falara-lhe daquela maneira.

"De homem para homem..." – Eriol parecia ponderar sobre aquilo. Algo misterioso parecia colocá-los frente a frente em certa igualdade a partir de agora. Eriol não lamentara quando Eloise juntara seus brinquedos para levá-los para um orfanato, quando ele era menino. Mas a sensação de desespero e perda que deveria ter sentido quando deu-se isto invadiu-o agora. Mas não era a sensação do fim de algo, ela apenas o sentir-se empurrado rumo a algo que não conhecia e não desejava conhecer agora. E era terrível concordar com aquele homem que pelo menos por esta noite não seria mais seu pai... Ele também não queria que acontecesse agora, naquele momento, com alguém que nunca vira e nunca voltaria a ver. Sentiu-se empalidecer, mas também sentiu muita coragem, porque sabia que não era seu pai quem estava à sua frente.

"Eu..."

"Se você me disser isso que está pensando, iremos embora imediatamente. Iremos para qualquer outro lugar que quiser, e não tornaremos a falar deste assunto. E eu também não irei ficar aborrecido com você, porque a escolha foi unicamente sua."

"..." – Eriol sentiu algo se atravessar em sua garganta. Olhou demoradamente para o rosto de seu pai, sabendo que ele não estava envergonhado. Não mais envergonhado do que estava preocupado, e que não poderia mentir para ele sem que ele descobrisse.

"Se nós sairmos daqui nestas circunstâncias, Eriol... Eu sei que você mais cedo ou mais tarde descobrirá que tudo o que eu lhe disse era verdade, e que você virá até mim para pedir pela oportunidade que eu ofereci-lhe neste momento."

"..."

"E eu... Eu só irei avisá-lo desta vez. A partir de hoje, peça minha ajuda para o que desejar, mas não sobre isto. Hoje você será homem suficiente para decidir se quer deitar-se ou não com uma mulher. Se a sua resposta for não, então eu entenderei que você será homem suficiente para arcar com essa decisão, daqui em diante. Ou seja... Não me importa em nada o que aconteça. Mas não venha me pedir nenhum conselho, porque você sabe qual a resposta que terá."

Eriol pensou demoradamente em tudo o que escutou, e sabia que Quincey não voltaria por cima de sua palavra. Sentia-se apavorado e também muito aliviado. Imaginou que não havia motivo de ter medo. Ele tinha apenas quatorze... Não. Agora eram quinze anos. Quinze anos, estava mais alto do que sua mãe, mas ainda não da altura de seu pai. Quinze anos, mas seu coração não conseguia agitar-se ainda por ninguém naquele salão inteiro. Não havia nada a temer.

"Vamos para o bilhar, pai."

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"Chegamos!" – Era a voz do cocheiro. O coche trepidou violentamente quando passou pela diferença entre as pedras da estrada e a argamassa que pavimentava o caminho entre o portão e a frente da casa.

Eriol acordou. Havia dormido, mas apenas pelo cansaço da viagem. Havia passado uma semana inteira com seu pai em Paris, e estava ansioso para voltar para casa, para sua rotina simples. Quincey permanecia acordado, as mãos cruzadas no colo, e sorriu brevemente quando Eriol olhou ao redor como a ter certeza do que o cocheiro havia dito. Ele não deixara entrever nenhuma sombra de raiva pela escolha que Eriol fizera, quando estiveram no clube noturno em Pigalle, mas agora deixara visível sua preocupação, mas como fizera desde então, não tornara a tocar no assunto. Estava especialmente frio, e o dia não estava claro. O balanço do coche sobre a argamassa do caminho era familiar, acolhedor e o tranqüilizava, porque estavam de volta ao lugar que melhor conheciam. Não que não gostassem de Paris, de Londres, ou que não sentissem saudades dos longos anos em viagem, mas neste momento, em especial, a casa era o grande refúgio para eles. Quincey olhou com atenção para Eriol, enquanto o coche aproximava-se da casa, e com isso, tentou ignorar que ainda sentia-se ansioso como um colegial pela expectativa de rever Eloise, e ignorar também uma dor em seu coração, porque seriam apenas duas semanas em casa até chegar o momento de tomar o trem para Londres novamente, e depois para Liverpool. Seria quase um mês de viagem.

Seu coração também doeu por um momento de surpresa, ao ver que Eriol era absolutamente como ver a si mesmo com aquela mesma idade, muitíssimo parecidos. Mas não em tudo. Não voltaria a tocar no assunto de Pigalle, mas sabia que era uma questão de tempo. Apenas isso. Quando as rodas do coche rangeram, e os cavalos bufaram, eles desceram do coche, Quincey à frente. Eriol logo atrás. Estava ainda mais de um palmo mais baixo do que seu pai, e seu cabelo não era mais cortado tão curto quanto quando ele era menino, talvez por um desleixo do próprio Eriol, ou – e acreditava nisto – por ser algo que agradasse Eloise, e tivesse a conivência da governanta. Ele ficava muito bem assim, embora seu rosto ainda não fosse o rosto de um adulto, e Quincey perguntava-se como ele fora indiferente a todas aquelas mulheres que praticamente atiravam-se sobre ele em Pigalle. Mas ele não tocaria neste assunto...

Eloise saiu para a frente da casa, e recebeu o marido, como se ele houvesse acabado de retornar de uma guerra, tanta sua alegria. Ela abraçou Eriol, desfez seu cabelo, e quase chorou quando beijou seu rosto, num lamento profundo que Eriol não entendia, mas que seu pai silenciou, quando tocou no ombro de Eloise e a afastou dele, com um sorriso divertido nos lábios.

"Onde está Spinel Sun? E Akizuki?" – Eriol perguntou, logo depois de ser recebido pela governanta e pelo mordomo. Tirou os óculos e os colocou no bolso, quando viu os cães de caça se aproximando, correndo em sua direção.

"Estão brincando, provavelmente perturbando o Sr. Sullivan." – O mordomo disse, polidamente. Eriol brincou um pouco com os dois galgos que quase o derrubaram, fazendo-lhe festas. O perdigueiro havia morrido no inverno passado, quando havia tentado puxar uma briga com o cavalo de tração do Sr. Sullivan, um imenso e pacato shire cinzento, que não precisou mais do que de um coice certeiro para quebrar as costelas e o pescoço do cão. Os mastifes estavam no canil, para serem soltos apenas à noite.

"Eriol!"

Ele virou-se para olhar, bem como o mordomo também, que afastou-se para não ser derrubado por Akizuki. Já bastavam os sustos que tinha com ele e com Spinel Sun, quando escondiam-se pelos cantos da casa para pregar peças nas criadas. Akizuki veio correndo, sem o casaco e em roupas de brincar que já estavam imundas, e ele as havia acabado de vestir, logo que voltara com sua mãe da missa de domingo. Spinel Sun vinha correndo logo atrás, as patas cobertas por autênticas botas de lama, e o focinho também.

Akizuki atirou-se sobre Eriol, e ele o suspendeu do chão, abraçando-o. Akizuki ria e dizia que ele e Spinel Sun estavam com saudades. Eriol não disse nada, mas era também o que sentia. E havia sido apenas uma semana. Pena não poder contar-lhe de tudo o que vira em Paris, dos lugares que agora podia visitar, lugares que apenas adultos podiam entrar. Mas não disse nada. Riu junto com Akizuki e sentiu que Spinel Sun tentava escalar por suas roupas, arranhava seu sapato... Mas também não olhou. Não conseguia desviar do olhar de Akizuki. Seu abraço afrouxou e ele deslizou de volta para o chão, mas continuava abraçado à Eriol, sorrindo, o rosto ligeiramente vermelho, erguido. Eriol também sorria, sentia o rosto esquentar e sentia-se estranhamente mais feliz agora do que em nenhum momento antes. Ficaram assim, encarando-se, sem dizer nada, apenas felizes. Apenas eles.

Quincey estava terminando de subir os degraus da escada da frente da casa quando o súbito silêncio (e nunca a presença de Akizuki era silenciosa... Muito menos quando ele estava com Spinel Sun... E jamais quando ele estava com Eriol) o fez voltar-se para olhar. Estava no meio do gesto de tirar o casaco, e assim sentiu-se paralisado por ver Eriol e Akizuki parados, numa quietude absoluta. Eloise olhou também. Quincey terminou de tirar o casaco, e ficou com ele sobre o braço. Eloise suspirou, e de maneira distraída, sem querer chegou um pouco mais perto do marido, que notou este gesto e olhou para ela com igual perplexidade. Ela continuou olhando para a cena que se desenrolava no jardim e comentou, numa delicada risada:

"Quincey... Veja. Como Eriol cresceu. E Akizuki... Veja..."

Ele sorriu brevemente. Era verdade. O tempo havia passado muito rápido.

"Eles parecem estar apaixonados..." – Ela completou.

Quincey estremeceu.

CONTINUA