A Sombra e a Escuridão

Capítulo 9

Akizuki havia crescido bastante, e nem por sonho fazia ainda lembrar aquele que Quincey chamara de espantalho. Havia se tornado um menino alto para a idade, aos onze anos, naturalmente esguio, e as criadas mais velhas o adoravam, enquanto que as mais novas, talvez por ciúmes de Eriol, o odiavam. Ele tinha praticamente a mesma idade que Spinel Sun, mas a diferença de tamanho entre eles era notável. Ele havia perdido qualquer traço de palidez, e seu cabelo era agora cortado com capricho, e também havia escurecido, mas era ainda da cor de mel queimado, não tinha mais o aspecto de palha, e seus olhos... Seus olhos permaneceram castanhos, inquietantemente castanhos, porque no fundo daquela cor, havia um reflexo vermelho e escuro, que evidenciava-se a ponto de qualquer pessoa notar, quando a luz incidia sobre eles de maneira direta, especialmente a luz do fogo ou as luzes elétricas. As criadas comentavam – longe dos patrões e à meia voz – que bastava haver o demônio na forma de um gato preto dentro de casa, e agora mais o menino, com aqueles olhos, que se não eram indício de violenta loucura, não deveriam ser bom sinal, e pior, nem se sabia se ele era batizado! Mas nada disso importava. Akizuki sabia o que falavam sobre ele, desde o começo, desde quando chegara à família. Ele escutava excepcionalmente bem, e atravessava a casa com uma velocidade misteriosa e espantosa, de maneira que era como se desaparecesse de um lugar para reaparecer em outro, e assim vingava-se das criadas que não gostavam dele. Sumia com as conchas da cozinha, mudava de lugar os temperos, espalhava as cinzas do fogão pelo chão. E isso não o fazia impedir Spinel Sun de deixar sapos dentro das gavetas de roupas das criadas ou continuar derrubando o varão de panelas no meio da madrugada. Eles estavam sempre juntos quando faziam estas coisas. E Eriol inevitavelmente sabia de tudo o que se passava. E adorava saber de cada maldade que Akizuki era capaz, embora o deixasse de castigo às vezes e chamasse sua atenção o tempo todo, do mesmo modo que também fazia com Spinel Sun.

Eloise ainda era apaixonada por Akizuki, e previa que ainda teria muitos problemas com as moças, quando ele estivesse mais velho, porque Akizuki era um menino muito bonito, de olhar muito intenso, de atitudes muito livres, difíceis de conter, fossem os atos ou as palavras. Mas ela própria reconhecia que o futuro reservava surpresas para ele, posto que quando fora a escola para saber que Akizuki havia batido novamente em um estudante mais velho, notara que o motivo da briga não fora exatamente uma provocação de meninos, e sim uma resposta equivocada e violenta a um flerte. Ele chamaria, quando fosse mais velho, não apenas a atenção das moças, mas também dos rapazes, e isto já estava acontecendo, e era indiferente a tudo isto. Ainda quando ficava ansioso, pegava Spinel Sun em seu colo, enrolando a ponta de seu rabo no dedo, e a mesma já havia adquirido a forma de uma pequena espiral, que arrancava risadas de quem o via pela primeira vez.

Spinel Sun nunca perdoou Akizuki por ter feito isso com a ponta de seu rabo. Quando estavam sozinhos, discutiam o tempo todo por causa disso, discutiam porque Akizuki "apenas por provocação, havia feito de propósito" de ficar mais alto do que ele, que Eloise gostava mais de um do que do outro, que Quincey contava mais histórias a um do que ao outro... Discutiam por tudo, mas não se largavam, adoravam-se, e todo o tempo que estavam juntos, estavam brincando, quando não estavam brigando, e era difícil saber o que faziam com mais freqüência.

Spinel Sun estava com dez anos, pelo menos, era o que Eriol imaginava, porque além de nunca querer dizer seu verdadeiro nome a ninguém, ele também fazia igual segredo sobre seu aniversário, embora houvesse dito que sabia qual o dia. Ele já não permanecia tanto como um gato, exceto quando estava com os adultos, e andava quase que livremente como um menino pela casa, e achava muito divertido assustar as criadas. Eloise ainda o mimava e Quincey estranhava ele não haver crescido com a mesma velocidade de um gato comum. Ele ainda cabia dentro dos bolsos de seu costume, embora já fosse maior do que havia sido no começo. E como um menino... Ele era bem menor do que Akizuki, e continuava comilão da mesma forma que quando era pequeno. Estava menos cheio de vontades, porque então já se habituara a dividir as coisas com Akizuki, mas não estava menos teimoso e barulhento. Seu cabelo continuava comprido, mas agora estava cortado e penteado, Eriol o havia cortado com a tesoura de costura de Eloise.

Ele vivia com fome, e o tempo havia tornado-o de tal maneira sensível a doces, que era agora extremamente perigoso deixar que os comesse, pois bastava um para que não parasse mais. E da feita que começava, não chorava mais como fazia quando era menor, ele ficava barulhento, risonho e tagarela. Pendurava-se nas cortinas usando as unhas, arranhava o estofado dos móveis, jogava lençóis sobre a cabeça para tentar matar de susto a governanta, e, por fim, mais recentemente se tornara obcecado por querer ir falar com Quincey – que tanto ele quanto Akizuki chamavam e a ele se referiam como pai, bem como também Eloise era chamada de mãe.

Quando Eriol chegara em casa, e vira-se à mesa do chá, no escritório de seu pai, ao lado de tão estranha família, sentiu-se enfim em um lugar conhecido. Sim, era uma família muito estranha...

Mas era a sua família.

Ele também viu-se no olhar de Akizuki, um olhar muito estranho.

Mas era um olhar que era apenas seu...

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Não havia sido a primeira vez, e sabia que não seria a última a ser olhado daquela maneira, e quanto mais, sabia que também não era novidade alguma que ele mesmo devolvesse aquele olhar. Nada daquilo era novidade. Não sabia quando começara, e nem fazia diferença. Nunca sabia quem iniciava aquilo, mas sempre era assim. Sentiu o rosto arder violentamente, quando pensou em si mesmo, e sem querer, acabou queimando-se com o chá, mas ficou calado.

"Tome cuidado para não se queimar." – Quincey falou, do outro lado da sala. Ele não estava tão interessado na conversa com Eloise a ponto de não saber de tudo o que se passava ao redor, à mesa do chá.

Eriol voltou-se para ele, esfregando os lábios. Sentiu que a xícara em sua mão tremia. Spinel Sun estava sentado encima de apoio de pés, e olhou para ele também, de uma maneira significativa, e abriu a boca num chiado de nojo, de autêntica provocação.

"Se fizer isso de novo, vou chutar você daí!" – Eriol ameaçou num sussurro.

"Não briguem!" – Era a voz de Quincey de novo. Aquele tom, em especial, desencorajava qualquer tentativa de rebelião. Mas era inútil usá-lo, por exemplo, contra Akizuki.

Eriol respirou fundo e tentou concentrar-se em sua xícara. Não sabia porque os adultos, principalmente seu pai, estavam tão calados neste dia. Desde a hora em que haviam chego em casa, Quincey parecia distante e muito pensativo, estava conversando amenidades com Eloise, mas parecia apenas um pretexto de estar por perto. Parecia atento a tudo. De repente Akizuki terminou seu chá – sem leite, ele detestava leite de todas as maneiras – e levantou-se. Ele estava quase tão alto quanto Eriol, e nem havia feito doze anos ainda, bem maior do que ele com a mesma idade. Vestia-se como qualquer menino de sua idade, meias xadrezes cobrindo as pernas até os joelhos, costume e calções marrons, mas estava com o pescoço livre, usava uma fita vermelha no lugar da gravata, uma fita estreita e fosca. Eriol sabia que aquela fita era quase da mesma cor de seus olhos quando ele deixava isso transparecer. Akizuki (que nome estranho para um menino inglês, ele pensou, mas nunca disse isso em alto...) atravessou o escritório e sentou-se ao lado de Quincey, encostando a cabeça em seu braço, e ficou sentado ali, calado. Eloise esticou o braço – ela estava sentada ao lado do marido, também – e afagou sua cabeça, fazendo-o sorrir. Enquanto ainda sorria, depois deste afago, Akizuki fez aquilo de novo. Ele olhou, até o fim de seu sorriso, para Eriol. Assim eles se encararam sem sorrir, demoradamente. Eriol tinha a impressão de que Akizuki conseguia saber o que se passava por sua cabeça, e corou de novo, baixando os olhos. Sabia que Akizuki sorria de novo, agora, e que era um sorriso um tanto cruel. Uma crueldade de criança, ou a crueldade de sua natureza? Nunca saberia. Ele jamais saberia muitas coisas sobre Spinel Sun e sobre Akizuki embora os conhecesse havia muito tempo, mas isso nunca o perturbou tanto quanto agora.

"Com licença."

Quincey ergueu os olhos de tal maneira, quando Eriol se levantou da poltrona em que estava que era quase como se este olhar fosse uma chicotada, de tão agudo. Ele estreitou os olhos para Eriol.

"Onde você vai?"

"Para meu quarto." – Respondeu, perplexo.

"..."

"Ah, Eriol!" – Akizuki chamou, antes que ele saísse do escritório, o rosto novamente vermelho e ardendo, porque quase conseguia entender o que dizia o olhar de seu pai.

Ele parou e olhou para trás. Akizuki havia acabado de se levantar.

"Papai! Eriol pode me ajudar com meu dever de latim?"

"Suas notas em latim são invejáveis, Akizuki." – Novamente seu tom não admitia questionamento, mas aquilo não surtia efeito algum na teimosia dele.

"Então em meu dever de matemática!"

"Não perturbe seu irmão. Fique aqui conosco." – Quincey estava começando a aborrecer-se com aquilo. Todos sabiam que as notas dele em matemática também eram muito boas e que ele era a última pessoa do mundo que precisaria de ajuda para os deveres de escola em matemática.

"Não estou perturbando!"

"Não responda, Akizuki!"

"Não estou respondendo, mamãe!" – Então ele sussurrou... Eriol estremeceu, sentindo as mãos frias de tensão, porque Akizuki era mais dono de si e da situação do que ele próprio. – "Eriol pode me ajudar com o dever de grego?... Por favor?"

"Não."

A voz de Quincey foi cortante. Mandou Eriol ir para seu quarto de uma vez e ficar lá até a hora do jantar. Akizuki sentou-se em outro sofá, longe dos adultos, e, numa revolta silenciosa, pegou Spinel Sun em seu colo e começou a enrolar a ponta do dedo em seu rabo. Spinel Sun contorceu-se para se livrar, mas acabou levando um puxão na cauda que o forçou a ficar no mesmo lugar, e acabou conformando-se em ficar ali. Sua cauda nunca voltaria a ter o formato de antes, de qualquer maneira...

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Eriol entrou em seu quarto e trancou-se nele. Não sabia o que pensar sobre o que percebera tanto em Akizuki quanto nele mesmo. Não sabia como teria coragem de encarar seu pai novamente depois do que acabara de acontecer no escritório. E o olhar de Quincey? O que ele sabia, ou achava que sabia? Não havia nada o quê saber... Não havia nada, não estava acontecendo nada. Ou estava? Eriol não sabia. Não queria saber. Sentia-se sufocado em casa, sentia ainda o rosto afogueado, e não queria continuar pensando naquela briga. Maldita hora que não aceitara seu presente, em Pigalle. Maldita hora em que pedira para voltar para casa, porque agora em casa não sentia-se caber em espaço algum. Mas todos os dias era isso, não era? A hora do chá sempre era a pior. Parecia que todos eram acessíveis a seus pensamentos.

Apesar de tudo, lembrou-se que Spinel Sun não conseguia saber o que se passava na mente de ninguém, mas nunca soubera se Akizuki conseguia fazer isso. Não tinha muita certeza da maioria das coisas que aqueles dois conseguiam fazer, além das travessuras de sempre. Talvez Akizuki conseguisse fazer aquilo. Eriol respirou fundo, tentando encontrar onde esconder sua vergonha. Spinel Sun havia feito aquele ruído de provocação. Talvez ele também soubesse... Melhor que não pensasse nisso. Tirou o costume, soltou os botões do colete e deitou-se de atravessado, na cama. E sem querer, cochilou, esquecendo-se até de tirar os sapatos.

Quando acordou, estava sufocado, acordou de seu sonho no meio de um susto. O ar do quarto estava abafado, embora devesse estar frio. Já estava escuro do lado de fora, viu pelas janelas, mas olhou para o relógio, quando sentou-se na cama, e viu que faltava muito para a hora do jantar. Não queria descer ainda, e nem poderia. Livrou-se do colete e tirou os sapatos. Tentou respirar fundo para livrar-se do sufocamento, mas não conseguiu, mesmo que o fizesse pela boca. Seu corpo inteiro tremia, sensível demais ao calor que começou a sentir, afrouxou o colarinho e, inevitável... Acabou correndo para o quarto de vestir, quase tropeçando no escuro do quarto, e bateu a porta, trancando-se com duas voltas de chaves. Eriol sabia muitíssimo bem porque não conseguia respirar, e a culpa fora daquele cochilo, a culpa era toda do sonho que acabara de ter.

Ficou em pé no mesmo lugar em que estava, a porta fechada a menos de um palmo de seu rosto. Havia uma escuridão absoluta dentro do quarto de vestir, e isso atiçou sua imaginação de tal maneira que as sensações de seu sonho retornavam, muito vivas. Saber o quanto diziam-lhe no colégio, que isto era condenável tinha apenas o poder de excitá-lo mais ainda. Mais condenável ainda pelas coisas que pensava quando no escuro do quarto de vestir, deixava escapar gemidos muito baixos, de delícia, quando trancava-se ali, para encontrar o prazer em suas próprias mãos. Desta vez, quando seus pensamentos perdiam o rumo, em fantasias indizíveis, no chão do quarto de vestir, arrependia-se milhares de vezes por Pigalle, imaginando o que poderia ter acontecido, o que não aconteceu, e, enfim, deixando-se livre para imaginar aquilo que realmente desejava.

"Ah..." – Seu gemido era muito parecido com um lamento, e praticamente inaudível. Fechou a mão que estava livre, encontrando apenas suas roupas espalhadas pelo chão. Não queria pensar naquilo, mas não conseguia livrar-se da imagem cunhada em sua imaginação. Imaginava antes de tudo uma boca aberta, ofegante. Imaginava cílios úmidos apertados de agonia. Imaginava gotas de suor deslizando encima de uma pele lustrosa de suor. Sua imaginação fazia-o confundir o som da própria respiração com o som da respiração de outra pessoa, confundir a sensação de suas próprias mãos sobre sua pele nua com o toque de outra pessoa.

Gemeu mais alto quando estremeceu de prazer, imaginando que também ouvia gemidos esbarrarem sua orelha. Mas a voz que desejava ouvir não era desconhecida, e também não era a sua própria. Quanto mais condenável aquilo parecia-lhe, por tudo, e apesar de tudo, excitava-o até o limite. E ele demorava muito, torturando-se de prazer, indo quase até o fim para remoer em sua imaginação cenas mais ardentes, imagens impossíveis, coisas que nunca havia feito, mas que desejava fazer, o que acima de tudo desejava...

"A-Akizuki... Ah!"

De olhos fechados, sentia agora em sua própria pele o suor descer em linhas finas de suor, por debaixo de seu cabelo, pelo meio de suas costas... Sentiu escorrer-se também nas mãos, que estavam úmidas de suor, e agora... Sua garganta estava seca, e todo seu corpo tremia, abandonado no escuro abafado e silencioso do quarto de vestir.

Depois, não escutou mais sequer sua respiração, que apenas tornou-se pesada e difícil.

"Você me chamou, Eriol?"

Ele sentiu seu corpo todo esfriar subitamente, e seu coração ter um sobressalto tão forte que o fez disparar em seguida. Eriol também sentiu um fio de suor gelado descer por sua testa. Akizuki estava ali? Mas como?

"Você me chamou?" – Ele insistia, impaciente. Não poderia duvidar, aquela era a voz de Akizuki. Eriol não teve coragem suficiente para abrir os olhos e encará-lo, na verdade não sabia o que fazer, e nem se a vergonha o permitiria dizer alguma coisa.

"Como você entrou aqui?..." – Sua voz foi quase inaudível. Sentiu o rosto esquentar de vergonha, e mesmo estando escuro, não teve coragem de tentar adivinhar de onde vinha a voz de Akizuki. De qualquer maneira, estava bastante próxima, perigosamente próxima, porque de repente excitou-o mais ainda saber que ele estava lá, que talvez ele soubesse o que estava acontecendo naquela escuridão do quarto de vestir... Talvez ele o houvesse visto.

"Eu estava no corredor, quando escutei você me chamar!"

"..."

Percebeu que Akizuki se movia. Escutou o farfalhar de suas roupas que estavam jogadas pelo chão, provavelmente as encontrara. Lembrou-se de que ele escutava muitíssimo bem, melhor do que qualquer pessoa. Melhor do que qualquer humano, talvez por não ser um. E era muito fácil esquecer disso. Eriol tremeu de prazer quando escutou a voz dele novamente, agora em um sussurro, como se fosse possível para alguém ainda escutar qualquer som vindo daquele lugar:

"Papai está zangado com você?"

"Ah!... Não! Eu não sei..." – Sussurrou de volta. Descerrou os olhos lentamente. Tentou passar a língua nos lábios ressequidos, mas não conseguiu forças para isso. Olhou ao redor, tentando definir onde estava Akizuki, mas não era possível enxergar nada. Não havia luar naquela noite, ou pelo menos, ele sentiu-se aliviado em notar, não o suficiente para iluminar nada ali. – "Vá para o seu quarto..."

Eriol percebeu pelo fino som da respiração de Akizuki que ele estava muito mais perto do que gostaria. Permaneceu imóvel, sentindo a pele de seu corpo úmida de suor, tornando-se consciente que ele exalava aquele cheiro, e havia também o cheiro de seu sêmem no ar, provocativo, evidente.

"Não!"

Sentiu de repente uma mão menor agarrar-se ao seu pulso, e Eriol puxou-o de volta violentamente, recuando até suas costas encontrarem o baú em que era guardada a roupa de cama. Não soube reconhecer quem falou, ou se falaram ao mesmo tempo.

"Não." – Disse, ou repetiu. Eriol conseguiu definir que ele estava bem à sua frente, porque percebeu seus olhos, ou melhor, percebeu apenas um lampejo breve, um faiscar no escuro e somente isso. Eriol olhava e adivinhava estar olhando para Akizuki, adivinhava, sem querer, o que sua imaginação agora desenhava no escuro do quarto de vestir.

"Como você entrou aqui?" – Tornou a repetir, tendo certeza de que tanto a porta de seu quarto quanto a porta do quarto de vestir estavam fechadas à chave.

"..." – Teve a impressão de ouvir, e sentir, a respiração de Akizuki aprofundar-se. Quase sentia sua respiração colidir com seu rosto. Era um suspiro de impaciência, ele nunca gostara de perguntas insistentes.

"Akizuki, eu não vou repetir. Vá para o seu quarto. Agora." – Queria conseguir inserir em suas palavras alguma autoridade, mas só teve forças para sussurrar.

Agora Eriol tornava-se consciente que sua imaginação corria caminhos duvidosos, perigosos. Estava tão perturbado pela presença de Akizuki, embora não o visse, que estava insuportavelmente excitado, bastaria um toque sobre sua pele, em qualquer parte que fosse de sua pele, que sua fragilidade cederia violentamente. Quando pensou nisto, sentiu sua pele toda arder como se estivesse com febre, precisava policiar-se para não tornar a se tocar, porque precisava fazer isso, estava tão excitado que sentia dor, e sem querer gemeu, deixou escapar um som longo e baixo, de delícia, de prazer, quando sabê-lo ali, uma presença tão próxima, tão viva, o fez pensar naquela imagem que o excitava tanto: aquela boca que ele imaginava entreaberta, úmida, arfando, gemendo.

"Não!"

Akizuki respondeu-o, com a autoridade de uma criança teimosa. Aquela resposta foi definitiva. Eriol sentia-se tão ereto quanto nunca antes, doía, nunca estivera tão excitado, nem quando aquela criada havia permitido-lhe algumas liberdades, havia mais de um ano atrás, mas agora, nem a isto poderia comparar o que estava sentindo. Não conseguia mais suportar a vergonha, o medo, a excitação, ele virou-se um pouco sobre si mesmo, tentando ficar de costas para onde imaginava que Akizuki estivesse, e escorregou as mãos para entre as próprias pernas, e mal sentiu a ponta se seus dedos ali, deixou escapar outro gemido, mais alto, convulsivo. E pensar que jamais deveria estar fazendo aquilo na frente dele, isso o fez estremecer, fazendo força para conter a onda de prazer que corria por sua pele como dedos invisíveis, de unhas longas e afiadas.

Sentiu algo esbarrar em sua orelha, achou que era seu próprio cabelo.

"Vá para o seu quarto... Por favor..." – Gemeu, o coração quase saindo de seu peito, de tanta era a força com que batia. Suas mãos trêmulas esbarraram novamente ali, entre suas pernas. Gemeu mais uma vez, de prazer e desespero.

Sentiu algo esbarrar com mais força em sua orelha, sentiu um hálito quente ali, e um gemido, imitando o seu. Tentou levantar-se, afastar-se, mas perdeu o equilíbrio, acabou permanecendo no chão, incapaz de manter-se em pé daquele jeito, tão excitado. Gemeu, quase sentindo o orgasmo mais intenso de sua vida aproximando-se subitamente. Escutou de novo o gemido, imitando o seu. Sentiu duas mãos menores, mas cheias de força, mantendo seus joelhos afastados, sentia o calor daquelas mãos sem as ver, e sentia o calor de todo o corpo de Akizuki muito perto do seu, atravessando o tecido das roupas, tocando toda sua pele nua, molhada de suor.

"Por favor, Akizuki... Por favor..." – Seu sussurro pareceu-lhe imediatamente que possuía milhares de sentidos, e acima de tudo, uma insinuação tremenda e erótica. Mantinha-se com custo erguido nos braços, percebendo que Akizuki praticamente debruçava-se sobre ele, sem, no entanto, o tocar. Queria que ele se afastasse, queria terminar aquilo que começara, queria... Ah, Eriol queria muitas coisas, mas desejava apenas uma...

Percebeu, quando silenciou, que um hálito colidia com o seu, com seu rosto transtornado. Instintivamente, abriu a boca, e arquejou, e tentou levar a mão de novo para entre suas pernas, mas antes que pudesse fazer isso, outra mão o havia tomado, desajeitada, trêmula e suada, uma mão que não era sua. Ele gemeu alto, e silenciou absolutamente, porque sua boca também havia sido tomada, havia sido assaltada por um beijo roubado, desajeitado, um beijo macio e malicioso, mas um beijo de criança. Gemeu naquele beijo, porque a mão de Akizuki, desastrada e inexperiente, repetia o mesmo que Eriol havia feito antes, sozinho, e usava de força, de uma falta de coordenação que era uma autêntica tortura. Uma tortura e uma carícia. De todo o corpo dele, só percebia a boca na sua, e sua mão ali. Eriol abandonou-se no chão, livrando-se daquela boca macia e arquejante em busca de ar, mas não livrou-se da mão dele, e nem queria isso. Quando estendeu-se no chão, Akizuki estendeu-se ao lado dele, sua mão ainda ocupada, e depois sua boca, quando Eriol finalmente, teve coragem de abraçá-lo, e trazê-lo para o beijo que sempre desejara.

Estremeceu uma, duas vezes, e soltou um gemido baixo, muito longo, quase um suspiro, de tão doloroso. Já não continha seu corpo, e desmanchou-se na mão inexperiente de Akizuki, em um jorro cheio e tão doloroso, tão delicioso e intenso que imaginou que seu orgasmo havia sido de puro sangue. Mas o cheiro que os circulou era o de sêmem e de suor. A boca de Akizuki afastou-se da dele, um fio de saliva entre os lábios deles, e um fio de sêmem entre sua mão e o membro de Eriol.

Ele não afrouxou o abraço que passara em torno do corpo de Akizuki. Percebia-o vestido, reconhecia aquelas como as mesmas roupas de antes, da hora do chá. Lembrou-se de si mesmo e encolheu-se de vergonha. O que diabos estava fazendo? O que diabos deixara acontecer? Segurou com força o pulso dele, e tateando pelo chão, encontrou sua camisa embolada, pegou-a e esfregou com força a mão dele, tentando limpá-la, desesperado. O que estava fazendo? Estava louco... Akizuki era um menino, não importava que parecesse ter mais, ele tinha apenas onze anos! O que estava fazendo a ele? A si próprio? O havia beijado, havia sido seu primeiro beijo, tinha certeza de que também havia sido o primeiro dele, e... Não, não, estava tudo errado! Jogou a camisa fora, quando achou que havia conseguido limpar a mão de Akizuki. Aquele não havia sido o primeiro beijo de nenhum deles, o primeiro havia sido havia muito tempo, no dia em que o trouxera para casa. Desde lá tudo estava errado, era inútil tentar consertar agora, e mesmo que devesse fazer isso, no fundo, não queria.

De repente, deu uma pequena palmada estalada encima da mão de Akizuki.

"Nunca mais faça isso!" – E soltou sua mão. Eriol sentiu que chorava, chorava de raiva de si mesmo. Esfregou os olhos, desejando morrer.

"..."

"Eu mandei você ir para o seu quarto!" – Sussurrou, cobrindo os olhos com um dos braços. Largou-se no chão do quarto escuro de novo, exausto e sem saber o que pensar sobre mais nada.

"Eu quero ficar aqui. Com você."

"Eu estou falando muito sério, Akizuki."

"..."

"Você me escutou?"

"... É isso o que os adultos fazem?" – Era a curiosidade de uma criança falando novamente, e não a obstinação cega de antes, a teimosia. Sua voz soou doce quando perguntou isso. O coração de Eriol apertou-se e descobriu que não havia motivo de tristeza ou vergonha. Akizuki não sentia-se assim...

"Mais ou menos..." – Suspirou, um pouco mais conformado.

"Foi o que você fez com a criada Julie?... É aquilo que os adultos fazem?" – Eriol arregalou os olhos, na escuridão. Tinha certeza absoluta de que ninguém soubera que ele havia tido liberdades com a criada. Mas não foram tantas liberdades assim, ele fizera aquilo mais por curiosidade, e nem de longe o excitara tanto, ou sequer foram até o fim, não chegara nem a ser o mesmo que acabara de acontecer.

"Mais ou menos..."

"..."

"..." – Eriol pensava sinceramente como iria olhar para Akizuki depois do que havia acontecido.

"É bom?"

Eriol engasgou. Desta vez pensou como encararia seu pai e sua mãe depois do que houvera. Não que imaginasse que alguém soubesse, mas ele sabia, e sua consciência talvez não o deixasse em paz. E a pergunta de Akizuki... Sim, era bom... Era muito bom...

"Sim." – Foi a resposta mais honesta que poderia dar-lhe.

"... Melhor do que beijar você?"

"..." – Eriol sentiu o rosto esquentar de vergonha. – "Muito melhor."

"Você já fez, Eriol...?"

Akizuki aproximou-se dele, estendendo-se ao seu lado no chão, não parecia ter consciência alguma do estrago que era capaz de fazer nos nervos e no coração de Eriol, ou se tinha esta consciência, sua crueldade tornava-se redobrada, e isto não era tão improvável, pela malícia implícita de sua voz adolescente, falhando nas notas agudas, sussurrada muito perto do ouvido dele, quase como antes, quando imitara deliberadamente o som de seus gemidos.

"Não..."

"..."

"Eu não sei fazer o que os adultos fazem... E eu não sei quando vou aprender..."

"..."

"..."

"... Eriol..."

"Fale."

"Quando você aprender... Eu quero aprender com você."

E dito isto, Akizuki levantou-se, quase podia perceber nele um sorriso silencioso, mesmo sem poder enxergá-lo no escuro, e tão subitamente quanto havia surgido ali, desapareceu, como um sonho, como um pesadelo, como um terror escondido nas frestas de um armário antigo, como um velho fantasma que viera apenas atormentá-lo. Eriol ergue-se do chão, e olhou ao redor, mesmo sem ver nada. Estava sozinho. Nunca sentiu-se tão sozinho antes. Pegou a mesma camisa que havia deixado de lado antes e esfregou-se, tentando livrar-se do sêmem que ainda estava em seu corpo. Depois soluçou, largou-se no chão e chorou como nunca havia chorado antes.

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Ele não descera para o jantar, e quando perguntou-se de Eriol à mesa, Akizuki, de maneira indecifrável apenas disse:

"Ele estava dormindo."

E no dia seguinte, Eriol não falou com ninguém pela manhã. Antes do dia nascer, ele havia saído, sem esperar para levar Akizuki para a escola. Foi direto para o colégio, tomar parte do desjejum dos alunos internos de lá, que era servido às seis da manhã. Ninguém o viu até a metade da tarde, quando voltou do colégio. Foi direto para seu quarto e argumentou um princípio de dor de cabeça e muitos deveres, para que fosse dispensado do chá e do jantar. Ele evitou deliberadamente estar sozinho com Akizuki, e sem querer, também evitou Spinel Sun, evitando que ele percebesse qualquer coisa. E quando fechou-se em seu quarto, tomou um cuidado que nunca tivera antes. Pegou uma pequena barra de giz amarelo que Spinel Sun havia esquecido encima de sua escrivaninha e dirigiu-se até a porta. Respirou fundo e não hesitou. Riscou com o giz um círculo de isolamento, e dentro dele, o triângulo de Palavras Exatas, em seus cantos, os números da Soma Exata. Crueldade? Não sabia. Por via das dúvidas, aquele círculo só permitiria a entrada de quem lhe perguntasse em voz alta se podia entrar, e ainda assim se ele permitisse. Mas claro, esta condição para a entrada aplicava-se unicamente àqueles que não fossem humanos. Crueldade? Talvez...

Havia muito a pensar, e quase nada Eriol conseguia entender.

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Desistira de tentar decidir o que fazer quando o sono o venceu, depois dos deveres feitos. Dormiu um sono muito pesado e sem sonhos, tornado inquieto pela fome. Acordou no meio da madrugada apenas para ter certeza de que estava sozinho, e quando a teve, não gostou tanto disso quanto achou que gostaria. Levantou-se em pijamas, empurrando o cabelo despenteado para trás, esfregando os olhos.

Atravessou o quarto e foi até a porta. Suspirou, porque sabia que não estava pensando com o raciocínio, quando apagou o selo, e nem sendo prudente, ou decente. Mas o que havia acontecido, dois dias antes, nem de longe havia sido qualquer destas coisas. Eriol esfregou a mão pelo selo, limpando a linha tênue de giz, depois foi até a cômoda e lavou-a na bacia. O que acabara de fazer tinha um sentido, e muitíssimo questionável. Não fora isso que lhe ensinaram, fora? Aquele ainda era um lar cristão, não era? Mas tornar-se tão aplicado a estudar feitiçaria, aos quinze anos, a ponto de saber como selar uma porta, não era muito cristão.

"Há um século atrás eu seria queimado vivo por muito menos..." – E por outro motivo, neste século em que vivia, bem que merecia este castigo.

Quase podia ouvir a voz de seu pai dizendo-lhe, com força e autoridade.

"Não corrompa seu irmão."

Mas ignorou esta voz, que sumiu num eco de sua imaginação. Ignorou toda a prudência e foi até a porta, abrindo-a lentamente, com um rangido longo e agudo. Olhou para fora. Para os lados. O corredor estava escuro. Todas as portas estavam fechadas. O cesto de Spinel Sun estava vazio porque ele dormia no quarto de Akizuki. Achou mais racional fechar a porta novamente e ir dormir, mas quando preparou-se para isso, deu com Akizuki parado bem à sua frente, imóvel, em roupas de dormir e enrolado no cobertor. Um momento antes ele não estava ali, e estava agora, e muito zangado.

"Você fechou a porta por dentro..."

Sem ter o que dizer, apenas acenou que sim com a cabeça. Teve a impressão de que Akizuki estava diferente, ou era apenas sua imaginação, tanto faz. Mas sentia-o e via-o diferente de antes. Parecia maior, mais alto, ou seu queixo erguido e sua zanga o faziam assim. Ele aproximou-se em passadas largas e empurrou o peito de Eriol fazendo-o abrir mais a porta e Akizuki entrou, como se o quarto fosse seu, de tanta liberdade. Foi para a cama e jogou-se nela, enrolado naquele cobertor.

"Vá para o seu quarto, Akizuki."

"..." – Ele fingiu que não ouvia. Só ouvia o que queria, quando estava zangado.

"Deixe de criancices e vá para o seu quarto agora!" – Perdeu a paciência definitivamente.

"Eu faço o que eu quero."

"..."

"Você não manda em mim!"

"Se não for para o seu quarto por bem, eu vou chamar o papai para ele ver o que você está fazendo."

"Se você chamar o papai, eu vou dizer a ele o que você fez. E até o que fez comigo...!"

"..." – Engoliu em seco. Sabia que Akizuki era capaz de qualquer coisa, principalmente as mais improváveis. Ele deveria pensar seriamente em entrar para a política quando fosse adulto, tanta era sua habilidade de mudar de posição dentro de sua estratégia... Um momento atrás, Eriol imaginava-se vítima de sua teimosia, e agora imaginava-se aquele que praticamente o violentara, ainda que não houvesse sequer chego perto disso.

"Eu quero, Eriol."

Eriol pestanejou. Estava mesmo ouvindo aquilo? Sem querer sentiu-se excitado... Muitíssimo.

"E eu quero agora."

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Eriol precisou fazer-se de aço para não ceder a seu primeiro impulso, que era o de bater em Akizuki. Arrastou-o de cima de sua cama e, mesmo com ele debatendo-se, levou-o de volta para seu quarto e o deixou lá. Oh, não, Eriol não ficou irritado com o que escutara, e nem com o atrevimento dele, que para ele era só um menino, e nunca deveria dizer estas coisas (que nem de longe foram as piores que já ouvira...). Claro que sabia o que poderia ter acontecido, era muito comum no colégio em que estudava, que também era um colégio interno e tinha seus alunos residentes, seus protetores... E protegidos. A curiosidade, o medo, o desespero e a mesma excitação que sentira quando estiveram no quarto de vestir, tudo isto poderia tê-lo empurrado a fazer algo que sabia que ia arrepender-se. Saiu do quarto dele debaixo de uma chuva de palavrões e ofensas. Não sabia que Akizuki tinha a boca tão suja... Aliás... Não sabia muitas coisas sobre ele, e a primeira que aprendera nesta madrugada, era que ele tinha muito mais malícia do que as crianças de sua idade, e também sabia dissimular isso nos momentos certos, sabia inverter os papéis, e, apesar de tudo, era só um menino... E não gostava de ser contrariado.

Spinel Sun estava dormindo na cama de Akizuki, jogado, parecendo estar morto tão pesado era seu sono, que nem chegou a se mexer com tanto barulho. Deixou Akizuki com sua revolta, até que se conformasse de que o que queria era... Era... Aquilo não tinha nome, não deveria ter nome, para um menino de sua idade.

Eriol descobriu que estava sorrindo quando chegou em seu próprio quarto e fechou de novo a porta. Estava rindo. Estava deliciado em ver a fúria de Akizuki dirigida contra ele. Estava encantado com tanta raiva, tanta revolta. Estava encantado, sempre estivera. Pensou no dia em que o trouxera para casa, aquele beijo de crianças, que agora pesava tanto em suas recordações. Pensou com excitação naquele beijo da noite anterior, e em tudo o que havia acontecido. Estava louco... Quincey o mataria. Sua mãe o mataria. Se tudo o que havia feito até aquele momento em sua vida era condenável, o que houvera entre ele e Akizuki na noite anterior tinha apenas uma palavra para definir-se: abominável.

Mas quando ocorreu-lhe isto, excitou-lhe tanto o pensamento de tal proibido, que correu para o quarto de vestir e trancou-se lá pelo resto da madrugada.

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"Eriol!" – Era Spinel Sun chamando-o. Estava vestindo uma camisa de adulto como camisolão de dormir e estava andando atrás dele no corredor..

Ele fez de conta que não escutou e saiu pela porta dos fundos, a porta da cozinha, pegar a bicicleta e ir para o colégio.

"Eriol! Eu estou falando com você, seu idiota!"

"Quer fazer o favor de falar baixo! Vão ouvir você até em Londres!"

Spinel Sun correu na direção dele. A cozinha estava vazia, na verdade nem havia amanhecido completamente ainda. Novamente Eriol estava saindo de maneira que quase ninguém o encontrava mais em casa havia dias. Ele já pensara em pedir para se tornar interno do colégio.

"Vocês são um bando de pirralhos cheios de vontades! Não sei porque ficaram assim, eu queria saber quem estragou vocês desse jeito! Você e Akizuki!"

"Você nos estragou!" – Atravessou-se na sua frente antes que ele chegasse até a bicicleta. Era muito mais difícil discutir com ele do que com Akizuki, bastando saber que Eriol perdia as discussões com ele quando Spinel Sun tinha apenas cinco anos. – "Você está com raiva de nós, Eriol? Por que você não vem mais brincar conosco? E nem ler histórias?"

"Eu tenho de estudar! Agora deixe-me ir de uma vez!"

"Ah, eu já sei! Você não quer falar com o Akizuki!..."

"Ora, cale a boca, Spinel Sun..."

"Eu vi você olhando para o Akizuki, eu sempre vi, na hora do chá! Até o papai mandar você sair! Você olha para ele do mesmo jeito que o Sr. Sullivan olha para a nossa governanta e..."

"Spinel Sun, pelo amor de Deus, cale a boca!"

Já estavam perto do galinheiro, com esta discussão. Eriol estava quase batendo os dentes de frio, na madrugada, e Spinel Sun, descalço e com roupa de dormir, parecia muitíssimo à vontade. Via com clareza seus olhos verdes cintilando na penumbra azulada. Ele estava rindo, e de repente fez uma careta de nojo, deixando seus dentes muito brancos surgirem pelos lábios, por um instante:

"Que horrível! Você gosta do Akizuki! Você gosta dele, por isso está zangado! Que nojo! Você vai beijar o Akizuki do mesmo jeito que eu vi o papai fazer com a mamãe!" – Spinel Sun apontou para Eriol, que sentiu-se ficar corado como um tomate maduro quando escutou a verdade dita na sua cara como um tiro à queima-roupa. – "Que nojo! Vocês vão se beijar! Argh!"

E fez um barulho como se fosse vomitar, horrorizado com o que acabara de descobrir, e o silêncio de Eriol apenas confirmava sua suspeita.

"Você gosta dele!" – Riu de novo, era uma zombaria típica de crianças.

Eriol respirou fundo, pegando a bicicleta que estava encostada na parede do galinheiro e indo para dar a volta na casa. Spinel Sun achava muito divertido ter descoberto o que na verdade era óbvio, e deveria tê-lo sido há muito tempo. Era evidente, e talvez todos houvessem notado isso, menos o próprio Eriol.

"Vocês vão fazer aquilo?" – Outra pergunta feita à queima-roupa e sem nenhum aviso.

"O quê!" – Eriol achou que o mundo estava prestes a acabar. Agora era um menino de dez anos que estava falando coisas sujas.

"Aquela coisa nojenta... Como os pombos fazem... Como os carneiros fazem... E os cavalos, que..."

"Eu não sei do que você está falando! E você também não deveria saber e nem deveria falar essas coisas! Você é um menino!"

"Ah-há! Sabe sim! São aquelas coisas nojentas que a mam...!"

"Chega, Spinel Sun! Se der mais uma palavra, vou enfiar seu rabo dentro do moedor de carne!" – Cortou, arrependendo-se do dia em que conhecera Spinel Sun. E pensar que tivera pena daquele monstrinho comilão...

"Você gosta do Akizuki..." – Cantarolou, provocando.

"Vou enfiar você dentro da máquina de fazer salsichas, seu tagarela!" – Juntou uma pedra do chão e a jogou na direção de Spinel Sun, somente para livrar-se dele. Não precisava ouvir aquilo. Nunca imaginou escutar aquelas coisas até de Spinel Sun, que nunca saía de casa, e imaginava-o sem saber daquelas coisas todas, porém, descobrira do pior jeito que estava muito enganado em relação a várias coisas.

Sua bicicleta tombou para o lado, e Spinel Sun voltou para dentro de casa, dando verdadeiras gargalhadas. Havia conseguido fazer Eriol perder o resto de paciência que tinha. Ele juntou sua bicicleta e foi para uma trilha pela qual poderia sair da propriedade sem ter de passar pelos portões. Afastou-se com alívio da casa. Sabia que não era de todo impossível que Akizuki estivesse olhando para ele de alguma das janelas da casa, e até sentia este olhar. Estava evitando-o havia dias, e mais cedo ou mais tarde, teria de encará-lo mais uma vez. E também Eloise não estava nada satisfeita de não vê-lo à mesa do chá. Talvez fosse hora de parar de tentar esconder-se. Antes de afastar-se da casa definitivamente, parou e olhou para trás. Ele estava em uma das janelas, como imaginara, mas ao invés de acenar, apenas continuou olhando, e depois fechou a cortina. Eriol perguntou-se porque sentia tanto medo quando pensava em Akizuki, porque ele começara a parecer-lhe capaz de amedrontá-lo tanto, agora. Lembrou-se que aquele era um dos dias de sua aula de esgrima, no colégio, e decidiu-se a não ir naquela aula, para poder chegar mais cedo em casa, e ver com seus próprios olhos o que poderia acontecer se brincasse com fogo do jeito que Akizuki o provocava.

Ainda escutava o riso de Spinel Sun cantarolando, quando afastou-se da casa.

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Voltou um pouco antes da hora do chá. Corajosamente, apenas deixou suas coisas em seu quarto, tomou um banho, vestiu roupas de casa e desceu para o chá. Logo arrependeu-se. Eloise, ao lado do marido, estava com os olhos vermelhos e Quincey, muitíssimo aborrecido.

"O bom filho a casa torna..." – Foi apenas o que seu pai disse, sem olhar em sua direção. Um dos galgos de caça estava deitado no chão, com a pata enfaixada, ao lado de uma poltrona vazia. Olhou ao redor e não viu Akizuki, mas conteve-se de perguntar.

Uma criada terminava de servir a bandeja do chá, quando Spinel Sun entrou no escritório trazendo algo na boca. O galgo ergueu a cabeça, mas o ignorou. Reinava um silêncio tenso e ameaçador naquela sala, e Eriol tinha certeza de que se abrisse a boca, poderia até mesmo sair morto de lá. Mas não podia simplesmente ficar de pé, à porta, tentando disfarçar o próprio constrangimento. Spinel Sun pulou para uma poltrona vazia e ficou olhando de maneira acusadora para ele, se é que um gato é capaz de um olhar tão veemente. Respirou fundo e, falando muito baixo, resignou-se:

"Eu não tenho podido estar em casa..."

"..."

"... Tanto quanto gostaria..."

"..."

"... Eu estava estudando."

"..."

"Eu agi mal. Muito mal." – Engasgou quando pensou no quanto estava agindo de maneira questionável agora, e era muito menos do que agira dias atrás. Quantos dias? Uma semana inteira. Já era sexta-feira. – "Minha conduta foi abominável." – E sua voz sumiu na garganta, quando admitiu isso, mas não admitiu-o por sua freqüente ausência do convívio da casa e sua recusa de tomar parte dele, o que para seus pais era uma atitude de rebeldia e afronta, e sim pelo que havia acontecido entre ele e Akizuki.

"..." – Quincey finalmente olhou para Eriol, demoradamente. Eloise também olhou, mas de uma forma como se quisesse dizer-lhe algo, expor sua irritação.

"..." – Eriol não conseguiria dizer mais nada. Permaneceu em silêncio, achando ridículo ter de arriscar-se a levar ralhos como se ainda tivesse dez anos.

"Hoje você vai pedir desculpas aos seus irmãos e a sua mãe principalmente, porque nos preocupou muito. Olhe só para você! Está branco como cêra." – Quincey apontou-lhe um lugar num sofá, dando-lhe permissão para sentar. – "Akizuki está muito zangado com você. Posso compreender que você se aborreça com a teimosia dele, ele é um menino muito cheio de opiniões, e muito dono do próprio nariz, muito mais do que você o foi com a mesma idade. Mas não posso ser conivente que você o evite ou o destrate por isso."

Eriol perguntou-se o que Akizuki teria dito, ou se disse alguma coisa.

"Depois que terminar o chá, Eriol, você vai subir até o quarto de Akizuki e conversar com ele, entendeu? Não quero que briguem, e tampouco se afastem." – Eloise finalmente falou. Estava indignada com o que estava acontecendo. Ela inclinou-se para buscar a xícara de Quincey e a sua.

Eriol repetiu este gesto, mas ficou olhando para o vapor do chá subindo, espalhando seu cheiro. Sentia um nó em seu estômago, porque a contragosto teria de encontrar-se a sós com Akizuki, e não sabia se conseguiria agir como se nada houvesse acontecido. Quando ia levar a xícara aos lábios, Spinel Sun o fez acordar de seus pensamentos pulando em seu colo. Eriol afagou sua cabeça, sussurrando desculpas tímidas. Spinel Sun pareceu cheirar sua xícara.

"O que está fazendo? Esta não é sua xícara!"

De fato não era. E justamente por isso, Spinel Sun deixara cair dentro dela aquilo que segurava na boca, desde quando entrara na sala.

Eriol olhou e deparou-se com uma barata viva, debatendo-se no chá quente, até morrer cozida. Engoliu em seco, enojado. Olhou para seus pais, que tentavam encobrir o riso e teve de reconhecer duramente que Spinel Sun tinha muito estilo e sabia se vingar. Crianças são crianças, até as que não são humanas, e crianças são sempre cruéis. Aquele inseto morto no seu chá não era nada. Imaginava se Spinel Sun não estaria acabando-se de gargalhadas, se estivesse sob uma forma humana neste exato momento. Tinha vontade de fazê-lo engolir aquele chá, com a barata e tudo o mais. Mas não era apenas com isso que deveria preocupar-se, pensou, desistindo do chá, e indo abraçar sua mãe, que agora sorriu, tendo a certeza de que Eriol não tornaria a fazer aquela desfeita de ausentar-se sem avisar nada.

De tudo, sua preocupação maior tinha onze anos, era teimoso, desaforado e o estava esperando, com todo o ódio que um menino de onze anos pode ter por alguém. Agora, Eriol teria de enfrentar toda esta fúria, e, quisesse ou não, também encarar, como o adulto que ainda nenhum dos dois era, o que havia acontecido. Ele subiu as escadas contando os degraus e finalmente bateu à porta fechada do quarto de Akizuki.

CONTINUA