Arroz na panela? Ela esperava que estivesse na quantidade certa.
Água? A linha tem que estar acima do arroz, conforme as instruções... e as outras tentativas.
O fogo na boca do fogão estava alto. A panela era pequena e água já estava fervendo. Ela havia perdido muito tempo preparando a salada e misturando o molho, e a sessão do dia estava quase no fim. Muitos na cozinha coletiva já haviam terminado de fazer as suas receitas.
Era importante mexer o arroz com a colher um pouco. Sal! Sal! Ela havia quase esquecido.
Dessa vez, tudo daria certo.
"Homura?"
Ela olhou para garota baixa na bancada vizinha. Assim como ela, Madoka estava usando avental e uma rede para o cabelo, que estava bem volumoso. Pela expressão, ela devia estar com algum problema.
"Errmm..." A garota de olhos rosa fez um gesto com a mão e falou em um tom mais baixo, "você pode vir aqui um momentinho?"
Homura olhou envolta, confirmando que o instrutor estava distraído com outro estudante, e foi até ela.
Madoka abaixou cabeça, mais encabulada. "Você... poderia experimentar o meu Nikujaga? Eu sei que o instrutor disse que ele iria experimentar por primeiro, então é meio que uma trapaça..."
"Sim, eu sei." Homura sorriu.
Com um tenro sorriso como reação, Madoka usou pauzinhos para pegar um pedaço de batata cozida. Ela assoprou a comida e a levou para perto da boca da outra garota. "Cuidado que está quente."
Homura abocanhou a oferta e mastigou lentamente.
Deixando Madoka mais ansiosa. "Como ficou?"
A garota de olhos de violeta terminou de engolir e disse, "Está bom, tem uma textura macia."
"E o sabor?"
"Suave."
"Hmmm..." Madoka fez um beiço, não gostando de ouvir aquilo. "Então será que preciso colocar mais tempero?"
"Eu não sei." Homura virou a cara para ver se o instrutor ainda estava ocupado. "Eu só posso dar a minha opinião, para mim está bom."
"Huh-huh-huh-huhmmmm..." Madoka ficou cutucando seu próprio queixo tenso, ponderando, "a carne deve ter absorvido mais o tempero, você deveria experimentar também, só para ter certeza."
Homura sorriu novamente. "Você vai querer que eu experimente tudo, não é?"
"Wehihi!" Os pômulos da Madoka, que já estavam avermelhados devido ao calor da cozinha, ficaram ainda mais vermelhos. "Eu preparei o bastante para todo mundo experimentar, não se preocupe por ser a primeira."
Som de estalos puderam ser ouvidos na cozinha.
"O que é isso?" Madoka perguntou a si mesma, curiosa.
Homura já tinha uma idéia, nada boa, do que estava acontecendo. Ela se virou e viu uma grossa coluna de fumaça saindo da panela, lembrava um vulcão.
"Akemi-san! Aquele não é o seu fogão?"
E a voz do instrutor era o prenúncio do inevitável.
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O firmamento abandonava os tons azuis enquanto o Sol se aproximava do horizonte. Isso não importava para Mitakihara, ela não iria parar quando véu escuro viesse, ela estava viva, respirando, com as cicatrizes de um cataclisma limpas, se não esquecidas.
Para duas garotas, contudo, era o sinal de que chegariam tarde em suas respectivas casas.
Caminhando pela calçada lado a lado com a sua colega, Madoka perguntou, "A cozinha ficou bem limpa, não é? O instrutor vai ficar surpreso com o resultado do nosso trabalho duro."
"Eu é que estou surpresa de não ter sido suspensa do clube da culinária. Se não fosse o exaustor, todos estariam defumados." Homura olhou para garota de longos cabelos rosa. "Você não precisava ter me ajudado."
Madoka ergueu as sobrancelhas. "Como não? Eu que distraí você."
"Eu poderia ter desligado o fogo antes." Homura voltou a olhar para frente. "Era a minha responsabilidade."
"É culpa de nós duas." Madoka sorriu. "Ou você esqueceu que eu estava trapaceando?"
Homura não falou, o silêncio podia ser uma resposta confortável, ainda assim, as suas mãos seguraram com mais firmeza a alça de sua mala escolar.
Madoka continuou, mais pensativa, ajeitando uma de suas longas madeixas, "E mesmo trapaceando... Eles consideraram que o sabor ainda está fraco. Eu tinha cozinhado essa receita em casa, meu pai disse que eu havia colocado tempero demais, mas ele é suspeito de falar, eu acho que você também é."
"Hã?" Homura olhou para ela, agora surpresa.
"Você se acostumou com a comida do meu pai, wehihi..."
Desanimada, Homura balançou a cabeça. "Eu não posso sugerir nada, eu não consigo cozinhar um prato simples."
Madoka franziu a testa. "Mas você fez a salada e o molho."
"Eu só lavei e cortei alguns vegetais, e o molho eu só precisei misturar ingredientes que vêm prontos do supermercado."
"Se dá para comer, é comida, e você se esforçou para prepará-las." Madoka olhou para o céu, novamente ponderando. "Só precisamos praticar mais, eu te ajudo, mas seria bom encontrar alguém com uma opinião diferente sobre sabores... Hmmm..." Ela abriu a boca e pôs a mão na testa. "Como eu não pensei nisso antes?"
Homura iria perguntar sobre o que seria, mas ela viu a outra garota pular na frente, forçando-a a parar de andar.
Com mãos segurando a mala da escola nas costas, Madoka projetou seu torso para frente, com um sorriso aberto e olhos arregalados.
Com ela tão próxima, e com aquela face, Homura se inclinou para trás, franzindo o cenho. "O quê?"
Madoka anunciou sua grande epifania, "Vamos pedir para que Mami-san nos ensine algo!"
Homura ficou boquiaberta.
E garota de cabelos rosa abriu o sorriso ainda mais.
Finalmente, Homura virou a cara. "Não..."
Perdendo o sorriso, Madoka pendeu a cabeça de lado. "Não?"
"Nós iremos incomodar Mami-san," a garota de longos cabelos escuros fechou os olhos.
"'Incomodar'?!" O sorriso de Madoka logo voltou. "Ela vai adorar~!"
"Ela estuda em Shirome agora, e... e há a Ch... Eu quero dizer, ela está cuidando da Mo-Nagisa-chan. Eu acredito que ela está muito ocupada, sim..." Homura reabriu os olhos e olhou para a outra pessoa de relance.
Madoka estava com um olhar semicerrado, o sorriso estava lá também, mas com ar de malícia.
"Por que está me olhando desse jeito?" Homura questionou.
Sem mudar o semblante, Madoka respondeu, "Você está com medo de mostrar para Mami-san que é ruim na cozinha, não é?"
Homura virou de volta a face para a outra garota e afirmou, "Eu não tenho medo disso."
E o semblante de Madoka não mudou.
Homura abaixou o olhar. "Talvez... Eu possa estar preocupada que Mami-san fique incomodada."
"Ela não vai ficar, então está decidido!" Madoka deu um pulinho de excitação e então abriu a sua mala para pegar o smartphone. "Eu já vou ligar para ela para perguntar."
Em um suspiro, Homura sorriu levemente. Com Madoka, tudo era inevitável, o jeito era tirar um bom proveito do que viesse. Enquanto ela comtemplava a outra garota distraída com o dispositivo, sua mente passou a prestar a atenção no som dos carros que estavam passando. Ela olhou para a rua e viu o movimento das pessoas. Elas estavam cercadas por prédios com poucos andares, alguns com lojas no térreo, quase uma área comercial, um mero grão de poeira naquela cidade.
Os meus problemas se tornaram tão pequenos...
"Ela não atendeu a chamada," Madoka disse, frustrada.
"Talvez Mami-san ainda esteja em Shirome. Lá não é permitido o uso de celulares. Por que não tenta escrever uma mensagem?" Homura olhou para a fachada do prédio onde elas haviam parado. Coincidentemente, havia uma loja de roupas. Na vitrine haviam muitos manequins. Ela manteve-se olhando para eles por um longo período, mas expressão daqueles bonecos não mudaram, seus olhos pintados, inofensivos.
Por um capricho do destino, talvez fora por isso que ela notou um movimento. A vitrine espelhava o céu laranja e o topo da construção do outro lado da rua, e dali surgiu uma sombra. Ela não pôde discernir os detalhes, mas era uma pessoa, com uma pomposa saia e um chapéu alto. Se alguém estivesse próximo de Homura naquele momento, poderia ver o reflexo no reflexo de seus olhos congelados.
"Ah! Nagisa-chan me enviou uma mensagem. Mami-san está no banheiro e ela disse que vai ligar para mim assim que sair," Madoka anunciou em júbilo, mas durou pouco ao notar que a outra estava distraída. "Homura?"
A garota se virou rapidamente, um movimento preciso, seus longos cabelos negros balançaram, e com um calculado sorriso, ela respondeu, "É bom saber."
Supressão
O banheiro das irmãs tinha um chuveiro como som de fundo. Inquisidor lavava a face e sentia a água escorrer pelo corpo, em um vão desejo de que ela levaria embora suas preocupações.
A perda de contato com Washington e as outras células, o roubo das sementes, o ânimo combalido dos membros enquanto a tensão cresce com a existência de um traidor.
Ele fechou o registro do chuveiro e bufou, soltando um sopro de gotículas de água. Sem pressa, ele foi até um dos armários e pegou uma toalha para se secar.
O último evento foram as câmeras terem sido desativadas. Nano reparou os cabos cortados, mas nada foi descoberto sobre quem teria feito aquilo, certamente o ladrão, e muito menos o objetivo disso. As sementes sob a guarda da Generalíssima ainda estavam seguras e nada parecia fora do lugar. O que estava acontecendo?
Após esfregar bem o cabelo, Inquisidor apalpou a barba com a toalha para absorver bem a umidade.
A única certeza é que o traidor ainda estava entre eles.
A linha de pensamentos foi interrompida quando lhe acometeu a sensação de estar sendo observado. Sem fazer movimentos bruscos, fingindo ainda estar distraído, ele se virou para olhar para o resto do ambiente.
Parecia que ele estava sozinho, mas seus olhos treinados esmiuçaram cada detalhe, era o melhor recurso em um mundo de truques e magias.
Dessa vez era um truque simples, simples demais, pois ele notou uma sombra com um formato característico sendo projetada no piso. "Sortuda, eu estou vendo a sua orelha."
Detrás dos armários, um par de orelhas compridas e felpudas surgiu, seguido por uma cara sardenta. "Oiê!" Com um risinho encabulado, Sortuda se revelou completamente em um pulo.
Inquisidor franziu as sobrancelhas, pois ele estava nu. "Por que está aqui? Eu avisei que sempre usaria o banheiro nessa hora."
"Eu sei." A jovem mulher desviou o olhar e deu de ombros. "Mas eu ainda posso entrar, né?"
Ele balançou a cabeça e suspirou. "Então faça o que tem que fazer. Não se preocupe, eu não vou olhar." E ele retornou a se secar com a toalha.
"Okidokie." A atenção de Sortuda foi atraída por algo que estava no banco e foi pegá-lo. "Olha só..." Ela examinou a capa vermelha, em especial a gema vermelha em forma de cruz que estava nela. "Você não se preocupa em sempre estar carregando isso contigo? Eu não nunca tiro os olhos do meu."
Ele arregalou os olhos e disse firmemente, "Ponha de volta." Ele também passou se secar mais rápido, pois sua intuição dizia que aquilo havia sido só um pretexto para ela se aproximar.
Sortuda obedeceu, mas logo ela estava se inclinando, seus olhos curiosos em enxergar o que havia dentro do armário aberto. Havia coisas de homem, como loções, pincel de barbear e navalha, havia também um pequeno cofre, simples e com alguns sinais de ferrugem. Contudo, foi a falta de algo que instigou ela a questionar, "Cadê as roupas? Você não usa o uniforme?"
"Eu apenas tenho as roupas que eu vesti quando viajei para cá," ele respondeu enquanto enrolava a toalha envolta da cintura.
Sortuda ergueu as sobrancelhas.
Percebendo que a resposta não satisfazia a pergunta, o homem complementou, "Elas estão no meu quarto."
Ela sorriu em uma alegre surpresa. "Ah! Então você é como eu!" E seu corpo foi coberto por um flash de luz.
Inquisidor engoliu seco.
O par de orelhas de coelho se foram, assim como todas as roupas, revelando muito mais além de que Sortuda também tinha sardas nos ombros. "Essas roupas mágicas são sempre confortáveis, elas até vêm com função auto-limpante! Por que usar outra coisa, né?"
O homem olhou para o teto. "O que você... está fazendo?"
Colocando as mãos na cintura e fazendo uma cara de aborrecimento, ela disse, "Eu permito você olhar aqui embaixo, ok?"
Inquisidor abaixou olhar, voltando a fitar nos olhos dela.
"Deve ser difícil para você ter que conviver com tantas garotas jovens e bonitas, apesar que não exista na Irmandade uma regra sobre relacionamento entre membros..." Sortuda ergueu a cabeça e usou ambos os braços para puxar o cabelo para trás em um longo e lento movimento, alongando o corpo e empinando os seios. "Mas eu sou bem franca e tô afinzona de fazer um sexo gostoso contigo."
Ele disse, "Eu li o seu perfil."
"Oh?" Ela abriu um sorriso insinuante. "Meu perfil~"
Inquisidor mantinha uma expressão neutra. "Você colocou lá que você trabalhou como prostituta."
"Ah é?" O semblante sexy dela passou a ser de uma criança confusa. "Eu nem me lembrava mais, mas é verdade. Em nossa vida nômade, eu e minha amiga precisávamos de dinheiro."
"Você não podia ter usado a sua sorte para isso?" Ele ergueu as sobrancelhas.
Ela mordiscou os lábios e ergueu as mãos, admitindo, "Tá, tinha um pouquinho de curiosidade também."
O homem permaneceu em silêncio, com o seu olhar julgador.
Ela continuou, "Foi legal. Era uma mulher que gerenciava o negócio, então era bem tranquilo. Os clientes eram educados, mas quase tudo homem velho, a performance deles era horrível. Eu falava isso para os meus clientes e eles apreciavam a minha franqueza, viu? Mas a mulher mandou eu e a minha amiga embora, pois a gente teria perdido alguns clientes. Bem estúpida." Sortuda se aproximou mais, sorrindo, com uma voz macia, sussurrante, "Então... Já que sabe disso, você não precisa pensar que vai estar abusando de mim, né?" Ela começou brincar com o cabelo do peito do homem.
Inquisidor prendeu a respiração.
Ela gostou daquela reação, demonstrando com o seu olhar safado. "Vamos aliviar esse estresse juntos, vai ser bom pras nossas gemas, huh?"
Em um rápido movimento, Inquisidor agarrou os pulsos da Sortuda, deixando cair a sua toalha.
O aperto era um tanto dolorido e mulher paralisou, mas, passado o susto momentâneo, ela voltou a sorrir. "Ah, você gosta de uma pegada mais forte..."
O semblante do homem não era nada sexy. "Você sabe o que 'Inquisidor' significa?"
"Claro, é tipo um padre fodão." Ela continuou, mas agora com o cenho franzido. "Porém você não é um padre de verdade, né?"
"É um título," ele disse.
E a confusão de Sortuda se tornou completa. "Um título?"
"Eu não escolhi esse nome, ele foi conferido a mim pela Matriarca em pessoa," ele explicou. "Com a expansão da Irmandade das Almas pelo mundo, ela ficou preocupada se as virtudes e valores de sua fundação seriam capazes de se manter. Eu, assim como outros escolhidos, recebemos um extenso treinamento para salvaguardar o sonho dela."
"Ah tá, entendi..." Sortuda assentiu e olhou para baixo, mais especificamente para parte pequena e flácida entre as pernas dele, depois ela voltou a olhar nos olhos, fazendo uma careta. "Você é gay?"
Inquisidor a empurrou violentamente.
"WOWOWOWOW! EU NÃO TENHO NADA CONTRA GAYS!" Sortuda recuperou o equilíbrio. "Aliás, eu nem sei se devo dizer que você é gay. Eu soube que você era uma garota, então é natural que goste de homens. Bem, eu gosto de homens, eu sei do que tô falando." Então ela esfregou a testa com os dedos. "Só acho estranho você ter trocado de sexo, como garota é mais fácil de atrair homens."
Ele virou a cara. "Vá embora..."
"Ó!" Ela fez mímica, fechando os lábios como se houvesse um zíper. "Esse segredo fica entre nós, tá? Garantido." Ela foi para saída. "Se alguém perguntar, eu vou dizer que a gente transou, mas não foi nada especial. Tá bom pra você?"
Ele olhou de relance para ela. "Sortuda!"
"O quê?" Ela olhou para baixo, notando a própria nudez. "Ah!" Uma luz envolveu rapidamente o seu corpo, trazendo de volta sua roupa de coelhinha, enquanto ela usava a mão para abafar um risinho. "Isso acontece às vezes." Ela então acenou com a mão. "Desculpa por qualquer coisa, mas você tem um corpo fogoso. Se procurar, você acha um cara legal em pouco tempo. A gente se vê!"
Inquisidor esperou a irmã deixar o recinto para relaxar o corpo. As pernas estremeceram. Ele suspirou e escondeu a face com as mãos.
Porém, o silêncio era genuíno, como nos momentos em que ouvia as histórias da Matriarca.
Quando as mãos abriram como uma cortina, sua imagem já era firme. Ele se virou para o armário e começou a abrir o cofre.
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Uma essência negra saltou da gema para a semente. Maya sentiu como se uma doença tivesse deixado seu corpo imediatamente, em uma cura milagrosa.
Enquanto terminava a purificação, Revenante indagou a noviça, "Por que não avisou antes? Com a sua gema da alma nesse estado, você não ia durar mais um dia."
Maya abaixou cabeça diante da expressão irritada da irmã. "Eu... Eu não sei..."
Revenante respirou fundo e ofereceu a gema. "Nós tamo fazendo esse racionamento pra manter todos são e salvos, entendeu?"
Maya timidamente assentiu e pegou gema, do qual logo se tornou em um anel no dedo do meio da sua mão esquerda.
"Agora vá," disse a forte mulher negra, "você já tá atrasada pro almoço."
Obedecendo a irmã, Maya foi ao refeitório. Contudo, sua mente estava em outro lugar. Em algum momento, sua gema havia se tornado o reflexo de um vazio devorador. A saudade de sua família, de onde ela vivia, está certamente mais forte. No entanto, ela estava certa que aquele vazio era um arrependimento à espreita de seu coração, relacionado ao momento que cruzou caminho com Madre. Será que se juntar a Irmandade das Almas havia sido a escolha certa? Era uma decisão que ela não devia ter feito sozinha.
Quando Maya se deu conta, ela já estava segurando a bandeja com o prato de comida e procurando um lugar para sentar. Como havia chegado tarde, se deparou com mesas completamente ocupadas, exceto por uma onde havia apenas uma garota. Ela se aproximou e sentou, fazendo o mínimo de barulho para não incomodar ninguém.
"Ei."
E falhou miseravelmente, sendo forçada a trocar olhares com a outra garota na mesa. Era uma pessoa pálida e magra, olhos roxos, cabelos roxos com tons vermelhos nas extremidades, e uma cara nada feliz. Maya se levantou.
"Espera, por que tá deixando a mesa?"
A garota de pele escura ficou surpresa com a pergunta.
"Senta aí."
Maya atendeu ao pedido, fazendo-o em um lento movimento.
"Você é a recém-chegada," a garota pálida falou, "qual é o teu nome?"
"Maya, e você é..."
"Evie."
Ela sorriu e assentiu. "Prazer em conhecê-la, Evie."
A outra garota não reagiu, mostrando uma cara apática, e voltou a comer.
O sorriso de Maya se desfez lentamente, enquanto ela também dava a atenção ao seu prato.
Porém, de repente, Evie perguntou, "Eles te resgataram ou te recrutaram?"
"Isso tem diferença?" Surpresa, Maya disse sem pensar, logo se arrependendo.
"Não parece que faz muito tempo que é uma garota mágica," Evie continuou, "por que você quis ser uma? O que desejou?"
"Ahm..." Maya respondeu, "eu queria ter uma amiga." Então ela ouviu o som de talheres sendo largadas. Hesitando a princípio, ela olhou para a companheira de mesa.
O olhar roxo da garota pálida era intenso. "Mas que porra de desejo é esse? Forçar alguém a ser sua amiga."
"O quê?! Não! Eu não desejei isso! Eu quero que seja algo..." A garota de pele escura abaixou seu olhar azul por um momento "...algo mais natural."
O semblante de Evie ainda escancarava o seu intento furioso.
"A-Aliás, o meu desejo ainda não se concretizou. Eu não tenho uma amiga. Então o que você diz não deve ser verdade."
"Ainda é um desejo de merda," Evie balançou a cabeça, dizendo friamente, "tu tá fadada a se tornar uma bruxa."
Maya arregalou os olhos. "B-Bruxa?"
Já Evie semicerrou os dela. "Você prestou atenção nas aulas da Madre, né?"
"Sim! Sim! Foi uma das primeiras coisas que ela me ensinou quando vim pra cá. Bruxas eram garotas mágicas." Maya olhou para a sua gema brilhante em seu anel. "Mas por que eu tô destinada a se tornar uma?"
"Você daria a sua vida pra ter uma amiga?"
"Eh..." Maya fez uma careta, aquela pergunta tinha uma resposta tão clara. "Como vou ter uma amiga se eu não viver?"
"Isso mesmo, e ainda assim você fez cagada." Evie manteve a frieza. "Os únicos desejos que valem a pena são aqueles que valem mais que a sua vida."
Maya abaixou olhar, incapaz de ignorar aquelas palavras. Contudo, as mesmas palavras fizeram sua curiosidade falar mais alto. "E qual foi o seu desejo?"
"Eu desejei a morte de alguém."
Ela ficou boquiaberta, fazendo a única pergunta que tinha coragem de proferir, "Por quê..."
"É uma longa história, que se repete e não vai a lugar algum," Evie disse, sem hesitar, "eu tinha doze anos e curtia uma vida simples. Meu hobby era andar de patins e colecionar pôsteres de bandas de garotos. Até que um dia fui sequestrada por um homem."
Maya imediatamente olhou para ela ao ouvir aquilo.
E a garota pálida já havia compreendido o porquê daquela reação.
"Evie..." Maya piscou os olhos. Era como se uma cortina tivesse sido erguida. "Claro, a Evie desaparecida. A garota que estava estampada em todos os jornais. Foram meses de comoção nacional até que você conseguiu escapar do cativeiro, porque o sequestrador havia se suicidado. Pelo o que eu me lembro..."
Evie não moveu um músculo de sua face.
Já Maya abriu um tímido sorriso. "Eu me lembro que minha mãe ficou o bom tempo mencionando o seu nome pra mim. Era pra eu evitar andar na rua quando estivesse anoitecendo, e sempre se manter perto de casa."
"Sua mãe é burra," Evie afirmou, "eu tava perto de casa, em plena luz do dia, quando aconteceu. Ele só precisou de uma oportunidade, sem testemunhas, eu tava distraída com a música no fone de ouvido... Um pedaço de pano com um cheiro esquisito cobriu a minha cara. Eu acho que senti ser jogada pra dentro de um carro, mas eu só me lembro de ter acordado em uma sala sem janelas." Ela olhou envolta. "Como aqui, mas as paredes eram de tijolo de cimento. Eu já tava sem roupas, amordaçada, mãos amarradas, e o cara tava ali, segurando o pau dele."
Maya pressionou os lábios, se sentindo mal. "Deve ter sido horrível."
"Ah, ele explicou tudinho, muito falante, sabe?" Evie disse em tom irônico, "ele havia confirmado que eu era virgem e eu iria perder naquele momento. Se eu lutasse, ele iria me fazer dormir de novo e iria me foder de qualquer jeito. Ele fez até a gentileza de botar lubrificante."
"Você lutou?"
"É claro!" Evie escancarou os seus dentes rangidos. "Mas ele era grande, pesado, e ele se deitou sobre mim. Ele nem se importou que eu tava lutando, na verdade ele até gostou. Eu quase morri sufocada na minha primeira vez, e teria sido muito melhor se eu tivesse."
"Foram meses de cativeiro." Maya balançou a cabeça. "Eu acho que eu não seria tão forte pra aguentar tanto..."
"Eu não estou viva porque fui forte." A garota pálida abaixou o olhar. "Lá dentro você não conseguia contar os dias, só quantas vezes você era fodida. Eu tentei algumas coisas. Mesmo com os pés e mãos amarrados, eu consegui retirar a mordaça arrastando a face pelo chão. Eu gritei, gritei muito, mas só fez ele vir, ninguém mais veio." Ela olhou para a comida em seu prato e mexeu com o garfo. "Eu fiz greve de fome, mas ele vinha com uma seringa e injetava algo em mim. Eu me sentia zonza, o corpo mole, então ele me alimentava à força. Ele deixou uma bacia pra eu fazer as minhas necessidades, mas eu urinei e defequei no chão, então eu rolei meu corpo naquilo pra que ele não me desejasse." Evie voltou olhar para a outra garota, com um ar de desgosto. "Eu só consegui fazer aquele porco gargalhar, ele gostava da minha raiva. A única coisa que realmente eu podia fazer era bater a minha cabeça contra o chão ou a parede, até o meu crânio rachar, mas eu nunca tive a coragem."
Maya permaneceu em silêncio, em uma disposição de luto.
E Evie ainda não havia terminado. "Ele começou a injetar droga pesada em mim. Eu suava, com uma euforia que eu não queria, e a minha pele ficava mais sensível. Ele me masturbava e o desgraçado conseguia fazer eu ter orgasmos. Certa vez ele disse, 'nada aqui é seu', e ele tava certo. O meu corpo pertencia a ele. Você mataria esse homem?"
Com a súbita e inesperada pergunta, Maya trouxe a mão ao peito, incerta de que deveria responder, "E-Eu? Se eu estivesse em seu lugar..."
"Nãonãonãonão." Evie se debruçou sobre a mesa e sussurrou. "Como garota mágica. Se você soubesse tudo isso que te contei e cruzasse com ele, você o mataria?"
Maya balançou a cabeça. "Eu não sei dizer..."
"Ou talvez você queria manter isso pra si." Evie retornou a sentar direito e suspirou. "De qualquer forma, você já deve ter imaginado o que aconteceu. Em um momento que eu tava sozinha, eu notei Kyuubey me observando no canto da sala. Eu achei que tava alucinando, ainda mais que ele veio conversar comigo e eu conseguia responder mesmo com a mordaça. Ele me ofereceu o contrato, prometendo que aquilo salvaria a minha vida, mas eu não tava nem aí com isso. Eu queria aquele puto morto."
"O noticiário disse que ele havia se suicidado," Maya indagou, "você desejou que fosse assim pra que não levantassem suspeitas."
"Não!" A garota desviou seu olhar roxo, balançando a cabeça e com um sorriso de dor. "Não, não... Quando eu me tornei garota mágica, eu me senti sóbria e forte. Eu arrebentei as amarras e arrombei a porta; eu descobri que era um porão de uma casa; eu subi e procurei por ele, pra esmagar a face dele antes que o sonho terminasse. Só que eu o encontrei estirado em um sofá; ele tava frio... Kyuubey disse que ele tava morto, foi aí que comecei a acreditar que era real. Eu saí da casa e corri pela rua, em um subúrbio desconhecido." Evie fechou os olhos e esfregou a testa. "Kyuubey nem tinha me dito sobre o uniforme mágico, eu estava nua, mas eu tava tão acostumada com a condição, que eu nem me toquei. Eu acho que só queria ver o céu... Alguém me viu e chamou a polícia."
Maya franziu as sobrancelhas. "Então o seu desejo matou ele."
Evie olhou para outra garota, agora mais séria. "A polícia disse que ele morreu de overdose, eles encontraram uma carta também. Eles contaram pra minha família que a mãe dele havia falecido recentemente e ele tinha herdado aquela casa. Ele não tinha pai, vivia recluso e nunca teve trabalho, sem perspectiva de um futuro. A carta deixou claro que ele queria 'aproveitar uma juventude negada' antes de pôr um fim na vida dele. A droga ele comprou com as economias que ele havia feito com a pensão da mãe."
"Então ele se suicidou, ele já estava morto," Maya arregalou os olhos ao concluir, "Kyuubey te enganou..."
"Kyuubey me disse que ele ainda tava vivo quando entrou na casa, ele poderia ter sobrevivido a overdose, mas meu desejo garantiu que isso não acontecesse..." Evie respirou fundo e mostrou um sorriso irônico. "A polícia disse que a droga era de alta qualidade, então ele morreu feliz, conseguindo tudo que ele queria na vida, e eu garanti isso." Ela deu de ombros. "Mas eu não me importo. Cedo ou tarde ele iria morrer, e eu iria apodrecer naquela sala antes que alguém me encontrasse. A vida é feita de perdas após perdas e você não deve se importar. É essa a mentalidade que uma garota mágica deve ter." Ela semicerrou o olhar. "Quer saber de algo que você não viu nos noticiários? Um mês e meio depois, eles fizeram testes e descobriram que estava grávida."
Maya ficou de queixo caído.
"Com toda aquela merda que ele injetou em mim, eu não tinha engravidado, mas ao me tornar uma garota mágica, eu fiquei saudável e limpa, e muuiiiito fértil. Os médicos recomendaram o aborto, mas os meus pais queriam que eu tivesse o bebê e enviar pra adoção. Eles acreditam nesse negócio de karma, pra eles o bebê não era só inocente como ele poderia compensar o mal que o pai fez." Evie ergueu as sobrancelhas. "Mas eles não precisaram ficar discutindo, pois eu acabei tendo um aborto espontâneo."
Maya prendeu a respiração ao notar o sarcasmo na face da outra garota. "Você..."
"O que há de errado? Eu só quis que fosse algo mais natural." O sorriso da garota pálida deu lugar a apatia. "Agora cai fora da minha mesa, antes que eu comece a gostar de ti contra a minha vontade."
"Hã?" A garota de pele escura franziu o cenho.
Lentamente, o olhar de Evie se arregalou e sua boca ficou mais agressiva. "Cai. FORA."
Maya estremeceu e abaixou os olhos, então ela se levantou rápido, levando consigo a bandeja com a comida.
Por um momento, Evie observou a outra garota procurando outro lugar para se sentar, esperando que ela pudesse olhar para trás. Como isso não se sucedeu, ela retornou a sua refeição.
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Em passos apressados, Inquisidor caminhava pelo corredor fazendo barulho com as suas botas.
Madre estava tendo dificuldades de acompanhá-lo. Ela sentia que havia dado partida a uma locomotiva, que agora estava desgovernada e acelerando.
O homem chegou em uma porta de metal e apertou botão no painel para abri-la, mas um ruído seguido por uma pequena luz vermelha indicava a não autorização do acesso. "Eles ousam!" ele vociferou.
"Inquisidor!" Madre tocou o ombro dele. "Calma, apenas coloque o código."
Ele digitou freneticamente no painel e a porta se abriu.
Na sala, todos já estavam olhando para a porta. Invasora estava de pé, ao lado de uma grande tela, enquanto as outras irmãs estavam sentadas à mesa oval. Generalíssima e Nano, assim como Revenante e Sortuda. A coelhinha sorriu e acenou para quem havia chegado. "Oioioiii~"
Inquisidor a ignorou, focando em Generalíssima. "O que significa isso?! Uma reunião sem a minha presença."
"Isso não é uma reunião." A mulher latina olhou para a criança. "Nano teve uma idéia e ela me convidou para vir aqui para que pudesse compartilhá-la. As outras irmãs acabaram vindo junto. Foi algo inesperado, eu ia te contar depois." Ela então notou que ele não havia chegado sozinho. "Madre, você disse a ele que nós estávamos em uma reunião?"
"Não." A ruiva pressionou os lábios, sabendo que aquela afirmação era subjetivamente falsa. "Depois de limpar a cozinha, eu queria saber onde Revenante e Sortuda foram depois que elas terminaram de lavar a louça. Então eu as vi entrando nessa sala. Depois, eu cruzei caminho com Inquisidor e ele me perguntou onde estava Sortuda. Eu disse que ela estava aqui, na sala de reunião."
Generalíssima suspirou.
Já Sortuda tentou fingir estar confusa, mas falhou miseravelmente devido ao sorriso. "Oh? Ele tava perguntando sobre mim?"
Revenante olhou de relance para ela, semicerrando os olhos.
O homem, contudo, estava mais interessado no que estava aparecendo na tela, o mapa dos Estados Unidos da América. "Essa reunião é sobre Washington?"
"Isso não é uma reunião..." Generalíssima falou em tom baixo, enquanto esfregava a face.
"Sim!" Nano assentiu, sorrindo. "eu tive uma idéia que vai nos ajudar a procu-"
"Ninguém vai sair dessa base." Ele olhou intensamente para a criança.
Nano baixou a cabeça. "Eh... hmmm..."
"E o que tu quer que a gente faça?" Revenante reclamou, "a gente não achou essas porras de sementes até agora. Reestabelecer contato com Washington é nossa melhor chance, eles podem no ajudar."
"É, nós nem tivemos mais retorno da Willa," Sortuda disse, agora mais séria, se não mais triste, "o que será que aconteceu com ela?"
Generalíssima se juntou as irmãs. "Deixe Nano falar, eu quero ouvir a idéia dela."
A criança voltou a trocar olhares com o homem, ele aparentava estar mais calmo, mas não menos ameaçador.
"Inquisidor..." Madre o chamou com uma voz suave.
Ele assentiu um pouco, dizendo, "seja sucinta."
Nano sorriu levemente, concordando, e ela começou, "É perigoso nós procurarmos por Washington pessoalmente, pois não temos a atual dimensão do problema. Ao invés disso, nós podemos plantar um drone lá e ele seria manobrado daqui, via satélite, Invasora poderia arranjar isso. Dentro do drone teria uma mensagem codificada sobre a nossa situação, então bastaria pousar assim que encontrarmos Washington."
"E se não encontrarmos Washington?" Inquisidor ergueu as sobrancelhas.
"Washington será encontrado," Generalíssima afirmou, "se Washington tivesse caído, não haveria nada vivo na superfície da Terra."
Ele apenas olhou brevemente para ela, e cruzou os braços. "E se o drone for capturado pelo inimigo?"
Nano tinha a resposta na ponta da língua. "Eu consigo construir um drone com um dispositivo de autodestruição. A mensagem codificada, assim como qualquer informação que houver, será irrecuperável."
"Uhum..." Ele olhou para a garota asiática ao lado da tela. "E qual é a sua opinião?"
Todos na sala olharam para Invasora.
Ela respirou fundo e resumiu em uma única palavra, "Arriscado."
Nano ficou boquiaberta. "I-Invasora?!"
A bailarina azul desviou olhar. "Eu sei, nós já conversamos sobre isso, mas..."
"Qual é o problema?" Inquisidor perguntou.
"Nano trabalhou por anos em Washington," Invasora respondeu, "as irmãs que vivem lá têm conhecimento das capacidades dela." Ela olhou para Generalíssima. "Apesar que Washington não tenha caído, algumas dessas irmãs podem ter se tornado nesse novo tipo de bruxa. Elas podem avistar o drone e reconhecer que foi construído com a magia de Nano. Ao invés de capturar o drone, elas podem monitorar o sinal usado para controlá-lo para obter a localização da fonte, e essa tentativa é difícil de detectar a tempo." Então ela olhou para a criança. "Eu duvido que eles consigam a posição exata, seria mais uma direção, é difícil dizer. No mínimo, elas saberiam que Nano está procurando por Washington. Ela será caçada."
Aquela última afirmação, acompanhado por aquele olhar gelado, fez Nano encolher.
"Não se preocupe, Invasora, isso nunca irá acontecer," o homem declarou, "quem sair ou enviar algo para fora da base, será imediatamente considerado traidor da Irmandade, sendo punido de acordo."
"QUÊ?!" Revenante exasperou, "tá de sacanagem?!"
"Vixe," Sortuda comentou em voz baixa, "ele tá de mal humor."
Revenante se virou para ela. "Por quê?"
A garota coelhinha deu de ombros, sorrindo. "Vou saber?"
Com o cenho franzido, Generalíssima indagou, "Punido por quem?"
Inquisidor respondeu prontamente, "Por mim, é claro."
A mulher se levantou da cadeira. "Os membros nessas instalações são de MINHA responsabilidade."
Ele afirmou, "Suas responsabilidades terminam quando toda a Irmandade está ameaçada."
A face tensa de Generalíssima irradiava cólera.
Inquisidor aparentava estar incólume quanto aquilo.
"Por Deus! Parem!" Madre exclamou, "vocês estão se comportando feito crianças!"
O homem virou a cabeça e assentiu para ela, antes de declarar, "Essa reunião acabou."
Generalíssima exalou, deixando escapar entre os dentes um murmúrio, "Isso... não é uma..."
Invasora suspirou e balançou cabeça, desligando a tela.
Nano permaneceu em silêncio na cadeira, cabisbaixa.
Também ainda na cadeira, Revenante protestou, estendo o braço em direção ao homem. "Generalíssima, qual é! Você vai deixar esse boçal dar as ordens por aqui?"
"Eu concordo com Invasora." Generalíssima se apoiou na mesa com a uma mão, enquanto tentava relaxar a tensão do corpo. "A idéia de Nano tem mérito, mas é arriscada. Além disso, eu quero resolver essa questão das sementes e retornar ao projeto antes que nós tenhamos contato com Washington."
Inquisidor levantou a voz, deixando claro que era para todos ouvirem, "Eu não fui enviado para cá para agradar vocês. Por isso que eu tolero agressões verbais, conquanto que nada saia dessa base."
Madre abriu a porta para sair, sua voz não escondia o desapontamento, "Eu vou ao dormitório ver como as noviças estão. Por favor, eu espero que eu não tenha que começar a fazer isso com vocês."
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Deitada na cama, Maya contemplava a cama vizinha. Ela estava vazia, tudo estava vazio. Sentindo-se novamente ruim, a garota se levantou rapidamente e checou a sua gema da alma. O tom azul da pedra no anel estava bem visível, um bom sinal, porém nada que a satisfizesse.
Ela abaixou a cabeça e deixou o ar escapar de seus pulmões. Parecia ser uma questão de tempo para afundar novamente em um desespero silencioso. Lá no fundo, estava uma pergunta que ela não queria ouvir, muito menos encontrar a resposta.
Eu me tornei uma garota mágica em vão?
"Minha querida, o que lhe aflige?"
Maya levantou a cabeça e viu uma mulher ruiva de pé, olhos cinzas e sorriso tenro, uma mão sempre segurando um rosário vermelho. Ela não queria ter chamado atenção, muito menos de uma irmã, mas, já que era Madre, talvez ela podia ser um pouco honesta. "Eu não sei... Eu tô me sentindo um pouco só."
"Por que não interage com as outras noviças?" Madre falou.
Evie veio na mente de Maya, mas decidiu evitar mencionar algo tão sensível. Ela olhou para as outras noviças no dormitório, para observar o que elas estavam fazendo, mas o que lhe chamava mais a atenção, de alguma forma, eram as camas vazias, haviam muitas. "Eu não sei se tô me sentindo realmente sozinha, eu não sei dizer o que é."
"Hmmm..." Madre olhou para o teto, ponderando, "talvez seja saudade."
"Será?" Maya ergueu as sobrancelhas. Aquela palavra parecia se encaixar melhor com o que estava sentindo.
Madre voltou a olhar para ela. "Você deve estar pensando em quando verá sua família novamente."
"Oh..." Era verdade, Maya se lembrava de ter cogitado isso, mas algo dentro dela apontava que aquele sentimento não parecia estar relacionado. "Sim, eu... pensei..."
"Sua família ficará bem. Eu lutarei para isso." Madre assentiu. "Seja paciente, essa crise irá passar. Guerras, pragas, deuses... A humanidade já sentiu muitas vezes estar à beira da extinção, mas ela não somente sobreviveu como continua evoluindo. Nós, garotas mágicas, temos parte nisso, mas, diferente do que Incubator pensa, cada alma humana conta."
Maya assentiu em resposta, acompanhado de um sorriso tímido.
"Você deveria conversar com as outras noviças, isso vai lhe ajudar a se adaptar e você se sentirá melhor."
"Eu farei isso."
Madre estava satisfeita com a resposta e saiu para ver outras noviças.
Maya a acompanhou com os olhos por um tempo, antes de deixar o sorriso esmorecer e se deitar na cama de novo. Ela se espreguiçou e olhou para cama vizinha vazia. Apesar do que havia acabado de dizer, ela estava indisposta, se não com vergonha de falar com outras noviças na frente da Madre. Isso poderia ser feito em outra hora.
Enquanto ajeitava o travesseiro, ela sentiu os dedos tocarem em algo embaixo dele. "Hã?" Ela puxou e viu que era um pequeno pedaço de papel e nele estava escrito um nome a caneta.
Alice
"O que é isso?" Ela reconheceu que era um pedaço rasgado de uma página de seu diário, do qual ela havia deixado em casa. Ela olhou na outra face do papel e descobriu que havia algo mais escrito nele.
Talvez você nunca quis ser a minha amiga de verdade. Perdoe-me por ter interferido em sua vida, mas eu realmente quis ser a sua melhor amiga. Por mais que você possa me odiar por ter feito isso, todos os momentos que passamos juntas foram reais e preciosos. Por favor, não me faça arrepender deles.
"Essa é a minha caligrafia." Maya deixou a cama, seu coração acelerado, pois ela não conseguia se lembrar, por mais que se esforçasse. "Quem é Alice?" Ela franziu a testa. "Será que... meu desejo..." Ela então procurou por Madre.
A irmã estava indo em direção ao túnel de saída.
A noviça correu atrás dela. "Madre! Madre!"
"Hmm?" A mulher parou e se virou. "Minha criança, o que foi agora?"
Maya perguntou, "Alice, você conhece alguém com esse nome por aqui?"
"Alice?" Madre ficou pensativa por um momento antes de declarar, "creio que não haja nenhuma Alice no momento."
A garota balbuciou, "T-Talvez ela estivesse aqui antes, mas saiu..."
Madre balançou a cabeça. "Eu duvido disso. Ela é alguém importante para você?"
"Ela é minha amiga," Maya afirmou, mesmo se não tivesse nada concreto, aquilo soou natural.
"Oh..." Madre indagou, "Ela é uma garota mágica? Se ela não for, não tem razão de ela vir para cá."
Maya abaixou a cabeça, tentando se lembrar, mas em vão. "Eu não sei."
Madre suspirou e fez uma nova pergunta, "Como ela se parece?"
"E-Eu não sei..."
A ruiva enrugou as sobrancelhas. "Ela é uma amiga imaginária?"
"Não, não é isso!" Maya exclamou.
Madre arregalou os olhos e levou a mão ao peito.
Maya olhou envolta, checando se tinha chamado a atenção de alguém mais no dormitório. Confirmando que não havia, ela disse, "Ok, eu vou explicar," ela respirou fundo e continuou, "quando fiz o contrato com Kyuubey, eu desejei ter uma amiga. Alice deve ser essa amiga, mas eu não consigo me lembrar de nada sobre ela! Como isso é possível?! É o meu desejo!"
"Entendi." Madre abaixou as pálpebras levemente. "Como você tem tanta certeza de que é ela?"
"Eu acho que é fé." Maya deu de ombros. "Você entende mais sobre isso do que eu, né?"
"Fé?" Madre sorriu. "Eu testemunhei essa força incansável muitas e muitas vezes, e até que ponto a esperança pode nos carregar. Eu tenho longa experiência nisso, ao ponto de eu poder ousar em dizer que eu não deveria."
"Então..." Maya mordeu os próprios lábios. "Você acredita em mim?"
"Sim, eu acredito." Madre assentiu. "O que você disse pode ser estranho, mas, sabendo que magia é real, nada pode ser descartado. Eu irei ajudá-la."
O semblante de Maya se iluminou.
"Primeiramente, eu ainda preciso entender uma parte da sua história."
Maya voltou a ficar preocupada. "O que seria?"
"Como você sabe que o nome dela é Alice se você não se lembra sequer da aparência dela?"
"Ah..." Maya olhou para o pedaço de papel que ela estava segurando em sua mão esquerda.
"Está escrito aí?" Madre abriu a mão e a ofereceu. "Posso ver?"
A garota trouxe a mão com o papel até o seu próprio peito, cobrindo então com a outra mão.
"Eu imagino o quanto isso vale para você," a voz de Madre ficou mais suave, "mas se eu entregar isso para Generalíssima, será mais fácil de convencê-la em pesquisar se há registros de uma Alice por aqui."
Maya tirou a mão do peito. Ela assentiu, mas não tirava os olhos do papel.
Alice
Ela queria marcar esse nome em sua mente, para nunca mais esquecer. Ela lentamente estendeu a mão esquerda e depositou na mão de madre aquela evidência de que seu desejo havia sido atendido.
Quê?
Um som de jóia chacoalhando chamou atenção da noviça. Madre estava usando um extravagante bracelete dourado com gemas, algo que a garota pensou ser difícil de não ter reparado antes. Então ela também notou que o braço estava nu demais, a pele escura demais. Ela quis trocar olhares com a ruiva, mas se deparou com par de volumosos seios, a pele lisa e macia, e músculos esculpidos com perfeição. Ela ergueu a cabeça e encontrou um par de olhos rosas, serenos como os de Madre, mas acima deles havia uma tiara com uma gema negra, um nexo de uma tormenta furiosa.
"Muito bem, criança, você fez exatamente tudo o que lhe foi pedido."
Maya não estava entendo mais nada. Ela ouviu a voz alegre de Madre, mas somente havia aquela mulher na sua frente, com os lábios fechados. Contudo, seu raciocínio foi interrompido por uma dor súbita e excruciante. Ela abriu a boca para gritar, caindo no chão. Ela rapidamente olhou para fonte daquela sensação e viu que sua mão esquerda não havia mais o dedo do meio, em seu lugar o sangue pulsava para fora, manchando a sua camisa branca e a calça camuflada. Ela gritou novamente, mas se deu conta que estava sem voz. Ela realmente não estava entendo mais nada, salvo ser um pesadelo prestes a terminar. Ela olhou para a mulher alta.
Mas a mulher não trocou olhares com a garota. Ela estava mais interessada em remover o anel do dedo decepado que estava segurando.
Maya olhou envolta. As noviças no dormitório estavam descansando, andando, conversando, rindo. Ela estendeu o braço e clamou por ajuda, mas logo concluiu que era inútil sem voz, então ela golpeou o chão com as pernas e o corpo para tentar causar algum barulho. Contudo, mesmo quando as noviças pareciam estar olhando na direção dela, elas ignoravam completamente o que estava acontecendo.
A mulher aproximou o anel até a sua gema negra. O anel se liquefez em uma essência azul, que espiralou em direção a gema, a pintando com um belíssimo tom turquesa. O azul foi se tornando rosa e então as cores afundaram na escuridão.
Maya congelou por um instante antes de se tornar uma boneca sem vida, lentamente se tornando transparente.
A mulher esperou até que ela não pudesse mais sentir o dedo decepado que estava segurando. No chão, agora havia apenas o uniforme da Irmandade, sem manchas de sangue, sem traços da noviça que o vestia. Não, isso não era tão simples. Ela olhou para pedaço de papel, onde estava escrito o nome dado para a outra alma, e o amassou até se tornar uma pequena bola, então ela pegou as roupas no chão e foi até a cama de Maya.
Como de praxe, as noviças mantêm os seus pertences debaixo das camas, mas a mulher dessa vez iria checar tudo, até mesmo dentro do colchão e travesseiro. Ela não encontrou nada nesses lugares, mas nos pertences da garota, ela encontrou um rosário vermelho, um que ela reconheceu imediatamente.
O olhar da mulher ficou perdido em cogitações, enquanto o aperto da mão que segurava o rosário ficava cada vez mais forte, as esferas do instrumento de fé marcando a pele. No final, a respiração dela estava mais audível e ela balançou cabeça, decidida em continuar o que estava fazendo. Ela ajeitou o travesseiro e arrumou o lençol da cama, não deixando uma ruga sequer. Seus dedos eram ainda bons para isso.
Após terminar a limpeza, ela foi em direção a saída do dormitório, carregando consigo o rosário e os pertences da noviça. Foi então que ela viu Madre vindo pelo túnel. Sem hesitar por um momento, ela apressou os passos e segurou o ombro da ruiva.
Madre parou subitamente, seus olhos visando um destino incerto.
A mulher puxou a mão da irmã e abriu com cuidado os dedos, depositando o rosário na palma da mão para só então fechá-la novamente. Para terminar, ela deu dois leves tapas no ombro.
Madre retornou a andar, chegando ao dormitório.
Assim que as noviças a avistaram, elas cumprimentaram, "Bom dia!"
"Bom dia..." Madre se distraiu enquanto enleava o rosário em sua mão. De alguma forma, ele estava fora do lugar.
"Você veio purificar as nossas gemas?" uma noviça perguntou, "Revenante fez isso antes do almoço."
"Eu estou ciente disso." Madre sorriu. "Eu apenas vim para ver como vocês estão se comportando."
A mulher alta de longos cabelos brancos analisava a cena, observando cada reação de todos. Convencida de que estava estável, ela prosseguiu pelo túnel, desaparecendo na primeira curva.
Próximo capítulo: Apokálypsis
