Eu toco o vidro da janela e sinto o calor nas pontas dos dedos. É sempre ensolarado lá fora.
Há pessoas sorrindo no outro lado. Elas são bonitas quando sorriem, sempre. Algumas estão passeando com os seus animaizinhos. Eu podia ter um animalzinho, não podia? Nah... Eu só estaria torturando ele.
Olha... Eu me lembro dessa garota, ela estudou comigo na escola. Ela está passeando de mãos dadas com esse rapaz... Ele parece ser mais velho, será que eles já fizeram sexo? Vou ficar com tanta raiva se um dia eu a ver com uma barriga.
Meus olhos estão cansados, mas a janela sempre está aberta.
Anna? Essa é a Anna? Faz tanto tempo que não há vejo, ela mudou o cabelo. Eu me lembro daquele dia no parque de diversões, quando eu senti que a nossa amizade iria terminar. Uma tatuagem? Eu não me lembro de ela ter uma. Ela tem amigos legais agora, enquanto a minha vida anda em círculos cada vez menores...
O vizinho vai viajar, com toda a família junto, todos felizes. Parece que vão para praia. Meh... Eu nem gosto de praia. Meu corpo é todo esmilingüido e pálido, eu era conhecida na escola como 'linguiça'. Só passo vergonha e o Sol queima, é uma bosta.
Eu ouço sons atrás da porta. É a minha mãe? É... Pelo peso de seus passos eu sei que é ela. Se eu sentir cheiro de comida... Tomara que ela não tenha colocado na porta. Por que ela não desiste? Ela acha que isso vai mudar alguma coisa? A escola acabou, a minha vida acabou. O mundo já me julgou, eu só posso olhar para ele através da janela.
A filha da outra vizinha está grávida, tem marido. Vai ser uma garotinha... Eles estão tão felizes, vou rezar que eles tragam uma humana para o mundo, não alguém como a linguiça aqui, mas quantos anos ela é mais velha do que eu? Uns seis anos? Uns dois mil e cento e noventa dias? Ah, tem os anos bissextos. Ela está tão realizada, olha como eles trocam olhares. É tão bonito quando você não está desse lado.
Morrer, mas morrer mesmo, como antes de estar viva, mas eu estou consciente que não será assim. Eu aceito que é minha culpa, eu podia ter pensado diferente, ter feito escolhas diferentes. Eu...
Eu estou ciente do meu propósito. Eu agora sei, eu estou em paz, eu olho pela janela e estou em paz com o que irá acontecer. Eu posso fazer infinitas bondades, servir aos outros com toda a humildade, quando eu morrer eu irei para o inferno. Garantido, escrito nas estrelas.
Mas não é só isso!
Assassinos? Genocidas? Estupradores? Todos perdoados. Enquanto eu estiver caindo, eu verei até o diabo ascendendo aos céus.
É e será a minha culpa, todas as culpas serão minhas.
Não, não será como Jesus. Eu não serei adorada por esse 'sacrifício'. Eu sou mais como uma lata de lixo. Enquanto eu estiver agonizando no fogo, eu vou ver todo mundo no paraíso zombando de mim e rindo. É quase como agora, em meu quarto olhando pela janela, mas é mais explícito.
Deus. Deuses. Demiurgo. Darwin. Big Bang. Que seja. Eu fui criada para que os outros pudessem se sentir melhor. Sabe, alguém tem que ficar no último lugar.
Eu estou em paz com a minha existência, mas tem algo que me incomoda. Um egoísmo... Eu sou uma pessoa horrível e estou começando a gostar disso. Antes de ir para o inferno, eu gostaria de sentir o Sol, de ter esses sorrisos. Eu não sei como é vida dessas pessoas além do que a janela mostra, mas esses momentos que eu posso ver já bastariam.
Como uma miragem no deserto, eu viverei a miragem.
Fata Morgana
As luzes no corredor acenderam, anunciando a passagem de alguém por ele.
Madre não achou estranho aquilo naquela hora do dia. Com o racionamento das sementes, todos evitavam esforço físico. Se não fosse para procurar sementes, o tempo deveria ser dedicado ao descanso.
Haviam exceções.
Ela ouviu sons curto de impacto. Como um chicote, mas mais curto. Era um som que ela não ouvia faz muito tempo e não esperava ouvir mais.
O som vinha do quarto de Inquisidor. Intrigada, Madre se aproximou da porta de metal e colocou o ouvido próximo a superfície para confirmar o que ouvia.
De repente os sons de impactos pararam, seguido pela voz de homem, "Eu sei que tem alguém aí. Por favor, entre."
Aquilo soava mais como uma ordem. Com olhos arregalados, Madre acionou o painel eletrônico, descobrindo que a porta estava destrancada.
No quarto de Inquisidor não havia nada nas paredes além de uma modesta cruz acima da cama de concreto. Havia muitas pilhas de papéis e de livros, algumas das pilhas eram o suporte de uma placa de metal, improvisando a função de uma escrivaninha. Haviam duas cadeiras plásticas, uma com mais uma pilha de documentos e a outra o homem estava usando. Ele expressou surpresa ao ver quem havia entrado e rapidamente se levantou para tirar a pilha sobre a outra cadeira. "Oh por favor, sente-se."
A voz dele não era mais austera, mas Madre obedeceu sem hesitar. Olhando para ele durante todo o tempo enquanto se sentava, ela perguntou, "Como você sabia?"
"Eu senti os passos." Ele voltou a sentar. "E foram muitas vezes, mas eu ignorava. Agora que as sementes foram roubadas, eu... não pude mais fazer isso. Desculpe, nas outras vezes também havia sido você?"
A ruiva abaixou a olhar. "Bem, essa não é primeira vez. Eu acabei indo longe demais e invadi sua privacidade, eu peço perdão, eu não farei mais isso."
Ele levantou a mão e balançou a cabeça. "Está tudo bem, eu não estou lhe culpando de nada." Depois, ele retornou a atenção dele para o que estava na escrivaninha. "Só me deixa eu terminar essa folha."
Madre observou o homem pressionar a alavanca para fazer retornar o cilindro da máquina de escrever e começar a digitar, trazendo aquele som tão nostálgico. "Você também tem dificuldades com computadores que nem eu?"
"Não," Inquisidor respondeu sem parar o que estava fazendo, seus olhos fixos na linha que ele estava escrevendo no papel, "essas informações eu também irei inserir na central de dados, mas eu considero o que está lá como sendo algo... maleável. Eu gosto de ter uma garantia."
"Entendo." A mulher viu que também havia uma calculadora e, pela grande quantidade de botões, devia ser o objeto mais caro naquele quarto. "Você está checando as finanças?"
"Eu espero que seja uma rechecagem..." Inquisidor parou de digitar e retirou a folha, depois balançou ela e assoprou a superfície. Ficou alguns momentos olhando para o documento em suas mãos e o deixou sobre uma das pilhas próximas. Ele então abaixou a cabeça e suspirou.
Madre deixou as mãos unidas sobre o seu colo, aguardando em silêncio.
Ele abriu a boca, revelando seus dentes rangidos, e respirou fundo antes de dizer, balançando a cabeça, "Nós procuramos no quarto de cada irmã. Na sala de musculação, na sala de treinamento, nos banheiros, em cada armário, até nas camas das noviças e nada foi encontrado. As imagens das câmeras foram revisadas e não há nada de novo, nem encontramos um movimento suspeito de alguém tentando esconder algo. Simplesmente nada..."
A mulher concordou, "Você disse que isso foi planejado. Quem fez isso devia estar esperando que não encontraríamos as sementes facilmente."
"Mas a questão mais importante é por quê?" Inquisidor olhou para ela. "Qual é a motivação?"
Madre desviou o olhar por um momento. "Talvez a pessoa quer promover o caos para encontrar uma oportunidade de fugir com todas as sementes para si."
"E para onde ir? Estamos em uma crise mundial. Lá fora está infestada dessas novas bruxas que não sabemos lidar. Ter um monte de sementes não lhe salvará de uma emboscada."
Ela deu de ombros. "Talvez seja desespero."
"Eu não sei..." Ele abaixou olhar e coçou a barba. "Eu acho que perdemos algo..."
Com toda aquela especulação, Madre perguntou, "Você ainda pretende voltar a procurar no silo? Você já conversou com a Generalíssima?"
Inquisidor virou a cara.
Ainda assim, Madre pôde ver a expressão de desconforto dele.
Então ele sorriu. "Sabe o que é mais difícil em um conflito?"
Ela franziu a testa e respondeu, "Saber quant-"
"Saber quantos lados ele tem." O homem assentiu e retornou a olhar para ela, sorrindo mais. "Eu queria conversar contigo, eu preferiria que fosse em um contexto melhor, mas..."
Madre ergueu as sobrancelhas. "Jura...?"
Inquisidor assentiu novamente. "Eu li o seu perfil quando ainda estava na Europa, Santa de Aço."
Madre ficou boquiaberta e então sorriu, escondendo o rosto com as mãos. "Oh meu Deus... Esse nome horrível. Quando me tornei irmã, eu não sabia qual nome escolher. As outras me sugeriram esse nome por ele ser 'forte'." Ela abaixou as mãos. "Felizmente, é possível trocá-lo depois."
"Você foi a primeira garota mágica do país a fazer parte da Irmandade. Por décadas, sua liderança foi vital para estabelecer nossa presença por aqui."
Ela parou de sorrir, balançando a cabeça. "Eu não sou uma líder. Eu apenas acredito nos valores da Irmandade e queria salvar outras que nem eu."
"E você fez." Ele continuou sorrindo. "Graças a sua experiência."
Mais uma vez ela balançou a cabeça. "A minha experiência é limitada."
Inquisidor se reclinou em sua cadeira. "Na Irmandade das Almas, você é a garota mágica mais velha, de longe."
Ela olhou para a máquina de escrever. "Isso apenas significa um monte de conhecimentos obsoletos."
"Parece que esses conhecimentos lhe ajudaram a se manter viva por décadas antes de se juntar a nós." Ele ajeitou o cinto que cruzava o seu torso. "Quando, na maioria dos casos, o tempo de vida de uma garota mágica é contada em meses."
Ela afirmou, "Se eu estou viva, é por causa da morte dessas garotas."
E ele levantou a voz, "A vida se alimenta da morte, isso nunca foi pecado."
Madre semicerrou o olhar. "O que você tem contra Generalíssima?"
O homem paralisou por um momento, apenas as sobrancelhas quase franziram, mas então ele exalou e abaixou o olhar. "Eu não tenho nada contra ela, apenas o que ela representa."
A mulher continuou a inquirir, "É sobre o Bastião de Nova Orleans?"
Ele voltou a olhar para ela, perguntando prontamente, "O que você sabe sobre o Bastião de Nova Orleans?"
"Foi uma grande batalha para impedir a trilha de destruição de uma poderosa bruxa," ela disse, "houve muitas perdas, a cidade foi inundada e destruída, mas no final a vitória foi obtida, em parte pela atitude corajosa e decisiva de Generalíssima."
Inquisidor cruzou os braços. "O Bastião de Nova Orleans foi a maior derrota da Irmandade das Almas, pintada como uma vitória. Aqueles que acreditavam na força suprema da Irmandade, tiveram a sua visão despedaçada naquele dia."
Madre segurou a respiração por um momento e então comentou, "Creio que, oficialmente, eu não ouvi isso."
"Viu?" Ele sorriu. "Sabedoria nunca é obsoleta."
Ela suspirou, com uma expressão triste, antes de perguntar, "Você estav-"
"Não." Ele exalou. "Eu ainda estava em treinamento em Europa na época. Contudo, minha posição me permitiu acesso a informações privilegiadas, informações que são guardadas em apenas um lugar." Ele cutucou a testa. "Tudo começou quando irmãs nas Bahamas enviaram um alerta de uma possível classe ômicron acompanhando a tempestade que ia em direção aos EUA. Quando categorizaram o furacão como Katrina, foi natural dar o mesmo nome para a bruxa. Porém, isso só foi feito oficialmente quando houve a confirmação da existência dela, quando o furacão passou pela Flórida. As irmãs que estavam lá não interceptaram a bruxa, elas viram que não teriam chance nem de alcançá-la."
"Tem uma parte dessa história que eu não entendo," Madre falou, "irmãs vieram de várias partes dos Estados Unidos para a costa da Luisiana, inclusive de lugares distantes, mas Matriarca não conseguiu chegar a tempo para liderar a defesa."
"Ah... Então você sabe mais do que me contou." Ele ergueu um dedo. "Primeiro você precisa estar ciente de que a bruxa e a tempestade são coisas distintas nesse caso, não é como Walpurgisnatch. O procedimento padrão quando uma classe ômicron atinge o solo Norte Americano é de formar uma linha defensiva em Yellowstone o mais rápido possível. Uma bruxa dessa magnitude no super vulcão de Yellowstone é um potencial evento de extinção para a humanidade." Inquisidor fez uma pausa para dar ênfase do que havia acabado de dizer. "Quem fica no encargo de liderar essa linha é Pássaro do Sol, mas Matriarca participou na organização antes de prosseguir para Luisiana."
Madre abaixou a cabeça, pensativa. "Se Matriarca tivesse chegado, você acha que o resultado seria diferente?"
"É difícil dizer..." Inquisidor puxou uma porção de sua barba até o ponto de sentir alguma dor. "O grupo que estava em Nova Orleans previu corretamente de que Katrina atacaria os diques e inundaria a cidade se ela chegasse perto. Então eles tomaram uma decisão independente de interceptá-la sobre o Golfo do México."
"Um ataque suicida."
"Era um risco imensurável, a força do vento podia levar embora a sua gema, isso era uma sentença de morte, seu corpo cairia no mar para nunca mais ser encontrado." Ele balançou a cabeça. "Porém eu não acredito que eles pensaram em suicídio, eles devem ter pensado que o grupo era numeroso o bastante para derrotar a bruxa rapidamente antes que tempestade tomasse as suas vidas." Então ele suspirou, fechando os olhos. "Setenta e oito irmãs... Caçadora de Seattle, Caçadora de Amarillo, Baronesa Vermelha, Dragoneira, Espertalhona, Gatita, Vento da Guerra, Jujubinha Doce... São tantos nomes para lembrar."
Madre ergueu as sobrancelhas. "E Generalíssima?"
"Generalíssima... Ah." Ele abriu os olhos, sorrindo de leve. "Você sabia que nessa época ela tinha outro nome de irmã?"
"Ela mudou que nem eu?" Madre retribuiu o sorriso. "Não, eu não sabia."
"Generalíssima estava em Nova Orleans quando o grupo partiu para interceptar a bruxa," Inquisidor prosseguiu, "apesar de ser uma irmã veterana, ela nunca demonstrou capacidades destrutivas de combate, sempre foi alocada para suporte e logística. Ela e outras irmãs, e algumas noviças, haviam ocupado um galpão para servir como base avançada e enfermaria. Elas deviam reportar Washington com frequência sobre a situação. Quando elas ouviram os alarmes soarem, anunciando que os diques haviam colapsado, elas tiveram certeza que o grupo de ataque havia fracassado. Enquanto elas preparavam a retirada, Generalíssima havia dito que tinha localizado a bruxa, ninguém havia entendido, mas viram ela correr para fora e desaparecer na tempestade." Ele olhou bem nos olhos de sua ouvinte. "Aqui a história fica nebulosa. Algumas disseram que não viram nada, outras disseram que viram um intenso flash de luz rosa nas nuvens, como um trovão, mas todas confirmaram que não sentiam mais a bruxa, a princípio elas acreditaram que ela havia se afastado da cidade. No entanto, quando elas chegaram em um ponto seguro, Generalíssima reapareceu com uma semente."
Madre assentiu. "Eu sei que não houve testemunhas, mas isso não foi confirmado? Eu soube que a bruxa na semente foi renascida em um ambiente controlado e provou ser muito poderosa. Generalíssima lutou novamente contra ela, sozinha, e conseguiu derrotá-la. Ela mesma teria dito que estava surpresa na primeira vez, pois era um poder que ela desconhecia ter."
"Essa é a história..." Inquisidor ergueu as sobrancelhas. "Mas qual é a garantia de que a semente é de Katrina? Ninguém vivo teria visto a bruxa além da própria Generalíssima. É mais plausível que o grupo que atacou Katrina, apesar de ninguém ter sobrevivido a tempestade, tenha obtido êxito em seu objetivo. Ela devia estar muito danificada ou em vias de morrer. Generalíssima provavelmente não precisou fazer nada." Ele virou, com uma expressão de desgosto. "Eu não preciso discutir isso, Generalíssima é uma FRAUDE, não tenha dúvidas, irmã. Eles precisavam de um símbolo da vitória, eles precisavam de uma heroína..."
"Eles quem?"
"Washington." Ele checou a cruz sob o seu cinto, delineando os detalhes do objeto prateado. "O massacre de Nova Orleans casou um alvoroço político. Havia uma pressão muito grande, pois a Irmandade das Almas começou a ter relações diplomáticas com a ainda desconhecida União da Terra-Mãe. Foi acordado que a Irmandade precisava transparecer força e foi feita uma ostensiva propaganda dos feitos de Generalíssima. Enquanto isso, o sacrifício feito por aquelas irmãs para tentar salvar uma cidade se tornou uma nota de rodapé, no máximo um exemplo de má decisão." Ele segurou a cabeça da cruz em um aperto que fez tremer a sua mão.
Madre notou aquilo. "E Matriarca aprovou isso?"
"Ela... Em face da tragédia, ela não teve poder para mudar isso."
Era a primeira vez que ela via ele com um semblante de pesar. "Você a conhece bem?"
"E você não?" Inquisidor voltou a olhar para ela. "Ela veio pessoalmente para recrutar você."
"Eu fiquei surpresa." Madre fez um sorriso rápido e curto. "Nós tivemos uma boa conversa, ela me contou muitas histórias da fundação da Irmandade, e me tratou bem. Contudo, eu acredito que ela fez isso porque eu seria o primeiro membro nesse país."
"Não... A Matriarca que você conheceu é exatamente como ela é." Inquisidor olhou para um ponto distante, em suas memórias. "Eu era apenas um noviço quando cruzei caminho com ela pela primeira vez e ela veio falar comigo. Eu pensei que havia chamado a atenção dela por ser homem, mas na verdade ela viu em mim o mesmo semblante que há em tantas garotas mágicas novas. Assim como outros que fizeram contrato com o Incubator, meus sonhos se perderam para sempre. Eu entrei na Irmandade para sobreviver, mas eu não tinha perspectiva para viver. Matriarca não me deu uma visão, nem me imputou um propósito, mas me encheu de esperança."
Madre fechou os olhos e assentiu. "Sim."
"Ela tem tantas histórias, não é? Eu as ouvia junto com as outras noviças quando ela nos visitava, e com frequência. Não eram apenas histórias de garotas mágicas, mas de pessoas, e o que Matriarca fez por elas, e onde elas estão agora." Um sorriso lento e natural se formou na boca de Inquisidor, seus olhos lacrimejaram. "Ela tinha... Ela tem essa energia quando vê a oportunidade de poder ajudar. Ela está disposta a fazer pequenos sacrifícios diários e você não compreende isso a princípio, pois ela tem tantos seguidores, bastaria delegar isso para alguém. Quando você entende... Você começa a acreditar no bem. Fazer o bem sem medo de ser considerado um tolo, fraco, sem medo de que alguém tome vantagem sobre ti. Arrisque-se para tornar problemas em oportunidades, persevere para que as soluções se tornem em uma rede de favores, essa é base da Irmandade. Ela é a encarnação disso."
"Você conhece ela muito bem." Madre sorriu com algum receio. "Então, sobre Generalíssima, eu convivi com a pessoa por trás do mito mais tempo que você. Ela pode até não ser uma 'salvadora mundial', mas ela trabalha duro como líder. Ela é ainda jovem, movida por ambições, mas ela aprende rápido e sabe conciliar com as responsabilidades. Dê um pouco de crédito a ela, por favor."
"Ambições? Hmmm?" Inquisidor continuou sorrindo, mas seus olhos ficaram mais cerrados. "Eu conheço as ambições dela. Ela usou muito bem a fama que adquiriu para obter influência política para a Irmandade aprovar esse projeto do foguete. O mais impressionante é que isso se tornou a nossa melhor aproximação diplomática com a União. Generalíssima sempre esteve muito presente nesse projeto desde sua concepção, quase como uma obsessão, é natural que ela demonstre alguma resistência em pará-lo agora que está no final." Ele se esticou e tentou relaxar o corpo em sua cadeira. "É por isso que não tenho nada contra ela como pessoa. Ela sabe que é uma fraude e quer deixar isso para trás, com ela se tornando a vanguarda de uma nova era. Eu a entendo, afinal eu também tenho as minhas ambições."
"Oh?"
"Você é a única pessoa aqui que pode entender." Inquisidor entrelaçou os dedos de suas mãos sobre a barriga. "O que você pensa sobre as gemas das almas? Elas são uma prova da existência de Deus?"
"Eu não pensei muito," ela respondeu, "eu não preciso de mais evidências para ter fé nEle."
"De fato..." O homem voltou a ficar mais sério. "Infelizmente, para muitos isso não é o bastante. Eles se sentem perdidos, procuram por outros deuses. Hoje em dia, há um deus chamado ciência, com os seus sacerdotes, rituais, escrituras... Na verdade, é um velho deus, mas seus adeptos cresceram e se tornaram arrogantes."
Madre franziu o cenho e abriu a boca para dizer algo. Uma idéia perturbadora já havia formado em sua mente, mas ela preferiu ser cautelosa. "Aonde você quer chegar?"
"Eles construíram um trono acima do firmamento, e já estão afirmando que Deus não existe. Ao mesmo tempo, eles dizem que nós só podemos ver e sentir cinco porcento do universo. Isso nem sequer é heresia, apenas loucura absoluta." Inquisidor abaixou o olhar e assentiu. "É, nós vivemos em tempos tristes, sem sentido. O deus deles vê nós como meros sacos de químicos lutando contra a entropia. Mesmo que as garotas mágicas tenham sucesso em proteger o mundo, nós perderemos a humanidade para os Incubators. Nós devemos e podemos mudar esse destino."
Ela engoliu seco com a confirmação de seus temores. "Você... Você pretende usar as garotas mágicas para formar uma nova religião."
"Não, é para salvar a nossa," ele disse com firmeza, "a Irmandade seria a plataforma que usaríamos para espalhar nossas pregações."
"Isso significa que a Irmandade e garotas mágicas seriam reveladas ao público?"
"A Irmandade já planejava fazer isso, quando estivesse com sua ramificação política mais madura." Ele parou por um momento, olhando para Madre, esperando uma nova pergunta que não veio. "Imagine se entregarmos uma gema da alma para uma equipe de cientistas analisar? Como será que os fiéis da ciência irão reagir quando o deus deles não puder dar uma resposta?"
Madre ergueu as sobrancelhas. "Sobre um objeto nos dado por uma raça alienígena?"
Com ar de surpresa, Inquisidor abriu um grande sorriso e balançou a cabeça. "As almas são nossas. E podemos omitir a existência dos Incubators, eles gostam da discrição." Ele gesticulou, erguendo o dedo. "Moisés, Jesus... Há muitos momentos na bíblia onde milagres ocorrem para convencer as pessoas de que elas estão no caminho errado. Mesmo hoje eles ocorrem, aqui e ali, mas não está sendo o bastante."
Com uma voz mais tensa, a mulher afirmou, "Não confunda a nossa magia com milagres."
"Elas vêm de nossas almas, criações de Nosso Pai."
"Não," Madre pressionou os lábios antes de prosseguir, sem pestanejar, "os milagres vêm de Deus, e dEle somente, Vossos filhos são Vossos instrumentos de Vossas obras. O que vem de nossas almas é fruto de nossos desejos, manchados pelos nossos pecados."
Inquisidor segurou o queixo e desviou o olhar.
Madre continuou olhando intensamente para ele.
"É por isso que preciso de você. Eu quero fazer uma coisa boa, uma coisa certa..." Ele se levantou da cadeira. "Mas nós temos outras prioridades."
Ela não sabia como reagir, mas ao ver ele se dirigir a saída, Madre se levantou também.
Ele finalmente voltou a olhar para a mulher, com um sorriso. "Afinal, é o horário do almoço, não é?"
Madre ficou boquiaberta. "Oh..." Então ela abaixou o olhar, confusa. "Eu completamente perdi a noção do tempo."
Já no corredor, Inquisidor perguntou. "Você sabe que Generalíssima está de posse das sementes que nós ainda temos?"
"Ela me contou," Madre respondeu, logo ficando preocupada, "há algum problema?"
O homem balançou a cabeça e disse sem olhar para ela, já liderando o caminho para as escadas, "É algo que eu posso checar depois."
/人 ◕‿‿◕ 人\
Sentada na lateral de sua cama, Maya examinava a sua gema da alma. A cor azul escura, quase preta, contrastava com base dourada da jóia em forma de ovo. A respiração era onerosa, ela não sabia se era algum resquício do veneno da Evie ou apenas ansiedade. Ansiedade pela agonia.
Ela não estava pronta.
Se eu não estivesse aqui, isso não teria acontecido.
"Maya."
Ao reconhecer a voz, ela arregalou os olhos e transformou a sua gema de volta em um anel. Depois ela restabeleceu o semblante, disfarçou a respiração e olhou para a pessoa de pé, que estava próxima.
Alice estava com face cansada, com pouco movimento além da boca, "Sua gema tá escura..."
"A cor da minha gema é mais escura que a sua." Maya sorriu, mas logo ficou séria ao mudar de assunto. "Onde você estava dessa vez? Desde que começou o racionamento, você tem saído sem me avisar. O que tá acontecendo?"
A loira desviou olhar. "Eu... não sei. Eu não achei que você iria se incomodar, eu pens... Eu senti que você queria eu longe."
Maya abriu a boca, mas o choque lhe roubou o que ela pensava em dizer. O que Alice disse, como ela disse, aquela não era amiga que ela conhecia.
"Você reparou que esse lugar tá cheio de câmeras de segurança?"
Alice havia retornado a trocar olhares e Maya recobrou a sua atenção. "N-Não... Por quê?"
A loira esbravejou, "Como é que eles vêm com a besteira de que não descobriram quem foi, hein?"
Aquela era a amiga que ela conhecia e as raízes do desespero apertaram mais o coração de Maya. "E-Eles devem tá investigando." Ela se levantou e respirou profundamente. "Não vamos mais conversar sobre isso, ok? Uma irmã veio aqui agora a pouco pra avisar que o almoço tá pronto, então vamos."
Ainda deitada na cama, Evie observou as duas garotas indo em direção ao túnel junto com as outras noviças.
/人 ◕‿‿◕ 人\
Alice levantou a colher para medir a consistência aquosa do mingau e depois voltou a sua atenção para o refeitório. Com o racionamento, algumas coisas mudaram, como o fato de as irmãs almoçarem ao mesmo tempo que as noviças, incluindo a criança com a luva futurista.
"É legal que eles nos deram essas balas de chocolate, né?"
Maya sorria enquanto fazia aquele comentário bobo, mas a gema... A gema não mente. Alice sabia que sua grande amiga estava se sacrificando tanto, ela sentia isso, era algo que não podia acontecer. Ela precisava descobrir alguma coisa.
A criança foi a primeira a deixar a mesa, sorriso tenro, mão balançante. Ela seguiu em direção a saída.
"Você não gostou do mingau?"
Maya estava preocupada agora, era algo que não podia acontecer. Alice se levantou. "Eu não tô com muita fome." E pegou algumas balas de chocolate antes de sair. "Você pode comer a minha porção."
Ela caminhou sozinha pelo túnel. Aquilo já havia virado um hábito e as curvas não lhe assustavam mais. Ainda assim, seu coração palpitava, passos apressados até a escadaria.
As decidas pelos degraus foi cautelosa, até a saída para a encruzilhada de corredores. Próxima da parede, Alice aguardou.
Passos, uma sombra pequena. Como de praxe, a criança havia visitado o que seria a sala de segurança antes de continuar a descida pela outra escada. Alice cerrou seu punho e se deixou ser envolvida pela sua própria magia para adquirir o seu uniforme de garota mágica. Ela precisava ser rápida.
Por isso que tudo estava preparado.
Em lugares diferentes, próxima dos cabos no teto, pequenas serras circulares flutuantes começaram o seu silencioso trabalho antes de evaporarem em um fino pó amarelo.
/人 ◕‿‿◕ 人\
Invasora ainda tinha um leve sorriso com a recente visita quando a primeira tela apagou. Antes que pudesse pensar sobre o que aconteceu, todas as telas haviam apagado.
A escuridão escondeu a sua face, mas certamente não havia mais sorriso para esconder.
/人 ◕‿‿◕ 人\
Alice foi para outra escada, se esforçando para manter o delicado equilíbrio entre a velocidade e o silêncio. Felizmente, a criança não estava com pressa. Ela ainda estava digitando o código na porta quando Alice chegou ao final da descida. A porta se abriu e criança passou por ela.
Havia apenas alguns segundos.
A loira pulou o último lance de escada e entrou antes que a porta metálica fechasse automaticamente. Ela quase caiu na curta escadaria que havia após a porta, mas conseguiu se segurar na parede. O alívio durou pouco, pois ela viu que havia um painel eletrônico naquele lado da porta também.
Merda!
Tanto para entrar quanto para sair, era preciso saber o código. Não havia mais volta. Contudo, voltar significava ignorar a verdade e ver sua amiga sofrer. Ela estava resolvida em ir até onde pudesse.
Ela desceu a escada e chegou em mais um túnel, um longo corredor com duas direções possíveis. A criança estava em uma delas, já distante. Na parede haviam três faixas pintadas de cores diferentes, mas o que mais chamou a atenção de Alice era o que estava escrito na faixa azul escuro.
"Silo?"
Ela imaginou um armazém cheio de sementes da aflição, agora reservadas somente para as irmãs, principalmente para a pessoa que ela estava seguindo. Alice precisava manter uma certa distância em relação a criança, pois não havia lugar algum para se esconder agora.
Enquanto andava, a criança examinou a sua manopla.
Aquilo deve ser parte do uniforme de garota mágica dela. Alice pensou. Será que ali fica a gema dela...
Naquele longo túnel, nas profundezas de lugar algum, com o sistema de ventilação acobertando os passos cautelosos, uma idéia tão natural quanto sórdida surgiu, baseado em tudo que a noviça aprendeu naquelas semanas angustiantes.
Se não houvesse essa criança, eles não teriam motivos para nos negar sementes.
A manopla estava conectada à nuca da criança através de fios, então ali devia ser o melhor ponto para serrar primeiro, depois seria procurar a gema e destruí-la. Alice abriu a sua mão esquerda com o bracelete. Se Sortuda tinha razão, ela seria capaz de invocar uma serra circular próximo do alvo, para não dar margem para nenhuma reação.
Você já matou uma garota mágica?
A imagem pálida e nojenta de Evie veio na mente de Alice, ainda assim ela esmoreceu. Ela não queria admitir, mas a desgraçada tinha razão.
Haverá sangues em minhas mãos.
Ela era só uma garota que queria ajudar o pai, por que havia chegado a esse ponto? Algo dentro dela começou a trazer a coragem de volta, ela tinha a resposta para essa pergunta.
Eu farei isso por Maya.
"NANO!"
Alice ficou estática como uma pedra, era voz de homem.
"Hã?" A criança se virou, surpresa. "Inquisidor?"
Alice trocou olhares com o homem que parou ao lado dela. Ele não aparentava raiva, não ainda.
"Eu quero conversar contigo..." Inquisidor falou para Nano, "por que essa garota está contigo?"
Nano franziu a testa. "Ela não está com você?"
O olhar dele ficou mais intenso, Alice engoliu seco. O homem se aproximou, forçando-a a recuar encostar na parede. A mão dele descansava sobre a cruz com pontas afiadas sob o cinto.
"Você é uma noviça," Inquisidor disse com uma voz calma, controlada, "o que está fazendo aqui?"
"Eu tô investigando," Alice respondeu rápido e agressivamente, esperando que fosse convincente também.
"Investigando?" O homem ergueu as sobrancelhas.
"É, vocês ainda não encontraram essas sementes, então eu decidi fazer isso por conta própria!" A loira pôs as mãos na cintura e estufou o peito.
Inquisidor manteve a sua postura e voz, "Se você quisesse se voluntariar, deveria ter conversado com uma irmã."
"E se ela for pessoa que roubou as sementes?" Alice deu de ombros. "Em quem eu posso confiar?"
Inquisidor permaneceu em silêncio, os olhos parados, mas leves movimentos dos músculos denunciavam a tensão.
Os músculos do corpo de Alice estavam todos duros, a respiração era mínima. Ela rezava que não estivesse tremendo, decidiu olhar para criança para ver se aliviava isso.
Nano olhava alternadamente para os outros dois, mais preocupada do que qualquer outra coisa.
O olhar de Inquisidor se estreitou por um momento antes de dizer, "O ponto é que você está investigando em uma área onde a entrada de noviças não é permitida."
"Não é?!" Alice arregalou os olhos, fingindo surpresa, ela já esperava essa questão e ela já tinha uma desculpa para isso. "Mas eu vi essa criança entrando, eu apenas fiz o mesmo e a porta fechou atrás de mim. Como eu iria saber?"
Nano sorriu. "Ah, não é a primeira vez que me confundem com uma noviça." Ela então disse para o homem, "Está tudo bem, é só um mal-entendido."
"Não," a voz de Inquisidor ficou fria, "ela está mentindo."
Alice sentiu as suas entranhas se revirarem em pavor.
"A porta fecha em cinco segundos após abrir," ele explicou enquanto continuava encarando a noviça, "ela teria que estar próxima para conseguir entrar depois de você, então ela viu você digitando o código no painel e ela esperta demais para não saber que passar por uma porta sem saber o código, ou sem ser convidada, não é permitido."
Alice não encontrou uma resposta para aquilo, não para o breve momento que tinha sem que parecesse que estivesse inventando algo na hora. Escapar era impossível, lutar era uma idéia ainda mais ridícula, dois contra um e aquele homem parecia pronto para tudo. Depois, eles poderiam ir atrás de Maya também.
O homem virou a cara, em uma expressão confusa.
Alice piscou os olhos, sem entender aquela reação.
Ele olhou para criança.
Nano estava surpresa, com os olhos bem arregalados. "Invasora... ela..."
"Vamos!"
Alice viu dois partirem correndo pelo túnel, voltando para a escadaria. As pernas ficaram trêmulas quando os músculos relaxaram e ela abraçou a barriga. Se tivesse comido algo, ela estava certa de que teria vomitado.
O que foi isso?
Ela olhou para teto, vendo uma câmera de segurança. Claro, não havia muito mais tempo, havia apenas uma última esperança.
Nós temos que sair daqui.
Então os olhos dela se abriram mais, em uma terrível epifania. "Não... Não!" E ela começou a correr o mais rápido que pôde.
"Nãonãonãonãonão..."
Quando chegou, seus medos se confirmaram, a porta de metal estava fechada. Ela subiu a pequena escadaria e pôs as mãos na superfície fria da porta para empurrar, uma vã tentativa. "Não, caralho, não..." Ela digitou aletoriamente no painel, mas sem esperança.
Alice recuou e respirou fundo, enquanto pensava em Maya. "Eu sou uma garota mágica, porra. Eu vou conseguir!" A gema dela brilhou e ela deu poderoso chute. Houve um barulho alto do impacto, mas a porta não cedeu. Ela deu mais chutes, mas apenas conseguiu fazer mais barulho.
"Vai!"
Usando o ombro, ela jogou o corpo contra a porta. "Aiê!" O ombro ficou dolorido e a porta resistia, nem sequer um amasso. "Mas de que diabos essa porta é feita?!" Ela estendeu o braço direito. "Foda-se, eu vou serrar essa merda."
Uma mão com luva digitou o painel.
Quando Alice se deu conta, a porta se abriu. Ela se virou e viu uma máscara e tubos. Ela ficou boquiaberta, sem saber como reagir diante daquele estranho indivíduo em um casaco.
A pessoa estendeu o braço rapidamente.
"Ah!" A loira noviça teve um sobressalto, mas logo notou que aquela pessoa estava segurando a porta para que ela não fechasse, assim como a bandeira costurada no casaco. "V-Você é russa, você entende o que eu digo?"
Atrás da máscara, apenas o silêncio.
"O-Obrigada!" Alice saiu e subiu a escada correndo.
Matryoshka também passou pela porta e parou. Ela olhou para cima, para a escadaria em espiral, enquanto ouvia os passos apressados ficando distantes. Ela colocou as mãos no bolso quase ao mesmo tempo que a porta se fechava. "Прощай, потерянный ребенок."
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Inquisidor e Nano chegaram na sala de segurança, onde já se encontravam Generalíssima e Madre, além da Invasora na cadeira, que parecia arrasada.
O homem logo perguntou, "O que é tão urgente?"
"As câmeras foram desativadas," Generalíssima disse.
"Hã?" Nano reparou que as imagens nas telas estavam estáticas, indicando que eram apenas gravações pausadas.
A porta novamente se abriu, entrando Revenante e Sortuda. A mulher negra anunciou, "Os cabos foram cortados em vários pontos."
"E ninguém notou o traidor fazer isso?" Inquisidor olhou para Generalíssima. "As sementes?"
"Seguras..." A mulher olhou em um rápido relance para a criança.
Nano pressionou os lábios, entendendo que devia ficar quieta.
"Então ele deve ter feito isso para tentar escapar," o homem deduziu.
"Se tentou, falhou," Revenante afirmou, "eu subi a rampa e chequei a saída. Tá fechada."
"Há uma outra possibilidade," Sortuda disse, com um sorriso e erguendo as sobrancelhas, "posso contar?"
Generalíssima exalou. "Fala..."
"Assim que eu vi os cortes nos cabos, eu pensei: Invasora pode ter feito isso, então ela teria um montão de tempo pra ir onde ela escondeu as sementes e leva-las pra escondê-las em um lugar em que a gente já procurou. Depois ela voltaria pra cá e avisaria a gente." Sortuda cutucou a própria a cabeça. "É uma sacada bem genial, a coelhinha aqui é esperta."
A garota asiática pulou da cadeira, ultrajada. "Eu não fiz isso!"
"Ei! Ei! EI!" Generalíssima ergueu a mão. "Antes de começarem a apontar o dedo, eu quero saber se mais alguém viu algo fora do comum."
"Matryoshka não está aqui," Madre disse, "isso conta?"
"Invasora não deve ter chamado ela, de novo," Revenante comentou.
A garota com longas mangas respondeu, "Não, eu fiz isso."
"Vixe!" Sortuda fez uma careta. "Então ela pode tá preparando pra explodir a saída enquanto a gente tá aqui."
Revenante se virou para ela e levantou a voz. "Criatura, se ela fizer isso, Generalíssima pega ela antes dela conseguir sair da caverna!"
Invasora disse, "Eu chequei as gravações recentes e Matryoshka não havia saído da sala dela antes das câmeras desativarem. Elas também não pegaram ninguém cortando os cabos."
"Assim como o ladrão das sementes..." Inquisidor complementou, descontente.
"Certo, nós iremos procurar pela Matryoshka, mesmo se ela responder as nossas mensagens telepáticas." Generalíssima assentiu. "Mais alguma coisa?"
O homem falou, "Há uma noviça no andar inferior."
Generalíssima franziu as sobrancelhas. "Uma... noviça?"
"É." Nano abaixou o olhar, se dando conta. "Coitada, ela deve estar presa lá."
"E como ela conseguiu entrar?" Generalíssima questionou sem esconder a surpresa.
"Ela estava seguindo a Nano," Inquisidor respondeu, "ela disse para mim que estava investigando o sumiço das sementes por conta própria, mas eu não acredito nisso."
Invasora se aproximou da criança, preocupada. "Tudo bem contigo?"
Nano notou que não só a sua amiga próxima, mas os outros na sala também estavam olhando para ela. "Por que está perguntando isso?"
A mulher de cabelos rosa escuro fez uma nova e inevitável pergunta, "Quem é essa noviça?"
Ele disse, "Eu não cheguei a perguntar o nome, mas ela é loira com olhos amarelos. Ela estava com as vestimentas mágicas dela, um capacete de segurança amarelo, como os que são usados por trabalhadores em sítios de obras, uma camisa branca com uma faixa preta no meio. Tinha várias correntes que conectavam a camisa com a calça amarela, eu acho que a gema estava em uma delas..."
"Ahá! Eu sei quem é!" Sortuda abriu um grande sorriso. "É a Alice! O quê que aquela cabeça dura foi fazer lá?"
"Alice?" Generalíssima semicerrou o olhar enquanto coçava a testa. "Essa não é uma das últimas garotas mágicas que foram resgatadas?"
"Você sabe qual é a magia dela?" Inquisidor inquiriu para a irmã coelha.
Sortuda abriu os braços. "Bem, eu sei que ela tem uma motosserra. Ela também consegue criar serras circulares flutuantes, bem legal!"
"'Serras', você diz?"
Todos na sala se entreolharam por um momento.
Para o homem, só bastou anunciar a concordância, "É ela."
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A desesperada noviça chegou ao dormitório.
Maya estava de pé ao lado da cama. "Alice! Eu tinha pensado que você tava no banheiro, mas eu vi que você não tava. E-E por que tá com as suas roupas de garota mágica?"
Evie se levantou da cama dela ao notar aquela estranha cena.
"Pega as suas coisas que a gente vai dar no pé," a loira disse enquanto já procurava os pertences dela debaixo da cama.
Maya franziu o cenho. "Por quê? O que aconteceu?"
Alice se virou para ela e levantou a voz, "Só faz o que tô pedindo! Depois eu te explico."
"Mas e aquela porta enorme?" Maya balançou a cabeça. "E lá fora... Nós não sabemos pra onde ir."
"A gente dá um jeito." Alice segurou a sua amiga e aproximou a face. "Você quer sair daqui, não quer? Você quer ver sua família novamente, né?"
A garota de pele escura timidamente assentiu.
"Então faz isso, rápido!" Alice soltou a amiga e retornou a sua atenção aos objetos que havia deixado sobre a cama. Não havia muita coisa, pois uma boa parte havia sido confiscada.
Merda, o que eu fiz.
Não havia recursos, não havia plano, não havia escolha agora. Ela segurou firme as mãos para que elas parassem de tremer. Ela se lembrou da gema escura de sua amiga e ela tinha sido dura. Desespero era o que elas menos precisavam agora.
Melhor amiga...
Alice respirou fundo e se sentiu pronta. Era hora de conquistar a liberdade. Ela se virou, se assegurando que a sua voz estava calma o bastante, "Maya..."
Maya não estava ali.
"Maya?" Alice olhou embaixo da cama da sua amiga para ver se ela estava lá, mas ela não estava. Então ela percebeu um silêncio, um estranho silêncio, e olhou envolta.
Não havia ninguém no dormitório.
"Que porra é essa?" Com o coração apertado, Alice correu até o banheiro. "Maya!" Contudo, não havia ninguém, o som das gotas caindo dos chuveiros era quase doloroso.
"MAYA!" Alice retornou ao dormitório vazio e olhou envolta para encontrar qualquer evidência do que estava acontecendo. [MAAAAYAAAAA!] Não havendo outra voz além da dela, ela se agarrou a uma esperança rasa. "Será que ela já foi pra saída?"
Alice entrou no túnel em direção a escadaria. Se guiando pelas faixas coloridas pintadas na parede, ela se lembrou da parte do treinamento sobre sentir as almas dos outros. Ela tentou, mas havia apenas um vazio.
Ela estava indo rápido e, ainda assim, ela não havia chegado na escadaria, ela não havia chegado nem sequer na bifurcação que havia antes disso. Ela parou, aquilo estava errado, tudo estava errado. Ouvir as batidas do próprio coração havia se tornado uma tortura. Sufocada pelas paredes, ela se arrependia de suas decisões.
Então uma sensação, não-natural, mais como uma premonição vindo de dentro dela. Alice se perguntou se o que havia sido pregado no treinamento estava funcionando. Ela se concentrou naquilo.
O que estava dentro dela emergiu até a pele e atiçou os sentidos. Ela agora podia ouvir, mas era um som fraco, distante. Ela se esforçou para discernir o que era e, então, de aceitar.
Eram gritos e lamentações, de incontáveis pessoas, anunciando um desastre eminente. Estava ficando mais forte, como uma onda.
Atrás dela.
Alice se virou rapidamente.
Há uma certa distância, no túnel, havia uma mulher parada, com um longo cabelo branco liso. Ela era alta e forte, com músculos definidos, porém, diferente de Revenante, ela mantinha uma harmoniosa forma feminina. A pele era escura como da Maya, se não mais clara, e aquela mulher mostrava muito, pois suas roupas eram um par de longas faixas, uma branca e outra azul, enroladas envolta do corpo, cobrindo apenas o mínimo, com cada faixa espiralando em uma perna diferente. Ela estava descalça e tinhas braceletes como Revenante, mas os adornos realmente pareciam jóias luxuosas, douradas com pedras preciosas encrustadas. Não somente isso, ela usava brincos, anéis, piercings... Muitas coisas brilhantes para atrair os olhos, mas nada se comparava a grande gema hexagonal preta na tiara. O objeto não parecia refletir a luz ambiente, ela dava sensação de ser um buraco fundo que projetava nuvens de cores misturadas de vez em quando, um caos que não correspondia ao calmo olhar rosa da pessoa.
"Quem é você?" Alice considerou se aquela era uma irmã que ela ainda não havia visto, apesar de sua intuição dizer que aquela pessoa pertencia a algum outro lugar. O nome que ouvisse iria resolver isso.
A mulher continuou em silêncio, parada.
O coração de Alice voltou a bater rápido. "Eu te fiz uma pergunta!"
Os olhos rosas não piscavam, os lábios não se esticavam em um sorriso, nem em uma carranca.
A gema escura... Tudo continuava errado. O medo aflorou no corpo trêmulo da garota, era diferente de quando estava de frente com o homem. Naquela hora, era um senso de perigo, agora era algo puro e simples, e definitivo.
De repente a mulher começou se mover. Ainda que estivesse andando, ela se aproximava rapidamente com as pernas longas dela.
Alice aguardou por um instante, tentando notar se a mulher havia mudado a expressão. Ela não havia mudado, para o terror da garota. Era como se ela não se importasse, nenhuma reação mudaria o resultado, nenhuma palavra. A garota se virou e correu. Dentes rangidos, músculos sorvidos de sobrevivência. A lágrimas deslizavam agora e ela ainda precisava salvar Maya, de alguma forma...
Ela chegou em uma encruzilhada, uma que ela não reconheceu. Sem tempo a perder, ela olhou para faixas na parede.
Todas estavam vermelhas.
"O quê?!" Ela tocou em uma das faixas, sem acreditar no que estava vendo, e sentiu que as pontas dos dedos haviam ficado úmidas. Ela olhou para elas e se deu conta que aquele vermelho não era tinta. Eles lentamente estavam escorrendo das faixas até o chão.
Ela se virou e não viu a sua perseguidora, o túnel estava vazio. O problema é que ela não estava mais certa de que ela havia vindo por aquele túnel, ela não tinha mais certeza de nada.
Ela checou o outro túnel da encruzilhada, vazio.
E checou em outro, uma face tranquila, uma gema negra acima, ambos ao alcance das mãos.
"AAAAHHHHHH!" Alice reuniu todas as forças e magia para correr. Para frente! Para frente! Para longe do eterno destino.
O túnel que ela escolheu tinha um fim. Finalmente uma sala.
Era o refeitório.
"Droga..." A garota foi até o meio do salão para constatar que não havia ninguém ali. A garota procurou também por algum lugar para se esconder, mas viu que a mulher já estava na entrada do túnel.
A mulher estava parada, ela não precisava mais ter pressa, aquela era a única saída.
Alice já havia parado de chorar faz algum tempo, de nada aquilo iria adiantar. "Você é uma dessas novas bruxas, né? O que você fez com todo mundo? CADÊ A MAYA?"
A mulher começou a andar.
A garota arregalou os olhos e recuou. Ela abriu a mão esquerda e conjurou uma serra circular. "P-PARA!" Ela não esperou e lançou sua arma.
O disco voou graciosamente, fazendo uma leve curva no ar, até atingir e fincar no lado direito do peito da mulher. A faixa branca foi cortada e caiu, expondo o seio ferido, ainda assim, a mulher continuou andando no mesmo ritmo, carregando a mesma expressão na face.
Alice ficou boquiaberta e fez um rápido gesto.
A serra circular começou a girar, entrando mais profundamente no torso de sua vítima. O sangue se espalhava em jatos, respingando no corpo, na face da mulher, e envolta de onde ela estava passando.
Para o desespero de Alice, aquilo não parou a mulher... Ela estava sorrindo? A garota fechou os olhos forçosamente, algo havia os atingido. O som da carne e ossos sendo cortados havia ficado mais alto de repente, havia um gosto de sangue em seus lábios. Limpando e protegendo com o braço, ela reabriu os olhos e seu campo de visão só continha a serra quase completamente enterrada naquele corpo alto de pele escura.
A mulher estava parada justamente na frente dela.
Sem compreender como ela já estava ali, Alice deu um passo para trás instintivamente, mas sentiu uma mão atrás da cabeça, segurando firme. Ela entendeu o intento em um instante e precisaria de outro instante para gritar, mas ele nunca veio.
A mulher puxou a cabeça da garota contra serra em seu peito. A lâmina serrilhada deixou a carne onde estava, cortando sem esforço o capacete e o crânio da loira. O disco atravessou a cabeça rapidamente, até cortar ao meio a mão da mulher que estava atrás e quicar para longe pelo chão.
Alice colapsou e quando sua cabeça atingiu concreto duro, ela se partiu em duas, formando um largo leque de sangue e massa cerebral, logo cobertos por uma grossa e redonda poça carmesim.
Impassível, a mulher examinou sua mão sem dedos. Pouco sangue estava escapando, pois não havia mais sangue para escapar, sua pele estava pálida, seus lábios acinzentados. Com a outra mão, ela constatou que haviam farpas de ossos presos em seu pescoço. Ela voltou a olhar para pessoa caída no chão.
A face desfigurada de Alice estava com a língua de fora, os músculos pescoço se moviam, e seu peito estufava em um tremendo esforço.
A mulher se abaixou, mais interessada em pegar o objeto que estava na barriga. Uma gema de cor caramelo queimado, já bastante escura. Ela levou a gema até a que estava em sua tiara. A pedra de caramelo se tornou em líquido, rapidamente absorvido pela gema na tiara. Esta gema então adquiriu um intenso tom marrom, seguido por rosa e então o véu bizarro de escuridão cobriu tudo.
A garota parou de se mover completamente e começou a ficar transparente, assim como a poça de sangue.
A mulher aguardou até que não restasse um traço sequer daquele corpo. Contudo, ainda havia muito sangue dela mesma, e pedaços... Ainda havia limpeza a ser feita.
Ela estendeu a mão cortada e a parte que estava no chão, junto com os dedos, saiu voando para encaixar no ferimento. Rapidamente a pele se fechou, não deixando sequer uma cicatriz. Com o outro braço estendido, o sangue que havia deixado o corpo se coalesceu em uma bola e, a partir dela, um fluxo foi formado, adentrando no ferimento no peito. Quando todo sangue entrou, o ferimento se fechou perfeitamente.
A mulher exalou ao sentir seu corpo mais quente, quando coração retornou a bater. Ela apalpou e sacudiu o seio direito para confirmar se tudo estava certo, depois fez um simples gesto com as pontas dos dedos. Como se estivesse viva, a faixa branca se reconectou com a outra metade, retornando a sua função de cobrir aquela parte do corpo.
"ROYAL FLUSH!"
A mulher se virou.
Haviam noviças em uma mesa, jogando cartas. Uma estava abraçando algumas pilhas de fichas coloridas e trazendo para mais próximo dela. Outras noviças estavam gargalhando, enquanto uma tinha claramente uma face de perdedora. "Não pode ser, isso é impossível!"
A que estava com as pilhas de fichas falou, "É como a Sortuda disse: Sorte é a lei mais poderosa do universo!"
A mulher jogou seu longo cabelo branco para trás e foi em direção ao túnel.
Próximo capítulo: Supressão
