Disclaimer: Inu-Yasha, Sesshoumaru, Kagome, Jaken e todas as personagens e elementos relacionados ao anime Inu-Yasha pertencem a Rumiko-sensei.
Registered: As personagens Mey-enn, Chihima, Omoori, Kitsime, Miyachi, Yamma e Mimytsu pertencem à dona dessa fic e apenas a ela.
Anjos & BastardosBy Michelle Omura
Capítulo I – Independência
Mey-enn arrumou suas coisas em uma pequena mochila e a pôs nas costas. Ainda era cedo, e ninguém estava acordado. Olhou para o vilarejo, se despediu com um olhar e foi andando em direção à floresta. O sol estava começando a nascer.
Com quinze anos, Mey-enn estava partindo do vilarejo no qual vivera durante toda a vida. Seus cabelos negros extremamente compridos estavam a poucos centímetros de arrastarem no chão, mas ela os prendia sempre, de modo que eles pareciam não ultrapassar a cintura da menina. Os olhos, lilaseados, tinham a perspicácia felina e o ardor puramente humano. A pele era alva e não possuía marca alguma. Ela parecia perfeita.
A garota parou na orla da floresta, hesitando por um momento. Lembrou-se então da voz de Shippou, um grande amigo de infância. Bem, digamos, infância dela, porque ele já era crescido quando os dois se conheceram. E era a voz dele que ecoava na cabeça da menina:
"— Lembre-se, Mey-enn, que não importa o quanto você goste daqui, um dia precisará partir, e quanto mais tarde, mais doloroso será."
Ela então abaixou a cabeça e seguiu.
Mey-enn andou durante um ano inteiro. Encontrou, perto de uma floresta, em meados de Setembro, uma loba. O velho animal, uma youkai do Clã dos Lobos do Sul, conquistou a confiança da menina e, cerca de uma semana depois do início da primavera, lhe disse onde Mey-enn poderia encontrar comida e abrigo. Desenhou-lhe na terra um mapa rústico com a garra e a conduziu até as portas de um castelo de aparência imponente.
Yamma, a loba, a deixou ali, e Mey-enn foi direto ao castelo. Ali achou, perto da porta, uma garrafa de saquê muito leve. Bebeu um gole e se sentou para descansar. Uma mão a segurou pelos cabelos e a soergueu. Mey-enn contemplou o rosto daquele youkai de pele alva e marcada, com uma Lua tatuada na testa, cabelos argênteos e olhos amarelados.
— Que está fazendo? – perguntou ela, o couro cabeludo dolorido. – Me solta!
— Quem pensas que és para adentrar os domínios do senhor do Oeste sem sequer lhe prestar as devidas honrarias?
— Eu não sabia de quem era esse lugar, eu não queria desrespeitar ninguém!
— Mesmo que não me importasse com as honras, você, humana, tomou do saquê mais puro desta região. Roubou, portanto.
Sem cerimônia, ele a levou para a câmara dos servos e a entregou a pequenos youkais-sapos. Eles deram a ela roupas, que Mey-enn vestiu rapidamente, e serviço para fazer. Ela primeiramente limpou a cozinha e ajudou os outros servos a preparar o alimento que seria consumido pelo senhor do castelo, o Lorde Sesshoumaru.
Ela entrava na cozinha de manhã cedo e saía apenas tarde da noite. Às vezes, quando podia, Chihima, uma outra serva, terminava o serviço do jardim do castelo e ia para a cozinha realizar o trabalho de Mey-enn. Quando isso acontecia, Mey-enn ia para os jardins, se deitava perto das cerejeiras e ficava contando os brotos de sakuras. As duas garotas se tornaram grandes amigas em pouquíssimo tempo.
Uma vez, porém, quando Mey-enn saíra para o jardim, Sesshoumaru estava ali. Ele chamou a garota, sempre a tratando como humana, simplesmente.
— Hai? – respondeu a menina.
— Sente-se aqui – ele indicou uma pequena colcha em frente a si.
Mey-enn obedeceu, sem entender. Sesshoumaru pegou uma pequena faca e ficou brincando com ela entre os dedos. A garota já estava ficando angustiada em ficar ali, sentada, esperando uma coisa que ela sequer sabia o que era.
— Qual é o seu nome? – perguntou Sesshoumaru, finalmente.
— Mey-enn – respondeu ela, aliviada.
— Filha de Inu-Yasha?
— Hai.
— Está trabalhando em que parte do castelo?
— Cozinhas.
— Não deveria estar aqui fora, então.
— Eu... Bem... Me desculpe, senhor, não irá mais acontecer.
— Tanto melhor para você – ele fincou a faca na grama. – Agora vá.
Mey-enn se levantou e se retirou, trêmula. Se dirigiu à câmara dos servos e se deitou no futon ralo em que dormia, normalmente. Adormeceu rapidamente.
No dia seguinte, ela descobriu que mudara de serviço. Ficaria encarregada da alimentação do senhor do castelo. Isso significava ver Sesshoumaru todos os dias, o que lhe trazia angústia e felicidade. Afinal, Sesshoumaru era belo, usava termos delicados mesmo quando com desprezo carregava a própria voz. Mas ela não ia agüentar ficar ali, perto dele, se ele ficasse quieto como no dia anterior.
Durante vários dias ela levava ao youkai que a capturara o alimento e voltava à câmara dos servos, em silêncio. Sesshoumaru quase sempre lhe dirigia a palavra, mas sempre a tratando por humana. Ela respondia tratando-o por senhor, e sempre calma.
Sesshoumaru se assustava com a calma da menina. Ela parecia não ver problemas no fato de que ele era youkai e que ela era serva dele. Os dois mantinham uma relação de submetida e mestre um tanto formal, mas essencialmente boa. Ela nunca perguntava sobre a vida dele, e ele nunca a mencionava. E estava bom assim.
Um dia, porém, Mey-enn não saiu do quarto do youkai. Perguntou a ele, sem cerimônia alguma:
— Vai me libertar?
— Sim – respondeu-lhe ele, sem olhá-la. – Agora volte para a câmara dos servos. Eu acabei de lhe fazer uma promessa. Cumpra sua parte e será livre.
Mas Mey-enn não conseguiu acreditar no que ele lhe dizia. Ele já havia prometido outras coisas a ela, como que não condenaria Chihima brutalmente por ela ter ajudado outra serva a fugir, mas sempre a olhava nos olhos quando fazia isso.
Por isso, na primeira oportunidade, ainda naquela noite, resolveu fugir. Comunicou Chihima, que lhe aconselhou o contrário, pois já havia fugido, sido recapturada e marcada para mostrar que era serva fugida. A outra, porém, não lhe deu ouvidos. Saiu discretamente e começou a correr.
Mey-enn corria mais do que as pernas e o fôlego permitiam. Tinha pouco tempo até que o senhor do castelo percebesse que ela fugira. Ela tropeçou em uma raiz e caiu, derrapando na grama macia. Uma sombra se movia rapidamente ao lado dela, e, de repente, cortou a frente da garota, assustando-a.
— Por que pensou que ia fugir assim? – perguntou Sesshoumaru, se pondo entre ela e o terceiro portão, exatamente no meio do caminho.
Ele segurou a menina com violência, as mãos com unhas afiadas machucando-a. Levou-a novamente para dentro do castelo, já quase desmaiada de cansaço, tamanha era a força que ela fazia para se livrar. Ele a levou até sua câmara, deitou-a num futon, segurando seus pulsos, e chamou Jaken. Pediu a ele três servos humanos, uma faca e panos limpos. O youkai trouxe tudo rapidamente.
Sesshoumaru se irritou ao ver que dois dos servos eram youkais. Ela era uma humana, deveria ser marcada por humanos! Despachou os servos e olhou para Jaken e para o único servo humano à sua frente.
— Ela fugiu – disse ele. – Puna-a da maneira mais memorável possível. Quero que ela fique marcada para sempre, e que não fuja por dias.
Jaken concordou com a cabeça. Mey-enn sufocou um grito ao ver a faca afiada. Sesshoumaru entrou na sala de banhos e se deitou no ofuro, o aroma quente de sakuras impregnando sua mente, misturado com os gritos abafados da menina, que era marcada, na sala ao lado. Não importava o que aconteceria com ela, desde que ela não resolvesse fugir novamente.
Os gritos cessaram depois de dez minutos. Sesshoumaru, contrariando os próprios costumes, se lavou e se enxugou sozinho, e se vestiu normalmente, deixando de lado apenas a armadura.
O taiyoukai entrou na câmara, a roupa agora limpa. Um de seus servos humanos saía de lá, com a faca curta e limpa em uma das mãos, um pano levemente manchado de vermelho na outra. Jaken ainda estava dentro do lugar.
— Tudo pronto, ssenhor Ssesshoumaru
— Tatuada?
— Ssim, ssenhor.
— Aonde?
— No meio dass cosstass, no pesscoço, lado essquerdo, no pulsso essquerdo, e na parte de dentro doss doiss tornosseloss.
— Quando ela acordará?
— Em, no mínimo, trêss diass. A dor que ela ssentiu deixaria um youkai poderosso como o ssenhor dessacordado por quasse um dia.
— Então, ela não vai fugir?
— Não, ssenhor. Quer que eu a leve?
— Deixe-a comigo.
— Como quisser, ssenhor.
Jaken saiu da câmara, fechando a porta com dificuldade. Sesshoumaru a lacrou por dentro, com uma magia de espadas que aprendera havia muito. Todo o castelo estava em silêncio, como sempre acontecia quando ele estava ali. Sesshoumaru olhou para a humana deitada.
"Mey-enn, menina, pensou que eu a deixaria fugir sem mais nem menos? Eu sequer pretendia te libertar, e agora nunca o farei..."
O príncipe virou a garota de bruços e desnudou as costas dela. Tatuada na pele alva, uma lua crescente marcava a menina que ele dominara.
"Tão sutil e linda... Mas impura e inferior como qualquer humano."
A pele fria e marcada reluzia ao tremeluzir de rubras chamas, em tochas, na câmara lacrada de Sesshoumaru. Resquícios de sangue podiam ser vistos na roupa e nos cabelos dela, como se ela tivesse sido marcada completamente acordada, se debatido enquanto o processo ocorria, e limpa superficialmente. As cicatrizes febris faziam o corpo dela estremecer quando tocadas.
"Sem dúvida, humana. Mas... o que me chamou a atenção, afinal? Ela não é melhor que nenhuma que eu conheci."
Ele a tocou novamente, na altura da nuca, e sentiu a garota amolecer, mesmo desmaiada. Por algum motivo, sentia prazer em tocá-la. Por isso lacrara a câmara. Não podia contar com a possibilidade de alguém entrar e vê-lo tocando, tão compenetrado, as cicatrizes lunares do corpo da menina. Por que ele a estava observando tanto? Era só uma humana, afinal.
"Filha de meu meio-irmão imundo, mas, ainda assim, humana."
De repente, ele sentiu uma vontade de rasgar a pele da garota. Era um instinto de youkai, ele sabia; queria provar aquela humana. Esticou o dedo e sentiu prazerosamente a pele alva se romper num risco de sangue rubro. O cheiro férreo invadiu suas narinas; ele pegou uma única gota, e pôs na boca, se deliciando com aquele gosto único. Um traço suave da ascendência youkai da garota pôde ser sentido enquanto ele apreciava o sangue, os lábios secos.
Ele se deu conta do que fizera repentinamente. Pulou para a varanda, o coração pulsando, forte. O corte já estava seco, as costas da garota, cicatrizando. Ele ficou olhando o corpo imóvel, estendido no futon, com as costas desnudas. E, como se aquele olhar a reanimasse, Mey-enn abriu os olhos, piscou-os duas vezes e voltou-os para o youkai parado à varanda. E sorriu. Um sorriso doce, provocante, levemente constrangido e sofrido.
Ela se levantou, os olhos fixos em Sesshoumaru, o corpo coberto com a veste de seda alva pontilhada de vermelho. Sentiu as costas nuas, e um leve ardor percorreu a recente cicatriz, que ainda estava em formação. Ela andou até o youkai, sensual como qualquer garota de dezesseis anos.
— Oi – disse ela, timidamente.
— Volte para seus aposentos – ordenou Sesshoumaru.
Ela acenou negativamente com a cabeça.
— Vou ficar aqui – disse.
— Sabe do que sou capaz, humana? – ele cerrou o punho sob a manga das vestes.
— Sei – ela se aproximou, os olhos brilhando.
Sesshoumaru não reagiu. Ficou ali, parado, para ver onde aquilo ia parar.
— Eu sei do que o senhor é capaz – a voz dela, ao ouvido do youkai, tinha um trejeito de malícia –, tio.
Ele saltou e a pegou pelo braço, sobre a cicatriz em forma de lua crescente. Mey-enn gemeu de dor, mas não o afastou. Ele era cruel, mais do que muitos youkais, mas ela estava disposta a correr o risco. Talvez... não, era absurdo. Mas ele era bonito.
Sesshoumaru quase quebrou o pulso dela. A mão da garota ganhava, pouco a pouco, um tom arroxeado, e ele via o rosto dela se contorcer de dor, sem afrouxar o aperto. Então, com uma expressão serena, ele a soltou.
— Pensei que ia atrofiar minha mão – disse a menina, movendo os dedos com tranqüilidade.
— Não haveria nenhum propósito nisso – respondeu ele, frio.
— Tudo pra você tem um propósito? – perguntou Mey-enn.
— E não deveria?
A garota se limitou a sorrir, e chegou perto do youkai, até seu rosto ficar quase colado ao dele.
— Tio – disse a menina, a mesma voz.
Ele a segurou pela nuca, rápida porém não brutalmente. Seus olhos se avermelharam por um instante, antes de ele dizer:
— Não me chame de tio. Sou seu senhor, seu dono. Você está marcada com o meu símbolo. Aqui – ele apertou a cicatriz na nuca dela –, aqui – as mãos dele fizeram contato com a cicatriz nas costas dela –, aqui – ele segurou o pulso dela firmemente – e ali – ele apontou para os tornozelos dela.
— Eu sou sua, então?
— Sim – respondeu Sesshoumaru. – Minha serva, como qualquer outra.
Mey-enn sorriu, novamente. Talvez a capacidade de ela sorrir, com aquele jeito de menina em um corpo de mulher crescida, é que fosse o mistério que impregnava aquele corpo. De repente, Sesshoumaru queria vê-la longe, bem longe, fora de seu campo de visão e de faro. Mas... Por quê?
— Saia, por favor – pediu ele, os dedos esguios comprimindo as têmporas. – Volte depois, ou não volte. Me deixe só.
Ela concordou com a cabeça, sorrindo.
— Eu virei servi-lo, senhor.
Mey-enn se retirou, com as costas ainda nuas e a lua crescente aparecendo, junto à cicatriz fina que o príncipe produzira. Sesshoumaru fechou a porta e lacrou-a. Sentiu que sua respiração ficava mais acelerada. Pulou a janela e foi até o meio da floresta, bem a tempo: se transformou de repente. O cão gigantesco permaneceu naquele tamanho por aproximadamente cinco minutos. A respiração voltou ao normal, e ele também. O príncipe taiyoukai foi pulando até o castelo, e entrou novamente pela janela pela qual tinha saído.
— Me disseram para trazer isso para você – disse Mey-enn, o esperando, do lado de dentro do quarto.
— Por onde entrou, se a porta está lacrada?
— Pelo mesmo lugar que você – ela pôs um copo de cristal com saquê sobre uma mesa. Se curvou e perguntou, com um único gesto, se ele queria ser servido.
Sesshoumaru concordou com a cabeça, e ela levou o copo ao youkai sentado na janela. Pôs o copo na mão dele e se sentou ao lado do youkai.
— Humana – ele tomou um gole de saquê –, eu já lhe disse que era para você sair.
— Eu quero saber aonde ficam meus aposentos – murmurou Mey-enn. – E se, algum dia, o senhor vai me libertar.
— Você roubou – disse ele.
— Foi uma garrafa de saquê! – exclamou ela, indignada.
— Irá embora quando eu disser que pode ir.
Mey-enn tocou o rosto dele, arranhado por um galho na hora que ele voltava para o castelo.
— Não dói? – perguntou ela.
— Já está cicatrizando – disse ele, irritado. – Tire a mão.
Ela deu de ombros e tirou a mão. O príncipe se levantou e entregou o copo na mão da garota, que o pôs sobre a bandeja e a levou para fora.
Sesshoumaru se sentiu com fome, mas não de carne, como sempre. Era uma fome estranha, tão interna quanto intensa. Ele se sentou sobre o futon, as pernas cruzadas, reflexivo. De novo parecia que ia se transformar, mas não fazia sentido, uma vez que ele conseguia se controlar. Controle. Estranho, parecia que ele perdia, pouco a pouco, a capacidade de se controlar. E por quê?
"Ela é só uma humana."
E ele já tomara sua decisão: a baniria dos serviços relacionados diretamente à ele. Ela nunca mais seria vista por ele. Nunca mais. Ninguém a veria mais, a não ser as outras servas. Ele nunca mais precisaria encarar aquele cheiro suave de sakuras, ou o aroma de sândalo que emanava de seus cabelos.
"E... É isso o que eu quero? Talvez ela me faça bem... "
Afastou o pensamento com um gesto brusco. Claro que não era ela quem estava mexendo assim com ele. Não podia ser. Não, não podia, nunca seria, aquela humana nunca sequer conseguiria fazer com que ele fixasse nela seus olhos. No entanto...
— Não posso cometer erros como os de meu pai – esbravejou ele para si mesmo, socando com força o chão e vendo-o rachar levemente.
Se levantou, ofegante. Na mente, um par de olhos lilases marcavam e cabelos escuros emolduravam o rosto singelo de Mey-enn. Por que ela se metera na vida dele? Por quê? Ela não podia ficar longe dele, por um instante? Não, não, tinha que atormentá-lo, seus pensamentos precisavam ser perturbados por aquele vulto que cheirava a sakuras. Precisavam. Mas ele não queria que fossem.
Na câmara dos servos, Mey-enn conversava com a menina que costurava sua roupa, vestida com uma yukatta que conseguira por ali.
— Ele lhe capturou? – perguntou a menina, tímida. Devia ter uns doze anos, o rosto afilado, olhos e cabelos castanhos, e era muito hábil com a agulha. Era ela que costurava a maioria das roupas de Sesshoumaru.
— Sim, Chihima – Mey-enn segurava o pulso, que pulsava convulsivamente. – Ele me marcou. – Ela mostrou as cicatrizes lunares para Chihima, que prendeu a respiração, horrorizada. – E ainda me expulsou de perto dele, e não disse quando vai me libertar.
— Oh, Mey-enn, essas marcas, oh, é horrível! – a menina acabou o último ponto e cortou a linha, entregando o quimono à amiga. – Ele nunca marca as servas com a Lua, nunca, se um dia for libertá-las. Você está presa a ele para sempre, ele nunca te libertará!
— Ele me disse que ia – Mey-enn falava pausadamente, levemente receosa. – Me deu sua palavra.
— É recíproco – explicou Chihima. – Uma vez que diz que vai te libertar, fica subentendido que você irá servi-lo fiel e satisfatoriamente até que ele a liberte. Você fugiu, quebrou o pacto primeiro. Não é culpa dele.
Mey-enn pegou a roupa, tirou a yukatta e pôs o quimono, habilmente costurado. A pele fria reclamou quando ela tirou o tecido pesado e substituiu-o pela seda leve. Mey-enn não se importou; passara frio por vários dias, seu corpo se acostumara com a ausência de calor, sabia que demoraria a ficar aquecido novamente. Talvez, se a menina fosse dormir cedo, conseguisse um lugar perto do fogo. Caso contrário, nada de mais.
— Não fique apreensiva assim, Mey-enn – disse Chihima, as mãos suaves pegando as mãos dela. – Tem mais uma coisa que eu preciso te contar.
— Fale – murmurou Mey-enn, num suspiro.
— Ele não marca todas as servas que fogem com a Lua – a menina apontou para uma mulher de uns vinte anos, debruçada na janela. – Miyachi foi marcada com o ideograma para "fugitiva". Quase todas são. E podem ser libertadas, e tem os mesmos direitos e deveres das outras servas.
— E por que eu não fui marcada assim? – perguntou Mey-enn, sentindo o pulso a incomodar novamente.
— Não sei – disse Chihima, balançando a cabeça levemente. – Mas ele nunca maltratou as mulheres marcadas com a Lua. E, além de você, ele só marcou duas, duas youkais, e as duas morreram orgulhosas por terem sido marcadas com a Lua.
— Eu não sou como as outras – disse Mey-enn. – Quero voltar pra minha casa, meu vilarejo, deixar tudo, continuar o treinamento para ser uma sacerdotisa. Eu não quero viver aqui.
Chihima suspirou e abraçou a amiga. De fato, Mey-enn não merecia. Realmente, apesar de se sentir muito só sem Mey-enn por perto, Chihima queria que a garota conseguisse fugir. Ela merecia ser livre. Livre como a Lua, que deitava seu brilho sobre eles, avisando que os servos domésticos deviam ir se deitar.
Conseguiram lugares perto do fogo para dormir, ao contrário do que sempre acontecia. Chihima adormeceu logo. Mey-enn se virou muito no pequeno futon antes de conseguir adormecer.
Parecia não ter dormido sequer dez minutos quando um youkai-sapo, a mando de Jaken, entrara no cômodo e pedira a Mey-enn que lhe acompanhasse, pois o senhor do castelo se ferira gravemente. Ela foi, esfregando as mãos para acabar com o frio. Entrou na câmara de Sesshoumaru e foi deixada a sós com ele. Panos de linho alvo, bacias de água quente e vários tipos de erva, além de uma agulha muito fina e linha, estavam no chão, perto do divã em que Sesshoumaru se recostara, o braço esquerdo sangrando muito.
Mey-enn pegou um pano, molhou em água quente e, pedindo desculpas, rasgou a manga da yukatta que o taiyoukai vestia. Pressionou o pano ali, com cuidado para não exagerar na força e machucar seu senhor. Sesshoumaru gemeu de dor. O corte era profundo, pegara o músculo contraído, doía muito. Mey-enn pegou um pouco de uma erva anestesiante e se posicionou de frente para o youkai, que se sentara. Amassou a erva em bolinhas pequenas e quase encostou o rosto no peito do youkai, tão próxima que estava, para acertar os pontos de nervos, que, uma vez anestesiados, não a fariam se preocupar tanto com a dor de Sesshoumaru.
O youkai sentiu naquela proximidade o cheiro de sândalo do cabelo de Mey-enn, que o deixava tonto. O corpo frio da menina, tão rente ao seu, lhe fez um arrepio percorrer a espinha, enquanto ela punha a erva nos pontos nervosos, a seda da roupa dela muito próxima a ele. Seu coração se acelerou incontrolavelmente. Ele a afastou, com um gemido pelo movimento brusco, as mãos segurando os ombros dela. Ele não sabia porque... Ela não lhe fizera nada. Mal encostara nele.
— O que houve, senhor?
— Nada – Sesshoumaru estava respirando ofegantemente. – Saia daqui, por favor.
— Não posso – disse ela. – Me mandaram vir ver seu ferimento. Conheço a espada de meu pai; sei o quanto a Tessaiga é poderosa.
Sesshoumaru cedeu, e deixou que a garota limpasse o ferimento, que teimava em não cicatrizar. Mey-enn fazia o serviço calma e precisamente, estancando o sangue quando necessário, usando as ervas apenas quando preciso.
— O que aconteceu? – perguntou ela, molhando o pano na água quente e torcendo-o.
— Apenas lutei com seu pai, humana – murmurou ele, a contragosto. "Mas eu nem sei direito o porquê."
—————————————(FLASHBACK)————————————
Sesshoumaru chegara rapidamente ao vilarejo onde vira Mey-enn pela primeira vez. Relutava em fazer isso, mas queria ver a menina longe, e o único meio era devolvê-la ao local de onde ela viera. Perguntara a um aldeão que andava apressado se ele sabia de uma menina chamada Mey-enn.
— Desapareceu há quase dois meses – dissera o homem. – O senhor do vilarejo, o hanyou Inu-Yasha, está furioso. Disse que paga pela cabeça de quem a levou.
Sesshoumaru dispensara o homem, que andara normalmente até certo ponto, e então, começara a correr feito um desesperado. Subira numa árvore e observara longamente a cabana onde o meio-irmão vivia, com a humana de cabelos negros que lhe trouxera a desgraça.
"A ele e a mim", pensara Sesshoumaru. "Não fosse por essa humana, nunca teria conhecido Mey-enn. Eu nunca teria experimentado compaixão para com humanos."
Sesshoumaru se esquecera por completo de Rin. Mas, ainda assim, Rin lhe salvara a vida, ele apenas retribuíra, de certa forma, e a menina humana lhe fora útil, afinal, cuidando de seu cavalo youkai e, por um lado, até de Jaken.
Inu-Yasha, dentro da cabana, sentira o cheiro de Sesshoumaru, e fora lhe procurar. Não fosse o excelente faro, o hanyou nunca teria encontrado seu meio-irmão.
— Sesshoumaru – zombara Inu-Yasha. – O que fazes aqui?
— Sei onde está a menina que procuras – dissera ele em resposta, calmamente.
— Foi você que raptou minha filha! – o hanyou sacara a espada, furioso. – Me diga onde ela está, e sua morte será rápida!
— Tsc, tsc, não foi assim que nosso pai lhe ensinou, Inu-Yasha – dissera ele, balançando a cabeça, em negação. – Primeiro perguntar, depois ouvir, depois libertar.
— Não me venha com balela! – exclamara Inu-Yasha, descendo a Tessaiga e quase acertando Sesshoumaru.
O youkai empunhara a Toukijin, mas, por algum motivo, apenas queria terminar a luta, sem o prazer que sempre sentia em lutar contra o hanyou que era seu meio-irmão. Tentara um golpe sem força contra Inu-yasha, com o braço esquerdo, recém-recuperado. Ainda conseguiu acertar o hanyou, que, furioso, investira muito rápido para Sesshoumaru, a espada produzindo alguns rasgos em sua roupa e várias escoriações pelo corpo do youkai.
Sem vontade alguma de lutar, Sesshoumaru se virara, e, não querendo ser ignorado daquela maneira, Inu-Yasha fincara a espada no braço do youkai, que evitara que o braço fosse perfurado, mas recebera um belo corte no antebraço. Com um arranhão de suas garras venenosas, bem-sucedido, Sesshoumaru fora embora, e se refugiara em sua câmara, pedindo a Jaken uma serva que o curasse do corte. Só não imaginara que o youkai traria justo a garota pela qual, descobriu ele depois, inconscientemente, lutara.
————————————(FIM DO FLASHBACK)———————————
— Cuidado, menina! – exclamou Sesshoumaru, desvencilhando o braço das mãos de Mey-enn.
— Me desculpe – murmurou ela, odiando ter que se prostrar daquele jeito; não fizera nada errado!
— Dependo desse braço para lutar – disse ele, dando o braço novamente a ela e relaxando na cadeira. – Seja rápida, por favor.
Mey-enn assentiu com a cabeça e começou a costurar o corte. Era tão estranho; normalmente um youkai se cura por si só, mas ele dependia dela. Pela primeira vez, realmente dependia de uma humana.
— Não faça muito esforço, sim? – aconselhou-o ela, se levantando. – Sua pele já cicatrizará; eu apenas ajudei o que a natureza do senhor faria, com certeza. – Mey-enn pegou os panos, as bacias e as ervas, empilhou tudo e se preparou para sair. – A propósito, volto depois pra ver se os pontos não romperam.
Sesshoumaru concordou com a cabeça e ela saiu, fechando a porta ao passar. O taiyoukai se levantou e lacrou a câmara, sentando-se no parapeito da janela então. "Tão lindo o horizonte quando uma mudança opera na nossa vida, filho".
"E que mudança seria essa, mãe?", pensou ele. "Certamente nada ligado a Mey-enn, mas..."
Ele suspirou e se deitou, puxando a colcha e sentindo uma fisgada no braço costurado. Teve um sonho em que ele corria atrás de uma mulher, de cabelos pretos e asas de anjo, e ela brincava com faixas negras bordadas com luas e estrelas. Acordou com um grito do lado de fora da porta.
Escancarou a porta e contemplou uma cena desagradável: dois de seus servos youkais, armados com pequenas lanças, atacavam Mey-enn. Quando questionados, responderam apenas que "a humana queria atrapalhar seu descanso, senhor." O príncipe os enxotou, partiu suas lanças e pegou Mey-enn no colo, se sentindo subitamente culpado, e sabendo que não era.
A garota não desmaiara, apenas estava de olhos fechados, gemendo de dor. Pedindo desculpas, Sesshoumaru despiu o braço dela e viu, na altura do ombro, uma perfuração que teria causado dor intensa mesmo nele. Pegou um pouco de água e limpou o ferimento. Depois, amarrou uma faixa de linho para estancar o sangue que profusava rapidamente.
— Obrigada – disse ela, tocando a face do youkai, em agradecimento.
Sesshoumaru corou e se virou para a janela, para o horizonte, muito tranqüilo e claro, excepcionalmente lindo. A menina, num esforço absurdo, se levantou e foi até junto dele, se debruçando na janela.
— Posso ver seu braço? – perguntou ela.
— Claro – disse ele, ainda vermelho pelo singelo toque das mãos dela.
Mey-enn afastou o pano que cobria o ferimento do taiyoukai e sorriu ao constatar que o corte já cicatrizara. Com a ajuda de uma adaga que trazia à cintura, ela cortou os pontos que haviam fechado o ferimento. Tocou a pele alva e levemente marcada do antebraço do príncipe, o que o fez estremecer e acelerou seus batimentos cardíacos. Ela sentiu isso e o soltou.
— Sabe que horas são? – perguntou ela.
— Algo em torno de duas horas, a julgar pelo sol – respondeu ele, observando ainda o horizonte, estupidamente fascinado.
Passaram a tarde toda na câmara. Observaram o pôr-do-sol e o escurecer do céu, sem dizer palavra. Sesshoumaru pensava, porém, em várias coisas, sendo uma delas o porquê de ele ter aceito aquela menina perto dele, sem se manifestar, gostando dela, gostando da companhia dela, gostando do cheiro dela, das palavras doces que saíam de sua boca. Sentia-se tão atraído como nunca estivera, por quem quer que fosse.
Mey-enn percebia isso; sentia o mesmo. Decidira havia muito o que queria, e, agora, tinha a oportunidade de que precisava. Virou-se para Sesshoumaru, que a estava olhando. Ele engoliu em seco. A menina chegou perto, muito perto dele. A dor no braço perfurado não a impedia de tocar o príncipe. Ele recuou, mas ela foi se aproximando, até ele se encontrar de costas com a parede.
— Sesshoumaru – ela tocou a face dele. – Meu Sesshoumaru.
— Seu? – o youkai parecia confuso.
— Meu tio, meu dono, meu lorde, meu amor.
— Como assim... amor?
— Como qualquer outro – disse ela, tocando com os lábios o lábio inferior do youkai. – Um youkai perfeito. Meu youkai perfeito.
Sesshoumaru não a afastou dessa vez. Deixou a garota se entregar, decidiu que ela ia parar antes de chegar muito mais longe. A abraçou, com cuidado para as unhas não machucarem a pele macia da humana. Mas a manobra que Mey-enn empreendeu fez com que Sesshoumaru ficasse desnorteado. A menina se virou dentro do abraço e deixou a cabeça cair para trás, no peito do youkai. Ela agarrou o pescoço dele e foi se ajoelhando, até seus joelhos encostarem no chão, levando Sesshoumaru com ela. Ele se sentou com as pernas cruzadas, e ela se aninhou em seus braços como uma criança que pede, silenciosamente, proteção. Proteção essa que, a muito custo, acaba conseguindo.
Mey-enn sentiu o calor gostoso do corpo do youkai permeando o seu. Ela estava com frio, se sentindo solitária, e ele trazia, em sua essência, algo que ela não podia explicar, mas que a mantinha confortável. Sesshoumaru sentiu uma nuvem de um cheiro suave e humano subir. Seu rosto estava afundado nos cabelos negros de Mey-enn, sua mente vagueava por cantos até então desconhecidos de seus sentimentos. E, por incrível que parecesse, eram sentimentos bons.
— Levante-se – disse ele de repente. A garota fingiu não ouvir. – Levante-se – ele alteou a voz. – Levan...
Mey-enn pôs um dos dedos nos lábios do youkai, e sussurrou:
— Há servos no seu castelo. E as paredes tem ouvidos.
Sesshoumaru hesitou. Era verdade, o castelo não era deserto; qualquer um podia ouvir os dois. Ele fechou os olhos por um instante, reflexivo, e Mey-enn se aproveitou disso para beijar o youkai. As presas salientes machucaram levemente a boca da menina, mas ela não se importou. Era uma sensação muito boa, estar ali, colada ao corpo do youkai que tão arduamente amava. A armadura pontiaguda feriu de leve as costelas dela, desenhando arranhões vermelhos na pele já tão marcada.
— Nunca fui eleita sua, Sesshoumaru – ela acariciou o rosto do youkai, levemente transformado, com os olhos avermelhados e os caninos um pouco mais salientes. – Agora eu quero ser. Só sua.
Sesshoumaru novamente hesitou. Era uma humana, acima de tudo, acima de ser linda, de lhe manter preso como que a um feitiço. E, mesmo que não fosse, era uma serva fugida; mesmo uma youkai, quando fugia dos domínios do Senhor do Oeste, era punida e vivia casta porquanto o senhor lhe permitisse. Eram dois motivos para não contaminar seu corpo, mostrando-o a uma humana. E apenas um desejo profundo o atraía para ela.
"Ou será que não é apenas isso?", pensou Sesshoumaru, subitamente. "Besteira. Uma vez humana, morrerá humana. Fugida e casta."
O toque suave dos cabelos dela, fluindo em direção ao rosto dele, o hipnotizava. Ele temeu perder o controle de sua transformação; um youkai completo não cabia na câmara. Mas ele conseguiu: se controlou. Ele pegou a garota no colo e a pousou no futon. Tinha ainda a Toukijin e a Tenseiga à cintura. Pôs a espada maldita num canto escuro, escondido, e voltou para perto da garota. Ele sacou a Tenseiga e reparou todas as cicatrizes e a perfuração que a menina sofrera. Apenas a cicatriz do pulso permaneceu, intacta. O local onde nenhuma outra mulher, humana ou youkai, tinha sido marcada.
— É um privilégio – disse ele. – Quer dizer que você é única.
— E, de verdade, eu sou?
Sesshoumaru tocou a face dela, com cuidado para não arranhá-la. Mey-enn segurou a mão do youkai, num gesto leve, e conduziu-a pelas curvas salientes de seu corpo. Sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo, numa manifestação clara de que confiava nele. Ele apoiou as costas dela, numa tentativa desamparada e desesperada de não se entregar. Mas não adiantou; o desejo foi mais forte. Ele se posicionou novamente atrás dela e pôs os lábios rentes ao pescoço da menina. Mey-enn estremeceu quando ele beijou-a, logo na curva entre o pescoço e o ombro. A garota se virou calmamente e tirou a armadura do príncipe e os adereços dele. Sua camisa branca leve deixava transparecer tanto quanto possível do corpo do youkai.
O príncipe tirou o quimono da menina, num gesto suave. Beijou-a calmamente, sentindo aquele corpo lânguido e quente encostado ao seu. O vestido curto que Mey-enn, por influência da mãe, usava sob o quimono, estava intacto, limpo e deixando à mostra um par de pernas bem torneadas. Novamente, e pela última vez, Sesshoumaru hesitou.
"Meu pai desonrou o clã. Minha mãe era youkai pura. E essa menina... Essa menina é filha de meu meio-irmão. É... Um erro. Está tudo transformado em um erro."
Mey-enn chamou com as mãos o youkai, que não foi. Lágrimas brotaram dos olhos dela, mas ele as enxugou, tranqüilo. Ela tirou a camisa dele. Sesshoumaru sentiu as mãos da garota nas suas costas. Abraçou-a como um apaixonado.
"Se é errando que se aprende " – ele soltou os cabelos da garota e desamarrou as costas do vestido dela, vendo o tecido cair em dobras suaves – ", está na hora de aprendermos uma grande lição."
