O frio do piso nas solas dos meus pés já não me incomoda mais, porém eu devo ligar o chuveiro logo ou eles irão começar a perguntar.
No entanto, eu não me movo. O reflexo no espelho é como a morte, cada dia isso fica mais evidente.
Isso é uma provação, precisa ser. Eu tenho talento, determinação... talvez se não tivessem me encorajado. Tarde demais, eu não escolhi o caminho, ele me escolheu, ninguém entende. Tolice, se fosse uma provação, haveria um propósito, ao menos alguém ganharia algo com isso.
O reflexo me diz tudo, eu continuo a ouvir, como sussurros, a maldição que eu carrego. Ela já consumiu todo o amor e compaixão.
Eu odeio Deus, mas não devo odiá-Lo, então eu odeio a mim.
O frio da lâmina da tesoura ainda incomoda o meu mamilo. A minha mão treme e os dedos nos anéis do cabo estão cansados em manter a ferramenta aberta. Eu fecho lentamente, sempre sonhando que não haverá dor, mas a lâmina não era afiada o bastante e a pele se moldava a ela.
Eu tenho determinação e não tenho tempo. Eu tampo a boca com a minha outra mão e fecho os olhos. Eu não quero pensar, não quero ouvir os sussurros, apenas provar que não sou fraca. Eu tento fechar a tesoura de uma vez, mas a dor vem, excruciante. Eu forço a minha mandíbula para aprisionar o grito em minha gaiola de dentes.
Eu solto a tesoura e parece que isso faz piorar tudo. Meu corpo desaba e minhas costas se chocam contra a parede, deslizo lentamente até me sentar no frio. Eu abro os olhos e vejo a tesoura ainda presa no ferimento, meu mamilo ainda estava lá também.
Mantive a boca tampada e abro a tesoura rapidamente, lento sempre foi pior. Veio um choque, então a dor voltou a pulsar, deixando o sangue escapar e banhar minha barriga. Minha mente se esvazia através das lágrimas e nesse valioso momento de silêncio eu me pergunto sobre o que estou fazendo.
Naturalmente, no silêncio Dele não encontro as respostas.
Eu pego um rolo inteiro de papel higiênico, eu poderia dizer que era minha menstruação, e me dirijo ao chuveiro. A água arde e meu pecado escorre pelo ralo, o som ajuda a manter o silêncio.
Apesar disso eu sei que o reflexo continua lá, seus sussurros mais e mais altos.
Expurgo
"Ave Maria..."
Alice estava entediada. Era mais um dia naquela 'sala de aula', ou mais uma noite. Depois de semanas sem ver o céu, isso perdia o significado.
"... bendita sois vós entre as mulheres..."
Rezando junto com Madre e as noviças, Maya estava aliviada. Aquela sala era o único ambiente que ela já se sentia confortável. Lembrava a escola, na verdade era até melhor que ela, sem garotos paspalhos, sem 'quem está namorando quem', sem drogas, sem crianças que ficam se gabando, sem gente querendo cola... Paz e disciplina somente. Quem sabe ela poderia finalmente conseguir fazer amigas aqui? Se houvesse janelas e uma paisagem, seria perfeito.
"...e bendito é o fruto do vosso ventre..."
Madre observava atentamente as noviças de pé ao lado de suas cadeiras. Sempre com um olhar sereno, ela garantia que nenhuma estivesse de boca fechada.
"...rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte."
"Amém." Todas afirmaram de forma uníssona.
O que agradou Madre. "Podem se sentar agora."
Maya obedeceu, mas não antes de pegar o caderno e o lápis com borracha sobre a cadeira, cortesia da Irmandade. Ela nem se deu conta que estava sorrindo.
Aproveitando o movimento para se sentar na cadeira, Alice olhou para trás para saber exatamente aonde aquela garota pálida estava sentada.
Em parte, porque Madre tinha um conhecimento limitado e em outra por haver uma diferença de idade entre as noviças, as aulas apresentavam noções básicas de matemática, gramática, geografia e história, havia sessões de caligrafia também. Maya e Alice tinham domínio sobre aqueles tópicos, especialmente Maya, e não servia mais do que passar o tempo.
O que realmente era interessante eram as aulas sobre garotas mágicas e bruxas.
Madre começou a escrever no quadro negro. "Hoje iremos falar sobre as classificações que a Irmandade definiu referente às bruxas."
"Mas vocês ainda as chamam de bruxas," comentou uma noviça, logo se arrependendo um pouco pela intromissão.
"Hmmm... Sim, na maioria do tempo, pois é o termo utilizado pelo Incubator." Madre se virou para a sala. "Contudo, a Irmandade tem o desafio de unir garotas mágicas de diferentes origens e culturas, que se utilizam de termos coloquiais. Com isso surgiu a necessidade de um padrão, e essas classificações são úteis na hora de ensinar sobre o que nós estamos enfrentando. Alguma dúvida?"
A sala permaneceu em silêncio, algumas noviças balançaram a cabeça.
"Eu sei que para algumas isso é recapitulação, porém eu quero que prestem atenção." Ela retornou a escrever no quadro. "Nossa classificação utiliza o alfabeto grego, começando com alpha, que são os lacaios, mas não qualquer lacaio e sim aqueles que vivem dentro da barreira de suas respectivas bruxas. Aqueles que se desgarram da barreira da bruxa nós os classificamos como beta e eles têm uma importante relação com a classe delta, que são as bruxas propriamente ditas. Alguns de vocês já passou pela situação onde derrotaram uma bruxa e ela não deixou cair uma semente da aflição?" Ela parou e olhou para trás.
Maya não se lembrava de algo assim acontecer, talvez sua melhor amiga soubesse mais.
No entanto, outra noviça já havia começado a falar. "S-Sim! Eu lutei contra uma bruxa e não consegui uma semente, mas Kyuubey disse que isso era normal..."
"Sim, é normal." Madre começou a desenhar no quadro. "Pois você não lutou contra uma bruxa, mas contra um lacaio, classe beta."
"Hein?" A noviça ficou estupefata. "M-Mas ela tinha uma barreira! E havia muitos lacaios com ela."
"Uhum..." Usando setas e símbolos, ela havia desenhado o que parecia um ciclo. "Os lacaios, na maioria dos casos, deixam a barreira da bruxa em bandos, normalmente criam uma versão menor da barreira envolta deles. Eles buscam por emoções negativas, fazendo vítimas durante esse processo. Um deles acaba absorvendo tanto pesar que ele cresce, muda de forma, assim como sua barreira também cresce. Uma garota mágica inexperiente facilmente confundiria isso com uma bruxa e seus lacaios."
Interessada na nova informação, Maya copiou com esmero o desenho no quadro em seu caderno.
Enquanto isso, Alice mantinha o seu caderno fechado. Ela se esforçava para não bocejar, era muita falação.
"Apesar disso, esse não é o ponto crítico na relação entre a classe beta e delta," disse Madre, já de frente para as noviças, "vocês já aprenderam sobre o que acontece quando a gema da alma é destruída, mas quanto a semente da aflição? O que acontece?"
"A bruxa, ou classe delta, que seja, morre de vez, né?" Alice respondeu com certa ironia.
"Não..." Madre fez uma pausa, examinando a reação das noviças, antes de continuar, "no momento que a semente é destruída, uma classe beta, o mais forte dentre eles, se transformará na bruxa. No final do processo, ele terá a mesma semente que havia sido destruída."
Maya parou de piscar os olhos, aquele conhecimento era terrível e sem lógica, justamente como as bruxas eram.
"É por isso que uma bruxa derrotada em uma cidade pode ser encontrada em outra, ou até mesmo em outro país. Isso depende da natureza de cada bruxa, nenhuma é igual a outra. Algumas são mais centralizadoras, seus lacaios a protegem ou saem em buscas de vítimas para trazerem para a barreira, como abelhas para colmeia. Enquanto outras bruxas viajam pelo globo, espalhando os seus lacaios por onde quer que passem." Madre ergueu o dedo indicador para representar um número. "Porém há algo em comum em todas elas: sempre haverá apenas UMA semente da aflição. Então anotem, se houver uma semente da aflição, mesmo se a bruxa esteja morta e haja uma classe beta forte o bastante, nada acontecerá. No entanto, assim que ela é destruída, um dos classe beta irá reagir de imediato, não importa a distância. Nós já testamos isso."
As novas noviças anotaram em seus cadernos, cada uma do seu jeito. Até mesmo Alice anotou com uma singela frase.
Bruxas são um porre para matar.
"Agora irei falar da classe épsilon." A mulher ruiva caminhou de um lado para o outro da sala, lentamente, como se quisesse ouvir cada um de seus passos no piso duro. "É possível que já tenha ouvido nesse ditado: bruxas caçam pessoas como garotas mágicas caçam bruxas. Uma garota mágica experiente, com a gema da alma em dia, consegue derrotar a maioria das bruxas sozinha, algumas até irão sempre tentar fugir. Todavia, há bruxas com artifícios perigosos ou com um comportamento combativo. Além disso, qualquer bruxa que tenha garotas mágicas em seu histórico de vítimas automaticamente passa a ser uma classe épsilon. Portanto, quando alguém mencionar que você irá enfrentar uma classe épsilon, sejam extra cuidadosas e é melhor que façam isso em grupo." Ela parou e esperou as noviças terminarem de escrever em seus cadernos antes de prosseguir. "E por fim nós temos a classe ômicron, que são conglomerados de bruxas que atuam como uma única entidade. Normalmente, quando uma bruxa encontra outra bruxa, elas lutam entre si até a morte. Não temos idéia de como isso funciona, mas em alguns casos elas decidem se unir, talvez em uma aliança ou a mais forte absorvendo a mais fraca. Quando uma grande quantidade de bruxas se une, elas se tornam um verdadeiro leviatã, que não se esconde em uma barreira por não temer nada e tem a absoluta destruição como seu único objetivo. Felizmente, essa classe é rara. Vocês podem ter ouvido falar de Katrina, a classe ômicron que foi derrotada no bastião de Nova Orleans, onde Generalíssima lutou e se tornou uma heroína."
Uma noviça ergueu a mão. "Walpurgisnatch é uma classe ômicron?"
Maya e Alice se entreolharam, confusas com aquele nome.
"Ela poderia ser..." Madre abriu um sorriso. "Houve muita discussão a respeito e ficou acordado que Walpurgisnatch teria uma classe própria. A classe sigma ou, não oficialmente, classe enigma, devido a nossa incapacidade de localizar essa bruxa e descobrir onde ela irá atacar novamente, o qual pode levar décadas para acontecer. Mais perguntas?"
Outra noviça, fazendo uma careta, arriscou em perguntar, "Existe a classe ômega?"
A mulher balançou a cabeça. "Felizmente, não. Classe ômicron já é uma ameaça grande o bastante para o nosso mundo."
"Matar bruxas não é pecado?"
Todos na sala voltaram as suas atenções para uma noviça, que ficou surpresa com a repercussão do que havia dito.
"Por que pergunta isso?" Madre assentiu. "Prossiga."
A garota levou algum tempo para encontrar palavras. "É que... Garotas mágicas se tornam bruxas, então não estaríamos as matando? Não há outro jeito?"
"Deus juga sabiamente," afirmando, a expressão de Madre transfigurou para algo menos maternal, "se há alguém que deve responder pelos seus atos, esse alguém é o Incubator."
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Chegando ao refeitório, Invasora suspirou, um pouco pelo alívio do lugar estar vazio e um pouco mais por decepção. Ela caminhou pelo ambiente, até um espaço aberto adjacente. Era a área de entretenimento, com vários tipos de jogos sobre estantes para serem pegos e usados por membros entediados.
Todavia, a pessoa que Invasora procurava estava na frente da televisão jogando videogame, sentada em uma almofada, seu rabo branco felpudo, e fones de ouvidos em suas orelhas humanas. "Olá."
Sortuda virou a cabeça, tirando o fone de ouvido. Ela estava bem empolgada. "Ah, bom dia! Eu nem acredito que você veio!"
"Você não para de insistir..." A garota asiática se aproximou da televisão. A tela mostrava uma garota guerreira em uma floresta, lutando contra inimigos que pareciam balas de goma coloridas com carinhas fofas. A caixa do jogo no chão tinha o título dele em japonês. "'Magica Frontier'. Esse é o jogo que você quer que eu jogue contigo?"
"Sim... mas não comigo. Hehe..." Encabulada, Sortuda abriu o maior sorriso que pôde. "Só você pode me ajudar agora, sabe. Eu queria completar esse jogo 100%, antes que o mundo acabasse se ele acabar, claro."
"Não deixe Generalíssima ouvir isso." Com a sua voz baixa, Invasora perguntou, "Só para eu ter certeza, você quer que use a minha magia para entrar no jogo e completá-lo para você?"
"Nããão~" A garota coelhinha deu uma piscadela. "É só uma conquista de pontuação."
Invasora revirou os olhos e se virou para ir embora, mas a sua perna foi abraçada.
"Por favor! Eu fico uma hora na sala de segurança em seu lugar!"
Ela respirou fundo e tentou puxar a perna,
"Duas! Duas horas na sala de segurança!"
Ela tentou de novo.
"O que você pensa que eu sou?! Eu não vou vender a minha gema da alma!"
Após pressionar os lábios e erguer as sobrancelhas, Invasora disse, "Está bem, eu faço."
"Sério sérião?"
"Sim..."
"Aeeeêê!" Sortuda soltou a perna e fez um gesto com mãos, formando um coração com os dedos. "Eu sabia que a Invasora tinha um coração de ouro."
A garota mágica bailarina olhou para a coelhinha. "Quatro horas na sala de segurança."
"Hmmm..." Sortuda manteve o gesto, mas não estava tão feliz. "Coração de prata."
"Vamos terminar logo com isso, não posso deixar a sala de segurança vazia por muito tempo." A gema da Invasora brilhou. "Lembre-se, você não vai conseguir comunicar comigo diretamente, nem por telepatia, então use o microfone."
"Saquei." Sortuda puxou o microfone do fone de ouvido para mais perto de sua boca e teve o impulso de agradecer novamente de uma forma muito especial. "Arigatow kawaii desu~!"
"Gozaimasu..." A imagem de Invasora foi ficando difusa e transparente, e seu corpo se dissolveu em uma luz azul clara que entrou dentro do console de videogame.
A tela do televisor ficou preta e os logos das empresas que produziram o jogo surgiram, anunciando que ele havia sido reiniciado.
Sortuda pegou controle. "Só me dê um instantinho." Ela acessou a tela de seleção de personagens, que agora tinha uma nova opção. "Deus do céu! Esses são os pixels mais fofixos que eu já vi!"
Na tela apareceu uma caixa de texto acompanhado do retrato pixelizado da Invasora.
Não estou desperdiçando a minha magia para isso!
"Ei, eu já vou começar." Sortuda esperou a tela de carregamento terminar, e aparecer Invasora na rua de uma metrópole destruída, para que abandonasse o controle. "Daqui em diante, você deve conseguir fazer tudo sozinha."
A garota dentro jogo virou de um lado para o outro. Uma nova caixa de texto, agora com o retrato assustado dela, surgiu.
Onde está a floresta? E aquelas criaturas coloridas?
"Ah, aquilo era o tutorial." Sortuda sorriu. "Magica Frontier é sobre garotas mágicas contra um exército de máquinas assassinas. Essa é a penúltima fase. A última nem é difícil o chefão é uma pi-"
QUÊ?!
Vendo o retrato zangado de Invasora, ela falou, "Calma! Se você morrer, basta que eu recomece o jogo para que tudo fique bem, né?"
Ainda assim, não é legal ter seu corpo despedaçado por tiro de canhão e vou ter que gastar mais magia.
"Não seja boba! Eu tenho certeza que os outros personagens não chegam nem perto da força que você tem. Isso será fácil."
Eu não vejo nada.
"Hã?" Ela coçou a cabeça. "Você está cega?"
Não é isso, o programador desse jogo deve ter implementado eventos gatilhos para que os inimigos surgissem.
"Ih, não entendo nada desse esoterismo não..." Sortuda ajustou o fone de ouvido em sua cabeça. "Mas então eu serei sua copilota! Eu já memorize tanto essa fase que eu sei que virá três drones com mísseis assim que você der os primeiros passos."
Vamos ver.
Sortuda viu os drones aparecerem assim que Invasora começou andar. Ela também já esperava o ataque que a garota iria usar, estendendo ainda mais as suas já compridas mangas e as usando como chicotes. O que a deixou surpresa foi o fato dos drones terem sidos fatiados em dois em um único golpe. "Jesuis na causa! Isso não é bom, você precisa fazer combos."
Combos?
"Você precisa deles para conseguir uma pontuação mais alta e encher sua barra de especial no topo da tela."
Não tenho como prestar atenção nisso quando estou face a face com coisas querendo me matar.
"Tente ao menos usar golpes mais fracos." Sortuda pressionou a têmpora. "E agora... eh... vai ter um tanque de guerra."
Não se lembra?
"Claro que eu me lembro! Cuidado com a armadura de espinhos." Depois de ver Invasora despachar o inimigo facilmente, ela se sentiu mais confiante. "20 certos. Legal! Agora vai ter um tanque e dois drones."
"E agora um robozão com lança-chamas."
"Os próximos inimigos são dois tanques, cuidado com as suas costas!"
"É lindo ver você girar! Parece que você está dançando. Cuidado que vem um cardume de mega mecha tubarões."
Mega o quê?! Vai ter água?
"Não, eles nadam pelo subsolo mesmo."
Enquanto Invasora superava cada novo desafio, Sortuda ficava mais ansiosas com a pontuação que não parava de subir. Após a garota de mangas compridas derrotar cinco robôs sob um bombardeio orbital de lasers, ela estava ferida.
Esse jogo não tem itens de cura?
Sortuda balançou a cabeça como se a outra garota pudesse ver. "Não na dificuldade extinção."
É melhor eu parar de perguntar...
Notando o retrato ranzinza de Invasora, Sortuda a encorajou. "Estamos quase lá agora, só falta o chefe da fase, codinome Stelaris."
No jogo, garota seguiu em frente, chegando em uma grande avenida quando, de repente, uma imensa bola de metal caiu do céu, causando uma cratera.
Esse é o chefe?
A bola começou a flutuar e luzes de neon formaram padrões em sua superfície, apontando para Invasora.
"DESVIA!" Sortuda quase mordeu o microfone.
A esfera disparou um raio devastador, mas Invasora já havia pulado e contra-atacou. Suas mangas chicotearam violentamente contra a superfície metálica, no entanto a esfera só vibrou levemente.
"Ele consegue aguentar muita porrada mesmo, é só continuar batendo!"
A esfera disparava lasers para todas as direções, fazendo jus ao seu codinome. Invasora conseguia evitar os ataques com graciosidade, contudo ela tinha poucas oportunidades para danificar o chefe, suas mangas acabavam queimadas e cortadas pelas luzes.
Não consigo destruí-lo.
Sortuda estava com a face colada na tela. "Usa o especial!"
Como é que eu uso?
A mulher sardenta abriu a boca para falar, mas se deu conta que não tinha idéia alguma. "Hmmm... eh... Tenta imaginar... o ataque mais poderoso que você consegue fazer se você não se importasse com a sua gema."
Invasora não respondeu de volta, porém ela parou de atacar com as mangas e procurou uma posição mais distante e segura. Sua gema, então, brilhou fortemente.
O brilho tomou conta da tela, ficando apenas visível a silhueta dos personagens. Cegada momentaneamente, Sortuda recuou. "Wow!"
A silhueta de Invasora se deformou, com uma asa brotando de suas costas e crescendo. Quando o brilho se dissipou, ela estava voando e em transe.
Ignorando aquilo, o chefe continuava a atacar, porém os lasers disparados contra a garota se curvaram e faziam voltas pelo ar, como se estivessem obedecendo a ela.
"Belíssimo..." É o que Sortuda pôde dizer ao ver os lasers atingirem a esfera e ela explodir em show de luzes.
Quando as luzes se foram, Invasora estava sentada no chão da avenida destruída, esbaforida.
Acabou?
"Missão completa!" Sortuda repetiu as palavras na tela enquanto aguardava pela pontuação final. Sua felicidade foi curta. "Oh, você conseguiu a nota SSS."
Parece ótimo.
"Sim, melhor do que eu consigo, mas a nota pra obter a conquista que falta é a SSS++. Deve ser porque o jogo não contou os ataques do chefe que foram contra ele como seus, então sem combo. Nada que você não possa evitar na próxima vez."
Quando a caixa de texto apareceu, o retrato de Invasora estava estupefato.
O que quer dizer com isso?
"É bem rapidinho." Sortuda pegou o controle. "Eu só preciso carregar o meu jogo salvo."
De repente, havia apenas chuvisco na tela.
"Invasora?" Sortuda presenciou a tela ficar preta, salvo a imagem pixelizada de Invasora que estava olhando diretamente para ela. "Você resetou o jogo?"
Invasora começou a andar como se estivesse indo em direção a câmera.
Sortuda sorriu em face do silêncio. "Hehehe. Você tá me assustando agora..."
A imagem foi crescendo e ganhando resolução, cada vez mais realista, e deixando claro o quanto a garota estava furiosa.
"Opa!" Sortuda deixou controle e ficou de pé. "Generalíssima acaba de me chamar telepaticamente. Parece que é só comigo e é beeeem urgente. Outra hora a gente conversa sobre isso... né?"
Invasora estendeu o braço e sua mão coberta pela manga atravessou a tela.
"Eeeeekk!" Sortuda saiu correndo. "Fui!"
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Após a aula com Madre, as noviças haviam retornado ao dormitório.
Não que isso fosse um motivo para Alice comemorar. Deitada na cama, seus olhos amarelos focados no teto cinza, ela desabafou. "Ah, que bosta de lugar. Não tem celular, sem Internet, na televisão só dá pra assistir filmes velhos... Como se consegue viver assim?"
Maya, que estava sentada na cama ao lado, respondeu, "Bem, elas disseram que é mais seguro assim, ou essas novas bruxas podem nos encontrar."
Alice se levantou, socando o colchão. "Eles confiscaram os nossos pertences! Isso parece mais uma prisão." Ela puxou a camisa do uniforme. "Olha isso! Eu quero as minhas roupas de volta."
"Elas disseram que não há como ter um armário para cada uma de nós e poderia gerar brigas."
Alice balançou a cabeça para o que Maya disse. "É, é, elas dizem demais..."
"Vocês deveriam estar agradecidas por haver absorventes."
A loira olhou para a sua outra vizinha de cama.
A noviça continuou, sorrindo, "Sabia que é permitido usar o seu uniforme de garota mágica? Só não podem portar armas, somente as irmãs podem."
"Nem, minhas roupas só servem pra lutar." Ainda assim, aquela informação captou a curiosidade de Alice. "Você já tá há muito tempo aqui?"
"Eu não sou uma refugiada como vocês, eu fui recrutada pela Irmandade antes das coisas ficarem ruins. Agora eu consigo imaginar o porquê de elas estarem recrutando..."
Alice se sentiu um tanto ofendida com a forma que ela havia mencionado 'refugiada.'
A noviça continuou, "Vocês estavam sem sementes, não é?"
Maya ficou surpresa. "Como você sabe?"
"Isso aconteceu no mundo todo," a noviça fez gestos enquanto falava, "primeiro, do nada, Incubator parou de fazer novos contratos, depois, vocês agora sabem, a população de bruxas começou a diminuir..."
Alice abaixou o olhar, ainda era difícil admitir aquela correlação.
"E agora ele nem tem entrado mais contato com as garotas mágicas, até parece que ele deixou o planeta." A noviça abriu um sorriso ainda maior, mas que durou pouco tempo. "Seria quase bom se não fosse essas novas bruxas... Falam por aí que é por isso que as bruxas desapareceram tão rápido, elas estariam evoluindo." Ela ergueu as sobrancelhas e respirou fundo. "É bem assustador."
"Você já viu alguma dessas novas bruxas?" Maya perguntou.
A noviça apenas balançou a cabeça.
"Você não devia ficar assim com boatos," Alice afirmou, logo seguido por algo que ela queria saber já faz um tempo, "você sabe onde a gente tá?"
A noviça fez uma careta. "Não exatamente."
A loira revirou os olhos e bufou.
"Ehh... Hmmm..." Maya arriscou uma pergunta para a noviça, "você também 'acordou' aqui?"
"Ah sim. Vocês também entregaram as suas gemas para a Generalíssima."
"Só depois de muita insistência daquela Madre, dizendo que elas tinham um lugar seguro e iriam cuidar da gente, ela até purificou as nossas gemas. Como fui cair nessa..." Alice resmungou algumas palavras ininteligíveis antes de voltar falar, "assim que colocamos as nossas gemas na mão da Generalíssima, a gente acordou aqui com esse uniforme. Tipo assim... 'Mas que merda?!' Nós nunca devíamos ter confiado nelas."
Maya fez a sua amiga lembrar. "Nós não estávamos mais encontrando bruxas na cidade e não podíamos ir mais longe sem as nossas famílias saberem. Nossas gemas estavam muito escuras. Eu sentia calafrios e eu não tinha nem vontade de me levantar da cama. Você também estava doente e cansada."
"Elas tinham sido purificadas." Alice olhou para a gema em seu anel. "A gente dava um jeito..."
A noviça experiente assentiu. "Vocês tiveram sorte de terem sido encontradas a tempo por elas."
"Sorte?" Alice rangeu os dentes, deixando escapar um sussurro, "Elas roubaram até a nossa liberdade."
"O que mais me preocupa é que elas podem ter feito conosco enquanto estávamos inconscientes." Maya abraçou a si mesma. "Será que eles implantaram algo em nossos corpos? Tipo um rastreador, acho que até tem um filme assim."
"Hahaha! A Irmandade nunca faria isso," a noviça disse, "eles vão exigir disciplina e comprometimento, mas eles realmente querem o bem de todas nós. Durante esse tempo aqui, eu aprendi tanto com as irmãs e me tornei uma garota mágica muito melhor."
"Jogando a vida fora ao mesmo tempo?" Alice levantou uma sobrancelha.
"UUUUAAHHH! EU QUERO VOLTAR PRA CASA! UUUHHhh..."
Maya e Alice olharam para um grupo de garotas envolta de uma cama, onde havia uma noviça que devia estar chorando já faz algum tempo.
Uma noviça estava usando uma semente para purificar a gema daquela garota. "Nós sentimos falta de nossas famílias também, mas ninguém aqui está sozinha. Você não pode continuar assim..."
"Deixa ela virar uma bruxa."
Alice reconheceu imediatamente aquela maldita voz.
Um pouco distante dali, a garota pálida estava descansando em sua cama, mais concentrada em estralar os dedos de suas mãos. "É melhor agora do que quando a gente tiver dormindo e uma nova semente é sempre bem-vinda."
O grupo de garotas ficou em silêncio, olhando com desprezo para ela.
Em tom baixo, Alice perguntou para a noviça experiente, "Qual é o problema dela?"
"Ah, a Evie?" A noviça balançou a cabeça, sorrindo. "Ela não é muito sociável, é melhor vocês ignorarem ela."
A loira franziu a testa. "Evie? Esse é o nome da lazarenta? Ela tem uma cara de marginal."
"Ela aparenta ser mais velha que as outras garotas," Maya falou.
"Sim," a noviça confirmou, "ela foi primeira noviça recrutada para ser treinada aqui, isso já faz uns anos."
"Então é isso..." Alice olhou para Evie e declarou, sem se importar se seria ouvida, "ela se acha a rainha das noviças."
"É mais complicado que isso..." A noviça começou a sussurrar. "Você reparou na tatuagem no braço dela?"
Não, Alice não havia prestado atenção nisso, mas ver a tatuagem não seria uma tarefa difícil, pois Evie mantinha as mangas da camisa puxadas para cima. No braço direito, próximo ao ombro, havia o desenho de uma serpente, mas cortado na parte inferior.
"Tá vendo que tá incompleto?"
Alice assentiu, "É, é, eu notei. Eu pediria reembolso do tatuador que fez esse trabalho tosco."
"Ali marca o ponto da amputação do braço dela."
Com um olhar mais largo, ela voltou a olhar para a noviça.
"Ela chegou nesse estado aqui. Na verdade, foi mais um resgate do que um recrutamento."
"Que terrível." Maya abaixou a cabeça, seus olhos assustados denunciando o que ela estava imaginando. "Uma bruxa fez isso com ela?"
"Não, é pior." A noviça abaixou novamente o tom da voz. "Eu ouvi algumas irmãs e rumores. A Evie fazia parte de uma gangue de garotas mágicas que roubavam pessoas."
"Eu sabia." Alice cerrou os punhos.
"Porém não era qualquer pessoa, só aquelas que elas salvavam de bruxas. Elas aproveitavam a oportunidade enquanto as vítimas estavam inconscientes, eu acho que como uma forma de pagamento."
"Pagamento?" Ela não escondia mais a repugnância. "Já não basta as sementes?"
A noviça deu de ombros. "Eu não sei, só sei que a gangue dela entrou em conflito com outra gangue."
Maya se inclinou, mais curiosa. "P-Por causa de território?"
"Por causa de uma garota que estava saindo com o garoto de outra. Difícil de acreditar, né? E por causa disso, a gangue da Evie foi massacrada. Só ela teria sobrevivido."
Maya juntou as mãos sobre o seu peito angustiado. "Oh meu Deus..."
Já Alice não estava tão impressionada. "Então ela tem um trauma? Isso não significa que ela tem que agir que nem uma estúpida. Não vivem alardeando que na Irmandade você pode começar uma vida nova?"
A noviça assentiu, mas o seu semblante era amargo. "Eu não me lembro de Evie ter tentado fazer alguma amizade por aqui."
"Ela não faz por merecer mesmo." Alice cruzou os braços e ergueu um pouco o queixo, destilando o seu rancor. "Veja, se não tivesse tanta gente frouxa aqui, ela já teria mudado de personalidade rapidinho."
"Eu avisei vocês, é melhor ignorarem ela." Com isso, a noviça foi embora. "Eu vou no banheiro, com licença."
Preocupada, Maya mandou uma mensagem telepática. [Alice, você pretende confrontar a Evie?]
[Não.] Ela olhou de relance para a garota pálida. [Só se ela mexer com a gente.]
Sortuda chegou correndo ao dormitório e deu salto, dando uma meia volta no ar, e aterrissou olhando para o túnel de onde ela veio. Ficou parada nessa posição por alguns segundos, até exalar em alívio. "Ufa! Mais um dia viva."
"Olhem, é a Sortuda."
A garota coelhinha se virou para um grupo de garotas envolta de uma cama. "Opa! Bom dia noviças, o que me contam de bom?" Ao se aproximar, ela notou as lágrimas na face da garota sentada na cama. "O que aconteceu?"
"Ela sente saudade da família," uma noviça respondeu.
A noviça que havia chorado então perguntou para a irmã, "Você sente saudade da sua?"
"Eu?" Sortuda apontou para si mesma. "Eu nunca consegui conciliar a minha rotina de garota mágica com o resto da minha vida. Minha mãe vivia dizendo que ia me matar se um dia eu voltasse pra casa prenha..." Ela sorriu em nostalgia. "Meu pai vivia mais no caminhão dele do que em casa. Eu acho que me inspirei nisso e um dia eu decidi não voltar mais pra casa. Bem, eu tenho uma família nova agora."
Outra noviça perguntou. "É verdade que você desejou ter sorte?"
Sortuda colocou as mãos na cintura, como se estivesse gabando. "É claro!"
"Mas sorte para o quê?"
"Para... hein?!" Ela coçou a testa. "Desejei ter sorte, nada em particular."
"Você acha que seu desejo se concretizou? Com tudo que tá acontecendo..." A noviça fez uma careta. "Me parece um desperdício."
Sortuda semicerrou o olhar. "Você tá achando que eu sempre fui uma boba coelhinha feliz, né? Na época que eu fiz o meu desejo, eu tava bem triste, acho que bem deprê mesmo, com pensamentos suicidas."
A noviça que havia chorado arregalou os olhos. "Você?"
"Uhum! Uhum!" Ela assentiu repetidas vezes. "É nessa hora que a gente faz aquelas perguntas sem respostas, tipo 'Qual o sentido da vida?' ou 'Por que estou aqui?' e então me veio uma faísca."
As noviças, tão cativadas pela irmã, já formavam um círculo envolta dela.
"Um homem ejacula centenas de milhões de espermatozóides, mas só alguns milhares chegam no útero e geralmente só um fertiliza óvulo. Se este tivesse o cromossomo Y, é quase certo que eu não estaria aqui com vocês. E isso tem que acontecer na hora certa! Pois senão o ovo não vai implantar no útero, iria terminar em uma lixeira ou no esgoto, e eu com certeza não estaria aqui. E tem mais! O cromossomo podia ter defeitos e talvez eu nem sobrevivesse a gestação, e mesmo se tivesse nascido saudável, eu poderia fazer parte da estatística dos bebês que param de respirar e têm uma morte súbita." Sortuda abriu os braços. "Veja, eu só estou falando de bebês! Nós temos o universo como exemplo."
A noviças, algumas boquiabertas, ficaram assentindo.
"Vivemos em um planeta com vida em meio a um abismo sem vida em todas direções." Sortuda paralisou por um momento. "Quero dizer, agora eu sei que Incubator é um alienígena, mas naquela época eu não sabia. Que seja, vocês tão vendo o padrão? Eu tinha lido uma notícia sobre cientistas que acreditam que as coisas podem surgir do nada, 'alguma coisa quântica' eu acho, é só uma questão de probabilidade. Imaginem o universo ter originado a partir disso. Madre vai dizer que foi Deus que criou tudo, mas não quer dizer que ele não usou uma ferramenta pra isso."
Uma noviça, um tanto sobrecarregada por aquela conversa, perguntou, "Hmmm, sorte?"
"Sim! Se você para pra pensar, fica claro como o dia. Sorte é a lei mais poderosa do universo e eu simplesmente quero fazer parte do lado bom disso. Hehe, quem não iria?" Sortuda voltou a sua atenção para a noviça que havia começado esse assunto. "E quanto ao meu desejo ter se concretizado, eu tenho certeza. Foi assim que entrei para a Irmandade."
"Vai contar aquela história de novo?"
Sortuda olhou para a noviças envolta dela. "Quem falou isso?"
Elas sorriram e sussurraram, "Foi a Evie."
"Ah tá, deerr..." Sortuda puxou suas orelhas de coelho para esconder a face. Ela então prosseguiu, "Depois que eu deixei a minha casa pra trás, eu passei a ter uma vida nômade, sabe. Eu acabei cruzando caminho com outra garota mágica e nós nos tornamos amigas. Ela me achava super fofa e era muito boa com o punhal, ela conseguia acertar um alvo à milhas de distância. Ela sempre me dizia que ela não precisava de sorte..."
Alguém do grupo falou, "Ela era da Irmandade?"
"Não, a gente nem sabia o que era isso. O nosso esquema era conseguir um dindin rapidão e viver com pouca coisa. Tinha vezes que a gente passava noite inteira no topo de um prédio, olhando pras estrelas e falando besteiras que a gente nem se lembrava no dia seguinte. Aqueles momentos com ela me faziam me sentir mais viva do que todos os meus anos com a família." Sortuda se deu conta que estava sorrindo, mas sabia que não poderia continuar assim. "Nós invadimos um território sem saber e fomos capturadas por um grupo de garotas mágicas. Elas nos amarraram e começaram as nos torturar, cortando os nossos corpos pouco a pouco."
"Mas não dá pra bloquear a dor?"
"Oh sim, eu não tinha consciência disso, mas a gente acaba bloqueando por instinto. Contudo, o que aquelas garotas queriam era fazer nossas gemas desgastar tentando nos curar, até que virássemos bruxas e elas obtivessem as sementes." Sortuda arregalou os olhos. "Foi então que nessa hora apareceu a Revah e ela acabou com todas elas!"
As noviças ficaram pasmas. Uma falou, "Você tá falando da Revenante? Sozinha? Quantas garotas tinham nesse grupo?"
"Setenta!" Sortuda afirmou.
"Sete..."
Sortuda e as noviças viram Revenante se aproximando.
A mulher negra continuou, "Setenta não seria um grupo, seria um exército. E eu não estava sozinha, havia a Madre também."
Sortuda protestou, "Ah, mas o que ela fez foi só curar."
"Ei," uma noviça perguntou, "e a sua amiga?"
Sortuda disse, "Você tá segurando ela."
A noviça franziu as sobrancelhas e então para a semente da aflição em sua mão. Sobre superfície escura do corpo da semente, estava um adorno metálico no formato de um punhal.
"Eu tive sorte..." A boca de Sortuda sorriu, a sua face não.
"Chega de histórias, eu tenho um trabalho pra você." Revenante empurrou de leve algumas noviças, dando a dica de que elas deveriam se dispersar. "Inquisidor foi pra sala de purificação, então eu quero que você vá coletar as sementes usadas. Deve ter algumas com a Generalíssima, Nano e Matryalgumacoisa..."
"Matryoshka!" Sortuda pegou a semente de sua amiga, depois chegou perto de Revenante e balançou a bunda, espanando seu rabo felpudo de coelho nela. "Boba."
"Vai logo, criatura!" A mulher musculosa deu um tapa forte nas costas dela.
O som da pancada foi tamanho, que algumas noviças quase puderam sentir também.
"Aiaiaiai!" Sortuda deu uns pulinhos, mas logo ela se virou, dando uma piscadela e sorrindo, "Ah, tô brincando, nem doeu. Eu sei que a Revah não iria me machucar de verdade, pois ela me ama."
Revenante abriu a boca para responder àquilo, não que tivesse idéia de como, porém Sortuda já estava correndo para a saída. Ouvindo uns cochichos e risinhos, ela cobriu a face com a palma da mão.
A garota coelhinha desceu a longa escada espiral, chegando no cruzamento com o largo corredor escuro. Ela seguiu para o corredor onde ficavam os quartos das irmãs.
Logo no primeiro, numerado com 00, ela parou e deu um peteleco na porta de metal. [Tá aí Generalíssima? Posso te incomodar?]
[A porta está destrancada.]
Com a confirmação, Sortuda apenas precisou apertar o botão grande do painel eletrônico para que a porta deslizasse.
O quarto de Generalíssima, mesmo sendo a líder, era como os das outras irmãs. Havia pouco espaço e mobília. A cama era um colchão sobre o concreto e a dona do quarto estava sentada sobre ela, ao lado de um tabuleiro.
"Jogando xadrez sozinha de novo?"
"É."
Sortuda se aproximou, olhando para um painel na parede com um mosaico de fotos, um dos poucos toques pessoais naquele espaço sem graça. Eram fotos da líder em várias partes do mundo, muitos dos quais ela nem tinha idéia de onde era, mas a foto mais importante era o que tinha as irmãs reunidas, exceto Inquisidor, pois ele ainda não havia contatado para ser sido trazido para as instalações. Dentre irmãs na foto, havia uma em que seu atual paradeiro era desconhecido. Mesmo se fosse inútil nutrir esperanças, Sortuda não se lembraria de Valquíria como alguém que se foi.
"A semente está na estante."
A afirmação de Generalíssima trouxe Sortuda de volta ao presente. "Você sabe?"
"Eu sei que Inquisidor foi para a sala de purificação e eu vejo o formato de uma semente no bolso de sua jaqueta."
"Nossa, eu nem notei que você olhou pra mim..." Sortuda passou a prestar mais atenção no tabuleiro. "Eu não sei como você consegue jogar assim."
Segurando o queixo, Generalíssima olhava para as peças. "É só seguir as regras e buscar sempre fazer a jogada que você acredita ser a melhor possível. Pense em um quebra-cabeça."
Sortuda deu um sorriso de safadeza. "Sendo honesta, eu ia trapacear na primeira chance~"
Finalmente Generalíssima moveu uma peça, era a rainha preta.
"Hahaha!" Sortuda não se conteve. "Que jogada estúpida, agora o bispo pode comer a rainha."
"Você não enxerga o desenvolvimento?" Generalíssima apontou. "Está vendo essa torre preta? Se eu usar o bispo para remover a rainha, a torre poderá atacar livremente a minha linha de peões do lado do rei. A única peça que eu poderia usar para eliminar essa ameaça no turno seguinte seria o próprio rei, mas nesse caso o cavalo iria poder fazer um fork entre ele e-"
"Tá, tá, tá, entendi que vai dar merda!"
"Se eu não fizer nada contra torre, também seria um desastre para as brancas, mesmo que elas ainda tenham a rainha. O rei ficaria exposto e é importante lembrar que cada peão é uma rainha em potencial. Hmmm..."
Sortuda viu Generalíssima mover a rainha branca para mais próximo do bispo. "Ah..."
"Viu? Agora a linha de peões está melhor defendida e..."
Sortuda achou estranho aquele súbito silêncio, mas então viu ela mover o cavalo preto. "Putz, no próximo turno o cavalo vai poder ameaçar o bispo e a rainha ao mesmo tempo, você vai ter que escolher."
"Isso é um fork." Generalíssima esfregou a cara. "É isso que acontece quando faz um movimento conservador demais."
"Você pode usar o bispo pra remover o cavalo."
"E a rainha preta vai remover o bispo. A ameaça à linha de peões vai continuar, mas é a rainha branca que ficaria presa com a tarefa de defendê-la." Generalíssima se levantou da cama e pegou a semente na estante, entregando para a Sortuda.
Ela ficou sem entender. "Você não vai continuar?"
"Eu vou comer algo." Generalíssima foi até a porta e, enquanto esperava ela abrir, olhou para trás e sorriu. "Enquanto eu não fizer uma escolha, tudo é possível."
Sortuda assentiu. "Isso que é liberdade, né?"
Generalíssima nada disse e foi embora.
Sozinha no quarto, Sortuda voltou a examinar o tabuleiro, tentando imaginar uma forma das brancas saírem daquela situação difícil. Como Generalíssima havia dito, as brancas estavam jogando defensivamente enquanto as pretas controlavam boa parte do tabuleiro, não se importando em sacrificar algumas peças para isso. Ao que tudo indicava, as pretas iriam vencer.
"Será que ela vai se lembrar? Acho que posso dar uma ajudinha, hehe..." Sortuda aproximou a sua mão até a torre preta, com o intento de deixá-lo em uma posição menos favorável.
[Não toque nas peças!]
"Ahh!" Sendo assustada com voz de Generalíssima em sua cabeça, ela deixou o quarto rapidamente.
De volta ao cruzamento, Sortuda foi para a escadaria que descia. Depois de centenas de degraus, ela chegou em mais uma porta de metal que precisava de senha. Depois de passar pela porta, ela só precisou descer um curto lance de escada para chegar em um longo corredor, onde as opções eram esquerda ou direita. Haviam três faixas coloridas pintadas na parede do corredor. Na faixa verde estava escrito em branco 'Sala do Gerador', na preta era 'Sala de Purificação' e na azul escuro era 'Silo'.
"Hmmm, como vou fazer isso..." Sortuda raciocinou em voz alta, "se o Inquisidor já está na sala de purificação, então se eu for na Nano primeiro e depois na Matryoshka, eu vou ter uma desculpa pra poder ver ele três vezes. É, é isso que eu vou fazer!" Decidida, ela foi saltitando pelo corredor em direção ao silo.
No entanto, uma bailarina azul surgiu do nada.
"GGGYYAAHH!" Sortuda caiu de bunda no chão.
Sem demonstrar expressão alguma, Invasora olhou para aquela garota, praticamente uma mulher crescida, começar a choramingar.
"Oh não... Por favor! Oh dama de olhos gelo, tão bonitos quanto cruéis." Sortuda ergueu a mão, como se estivesse ofertando algo. "Tenha piedade e apenas tome uma de minhas sete vidas..."
Aquela não era a primeira vez e não deveria ser a última, Invasora disse, "Você não é uma gata."
"Ah... é né..." Sortuda ficou de pé em um pulo, toda sorridente. "Então tá tudo bem! Hehe. O que passou, passou. Né? Minha amiga de coração de platina."
A garota asiática não confirmou, buscando tratar de um assunto mais relevante. "Já que você me deve, eu gostaria de coletar as sementes da Nano pessoalmente."
"Ah, claro! Você quer visitar a sua irmãzinha."
Invasora abaixou o olhar. "Ela é uma amiga."
"Olha a diferença de idade!" Sortuda colocou a mão no ombro da bailarina. "Você não precisa ter vergonha de admitir que quer adotar uma irmãzinha."
"Nano passa todo tempo trabalhando sozinha e Generalíssima só pensa no término do projeto." Invasora estremeceu. "Eu e ela trabalhamos juntas, eu melhorei a inteligência das máquinas dela. Eu não posso ignorar isso, então por favor..."
"Haha! Não precisa implorar." Sortuda deu de ombros. "Se for menos trabalho pra mim..."
"O-Obrigada." Com um leve sorriso, Invasora saiu andando em direção ao silo, mas parou. "Eu quase me esqueci, mas preciso dizer que apaguei todas as suas conquistas daquele jogo."
"QQQQUUUUUÊÊÊÊÊÊ?!" Sortuda abriu a boca e puxou a pontas de suas orelhas felpudas.
Invasora tentou sorrir mais, mas havia ficado assustada com aquela reação. "É apenas uma brincadeira."
Sortuda era uma estátua com boca escancarada.
A pele clara de Invasora foi avermelhando. Ela voltou a ficar mais séria, se curvando. "Perdoe-me, piadas não são o meu forte."
Aquilo descongelou Sortuda. "Ufa!" Com um sorriso maroto, ela esfregou a sua gema sobre a jaqueta. "Por um momento, eu achei que você queria me tornar uma bruxa."
Invasora fechou os olhos e balançou cabeça, depois saiu apressadamente.
"Você ainda é a minha amiga do peito!" A coelhinha continuou sorrindo da inocência da bailarina. Nisso ela se lembrou de algo e disse pra si mesma, "Será que ainda devo aquelas quatro horas na sala de segurança? Vou ter que negociar, mas agora..." Ela deu uma pirueta e apontou para onde faixa verde na parede levava. "Vamos ver o que a Matryoshka anda aprontando!"
O caminho naquela direção não era tão longo. No final do corredor havia uma imensa porta de metal reforçada, com alguns avisos de perigo e radioatividade. Antes da porta havia outras duas, uma em cada lado do corredor. Uma era para ser a subestação e sala de controle do reator, enquanto a outra era a que Sortuda estava interessada. Era para ser somente uma dispensa onde se guardava peças sobressalentes, mas acabou se tornando a 'sala da Matryoshka'.
Assim que a porta abriu, Sortuda sentiu um cheiro de produto de químico, ou pelo menos era o que ela imaginava. A sala tinhas muitas caixas rotuladas que serviam como balcões para frascos contendo substâncias exóticas, e cilindros de várias cores.
Havia uma mesa bem no meio da sala, onde Matryoshka estava trabalhando, empurrando cuidadosamente barras metálicas envolta de uma esfera também metálica, mas parecia ser de um material diferente. Ela fazia constantes medições usando réguas e um dispositivo de mão que fazia alguns estalidos baixos.
Sortuda já conheceu muitas garotas mágicas e vestes peculiares, mas Matryoshka era um caso à parte... Ou talvez fosse algo comum na Rússia. Ela não tinha idéia de quantas roupas aquela pessoa usava, mas ela podia ver um pesado casaco de couro marrom que cobria até os joelhos, com uma orgulhosa bandeira do país dela estampada no braço direito e sobre os ombros haviam misteriosas alças de torneiras. Sob o casaco marrom havia um moletom azul escuro com touca que cobria a cabeça, enquanto também podia se ver uma saia verde que era pouco mais comprida que o casaco, e sob a saia haviam alguns tubos flexíveis de metal. Abaixo de tudo isso, ela usava uma espécie de capa plástica alaranjada, cobrindo da cabeça aos pés, até as suas botas eram envoltas em um saco plástico. Sua face era completamente coberta por duas máscaras, uma era de borracha, com viseiras, e a outra que ficava sobre ela era de tecido, cobrindo do nariz até abaixo do queixo. O casaco tinha uma gola com grande abertura, por onde saía tubos transparentes que desapareciam sob a máscara de tecido. Em cada tubo havia uma substância diferente, sólida, liquida ou gasosa, aguardando para serem consumidas.
Sentindo que não havia sido notada, Sortuda esperou a porta fechar antes de falar, "Bom dia!"
Sem responder, Matryoshka continuava com a sua meticulosa tarefa.
E isso era uma das poucas coisas que deixavam Sortuda ansiosa. "Bom diiiaaa!"
Matryoshka passou o dispositivo próximo da esfera, ele fez estalidos mais frequentes, então ela fez anotações em um pedaço de papel sobre a mesa. Somente depois disso, ela deixou o dispositivo sobre a mesa e olhou para a visitante, enquanto escondia suas mãos nos bolsos do casaco. "Bom dia, крольчи́ха."
Se não fosse pela voz um tanto engraçadinha, ela seria tão assustadora quanto o lacaio de uma bruxa. Sortuda não sabia se era o sotaque ou as máscaras, mas parecia que aquela pessoa sempre tinha algo preso na garganta. "O que tá fazendo, uma maquete?"
"Maquete?" Matryoshka colocou as mãos acima da esfera. "Não, não, eu estou checando o limiar de criticalidade desse núcleo puro de plutônio-239. Não é todo dia que posso brincar com..." Ela recuou os braços de forma súbita, como que em um susto. "Você entende do que estou falando?"
"Claro! Eu não sou burra, né?" Sortuda olhou para a esfera, que não devia ter mais de quatro polegadas de diâmetro. "Eu sei o que é plutônio, é radioativo, não é perigoso não? E tem esse negócio de golpes críticos..."
"Está tudo bem! Tudo bem!" Matryoshka andou por volta da mesa para poder ficar na frente da visitante. "Generalíssima te enviou, sim? Então eu quero que você diga para ela EXATAMENTE o que eu disser."
Sortuda assentiu. "Aham!"
"Perfeito..." Matryoshka prosseguiu, "diga: o combustível para o gerador termoelétrico de radioisótopos está quase pronto, há apenas a necessidade de alguns testes como medida de segurança. Você consegue se lembrar dessas palavras?"
"Na verdade..." Sortuda sorriu. "Generalíssima não me enviou. Eu estou aqui por causa das sementes."
"Sementes? Sementes... Oh!" Matryoshka começou a apalpar o próprio casaco, tentando sentir o que havia embaixo. "Não aqui... Ah! Ali!" Ela então apontou para algumas caixas, onde em cima estavam as sementes. "Eu sempre esqueço que eu não guardo comigo sementes que não são minhas."
"Legal! Eu levo as sementes e passo a mensagem pra Generalíssima." A garota coelhinha juntou as mãos e sorriu mais. "Mas você poderia retribuir esse favor, né?"
Foi um momento de silêncio até Matryoshka falar, "Quanto?"
"Alguns tragos já tá bom."
"Certo." Matryoshka desabotoou o casaco para colocar a mão dentro e procurar. "Hmmm... Não, pequeno demais... Não... Esse também não... Esse..." Ela então questionou para a outra garota, "não precisa ser um copo, ok?"
"Tanto faz."
Matryoshka trouxe uma pequena jarra de vidro com um medidor de volume estampado na superfície.
Sortuda pegou a jarra e continuou aguardando. Ela observou Matryoshka pressionar o dedo contra a roupa em certos pontos distintos e ouviu o som de interruptores, então viu ela girar duas alças em seu ombro, fazendo o som de gás escapando seguido de um som de borbulhar.
Matryoshka estendeu o braço esquerdo, deixando mão sobre a jarra.
Sortuda prestou mais atenção na grossa luva de couro que ela usava, e devia haver mais de uma. Finos tubos transparentes saíam da manga até as pontas dos dedos, e sob o pulso havia tubos também, mas eram mais largos. De um desses tubos largos, saiu um liquido cristalino que derramou para dentro da jarra.
Vendo a jarra quase cheia, Matryoshka girou novamente as alças para interromper o fluxo.
"Saúde!" Sortuda fechou os olhos e virou a jarra, bebendo todo o líquido de uma só vez.
"Vá com calma, крольчи́ха."
"Aaaahhhh..." Com a face enrubescida e com os olhos bem fechados, Sortuda elogiou, "Essa vodca é tão boa que eu quase me sinto bêbada."
"Se você quer ficar chapada, por que não estimula a sua gema?"
"Não tem a mesma graça." Sortuda ofereceu a jarra para que fosse preenchida novamente.
No entanto, Matryoshka pressionou outros interruptores sob suas roupas antes de girar as alças. "Eu vou compartilhar contigo."
Sortuda viu um dos tubos que iam até a máscara se esvaziar de um líquido transparente e ser preenchido por outro de mesma cor.
Com a jarra e tubo cheios, Matryoshka fechou as alças. Ao apertar um interruptor, o líquido no tubo moveu, desaparecendo sob a máscara de tecido. "Hmmm... Falando sobre não ter a mesma graça... Essa vodca sintética não carrega o gosto da minha terra."
Antes de dar um gole, Sortuda disse, "Se der certo essa aliança entre a Irmandade das Almas e a União da Terra-Mãe, eu vou querer conhecer as suas amigas russas."
"Você se sentiria em casa em Chelyabinsk-66, nós temos acomodações perfeitas para garotas mágicas do seu tipo lá. Depois nós poderíamos fazer uma excursão até o lago Baikal, a paisagem é estonteante e você poderia praticar mergulho profundo."
Sortuda se empolgou. "É sempre quente aqui, eu bem que queria me refrescar!"
"Ah sim, é uma experiência bem refrescante..."
Sortuda iria dar mais um gole, mas foi surpreendida por um flash de luz azulada que alumiou a sala. "O qu-"
"ЧТО ЗА ХРЕНЬ?!"
Ela viu Matryoshka se virar e derrubar violentamente as barras metálicas que estavam sobre a mesa, fazendo um barulho tremendo. Após isso, a luz azul se foi.
"КАК ЭТО СЛУЧИЛОСЬ?"
A voz dela estava com tanta raiva, que Sortuda sentiu que era melhor não dizer nada. De olhos arregalados, ela entornou o que restava na jarra.
Matryoshka estava com as mãos bem próximas da esfera. "Жаркий... Жаркий... Жаркий..." Ainda com uma respiração rápida, ela pegou o dispositivo na mesa e o leu, "um pico de 27 sieverts."
Ela soava mais calma, Sortuda perguntou, "O que isso significa?"
"Nada, nós somos garotas mágicas." Matryoshka soltou o dispositivo sobre mesa, mas acabou errando, ele bateu na ponta e caiu no chão. Ela voltou até a visitante e pegou jarra sem fazer cerimônias. "Você pode sentir alguma tontura hoje ou notar que a sua gema escureceu um pouco. Na verdade, você não deve se preocupar, pois o meu corpo protegeu você da radiação."
"Então isso é radiação..." Sortuda ergueu as sobrancelhas. "Eu pensei que isso era invisível."
"É melhor você ir." Ela colocou a jarra dentro do casaco e o abotoou. "Eu tenho uma bagunça para limpar agora."
"Claro." Sortuda foi até as sementes.
"Você ainda se lembra do que tem que dizer?"
"Gerador termoelétrico de radioisótopos," Sortuda falou, com orgulho, "sabia que eu me lembro melhor das palavras difíceis do que das simples?"
"Bom, bom." Matryoshka assentiu. "Você é muito esperta, a União da Terra-Mãe sempre valoriza isso."
"Você tem que me ensinar russo um dia." Sortuda foi para a saída. "Tchauzinho~"
"Tchau." Matryoshka colocou as mãos no bolso, esperando a porta fechar. "Глупая крольчи́ха."
/人 ◕‿‿◕ 人\
Depois de se separar de Sortuda, Invasora tinha um longo caminho pela frente. Primeiro, ela passou na frente de uma junção em T. Ali era um corredor curto que levava até um vestíbulo com o cofre e a porta da sala de purificação.
Inquisidor estava ali, olhando na direção da câmera de segurança.
Invasora seguiu em frente. O corredor fazia uma leve, porém longa descida, até chegar em uma curva. Ela chegou em uma sala que servia como depósito de sucatas, descartadas durante a execução do projeto. Considerando a escala da obra, a quantidade de material era pequena, tudo graças a eficiência de Nano.
Ela passou pela sala e entrou em outro extenso corredor. Ao fazer mais uma curva, ela pôde avistar o destino.
Uma porta dupla pesada de metal e havia um robô humanoide que lembrava uma garotinha, suas 'pupilas' em forma de cruz emitiam uma luz branca. Assim que o robô avistou quem chegava, ele cumprimentou, "Olá."
"Olá..." Invasora achou aquilo estranho. Era voz de Nano, mas não tinha o calor da acolhida de sua amiga. "Está tudo bem?"
"Senha."
"Como?" Invasora franziu a testa.
"Senha incorreta, proceder para o extermínio." As luzes dos olhos se tornaram vermelhas e o robô estendeu o braço, e a mão entrou para dentro dele, se tornando um canhão.
Ela semicerrou olhar, enquanto a sua gema brilhava. Se tornando uma luz azul, a garota mágica entrou dentro do robô.
A máquina teve alguns espasmos até que a luz de seus olhos se tornasse azul turquesa. Ele olhou para braço que havia se tornado uma arma, desfazendo isso, e foi até o painel eletrônico ao lado da porta dupla. Sem precisar apertar um botão sequer, a senha foi inserida e as grossas portas começaram a deslizar lentamente, separando-se uma da outra e abrindo o caminho.
O robô entrou no silo, uma torre com paredes de concreto imensa, com mais de uma centena de metros. Todo aquele espaço era necessário para o foguete que estava sendo construído ali.
Um enxame drones, com os seus sensores ativos, se aproximaram do robô. Empilhadeiras autômatas corriam de um lado para o outro, carregando todo o tipo de material. Próximo do foguete, um grande robô bípede, com uma cabine entre as pernas, estava soldando um tanque de hélio. Ele parou o que estava fazendo e caminhou até ao invasor, fazendo chão trepidar a cada passo.
O robô humanoide aguardou.
Estando próximo, ele parou e a cabine desceu entre as pernas como um elevador. Assim que a cabine abriu, uma criança pulou para fora, vestindo um traje colante branco. Sua mão direita era uma manopla com cor de barro e preto, fios saíam dela, percorrendo o braço e ombro, e terminando em sua nuca. Seu cabelo era castanho claro, curto em comprimento, mas com volumosas madeixas, bem separadas umas das outras. A pele era clara, mas a sua testa emitia um brilho que tinha o formato de circuitos eletrônicos. Seus olhos amarelos também emitiam um brilho, na forma de cruz.
"Nano." O robô, agora com a voz de Invasora, colocou as mãos em sua cintura. "Isso era para ser uma piada?"
A criança sorriu. "Eeeehhh... Meio que sim."
"Parece que hoje todos querem pregar uma peça."
Nano ficou curiosa. "Por quê?"
"Esquece..." Uma luz azul deixou robô e se reformou em uma bailarina. Livre do controle, o robô retornou para entrada do silo sem demora.
Nano levantou sua manopla e a sua veste colante se desfez em uma nuvem metálica. Logo depois, a nuvem se transformou em roupas casuais, apropriadas para o clima quente. "Bem... É que Generalíssima me pediu para colocar um robô de guarda na entrada, só para intimidar. Eu estava testando isso."
"Por que ela iria querer isso?" Antes de receber uma resposta, Invasora já tinha uma idéia. "Inquisidor? Ele já sabe o que está sendo construído aqui."
"Porém ele não sabe pra que propósito, nem eu sei exatamente..." Nano então sussurrou, "mas eu acho que é por causa da Matryoshka."
A garota asiática estranhou completamente, "Mas ela é membro do projeto!"
"E ela não é da Irmandade," a pequena garota continuou sussurrando, "eu acho que Generalíssima teme uma sabotagem."
Invasora balançou a cabeça. "O que a União da Terra-Mãe ganharia com isso?"
Nano abriu os braços e deu de ombros.
"Generalíssima anda muito estressada com essa crise..." Invasora suspirou e olhou para o foguete. "Quanto ainda falta?"
Nano olhou para ele também. "Daria pra dizer que tá pronto, né? Mas eu descobri que quando mais ele parece pronto, mais falta coisa pra fazer. Eu diria umas duas ou três semanas, isso sem contar com o teste do elevador do silo."
"Espero que a conclusão desse projeto acalme os ânimos de Generalíssima," depois desse comentário, Invasora disse, "eu vim buscar as sementes."
"Ah sim!" Nano mexeu os dedos de sua manopla e um drone apareceu, transportando uma bandeja de sementes da aflição. "Só deixa eu dar uma limpadinha." Uma tampa no topo da manopla se abriu, revelando um compartimento por onde ergueu-se uma gema acinzentada na forma de um pentágono.
"Nano!" Invasora repreendeu, "você tem que ter mais cuidado com a sua gema."
"Eu tenho um alarme se ela ficar muito ruim." Nano usou uma semente na gema, e ela voltou a ter um intenso brilho branco, antes retornar para dentro do compartimento e a tampa fechar.
"Mesmo assim, você está usando muita magia para manter todas essas máquinas trabalhando. Quando o alarme ativar, pode ser tarde demais..." Invasora abaixou a cabeça. "Eu me sinto impotente por não ser mais útil aqui." Então ela viu a criança segurar a sua mão coberta pela manga e depositar a semente nela.
"Você me faz feliz por me visitar," Nano falou e a abraçou, "quando eu toco a minhas máquinas, eu sei que elas não sentem nada."
Invasora se curvou para que pudesse retribuir aquele gesto, acariciando as grandes madeixas da pequenina. "Quando você terminar aqui, eu vou querer que me visite na sala de segurança de vez em quando. Pessoalmente, nada de robôs."
"Nada de robôs." Nano cruzou os dedos.
"Certo." Invasora pegou as outras sementes e foi para a saída. "Eu preciso voltar ou eles farão perguntas."
"Ah, já?" Nano disse, fingindo surpresa, "na próxima vez me traz um chocolate!"
Ela respondeu em tom de brincadeira, "Eu vou pensar em seu caso..."
Invasora teve que retornar pelo mesmo longo caminho até a sala de purificação. Por coincidência, ela avistou Sortuda chegando ao mesmo tempo.
Inquisidor estava esperando no corredor, com um saco de pano vazio na mão. "Vocês duas ficaram incumbidas com a tarefa de me trazer as sementes?"
"É, trabalho em equipe, né?" Sortuda piscou para Invasora.
O homem olhou para a bailarina. "Você não deveria estar na sala de segurança?"
"Eu pedi para Revenante ficar lá enquanto eu estivesse ausente."
"Revah tá lá?!" Sortuda não segurou o riso. "Hahaha! Ela tem uma dívida contigo também?"
"Dívida?" Inquisidor franziu o cenho.
"Não é nada." Invasora depositou as sementes no saco, depois ela recuou e se curvou para ele. "Eu irei retornar agora." Ela piscou como uma imagem algumas vezes, antes de desaparecer de repente.
"'Nada'?" Sortuda ergueu uma sobrancelha. "Ah tá, sei..."
"Piada interna?" Inquisidor ofereceu o saco aberto para ela.
"É, tipo isso." Ela colocou as sementes no saco sem tirar os olhos dele. "Aqui tá o que você queria~"
"Muito obrigado." O homem chacoalhou o saco e sentiu o seu peso, então notou que a garota sardenta continuava olhando para ele. "Mais alguma coisa?"
"Hmmm..." Sortuda pressionou os lábios e olhou para cima, antes de dizer, "Não, tô bem livre agora."
Inquisidor assentiu. "Então procure Generalíssima por uma nova tarefa."
"Claro..." Com as pontas dos dedos, ela começou a brincar com o próprio cabelo e isso lhe deu uma inspiração. "Ei, notou que a cor dos nossos cabelos é parecida?"
"É uma cor comum." Ele respondeu prontamente.
Aquela assuntou não iria para lugar algum, mas Sortuda já tinha uma idéia melhor. Ela abriu a jaqueta, puxando para trás, expondo as curvas do corpo, acentuadas pelo traje amarelo apertado. "Tá quente aqui..."
Inquisidor piscou e desviou o olhar. "É sempre quente."
Aquilo era um bom sinal. Ela continuou, "Quer que eu te ajude na sala de purificação?"
Ele olhou para o saco. "Não, você vai acabar se machucando."
Ela sorriu pela consideração dele. "Ah, mas eu já perdi a conta de quantas bruxas eu já matei. Não é por acaso que sou uma irmã."
"Eu não estou falando das bruxas. Além disso, seria menos eficiente."
Ela insistiu, "Eu posso ficar só assistindo então. Torcendo pra ti."
"Não." Ele olhou para ela. "Porém eu agradeço pela sua... oferta."
"Que pena." Sortuda ajeitou a jaqueta e recuou lentamente. "Mas..." Ela ergueu levemente as sobrancelhas. "Se você mudar de idéia."
"Sortuda."
"Sim?"
"A parede."
Ela olhou para trás, vendo que estava prestes a se chocar nela. "Ah, o-obrigada!" Ela voltou a olhar para ele e segurou uma risadinha, enquanto saia com mais pressa. "A gente se conversa, tá?"
Ele assentiu. No entanto, quando ela foi embora, ele fechou os olhos e exalou, enquanto ia para a sala de purificação.
Inquisidor parou na frente do cofre, que era um armário de metal com um painel eletrônico similar aos das portas.
"L'Eterno è il mio pastore, nulla mi mancherà..."
Ele digitou a senha, destravando a porta. Dentro havia estantes com mais sementes. Ele colocou tudo dentro do saco e foi para a porta reforçada, que era a entrada da sala onde começaria o seu trabalho. Ele acionou o interruptor no lado de fora, acendendo a luzes em seu interior.
Ele entrou na sala e fechou a porta, puxando seis alavancas, uma para cada trava. As paredes estavam com marcas escuras de incêndio e a fraca luz vinha difusa através de pequenos e grossos tijolos de vidro, com as suas superfícies derretidas.
No meio da sala, com o silêncio como companhia, ele deixou o saco no chão e pegou um punhado de sementes. Olhando para elas, a fisionomia de Inquisidor ficou mais tensa. Sua respiração ficou errática e seu corpo estremeceu.
"Papà..."
Uma aura negra se formou envolta do corpo dele, como se fosse resultado de uma transpiração. Enquanto rangia os dentes e suas veias saltavam para fora, ele viu aquela escuridão ser absorvida pelas sementes.
Logo veio o alívio. Inquisidor arfava e lágrimas desciam pelo seu rosto, enquanto a sementes em sua mão pulsavam uma luz brilhante. Ela arremessou a sementes, que quicaram pelo chão da sala.
Então ele pegou mais um punhado de sementes e repetiu o processo, com a mesma expressão de dor, com a mesma escuridão...
"HHNnngg!"
A sementes começaram a emitir luz e ele as arremessou, enquanto a sementes que ele havia jogado anteriormente já começavam a espalhar suas raízes escuras pela superfície.
E ele continuou com o ritual. Durante o tempo em que semeou a sala, as paredes começaram distorcer e desaparecer.
Agora ele estava em um mundo imenso, com diferentes terrenos e céus, como uma colcha de retalhos. Vozes desconexas foram ouvidas e o canto de seus olhos avistavam seres bizarros. Amalgamas de lacaios, lutando entre si para ver quem seria mais dono dos seus corpos condenados.
Dor, dor, desespero. Era o inferno prometido.
Inquisidor viu colossos vindos em sua direção, feitos de esperanças fragmentadas e pesadelos realizados, uma afronta da criação de Deus.
Ele pegou a cruz prateada em seu cinto e a virou para que ficasse na horizontal. Enquanto uma mão segurava firme a cabeça da cruz, a outra segurava o corpo.
Então ele a dividiu.
A cabeça da cruz era a empunhadura, os braços eram o guarda punho, de um chicote com fio de metal, enquanto o corpo da cruz, uma fiel estaca. Enquanto as sombras dos colossos cobriram o homem, o fio do chicote adquiriu um incandescente tom vermelho.
Não havia ninguém no vestíbulo. Ninguém para ouvir o som da luta contra os horrores por detrás daquela porta reforçada.
Próximo capítulo: Terra vermelha
