Essa fanfic é o décimo terceiro e ÚLTIMO volume da série Ano Zero, que você pode encontrar em meu perfil.
Puella Magi Madoka Magica, Puella Magi Oriko Magica e seus personagens não me pertencem.
"Mors stupebit et natura,
Cum resurget creatura,
Judicanti responsura." Dies Irae, quarta estrofe
Eu só vejo máquinas.
Eu estou cansada, mas não consigo dormir.
Eu quero chorar, mas não tenho mais lágrimas.
Eu queria acordar e ver o meu quarto. Descer as escadas e ouvir a minha mãe perguntar se eu quero torradas. Ter que brigar com o meu irmão pela vez de usar o banheiro, o pai não terminou de reformar o outro, ele nunca termina.
Mas agora eu só vejo máquinas, com os seus bips e luzes, me mantendo viva, pois o meu corpo se foi.
Eu sou uma âncora agora e a minha família está agarrada a mim, afundando, afundando...
O mesmo filme fica passando na minha cabeça, mas com finais diferentes. Eu me vejo me agarrando em outro galho, como um macaco ou girando graciosamente no ar e pousando com as pernas. Eu iria quebrar elas, iria doer pra caralho. Eu me tornaria uma celebridade na escola, as pessoas iriam querer assinar nomes nos gessos e meu irmão estaria ferrado. Tantas vezes que alguém andou por aquele galho, sem problemas, por que quebrou? Eu nem sou pesada.
Minha orelha esquerda está coçando, mas eu não quero acordar a minha tia. Ela está ali, roncando na cadeira, achando que eu estou dormindo. Daqui a algumas semanas será o meu aniversário de quinze anos, deve vir a família toda, vai ser obrigatório, né. Vai ter balões, vai ter bolo, acho que não vai ter vestido... Mas vai ter sorrisos. Eu tenho que sorrir também.
Eles vão ficar falando sobre eu receber alta do hospital, continuar a fisioterapia... Eu acho que até o médico vai ser convidado, só para dizer que estou 'evoluindo bem'. Enquanto isso, quando me lavam, eu vejo meus membros cada dia mais finos e com aquelas feridas inchadas terríveis que eles chamam de 'escaras'. Aí me dizem que jogam um jato de água fria no meu ânus para estimulá-lo e fazer eu defecar. Eu não sinto nada, claro, só o cheiro...
Evoluindo? Meu corpo está apodrecendo, eu não o reconheço, ele se foi. Eu deveria ter morrido.
Porém eu não consigo desligar essas máquinas, elas são parte de mim, com os seus bips e luzes.
Tem um par de luzes vermelhas me encarando, agora.
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O banheiro sem janelas estava lotado de garotas tomando banho de chuveiro lado a lado. Todas eram jovens, mas o mais em comum era que todas tinham um anel prateado no dedo do meio de suas mãos esquerdas e uma marca na respectiva unha.
Dentre elas havia uma que não estava se sentindo muito à vontade. Não porque todas ali estavam nuas, mas porque quase todas eram completas estranhas. Algumas poucas semanas atrás ela estava com a família, agora nem tinha idéia de onde estava com toda aquela gente.
Essas preocupações foram deixadas de lado quando o seu olhar azul claro capturou a gilete rosa que estava segurando. A água do chuveiro vinha com pressão e judiava um pouco a sua pele escura, e era sempre fria, não que isso fosse ruim, pois o ar sempre estava quente e abafado. O maior problema era que não dava de evitar de molhar o seu cabelo marrom escuro, um tanto longo e volumoso, e dessa vez havia uma certa urgência.
Era hora de acelerar. A garota decidiu começar pelas axilas, mas assim que passou a gilete, sentiu e viu que os pêlos não foram cortados. Só então se deu conta que não havia removido a tampa protetora da lâmina. Ela trouxe o objeto para mais próximo de seus olhos, com o intuito de deixar a tarefa mais fácil, porém, ao fazer isso, sua mão passou sob o jato de água do chuveiro e foi o bastante para deixa-lo cair. "Ah!" Aquela gilete era a única que ela havia trazido e se eu alguém pisasse em cima... Uma angústia nasceu em seu peito, mas, felizmente, ela descobriu que a ferramenta havia caído no pé da garota ao seu lado e ela já tinha pegado.
Enquanto subia o olhar, ela foi reparando na outra garota. Ela tinha um corpo mais alto e esguio, e virtualmente desprovida de seios. A pele era pálida, um pouco acinzentada, anêmica. O cabelo era um tanto curto, de cor roxa, mas as raízes e pontas eram vermelhas, não pareciam ser naturais. Os olhos também eram roxos e estavam examinando a gilete, mas logo trocou olhares.
"Ah..." Voltando a ficar ansiosa, a garota de pele escura se esforçou em sorrir. "Obrigada..."
Sem esboçar nenhuma expressão, a outra garota retornou a sua atenção para a gilete, enquanto sua outra mão passou no rosto. Então ela tirou a tampa protetora e se virou para o chuveiro, usando a lâmina para remover os pêlos que havia sentido.
A dona daquele objeto parou de sorrir. "Eh... hmmm..."
A garota pálida já havia começado a depilar as axilas.
Será que ela não tinha ouvido? Ela ficou mais tensa, ela não queria levantar a voz e acabar brigando com uma estranha, pior, uma garota mágica estranha. Talvez fosse melhor esperar a vez de usar.
"Não vai devolver não?!"
Ela reconheceu a voz e viu uma garota loira se aproximando, de pele clara, mas não pálida, seu cabelo era bem curto e seu olhar estava cheio de cólera. Todavia, ela não se sentia assustada, pois aquela era a sua amiga Alice. Sua melhor amiga.
Alice não esperou muito para chegar bem perto da garota pálida e levantar ainda mais a voz, "EI IDIOTA! Tá com água no ouvido?"
A garota lentamente se virou para a loira. Ela não estava zangada, na verdade ela parecia estar entediada.
"Isso é da Maya!" Alice continuou a falar alto.
A garota pálida voltou a trocar olhares com a garota de pele escura.
Maya apenas sorriu, como se desculpando.
Então garota olhou para ambas e finalmente mudou sua face para um sorriso sarcástico, "Ah, enten-"
"Você fala!" Alice a interrompeu, "que legal... Agora devolve!"
Maya olhou envolta. Vendo que algumas garotas estavam prestando atenção naquela cena, ela sentiu seu coração ficar mais pesado.
A garota com a gilete estava agora visivelmente irritada, mas a sua voz ainda soava tranquila, lembrava um sussurro, "Vocês duas são as novas refugiadas."
"Eu sou a Alice e esta é a minha amiga Maya, de quem você roubou." A loira rangeu os dentes. "Entendeu agora?"
Ela ergueu as sobrancelhas e sua fisionomia novamente estava apática. Logo ela deu as costas e trouxe a gilete para raspar a virilha.
Indignada, Alice agarrou o braço dela para impedi-la, mas ao tentar puxar, não conseguiu movê-lo nem por um centímetro.
"A-Alice..." Maya queria por um fim naquilo, no entanto um sentimento de egoísmo e culpa tomou conta de seu espírito. Talvez aquela garota anêmica merecesse uma punição.
Certa do que se tratava, Alice se concentrou e deixou a gema amarela em seu anel brilhar. Quase de imediato, ela estava conseguindo a puxar o braço, mas apenas um pouco.
A garota esguia olhou de relance para trás.
Na mesma hora, Alice não conseguia mais progresso. "NNNnggg!" Ela tentou puxar com mais força, mas o braço escorregou de suas mãos. "Ahhh!" Se não fosse por Maya tê-la segurado, ela teria caído no piso frio. Aquilo havia se tornado pessoal, ela iria obter a gilete de sua amiga nem que tivesse que cortar aquele braço.
Todos os chuveiros pararam. Aquele evento súbito desviou a atenção de todas as garotas presentes.
Até mesmo a de sua amiga, Maya se sentiu agradecida por isso. Ela viu que havia uma mulher ao lado do registro geral do banheiro. O cabelo dela era vermelho e preso com um coque, sua pele era clara e olhos cinzas. Vestia uma camisa branca de manga comprida e gola alta, parecia ser desconfortável, e uma saia preta muito longa, não dava para ver os pés. Um rosário vermelho estava enrolado em sua mão direita, enquanto sua mão esquerda tinha o anel que todas que fizeram contrato com Kyuubey tinham. Seu sorriso era educado, de alguém que estava esperando pacientemente.
Sem questionar ou reclamar, as garotas foram em direção aos armários. Isso incluía a garota pálida, que devolveu a gilete para Maya, dizendo antes ir, "Nada aqui é seu..."
Com os punhos e lábios cerrados, Alice acompanhou ela com os olhos, murmurando, "Ah, essa aí quer levar uma bifa na cara..."
Maya tentou acalmá-la, "Não, está tudo bem..." Contudo, a gilete estava cheia de cabelo e não havia água e tempo para lavá-la. "Vamos, não queremos irritar a Madre, né?"
Alice olhou de relance para a mulher com o rosário, ela ainda sorria, mas não seria por muito tempo. "É, bora."
Já nos armários, Maya se secou e colocou as suas roupas íntimas, e então o uniforme: uma camisa branca de manga curta e calças bege estampada com uma camuflagem militar. O pior era pôr a meia e a bota preta, ela tinha pés largos para aquele calçado e o cadarço era muito fino, difícil de manusear.
"Meninaaas, nós temos um compromisso."
Ouvir a voz de Madre fez Maya lembrar de sua mãe, de sua família. Não era algo que ela queria, não só por causa da saudade, mas também de imaginar como eles deviam estar desesperados atrás de qualquer paradeiro dela. Aceitar a solidariedade da Irmandade havia sido uma boa escolha? Naquela hora, parecia ter sido a única.
"Ow, Maya. Tá pronta? O pessoal já está formando a fila." Alice já estava devidamente uniformizada.
"E-Estou!" Ela finalizou fazendo um nó de qualquer jeito no cadarço, para ao menos não deixar o calçado escapar.
Madre liderou as garotas na saída do banheiro, por um túnel de concreto com canos largos no teto. Após uma curva, elas chegaram em um grande salão com muitas camas, formando fileiras, todas iguais e de design simples, com colchões e travesseiros finos e de cor branca.
Apesar disso, Maya localizou facilmente a sua cama, ela já havia memorizado. Seus poucos pertences pessoais estavam debaixo dela, ela ainda não confiava nos armários, e o melhor é que Alice usava a cama ao lado.
Elas deixaram o salão, seguindo por outro túnel claustrofóbico.
Alice ficava imaginando quem havia construído aquele lugar, enquanto se guiava pelas faixas coloridas pintadas na parede. Cada cor representava um local e bastava seguir a respectiva faixa para chegar nele.
Quando chegaram em uma bifurcação, Madre foi pelo túnel onde restava apenas a faixa vermelha.
Alice fez uso de sua telepatia. [Então será no refeitório.]
[Pois é.] Maya respondeu.
Elas entraram em outro salão, com uma cozinha e muito espaço, pois as mesas e cadeiras estavam empilhadas próximas da parede. Agora Alice e Maya entendiam o propósito para aquilo, pois aquele espaço também era usado para eventos excepcionais.
"Eu quero que formem duas fileiras." Madre segurava algumas garotas e as guiava para montar a formação. "As mais altas ficam na fileira de atrás, mas não quero uma garota atrás da outra, fiquem intercaladas. Rápido, ela já avisou que está chegando."
Maya e Alice estavam na mesma fileira e abriram um espaço maior entre elas. Ambas estavam um pouco ansiosas, apesar de já saberem quem viria.
No entanto, a surpresa foi maior quando Maya viu que eram três pessoas que haviam chegado pelo túnel. Uma mulher forte, com uma pele que parecia ser bronzeada, com um cabelo e olhos rosa escuros, sendo o cabelo relativamente curto. Ela se chamava 'Generalíssima' e era a líder, e era pessoa que Maya estava esperando que aparecesse. Atrás dela estava outra mulher ainda mais forte, com todos aqueles músculos parecia um homem, e sua pele era muito escura. Apenas a metade esquerda do topo da cabeça tinha cabelo marrom escuro, enquanto os olhos eram de um marrom claro como mel. A sua fisionomia era tão intimidadora quanto a forma como era chamada: 'Revenante'.
Diferente das duas mulheres, que estavam com o mesmo uniforme que as garotas que as aguardavam, a terceira pessoa estava usando seu uniforme de garota mágica, que era um tanto peculiar, lembrando uma fantasia de coelhinha sexy, porém... mais inocente? Seu cabelo era castanho avermelhado, que chegavam até os ombros e um pouco além, seus olhos eram azuis como a da Maya, mas a cor era mais escura e intensa. A pele clara tinha muitas sardas. Ela era popular entre as garotas, conhecida como 'Sortuda', e Maya suspeitava que isso era pelo fato de ela não ser adulta como as outras irmãs, ao menos não agia como tal.
Sortuda veio saltitante, sorrindo e acenando. "Bom dia, noviças!"
Alice franziu a testa enquanto algumas garotas respondiam de volta.
"Bom dia, Sortuda!"
Maya já estava ciente que aqueles apelidos eram 'nomes de irmã', como 'Madre', mas ela não estava certa sobre isso nesse caso. Ela mesma e as demais garotas que formavam as fileiras eram noviças, aspirantes a se tornarem irmãs um dia, podendo escolher um nome e ter outros privilégios, como um quarto privado. O problema é que ela não tinha nenhuma idéia de como era esse processo e seus requerimentos.
Generalíssima parou e olhou para as noviças e então para Madre.
Ela respondeu com um sorriso.
Revenante aguardou Generalíssima assentir com a cabeça para respirar fundo e bradar, "IRMÃS! Mostrem as suas almas!"
Maya ainda achava curioso que elas usavam apenas o termo 'irmãs', pois na verdade aquilo significava que todos ali presentes precisavam estender o braço esquerdo para frente e mostrar a gema da alma.
Isso era das primeiras coisas que se aprende na Irmandade das Almas, mas Alice não se sentia confortável em fazer isso, agora que ela havia aprendido sobre o que aquela jóia realmente continha.
Seguindo as demais, Sortuda pegou a sua gema transparente com forma de pé de coelho, sobre a sua jaqueta branca, e estendeu o braço, enquanto a sua gema adquiria a forma de ovo.
Generalíssima fez brilhar mais a sua gema rosa. "Que nossas luzes unidas guiem nossas esperanças..."
"POIS ESSAS LÂMPADAS DE VIDA SÃO A PROVA DA VONTADE DE DEUS!"
Maya e Alice não participaram daquela resposta energética, elas ainda não haviam decorado essas frases e ambas notaram que não eram as únicas noviças nessa situação.
"É verdade, é verdade..." Generalíssima trouxe o braço para si.
Isso era o sinal para que todas descansassem o braço e transformassem as suas gemas de volta.
Contudo, Generalíssima não havia feito essa última parte. Deslizando seu dedo sobre os detalhes de sua preciosa jóia, ela continuou, "As noviças que já estão aqui há mais tempo sabem que eu chamo vocês quando é algo importante, mas com essa crise envolvendo esse novo tipo de bruxas, nós recebemos de braços abertos muitas garotas mágicas que ainda não compreendem o nosso propósito."
[Besteira.] Alice franziu um pouco o cenho. [Nós não viemos aqui para isso.]
Maya não respondeu a mensagem de sua amiga, mas tinha que concordar o que havia levado aquela difícil escolha era outra coisa.
"Por isso eu irei contar a origem da nossa Irmandade."
As duas amigas ouviram alguns suspiros de descontentamento vindo de algumas noviças, provavelmente daquelas que já haviam ouvido aquela história.
"Incubator, ou Kyuubey para quem ainda prefere chamá-lo assim, não contou isso para vocês, é claro que ele não iria..." Generalíssima ergueu as sobrancelhas enquanto sorria levemente. "Mas grandes uniões de garotas mágicas é algo corriqueiro na história da humanidade, de fato ela foi moldada por elas. Por uma causa em comum, como nação, etnia ou religião, esses grupos surgiam especialmente em grandes conflitos, incluindo aqui as duas grandes guerras mundiais. No entanto, nenhum desses grupos resistiu a passagem do tempo e aos ventos das mudanças que ele traz, por mais grandes que pudessem ser." Ela novamente estendeu o braço, mostrando a sua gema. "Sabem por que isso não se aplica a Irmandade?" A gema dela evaporou, reformando-se em seu anel, enquanto sua mão fechou em um punho firme. "Porque nossa causa são vocês, sim, todas vocês, garotas mágicas. Nós compartilhamos nossas forças e conhecimentos, nossa coragem e espírito, não para sobreviver, mas para termos um futuro próspero."
Madre, Sortuda e Revenante balançaram a cabeça, concordando com aquilo que era dito.
"Isso tudo foi visão de nossa fundadora, Matriarca, antes mesmo de aceitar o contrato do Incubator. Ela fez as perguntas certas e entendeu o que significava uma vida de luta, pois sua família era de militares. A inspiração veio quando ela tomou conhecimento do desenvolvimento da Arpanet, precursora da Internet. O mundo estava ficando pequeno, as fronteiras mais próximas, a idéia de uma união global de garotas mágicas, antes inconcebível, agora já se podia sonhar." Generalíssima abaixou o braço e ergueu a cabeça, olhando para algo longínquo. "Em 1986, quando entrei para Irmandade, elas já estavam espalhadas por todo o território norte americano. Eu era uma refugiada como muitas de vocês são hoje, eu não tinha teto ou comida, eu sabia apenas algumas poucas palavras em inglês. Minha causa até aquele momento era sobreviver às custas dos outros, e mesmo assim elas me acolheram e confiaram em mim. Eu passei a ser uma noviça, depois uma irmã e agora estou aqui conversando com vocês." Ela voltou a olhar para as noviças. "Como irmã e líder dessas importantes instalações."
[Agora já tô entendendo o desânimo das outras garotas.] Alice pressionou os lábios e respirou fundo. [Só propaganda barata.]
Maya se esforçou para não rir do comentário de sua amiga, mas acabou deixando escapar um sorriso.
"Vocês já entenderam que somos uma família, nós compartilhamos nossas sementes da aflição. Precisa de um lugar seguro? Nós temos vários espalhados pelo mundo. Dinheiro? Podemos emprestar um pouco. Trabalho e estudo? Temos irmãs dentro de tradicionais corporações e escolas, nós podemos arranjar isso. Um feitiço? Se for moralmente justo... Nós podemos curar alguém que você ama. Precisa de uma ajuda espiritual? Nós temos a Madre aqui. Saibam que vocês não estão sozinhas, o Senhor está conosco." Generalíssima abaixou o olhar e mostrou um breve sorriso. "Para nós, se tornar uma bruxa é apenas uma forma diferente de morrer. Nós todas aqui somos passíveis de morrer um dia, mas o que importa é se nossas vidas valeram mais do que aquele alienígena bastardo acha!"
Alice e Maya prenderam um pouco a respiração com aquela súbita raiva na voz da mulher.
"É isso que vocês devem perguntar para si mesmas. É isso que nós podemos oferecer." Generalíssima trouxe ambas as mãos ao seu peito. "Por favor, sejam leais a nós. Se tornem as minhas irmãs, irmãs de Revenante, irmãs de Sortuda, irmãs de Madre... Nós já passamos por muitas tribulações, algumas que poderiam extinguir a humanidade e até mesmo toda a vida desse planeta, e a superamos e continuamos a crescer, construindo o sonho de uma garota."
O silêncio tomou conta da sala, salvo pelo som do sistema de ventilação.
Alice e Maya trocaram olhares, cada uma esperando que outra tivesse uma sugestão do que supostamente elas deviam fazer. Bater palmas, talvez?
Generalíssima abriu um sorriso maior, parecia que ela estava prestes a rir. "As noviças mais experientes ainda devem estar se perguntando do porquê de eu não ter chamado apenas as recém-chegadas para contar isso." No entanto, ela ficou séria, até mais do que quando entrou na sala. "É que é bom que vocês ouçam isso, pois eu tenho uma notícia envolvendo a atual crise que estamos passando e não é boa."
Madre e Revenante ficaram mais tensas, não fazendo um único movimento. Até mesmo Sortuda não estava mais sorrindo, acenando com a cabeça.
Maya engoliu seco, rezando para que não fosse algo sobre sua família ou a da família de sua amiga.
Com um olhar intenso, como se tivesse que fazer força para abrir os lábios, Generalíssima falou, "Nós perdemos contato com Washington."
Alice não sentiu nada, pudera, aquilo não significava nada, mas se assustou com a comoção de outras noviças.
"NÃO!" "Oh meu Deus..." "ISSO É O FIM?!"
"SILÊNCIO!" Revenante ordenou.
Maya não sabia o que viria a ser Washington e via que algumas noviças também não sabiam, pareciam confusas, enquanto outras estavam chorando e levando as mãos à cabeça.
"Não pode ser!" "Não recebemos nenhum aviso..." "A IRMANDADE JÁ ERA!"
"ACALMEN-SE!" Generalíssima gritou com toda força e autoridade, conseguindo atrair a atenção. "Eu não disse que Washington caiu. Eles devem ter realocado a base de operações por cautela e podem reestabelecer contato conosco a qualquer momento. Lembrem-se que lá é onde está Matriarca e outras irmãs muito competentes, como Pássaro do Sol e Lince da Lua."
"Quando foi a última vez que tiveram contato com elas?"
Alice reconheceu a voz e olhou para trás, vendo que aquela garota pálida do banheiro estava com muita raiva.
Generalíssima exalou antes de responder, "O último relatório que conseguimos enviar com sucesso foi em torno de dois meses atrás..."
O princípio de uma nova comoção. Maya tampou os ouvidos, enquanto se aproximou de sua amiga com os olhos arregalados.
"CALEM A BOCA CARALHO!" Revenante deu um passo à frente. "DEIXEM GENERALÍSSIMA FALAR!"
A mulher latina estendeu a mão para a negra, gesticulando para que ela se acalmasse também. Depois, ela dirigiu novamente a palavra para as noviças. "Até parece que vocês não ouviram a história que contei agora a pouco. Enquanto vocês estão aqui, seguras e choramingando, nós temos membros da Irmandade, com quem temos ainda contato direto, em solo americano, procurando por Washington. Além disso, nós continuamos a investigação sobre o fenômeno dessas novas bruxas que fingem ser humanas e encontramos mais pistas. Ainda é cedo para assegurar que o maldito Incubator está envolvido nisso, mas podem apostar as suas almas que sim." Ela rangeu os dentes. "A Irmandade das Almas continua viva e trabalhando duro. Portanto, eu não quero mais ouvir boatos de que o mundo vai acabar e de que todos vão morrer. Nossas atividades aqui vão continuar normalmente e vamos superar isso como sempre superamos. Oh Deus, nós iremos."
Um novo silêncio na sala, com todas observando a semblante de determinação da líder.
"Vocês podem ter o seu café da manhã agora..." Com isso, Generalíssima saiu da sala, acompanhada por Revenante e Sortuda.
"Hmmm..." Madre esperou elas sumirem de vista antes de juntar as mãos e dizer, "meninas, nós temos leite e biscoito na cozinha. Por favor, coloquem as mesas e as cadeiras enquanto trago eles."
As noviças obedeceram, ainda que algumas estivessem cabisbaixas.
Enquanto isso, Maya continuava ao lado de sua amiga, que não havia saído do lugar e com um olhar perdido. Ela acariciou as costas dela, buscando reconfortá-la. "Parece que é uma notícia bem ruim, mas nossas famílias devem ainda estar seguras e nós também, né?"
"Elas sabiam."
Maya franziu o cenho.
Alice olhou para ela, sua voz era amarga. "Elas sabiam que o barco estava afundando e ainda assim nos colocaram a bordo."
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Pulando ao lado de Generalíssima, Sortuda não conseguiu mais se conter. "Você foi fantástica! Esse foi o seu melhor discurso."
"E muito otimista," Revenante complementou, mas não como um elogio. "Só sabemos de uma pessoa que tá procurando Washington."
Generalíssima assentiu. "Era necessário revelar algo para acabar com os boatos, mas veja como elas reagiram. Não devemos ameaçar a fé delas, a Irmandade precisa manter sua unidade."
"Você devia ter falado da Willa," Sortuda sugeriu, "elas iriam se simpatizar por ela ser uma noviça também e com uma tarefa tão importante."
Generalíssima balançou a cabeça. "Eu tenho certeza que elas iriam duvidar que ela conseguiria completar a missão justamente por isso."
Elas caminharam pelo a túnel até alcançarem uma escadaria, do qual espiralava para baixo por dezenas de metros.
Enquanto desciam as centenas de degraus, Generalíssima comentou, "O que me preocupa agora é Inquisidor."
"Nenhum sinal dele. Ele realmente disse que ia participar da reunião com as noviças?" Revenante perguntou.
"Sim, e ele não me avisou de nenhuma mudança de planos."
"Você devia ter mandado uma mensagem telepática." Sortuda parou para se concentrar. [Inquisidor? Yuuuhuuu~!]
"É a primeira coisa que fiz." Generalíssima suspirou e murmurou, "o que você está tramando..."
Ao chegarem no final da escadaria, o trio se encontrava em um cruzamento. Um dos caminhos era um túnel bem mais largo que os outros e era uma rampa que subia, porém ele estava completamente escuro enquanto os outros três caminhos estavam bem iluminados. Havia ainda uma outra entrada com uma escadaria que também espiralava para baixo.
"Ok, vamos checar se ele está no quarto dele." Generalíssima liderou elas por um dos caminhos iluminados. Era um túnel com portas de metal, cada uma numerada e com um painel eletrônico para colocar senha.
Elas pararam de fronte a porta número 05 e não se podia ouvir qualquer sinal de vida vindo de dentro. Generalíssima logo chamou, "Inquisidor, você está aí?" Sem resposta, ela socou a porta, fazendo um grande barulho.
Convencida, Revenante disse com desgosto, "Ele mentiu pra você e não estou surpresa. Ele sempre tá querendo ficar longe da sua vista."
Generalíssima esfregou a própria face e olhou para o teto, mais especificamente para câmera apontada para ela. "Eu vou consultar Invasora. Podem ir descansar, eu cuido disso."
Sortuda bateu continência. "Entendido, minha general dengosa!"
"Para com isso, criatura." Revenante a empurrou. "Bora."
Sortuda nem se irritou, aliás, ela sorriu enquanto a acompanhou. "Ei Revah, vai fazer o que agora?"
"Hmmm... Acho que vou na academia."
Com ajuda das mãos, ela esticou seu par de orelhas felpudas, aproveitando para alongar os braços também. "Ah... Não quer ir na sala de treinamento comigo?"
Revenante semicerrou o olhar para a mulher sardenta. "Eu não tô afim de ser cobaia."
"Não é experimento!" Sortuda gesticulou um 'não' com o dedo indicador. "É só um duelo básico, a primeira que sangrar perde."
"Eu sei como isso termina..." Revenante acelerou o passo, deixando a outra garota mágica para trás. "Vá brincar sozinha."
"Pow..." Sortuda estufou as bochechas. "Como você é chata às vezes. Assim suas habilidades vão ficar enferrujadas!"
Generalíssima havia partido para direção oposta, voltando a passar pelo cruzamento. Ela parou em uma porta de metal não numerada e digitou a senha no painel. Logo a porta deslizou para dentro da parede, permitindo a passagem.
Dentro da sala era parcialmente escuro, sendo a única fonte de luz inúmeras telas mostrando imagens das câmeras espalhadas pela base. Em uma moderna cadeira ergonômica, porém grande para sua estatura, estava uma garota asiática vestindo uma roupa de bailarina azul, com metade do tutu amassado contra o assento. Seus olhos gelados nem piscavam, atentos para as telas, enquanto suas mãos cobertas pelas compridas mangas brincavam com a ponta do seu fino rabo de cavalo preto. Assim, que a mulher chegou mais perto, ela perguntou, "O que posso fazer por ti?"
Generalíssima respondeu, "Procuro uma pessoa."
Invasora olhou de relance para ela. "Inquisidor..."
"Você viu que ele não estava no refeitório conosco."
"Sim, mas não achei que isso iria te preocupar tanto." Ela virou a cadeira para ficar de frente para a visitante. "Por que não usou telepatia? Eu teria informado onde ele está."
"Você sabe que sou do tipo de pessoa que gosta de ver com os próprios olhos."
Invasora deu um leve sorriso e se virou para novamente para as telas. "Vamos ver..." Sua gema azulada, com formato de uma asa e preso ao clipe de cabelo vermelho que segurava o rabo de cavalo, brilhou enquanto as imagens das telas mudavam freneticamente.
Era muito difícil para Generalíssima encontrar Inquisidor daquele jeito, mas ela sabia que o mesmo não se aplicava para a garota na cadeira.
Contudo, Invasora forçou a vista. "Eu não estou encontrando, ele deve estar em um lugar onde não há câmeras."
Generalíssima ouviu aquilo, mas sua atenção havia captado outra coisa. "Por que essa tela ficou preta?"
Invasora respondeu, sem estar surpresa, "Essa é a câmera que mostra a entrada da sala de purificação, ela quebrou recentemente."
"E só agora estou sabendo?!" Generalíssima arregalou os olhos. "Por acaso uma bruxa escapou?"
"Sobre isso, Inquisidor disse que vai investigar, mas ele já rejeitou essa idéia. Ele também rejeitou quando sugeri que a magia dele podia ter superaquecido a câmera."
"É claro." Generalíssima fez uma cara de cansada. "O 'senhor certinho' nunca erra."
"Eu já acionei Nano para reparar a câmera," sorrindo, Invasora disse, "agora vamos descobrir o que o 'senhor certinho' andou fazendo assim que ele acordou."
A telas agora mostravam imagens de poucas horas atrás. Generalíssima ficou prestando atenção especialmente na câmera da porta 05, até que ela abriu. "Aí está você..."
"Parece que ele está andando com certa pressa," Invasora comentou enquanto acompanhava o movimento de Inquisidor já em outra câmera.
"É para não ser visto." Generalíssima se aproximou mais das telas, ansiosa pelo momento decisivo.
A imagem era da câmera do cruzamento, onde Inquisidor escolheu um dos caminhos com luz.
O único dos três que Generalíssima não tinha ido ainda. Ela recuou, quase como um pulo. "Droga, eu sei para onde ele foi!"
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"Beato l'uomo che non segue il consiglio degli empi, non indugia nella via dei peccatori e non siede in compagnia degli stolti."
A sala era fria e de espaço apertado, principalmente por causa de pilhas de caixotes pretos que piscavam luzes e emitiam o som constate de ventiladores.
"Aa si compiace della legge del Signore, la sua legge medita giorno e notte."
Mas o homem ali presente se distraía com a própria voz e com uma tarefa.
"Sarà come albero piantato lungo corsi d'acqua, che darà frutto a suo tempo e le sue foglie non cadranno mai; riusciranno tutte le sue opere."
O terminal mostrava uma extensa lista de números, nomes e descrições, enquanto ele agilmente enviava novos comandos para os servidores.
"Non così, non così gli empi; ma come pula che il vento disperde."
Ninguém diria que ele tinha tal habilidade, pois suas vestes brancas lembravam um padre. Sua fiel cruz prateada, presa sob seu cinto.
"Perciò non reggeranno gli empi nel giudizio, né i peccatori nell'assemblea dei giusti."
E a cruz vermelha, da gema no fecho dourado direito de seu manto também vermelho.
"Il Signore veglia sul cammino dei giusti, ma la via degli empi andrà in rovina."
Veio o som do deslizar da porta de metal. Ele prontamente desligou o terminal e se virou, com uma boa idéia de quem seria.
Generalíssima entrou, já questionando, "Inquisidor, o que está fazendo?"
"Meu trabalho," ele respondeu, erguendo as sobrancelhas, "você não me disse que iria contar para as noviças de que nossas atividades seguiriam normalmente?"
Um pouco mais irritada, Generalíssima reformulou a pergunta, "O que você está fazendo aqui?"
Ele cruzou os braços e falou com um tom de obviedade, "Estou fazendo consultas na central de dados. Eu encontrei algo," ajustando o manto sobre os seus ombros, ele inquiriu, "sabe me dizer quem é responsável pelo fornecimento de comida e outros suprimentos dessa célula?"
A mulher calou-se por um momento, piscando os olhos. Ela tinha vindo com perguntas e já estava sendo interrogada. "Sou eu, você devia saber disso."
Inquisidor assentiu. "É uma pergunta retórica, pois eu consultei a lista que diz quais suprimentos e quando eles entraram, e não encontrei nada."
Generalíssima prendeu a respiração e balançou a cabeça de leve. "Deve estar corrompida."
"Duvido muito, pois eu consultei também o histórico da central de dados e lá consta que não há nenhuma ação de escrita nessa lista." O homem ficou mais sério. "Você pode dizer que o histórico está corrompido também, mas eu tenho uma teoria mais plausível..."
Ela fechou os olhos e exalou, então desviou o olhar, dizendo, "Ok, eu admito, eu não sabia que precisava registrar cada coisa que eu trouxesse para cá."
"E isso é muito estranho." Inquisidor levantou o dedo para enfatizar. "Pois vocês enviaram relatórios para Washington durante todo esse tempo, inclusive essa lista vazia. No entanto, quando eles me designaram para a tarefa de supervisionar as operações aqui, me relataram que tudo estava certo."
Generalíssima deu de ombros. "Vai ver eles não se importaram com esse detalhe."
"Detalhe..." O homem fez uma careta e se aproximou da mulher, olhando no fundo dos olhos dela. "Detalhe?"
Ela virou e esfregou a face, fazendo um suspiro. "Veja... Nós estamos em uma crise. Eu entendo o seu trabalho, o que Pássaro do Sol possa ter dito, mas-"
"Matriarca!"
Ela se assustou. Aquele homem, sempre com uma voz polida e controlada, agora exasperava.
"É a vontade da Matriarca, irmã!"
Ela acenou com cabeça rapidamente, repetidas vezes. "Certo, certo, Matriarca..."
Inquisidor se acalmou, mas ainda havia um resquício de raiva quando examinou ela da cabeça aos pés. "Saiba que, quando reestabelecermos contato com Washington, eu irei relatar esse 'detalhe'." Ele então colocou as mãos para descansar atrás dele e passou ao lado da Generalíssima, em direção a porta. "Eu continuarei de olho e será bom para nós dois que eu não encontre mais 'detalhes'."
Frustrada, ela pressionou os lábios e respirou fundo, porém um lampejo veio em sua mente. Era uma das perguntas que ela pretendia fazer e se encaixa perfeitamente em uma réplica. "Detalhes como a câmera da entrada da sala de purificação?" Ela sorriu, esperando um longo silêncio.
A som da porta de metal se abrindo foi seguido pela voz do homem. "Ah, que bom que você procurou se informar, é o mínimo que uma líder deve fazer."
O sorriso dela se desfez. "Por que você não me informou?"
"Porque eu estou aqui para resolver problemas, ao invés de fingir que eles não existem."
A porta se fechou e Generalíssima não tinha mais nada a dizer. Seu corpo estremeceu, não por causa do frio na sala, e sua mão estava pesada, compelida a socar algo. Sua vítima dessa vez foi a sua própria coxa. "¡Hijo de perra!"
Próximo capítulo: Expurgo
