"Finalmente, passei desse nível." Adalyn fechou o aplicativo Lollies Smash de seu smartphone. Ela já estava cansada de ver as caras fofas nos doces que tinha que combinar naquele jogo. Infelizmente, não havia nada mais para se ver. Sem mensagens, sem comentários, sem novas fotos. Notícias? Nada especial, nem mesmo alguém importante o bastante morreu.
Ela ligou a câmera do dispositivo, talvez uma foto nova no perfil poderia trazer alguma distração. A idéia logo morreu: a cara estava gorda, os olhos cansados, a pele clara estava com pontos avermelhados indesejáveis, o cabelo preto precisava ser pintado de novo, pois algumas raízes brancas já estavam visíveis, e o uniforme verde escuro de caixa de loja não ajudava.
Estando no balcão, Adalyn tinha visão de toda a loja de conveniência, pois era minúscula. O local estava vazio, e foi assim desde o começo do dia.
Por alguma razão, lembranças de sua infância ressurgiram. Ela se lembrou das vezes que dizia para os adultos o que queria ser quando crescer, era bom ver eles sorrirem. Primeiro foram os clássicos; tornar-se uma médica, uma juíza; depois vieram os futuros mais criativos; tornar-se uma chef de cozinha, uma atriz, uma pilota de avião. Os adultos respondiam com elogios e previsões de sucesso, e todos terminavam felizes.
Ela olhou para fora através do vidro da porta, o céu estava limpo, a luz do Sol estava forte, o turno ainda levaria mais algumas horas.
Adalyn nem se lembrava mais dos detalhes de como havia terminado naquele emprego, mas a razão era clara. Estudar era chato, cansativo e difícil, mas era importante. Ir para escola para aprender, todos fazem isso, era importante. São tantos tópicos, são tantas informações para pôr na cabeça, que não há espaço para razão disso, apenas se faz. Então, quando o futuro não faz mais sentido, quando você tem a estatura de seus pais, ninguém mais sorri para os seus sonhos.
O anseio de ser livre se aflora, para finalmente começar buscar um caminho, para finalmente haver uma revolução na vida e um futuro para chamar de seu.
Adalyn suspirou e balançou a cabeça. Ela não foi para a universidade, ela nem tentou. O dinheiro que seus pais haviam guardado para os seus estudos foi usado para ajudá-la a ter 'seu próprio o espaço' e 'independência'.
Vivendo sozinha em um lugar, pagando aluguel. O valor era até barato, mas era longe de Seattle, na verdade, longe de qualquer centro urbano razoável.
O salário era apenas o bastante, mas Adalyn não sentiu que podia reclamar disso. Era fácil, apenas manter o lugar limpo, repor os produtos nas prateleiras quando necessário, verificar as datas de validade, pôr o lixo para fora e contar as horas, a maioria do tempo.
Claro, atender clientes, mas eles apenas eram algo constante quando haviam várias temporadas de caça em aberto. Caçadores visitavam a loja para comprar suprimentos.
O smartphone vibrou, era uma mensagem da mãe. Qualquer que fosse o assunto, a conversa provavelmente terminaria sendo sobre homens, casamento, filhos, família, futuro, futuro, futuro. Adalyn suspirou.
O futuro era o tédio, um mundo sem magia.
O som de um veículo estacionando, a mãe ficaria para depois. Adalyn guardou o seu dispositivo e ficou prestando atenção na porta.
Um homem a abriu, jaqueta verde, boné vermelho. Era o 'Bob' e Adalyn só se lembrava daquele nome pois aquele cliente ultimamente andava visitando regularmente a loja. Ele sempre estava usando as mesmas roupas, mas não era algo incomum entre caçadores, já que alguns consideravam como amuletos da sorte.
Ela observou o homem pegar os produtos. Era o usual, comida enlatada, água, biscoitos, mas nada de cerveja, garrafas de leite ao invés disso. Era algo sempre estranho de presenciar, devia ser algo relacionado a religião dele.
Enquanto Bob se aproximava do balcão do caixa, Adalyn deu uma boa olhada nele. Ele era alto, gordo, mas não obeso, grande por assim dizer. O rosto era redondo, com barba e bigode ralo. O cabelo era algo entre ruivo e marrom, encaracolado, e a pele clara estava avermelhada devido ao calor. O par de olhos de azuis era talvez o seu maior charme.
Com um grande sorriso, Bob colocou os produtos no balcão. "Como está o seu dia, Ada?"
"Ótimo," ela disse, enquanto prestava a atenção em escanear os produtos, "mais uma caçada?"
"É," ele respondeu com entusiasmo, "pássaros."
"Pássaros..." A conversa podia morrer ali, mas Adalyn estava cansada do silêncio. "Eu não sabia que ainda havia uma temporada aberta. E você ainda tem tempo? Você me disse uma vez que tinha um emprego em Seattle."
Bob assentiu. "Na verdade, meu trabalho é em Seattle. Eu presto consultoria para clientes do porto. Basicamente, é lidar com um monte de burocracia e assinar papéis." Ele sorriu mais. "Felizmente, hoje em dia eu posso fazer tudo a distância, online, usando uma assinatura digital. Qualquer coisa diferente, é só algumas horinhas de carro."
"Entendo." Adalyn sentiu um pingo de inveja, não porque ele deveria ganhar mais, com certeza, mas o fato de não ter a obrigatoriedade de ficar em um lugar.
O que ela estava pensando? Se tivesse a mesma liberdade, ela ficaria o tempo todo em casa.
O computador do caixa mostrou o valor total da compra. Ada questionou, "Você vai pagar em..."
Bob colocou o dinheiro sobre o balcão, a quantia exata.
Era sempre assim com ele. Adaly pegou o dinheiro e começou a pôr os produtos em sacos de papel.
Ele se prontificou. "Deixa eu te ajudar."
Ele logo iria sair, talvez fosse o último cliente que ela iria ver hoje, depois voltar para casa, em sua 'solitária independência'. Adalyn sentiu uma ansiedade crescer, um incômodo que a fez falar antes de pensar, "Qual é a graça em caçar?"
"Hã?" Bob franziu as sobrancelhas.
Pronto, a merda estava feita. Adalyn desejou morder a própria língua, mas se contentou em passar a mão no cabelo, quase o puxando com força. Ao menos havia conseguido a atenção dele. "Desculpe, eu sei que é importante controlar a população deles, e eles podem servir de alimento e outras coisas, mas vocês veem isso como um esporte, né? Eu não sei onde está a diversão nisso."
Bob voltou a sorrir. "Você já pescou, Ada?"
Uma nova lembrança, na beira de um lago, com os primos, segurando uma vara de pesca e falhando miseravelmente. Bons tempos, que Adalyn sabia que não iriam se repetir. "Algumas poucas vezes."
"Então, caçar é a mesma coisa."
Adalyn não se sentiu muito convencida com aquela afirmação.
Bob notou, gesticulando. "É... Lugar diferente, ferramentas diferentes, mas o princípio é o mesmo. Nós queremos ser mais espertos que os animais, é desafiador."
"Desafiador?" Adalyn franziu a testa e balançou a cabeça. "Um humano ser mais esperto que um animal?"
Bob ajeitou o seu boné, enquanto mostrava um sorriso mais charmoso. "Você nem imagina..."
Adalyn não teve tempo de considerar, pois um vulto cinza pulou no balcão. "AAAHHHHH!" Ela pulou para trás, levando a mão ao peito, vendo que era um gato.
Bob olhou para o animal, um pouco surpreso também. "Luna?"
Com o coração batendo rápido, ela só conseguiu pensar nas regras. "E-Esse gato é seu? Animais não são permitidos na loja!"
Bob balançou a cabeça, confuso. "Desculpe, eu havia deixado ela dentro da cabine da caminhonete. Eu não sei como ela entrou."
Enquanto recuperava a compostura, Adalyn tentou se lembrar, mas, de fato, o animal não parecia ter entrado junto com o homem e a porta não havia sido aberta outra vez.
O gato permaneceu sentado no balcão, seus olhos focados na funcionária da loja.
"Luna é bem treinada." O homem voltou a sorrir com simpatia. "Ela vai se comportar."
"Ah sim..." Adalyn se aproximou do balcão com cautela, sussurrando para gato, como se fosse um bebê, "Então você é uma 'garota', hmmm?" O animal era bonito, com pelagem curta, de um cinza homogêneo. Algo que chamava muita atenção era o fato de que cada olho tinha uma cor diferente, o direito tinha cor bordô, enquanto o esquerdo era amarelo. Ela se lembrou de ter ouvido falar de que essa condição não era rara entre gatos.
O animal mostrou os seus dentes caninos.
Adalyn recuou um pouco, sorrindo nervosamente e sussurrando, "eu acho que ela está prestes a me atacar..."
"Haha! Ela está com ciúmes!" Bob pegou os sacos com os produtos. "Desculpa por isso, ok? Eu também não vou mais tomar o seu tempo, eu te vejo outro dia."
A gata olhou para o homem.
Notando aquilo, Bob, ainda sorrindo, ergueu as sobrancelhas e pendeu a cabeça de lado. "Talvez..."
Adalyn quase riu com a situação. Ela juntou as mãos, prometendo, "Luna! Não se preocupe, eu não vou tirar ele de ti!"
Bob foi até a saída, com a gata rapidamente o seguindo. "Tchau!"
"Tchau e obrigada por escolher a nossa loja." A porta fechou e o silêncio retornou. Adalyn suspirou, a pequena aventura do dia havia acabado, mas ao menos uma idéia surgira disso. Talvez seria bom ter um animal de estimação para fazer companhia, provavelmente um cachorro, sim, um cachorro.
Enquanto isso, Bob caminhava pelo estacionamento para chegar na caminhonete. Nesse momento, ele notou duas garotas adolescentes andando juntas na calçada. Ele olhou paras as mãos esquerdas delas, mais especificamente no anel prateado no dedo do meio.
Uma das garotas olhou para ele.
O homem retribuiu o gesto com um cumprimento, abaixando o seu boné e sorrindo.
A garota fez uma careta de estranheza e o ignorou.
Isso não tirou o sorriso de Bob. Ele abriu a cabine da caminhonete. "Vamos, Luna, temos uma longa viagem."
Eles partiram pela estrada, em direção aos morros e florestas.
Bob dirigia com segurança, mas a estrada estava bastante deserta, já que não devia haver uma temporada de caça em aberto. Aproveitando a tranquilidade, ele olhou para a gata deitada no banco do passageiro.
O animal estava enrolado em si, com um olhar mal-humorado.
Bob voltou a olhar para estrada. "Luna, você não vai me dizer? Aquelas duas garotas já foram membros da Irmandade?"
Uma voz de uma jovem garota respondeu, [Não, eu não reconheço esses cheiros, mas são bruxas da Lei dos Ciclos.]
"Como você sabe?"
[Instinto.]
Bob balançou cabeça, ele não compreendia essas coisas, ele não era um animal. "Você vai avisar Pássaro do Sol de que elas estão perto?"
[A mãe não quer mais fugir. Eu não sei o que ela quer.]
"Ela não vai matar tudo?" Sorrindo, Bob olhou para o retrovisor, só para garantir.
[Seria melhor assim, mas ela é uma idiota. Eu a odeio.]
"Você não devia sentir isso. Mães devem ser amadas, certo?"
[Ela não me entende, ela nunca vai me entender. Agora, ela prefere conversar com ele do que comigo.]
"Então é ciúmes..." Bob assentiu para sua própria conclusão.
A caminhonete tomou um desvio, seguindo por uma estrada de terra quase tomada pela floresta. A subida era íngreme e terreno era acidentando, mas a tração do veículo era eficaz.
"Você está com ciúmes da Ada?" Bob perguntou.
Não houve resposta.
Ele insistiu, "Você acha que ela gosta de mim?"
[Você não devia ser tão amigável com ela.]
Bob ficou completamente confuso, "Mas é isso que eu sou, um bom amigo."
[Magia é um erro.]
Ele olhou para Luna, dessa vez trocando olhares com o animal.
[Ela é a minha mãe, eu a odeio.]
A caminhonete chegou até um ponto onde não havia mais estrada, o caminho bloqueado por raízes de árvores imensas.
Bob saiu do veículo com os sacos, seguido pela gata. Ele ficou olhando para o animal, esperando.
A pelagem cinza de Luna começou a emitir um brilho, logo seguido por um flash.
O homem apertou os olhos devido a luz e, então, não havia mais uma gata.
Uma pequena garota, uma criança. Seu cabelo cinza espetado, seus os olhos de cores diferentes, um bordô, outro amarelo, era o que ainda remetia de sua outrora forma. Sua pele era pálida, exceto a mancha vermelha com forma de espetos, envolta de seu olho de cor similar. Seu rosto era parcialmente escondido por um cachecol branco, e usava um simples vestido cinza escuro, de mangas compridas, e uma calça branca colante, evidenciando suas pernas finas. Ela não usava calçados, e suas mãos e pés tinham unhas longas e afiadas. Próximo ao colar do vestido, quase coberto pelo cachecol, havia uma gema em forma de círculo cortado ao meio, com um brilho pálido como o da lua.
Bob não estava surpreso, pois essa era a Lince da Lua.
A garota prontamente foi até a caminhonete e tocou em sua superfície. As formas do veículo foram realçadas por linhas prateadas e então foram esmagadas, virando uma espécie de nuvem caótica contendo as cores do que antes existia. Contudo, nem mesmos as cores permaneceram, a imanência fora sacrilejada.
Mas esse não era o limite da magia.
Uma outra forma, uma outra matéria, uma vida. Lince da Lua acariciou a cabeça de um puma, seus sussurros eram como os de uma mãe, "Vá, mantenha guarda. Me avise se alguém se aproximar."
O grande e ágil animal saiu correndo, desaparecendo ao adentrar em uma moita.
"Não importa quantas vezes eu testemunho isso, eu sempre fico pouco assustado," Bob comentou.
Com uma expressão fria, Lince da Lua se aproximou do homem. "Me entregue os sacos."
"Claro, cuidado que está pesado."
Apesar da diminuta estatura, a garota conseguiu segurar os sacos com apenas um braço, sem esforço. "Segure a minha outra mão."
"Claro."
Apesar da densidade da vegetação, ela sabia para onde estava indo e a distância que restava era curta. Logo ela chegou em uma larga cabana de madeira, sua aparência rústica e de abandono contrastava com um gerador de energia solar fotovoltaica instalado nas imediações.
Lince da Lua parou na frente da porta e não precisou bater.
Uma mulher a abriu, usando um vestido amarelo de alça com saia longa. Ela tinha cabelo preto liso e sua pele tinha tom de ferrugem, suas feições herdadas dos nativos que viveram naquela região. Seus olhos de cor âmbar e seu sorriso gentil eram como o beijo do amanhecer. "Você voltou rápido."
"Sério?" Lince da Lua disse, sem demonstrar emoções, "não parece diferente das outras vezes."
Mulher pegou os sacos de papel da garota. "Como Bob se saiu?"
Lince da Lua olhou para o que estava segurando. Um boneco de crochê, usando uma jaqueta verde e boné vermelho, com um par de botões azuis como olhos. Ela respondeu, sem entusiasmo, "Melhor do que eu esperava."
"Vamos, entre."
A pequena garota obedeceu, vendo a mulher ir até a cozinha, onde deixou os sacos com os produtos na pia.
A mulher colocou um avental. "Como eu devo recompensá-la, hmm? Luna? Que tal uma vasilha de leite com os seus biscoitos favoritos?"
"Não, mãe," Lince da Lua disse.
A resposta súbita fez a mulher parar o que estava fazendo, também parando de sorrir.
A criança abraçou o seu boneco. "Eu não estou com fome, eu sinto o cheiro dele."
A mulher estremeceu.
Lince da Lua foi até uma porta. "Eu vou descansar no meu quarto."
Sozinha na cozinha, a mulher removeu o avental e jogou com força contra a mesa. Bufando, ela acelerou o passo por um corredor, até outra porta.
A porta dava acesso a um escritório. Era espaçoso, muito devido à falta de móveis, mas havia uma escrivaninha e uma criatura branca sobre ela.
[Pássaro do Sol.] Kyuubey tinha seu par de olhos vermelhos fitando a mulher. [Conseguiu convencê-la a não me matar?]
"Para a sua sorte, ela está cansada," Pássaro do Sol respondeu, "mas você não devia ter aparecido aqui na hora errada."
[Mas eu venho com boas notícias.] Com leveza, Kyuubey pulou da escrivaninha até o chão. [A Lei dos Ciclos descobriu a base secreta que há na Austrália. Eles estão prestes a atacá-la.]
"'Descobriu'?" Pássaro do Sol franziu o cenho. "Não foi você que deu a localização para elas?"
Kyuubey piscou os olhos. [Não.]
A mulher continuou o encarando.
[Eu não tinha essa informação, você não me deu. Além do mais, assim como você, elas não confiam em mim.] Kyuubey caminhou envolta da mulher. [Eu estava contando que a base seria eventualmente descoberta, quando elas tentassem contato com outros membros da Irmandade das Almas. No entanto, o que aconteceu é que um dos seres da Lei dos Ciclos tem talentos precognitivos. Ela obteve as coordenadas exatas, é algo que eu não esperava, mas é assim que é a magia.]
Pássaro do Sol cerrou os punhos. "Certo, e onde está a boa notícia?"
[Por que a pergunta?] Kyuubey ergueu seu pequeno par de orelhas. [A garota mágica que eu te mencionei está encurralada agora, ela será pressionada a agir contra a Lei dos Ciclos.]
"Ah sim! A misteriosa, a milagrosa garota mágica que você ama conjecturar," após ironizar, ela ergueu a voz, "em outras palavras, NADA aconteceu! Eu volto a perguntar, uma última vez: onde está a boa notícia?"
[Você precisa aguardar.]
"'Aguardar', 'aguardar', 'aguardar'..." Pássaro do Sol deu tapas em suas próprias coxas, em raiva. "Maldito o dia que te dei ouvidos! Esperar foi a única coisa que eu fiz até agora, além de recusar as tentativas de contato da Generalíssima."
Kyuubey parou e sentou, balançando seu rabo felpudo. [E o que você diria a ela se tivesse aceitado?]
A raiva deteriorou-se em amargura. "Maldito, mil vezes maldito..." A mulher caminhou até a escrivaninha. "Após a morte da Matriarca, eu sabia que seria difícil, mas acreditei que havia conseguido deixar tudo no lugar, que a Irmandade se manteria unida. Eu estava enganada, pois eu só vi as faces das outras irmãs, e não dentro de suas almas."
Ela abriu uma das gavetas da escrivaninha e ela estava abarrotada de sementes da aflição.
"Nós somos capazes de replicar a aparência de Matriarca, e sua voz, mas não seu carisma, sua presença, sua ambição." Ela pegou uma das sementes e a examinou. "Foi algo insidioso. Pouco a pouco a irmãs foram ficando mais preguiçosas, negligentes. Eu devia ter desconfiado mais, questionado mais, pois elas não estavam mais na Irmandade pela causa, apenas pelas conveniências que ela oferecia. Então é natural que, uma suposta oportunidade de escapar desse ciclo de desespero iria atrair e converter essas canalhas, como mariposas às chamas." Ela jogou a semente de volta para gaveta. "Elas ousaram a me convidar para se juntar a elas, elas esqueceram da Matriarca, elas traíram a Irmandade, elas me traíram. Eu estava cercada de traidores." E olhou para a criatura.
Kyuubey continuou a observando, sem dizer uma palavra.
"Cercada de traidores..." Pássaro do Sol semicerrou o olhar. "Como você tem tanta certeza que essa misteriosa garota mágica vai agir em meu favor? Você me disse que ela nem é membro da Irmandade."
[Alguém uma vez me disse que nosso raciocínio lógico é a nossa maior fraqueza, pois nos torna previsíveis.] Kyuubey pendeu a cabeça de lado. [Mas a imprevisibilidade das emoções não deve ser superestimada, é algo que aprendemos com vocês, humanos. Eras atrás, em nosso mundo, qualquer emoção era catalogada como loucura, pois não havia compreensão de suas nuances. Foram vocês, que conseguem conviver com isso do nascimento a morte, que fizeram todo o trabalho de classificá-las e documentá-las, com exemplos, em suas ficções. Inveja, ira, alegria, paixão... Nós podemos não entender por que de elas serem assim, mas conseguimos replicá-las em experimentos.]
"Para alguém que gosta de dizer que não entende nós, você se supera a cada dia." Pássaro do Sol balançou a cabeça, desapontada. "Então seu plano depende das emoções que você 'calculou' que essa garota mágica terá."
[Sim, ela irá agir, e se Leona Julieta Contreras morrer, ela com certeza vai se vingar.] Kyuubey assentiu. [Aliás, tal cenário iria te favorecer mais, não é?]
"NÃO tente sujar as minhas mãos!" Pássaro do Sol avançou alguns passos em direção a criatura, apontando com o dedo. "Você é o completo responsável por essa desgraça, por não me contar quem e onde está a garota por trás da Lei dos Ciclos."
Kyuubey fechou os olhos, como se estivesse cansado em dizer isso, [Eu só conheço duas garotas mágicas com poder para interferir na Lei dos Ciclos, e você não é uma delas. Se eu te revelar a fonte da Lei dos Ciclos, você será derrotada por ela e qualquer possibilidade da Irmandade das Almas continuar existindo cairá contigo.]
A mulher deu as costas para a criatura e se apoiou na escrivaninha, sentindo o peso da frustração.
[Você não tem escolha, você não tem para onde ir, esse lugar representa isso. Por mais que não acredite em mim, essa é a sua única chance.]
Pássaro do Sol perguntou, "O que Matriarca faria?"
Kyuubey balançou seu longo par de orelhas. [O que disse?]
Ela se virou para o alienígena. "O que Matriarca faria se ela estivesse nessa situação?"
[Eu não posso ser ela. Eu não tenho como-]
"Droga! Você ama conjecturar, pensar nas possibilidades, estimar..." Ela rangeu os dentes. "Diga."
A criatura ficou em silêncio, por um tempo longo demais.
"DIGA!"
[Ela teria desmantelado a Irmandade das Almas e se juntado à Lei dos Ciclos.] Kyuubey afirmou.
Pássaro do Sol virou a cara e suspirou. "É, isso é o que penso que ela faria." Ela estendeu a sua mão esquerda, onde estava a sua gema da alma em forma de ovo, vermelha com um brilho trêmulo, como se houvesse uma chama dentro. "Eu fiz uma promessa para Matriarca. No caso de que algo acontecesse com ela, eu iria assegurar a existência e prosperidade da Irmandade." A gema da alma começou a flutuar, assim como mulher, que voltou a voltou a olhar com raiva para Kyuubey. "Ela salvou a minha vida, e eu nem tive a chance de fazer o mesmo por ela. Eu não posso ser a Matriarca!"
Sentindo o pico de energia, Kyuubey disse, [Isso não é necessá-]
Uma forte luz tomou conta da sala.
Kyuubey não fechou os olhos, o brilho não o incomodava, mas ele era incapaz de enxergar qualquer coisa. Por essa razão, ele não foi capaz de evitar uma mão de metal, com pontas afiadas como uma ave de rapina.
A luz diminuiu, mas não completamente, era como se houvesse um sol dentro da sala.
Kyuubey não lutou contra o aperto da mão de Pássaro do Sol, nem fez protestos, apenas examinou o que ela havia se tornado.
A mulher usava um capacete com forma de cabeça de pássaro, com os seus olhos sendo um par de visores amarelos e um bico como nariz. A boca era única parte ainda visível, sendo que todo resto era coberto por uma armadura cibernética, predominantemente branca, com algumas partes vermelhas e pretas. Trilhas de circuitos pulsavam luz em uma taxa coronária, enquanto sua gema alma, instalada na armadura peitoral e agora com um formato de semicírculo, ardia como o fogo. Pássaro do Sol de fato tinha um grande par de asas, mas era uma estrutura rígida, como parte da armadura.
A madeira da sala começou a estalar devido ao calor.
Cada asa era uma unidade de contenção de uma bola de plasma, a fonte de luz e calor, e era o que dava empuxo para Pássaro do Sol voar na sala. "É hora de te mostrar isso, de novo..." Ela foi até a janela, a abriu, e estendeu seu braço que estava segurando Kyuubey.
A criatura sentiu os raios do Sol que vinham através das copas das árvores.
"Você sempre sabe melhor sobre isso do que eu, não é?" Pássaro do Sol ironizou, "o Sol é o que permitiu a vida nesse planeta, e ele pode muito bem extingui-la," ela sorriu com satisfação ao proferir as próximas palavras, "e quando EU fazer isso acontecer, você dará tchauzinho para a sua fonte de energia."
[É como eu queria dizer.] Kyuubey respondeu, sem ousar trocar olhares com ela, [você não precisa me lembrar disso.]
Pássaro do Sol arremessou o alienígena contra o chão de terra.
Kyuubey capotou e permaneceu caído como se fosse um boneco de pelúcia sem vida, seu pêlo de puro branco estava imundo e queimado.
"Eu quero notícias muito em breve, e que sejam sobre o seu plano ter dado certo, ou irei agir. Eu juro que irei destruir a Lei dos Ciclos, nem mesmo que no final só reste cinzas para você fazer contratos!"
Kyuubey ouviu a janela ser fechada com violência, esse foi o sinal que ele esperava para poder se mover. Ele observou a janela a partir do chão, constatando que não havia mais ninguém ali, nem luz na sala.
Com pressa, ele se afastou do local. Apesar do estado que estava, ainda havia graça e leveza em seus movimentos enquanto pulava pela vegetação.
Ele parou quando chegou em local onde havia marcas de pneu deu um veículo, certamente o que havia sido utilizado por Lince da Lua.
Uma trilha de formigas estava no caminho e acabou sendo esmagada.
[Inevitável. Inevitável, não é?]
Kyuubey se aproximou e observou as formigas resgatando os feridos e carregando os mortos, enquanto o fluxo da trilha estava quase reestabelecido.
[Madoka Kaname, nada você poderá dizer contra nós, pois nós conseguimos o máximo de tempo possível, mas esse é o destino de suas ações.]
Kyuubey olhou para o céu, para o Sol, para a noite no outro lado do mundo, para a Terra, para o sistema solar, para a Via Láctea.
[Você disse que quebraria qualquer regra para obter o que deseja, mas o que fará a respeito dos regentes? Agora, apenas nos resta aguardar pelo seu movimento.]
Síndrome do pesar
"Eu quero que formem uma fileira." Madre segurava algumas noviças e as guiava para montar a formação. "Generalíssima pediu que fosse assim, então façam rápido, pois ela virá em breve."
"Ela e Inquisidor, eu presumo," Matryoshka comentou, enquanto observava os esforços de Madre.
Todas as garotas mágicas estavam no refeitório, aguardando.
Sortuda estava recostada na parede. "O que será dessa vez?"
Revenante estava próxima dela. "Qualquer coisa com aquele Inquisidor, eu... não tenho certeza se quero saber."
"Por que estão tão preocupadas?" Matryoshka perguntou para as duas, "eles só devem estar trazendo um anúncio formal das boas notícias sobre Washington, não é?"
Sortuda abriu um grande sorriso. "É, deve ser isso."
Nano e Invasora estavam em outro ponto do salão, sussurrando uma para a outra.
"Essa conversa particular entre os dois foi bem longa, né? Qual seria o assunto?" A criança indagou.
"Eu não tenho idéia." A bailarina balançou a cabeça. "Mas, pelas imagens das câmeras de segurança, eles ficaram no quarto do Inquisidor durante todo esse tempo. Acho estranho que Generalíssima tenha aceitado isso."
Generalíssima chegou pelo túnel, acompanhada do Inquisidor.
Madre gesticulou e fez caretas, chamando as outras irmãs para se juntarem a fileira.
Sortuda deixou a parede em um pulo, seguindo Revenante.
Matryoshka decidiu procurar um lugar na fileira. Mas sem muita pressa.
Com tudo em ordem, Madre ajeitou sua compostura e aguardou Generalíssima falar.
A mulher estendeu seu braço esquerdo fazendo aparecer a sua gema em forma de ovo, com a cor rosa escura. "IRMÃS! Mostrem as suas almas!"
As noviças e irmãs imitaram o gesto, com duas exceções.
Matryoshka, que mantinha suas mãos nos bolsos.
Inquisidor, que mantinha as mãos nas costas.
As irmãs olharam para o homem, com ar de surpresa devido a atitude dele. Generalíssima aparentemente não havia notado, pois ele estava um passo atrás dela.
Madre é a que estava visivelmente mais perturbada. Ela tentou se lembrar de uma outra vez que ele tenha feito isso, mas se deu conta que ele nunca esteve presente para essa formalidade! Ele sempre chegou mais tarde, ou simplesmente não aparecia. Não podia ser um engano, mas talvez fosse um 'privilégio', pois ela sabia que ele tinha posição supostamente especial na Irmandade.
A reação das irmãs não tinha chamado a atenção de Generalíssima, o olhar dela estava compenetrado em outra coisa.
Um bom tempo havia se passado e algumas noviças olharam para Madre, esperando um sinal, mas ninguém ousava baixar o braço.
O longo silêncio deixava a situação cada vez mais estranha e tensa, até as irmãs estavam começando a olhar uma para outra pelo canto do olho.
Generalíssima finalmente abaixou o braço.
As outras prontamente fizeram, algumas acabaram deixando escapar um suspiro de alívio.
Com um breve sorriso, Generalíssima começou a falar, "Como vocês já devem ter sido informadas, nossos membros em solo americano fizeram um tremendo progresso na busca por Washington. Eles conseguiram até estabelecer um contato temporário com eles."
Sortuda olhou para Revenante.
A mulher negra sentiu isso e balançou um pouco cabeça, suspirando.
O sorriso de Generalíssima se foi, mantendo uma voz firme e controlada. "Infelizmente, nem todas as notícias são boas, e essa é razão da situação ainda ser delicada. Durante esse contato temporário, Washington informou que essas novas bruxas conseguiram se infiltrar em várias células da Irmandade pelo mundo, inclusive Washington."
Madre segurou a respiração.
Nano e Invasora olharam para as noviças, que haviam começado falar abertamente sobre aquele anúncio.
Antes que ficasse muito barulhento, Generalíssima ergueu a voz para interromper, "Portanto, o anúncio recente que Inquisidor fez sobre a possibilidade de o ladrão das sementes ser uma bruxa é..." Ela pressionou os lábios. "Plausível."
Inquisidor foi quem sorriu dessa vez, aquela de certa forma era a deixa. Ele caminhou em direção a fileira de garotas mágicas, olhando nos olhos de cada uma delas, começando a falar, "Felizmente, isso significa que nós temos uma forma de descobrir quem é o traidor, basta descobrirmos quem de nós é uma bruxa."
"Isso tá soando ser simples demais pra acreditar," Revenante comentou, com rancor.
"Não, não é simples, não é fácil." Olhando para algumas noviças, Inquisidor assentiu e ergueu um dedo. "Mas há uma maneira! Eu conversei muito com Generalíssima e nós concordamos que se há uma bruxa disfarçada aqui, ela não tem algo que nós todos temos: uma gema da alma."
Madre abaixou o olhar, mais especificamente para o anel prateado em sua mão esquerda.
Matryoshka alongou o pescoço.
Nano examinou a sua manopla e no compartimento fechado da mesma, onde a sua gema estava bem protegida e escondida. Ela sentiu estar sendo observada e acabou trocando olhares com Invasora.
A garota asiática continuava olhando para criança com aparente curiosidade.
Nano respondeu com um pequeno sorriso e voltou a olhar para o homem.
"Como vocês perceberam, quando Generalíssima pediu, vocês mostraram as suas gemas." Inquisidor assentiu. "É claro. Bruxas enganam para destruir. Não é um desafio para esse novo tipo de bruxa, mestre em disfarces, em criar uma gema da alma falsa, simulando sua aparência, até mesmo a corrupção dentro dela e a 'purificação'. Contudo, nós acreditamos que não é uma réplica perfeita, há certos comportamentos em nossos sacros objetos que elas não podem emular."
Invasora ergueu as sobrancelhas, percebendo aonde ele queria chegar. "Você vai fazer o teste das cento e nove jardas?"
"Não." Inquisidor parou de andar para responder. "Generalíssima sugeriu isso, mas eu a convenci que isso não traria a certeza necessária. Como eu disse, a gema da alma da bruxa é uma falsificação mágica, é parte do disfarce, parte dela mesma. Então, não seria difícil para a bruxa sentir que a gema está afastada dela em uma distância específica e fingir inconsciência." Ele respirou fundo, enquanto suas têmporas pulsaram em tensão. "Não... Tem que ser algo que não dá para fingir. Isso tem que acabar agora."
Algumas noviças engoliram seco devido ao tom ameaçador do homem.
"Como nossas promissoras futuras irmãs aprenderam, nós somos capazes de bloquear todas as sensações que os nossos corpos proporcionam, inclusive a dor. No entanto, Madre deve ter ensinado a vocês que é possível estimular nossas gemas para causar sensações. Essas sensações não podem ser evitadas." Inquisidor voltou a caminhar ao longo da fileira de garotas. "Para eu me tornar Inquisidor, eu passei por testes onde recebia estímulos dolorosos diretamente em minha gema da alma. Era uma dor tão pura e excruciante que, mesmo se você acha que está preparado, ela te dobra. O sofrimento e desespero que se segue eu conheço bem, não tem como enganar." Até que ele parou na frente de uma certa coelhinha.
Sortuda franziu o cenho e sorriu, assentindo. "Ahnn... História legal..."
Inquisidor pediu, "Sua gema da alma."
Revenante arregalou os olhos.
Enquanto Sortuda abriu um sorriso maior, apontando para si mesma. "Você quer fazer esse teste comigo?" Mas... mas... não fui eu! Vocês sabem que eu estava... hmmm... cochilando quando as sementes foram roubadas."
Inquisidor respondeu friamente, "A hipótese de haver cúmplices não foi descartada."
"Ah! Qual é..." Sortuda pôs uma mão sobre a sua gema transparente com forma de pé de coelho, em uma menção de protegê-la.
Inquisidor estendeu a mão. "Faça isso pela Irmandade. Prove para nós de que você não é uma traidora de uma vez por todas."
Sortuda fez uma careta, olhando para a sua amiga negra.
Revenante balançou a cabeça de leve.
Ainda fazendo careta, Sortuda suspirou e ofereceu a sua gema. "Okay, toma aqui. Se isso vai ajudar a pegar o traidor e recuperar as sementes, eu topo."
"Eu estou muito grato." A gema de Sortuda ganhou a forma de ovo na mão de Inquisidor e ele deixou a jóia no piso, antes de pegar a sua cruz de prata.
A garota mágica coelhinha ficou mais tensa.
Inquisidor separou a cruz em duas partes. O corpo da cruz se tornou uma estaca, que ele fez evaporar. A cabeça e os braços da cruz se tornaram a empunhadura de um chicote. O fio de metal ganhou comprimento e se movia como uma serpente, circulando a gema no chão.
"Bem, bem, bem, bem..." Sortuda pôs as mãos na cintura, sua respiração pesada denunciava sua ansiedade. "Vai ser uma dor terrível, mas, como dizem, a pior dor que uma mulher pode te do parto."
O fio do chicote estrangulou a gema.
"Não que eu já tive essa experiência, mas tem tanta mãe no mundo aí, de boa e muito feliz. Então esse teste não vai ser nada demais, né?" Sortuda começou a respirar pela boca, rapidamente. "Puff, puff, puff. Que nem peixe. Como as parteiras de filme pedem par-"
O fio do chicote ficou incandescente.
"GYYYYAAAAAHHHHGGGNNNNNN!" Sortuda foi ao chão de uma vez, aos gritos. "YYYYAAAAGGGHH! UUUUAAAAHHHHGGGG!"
"Sortuda!" Revenante a chamou, mas sem resposta. Ela se virou para o homem. "Para, isso é o bastante!"
Mantendo seus olhos na Sortuda agonizando, Inquisidor disse com pouca emoção. "Ainda não."
Sortuda estava se debatendo. Seus músculos estavam rígidos, suas veias saltando, a pele enrubescida. Só era possível ver a esclera dos olhos dela, enquanto sua boca estava escancarada para gritar, mas sem ter mais fôlego para isso, soava mais como o guincho de um animal em um matadouro.
"Oh meu Deus..." Madre não acreditava na barbárie que estava testemunhando.
Muitas noviças taparam os ouvidos e evitaram aquela cena.
Nano e Invasora estavam em choque. A que ponto a Irmandade havia chegado?
Matryoshka girou uma de suas torneiras no ombro e respirou profundamente. "Cлабоумный..."
Marcas de sangue começaram a aparecer no chão envolta de Sortuda.
"Puta merda!" Revenante clamou por sua líder. "Generalíssima! Olha o que tá acontecendo!"
No entanto, ainda que estivesse com uma expressão de culpa, Generalíssima desviou o olhar.
Revenante franziu a testa e prestou a atenção na gema de sua amiga. Ela não era mais transparente, apresentando uma turbidez preta. "Para, agora! Você tá matando ela!"
"Um pouco mais..." Inquisidor respondeu, ainda olhando para Sortuda.
"Inquisidor, pare! Ela vai te matar!"
Dessa vez era a voz de Generalíssima. Inquisidor iria se virar para vê-la, mas se deparou com a ponta afiada de uma azagaia.
Revenante estava segurando a arma metálica verde. Sua face tinha um desespero estampado, não era um blefe.
Sortuda ainda convulsionava enquanto o chicote incandescente estava enrolado envolta da gema dela.
Rangendo os dentes, a mulher negra deu um passo à frente.
O homem recuou a cabeça a tempo de ela não ser perfurada.
"INQUISIDOR!"
Com o novo pedido da Generalíssima, o homem puxou o chicote, fazendo arma soltar a gema, e o fio de metal foi perdendo a incandescência.
No mesmo momento, o corpo de Sortuda relaxou, mas ela ainda agonizava. "Ah... gnn... gnnn..."
Revenante abandonou sua arma e a acudiu a sua amiga, segurando a cabeça dela. "Sortuda, tô aqui!"
A garota mágica sardenta estava com sangramentos no nariz, na boca e nos ouvidos. Ela segurou o braço de sua amiga negra, revelando que suas unhas estavam arrebentadas, de tanto que ela arranhou o piso. Ela não conseguiu dizer uma palavra, mas deixou claro o que estava sentindo com lágrimas abundante e soluços.
Os olhos de Revenante também lacrimejaram, com os músculos de seu corpo tensos de raiva.
De repente, Sortuda arregalou os olhos e ficou boquiaberta.
Deixando Revenante ainda mais preocupada com o estado dela. "Sortuda? Sortuda!"
Sortuda parou de chorar, estava mais calma e também confusa. "Eu tô me sentindo... melhor?"
Revenante acabou compartilhando aquela confusão.
"Congratulações."
Ao ouvirem ele, as duas prestaram a atenção ao homem.
Inquisidor estava segurando a gema da Sortuda, a purificando com uma semente da aflição. "Você não é uma bruxa." Então ele arremessou o objeto.
Sortuda pegou a gema e se levantou, ficando sentada no piso. Ela examinou o núcleo transparente da jóia, enquanto esfregava os lábios com a língua, sentindo o gosto de sangue.
Já Revenante ficou em pé e se aproximou do Inquisidor, o encarando.
Sem estar intimidado, o homem afirmou, "Eu tenho muita experiência com esse teste, estava tudo sobre controle, mas a garota mágica tem que chegar perto de seu limite para que isto seja legítimo. E agora é sua vez."
"Vá você primeiro," Revenante respondeu, "cretino."
"Eu irei pedir para que Madre faça isso em mim," Inquisidor explicou, "mas eu serei o último. Isso é para garantir que nenhuma bruxa tente agir enquanto eu estiver incapacitado."
Revenante cerrou os punhos e semicerrou o olhar.
"Saiba que estando contra mim, você também estará contra Generalíssima." Ele ofereceu a mão. "Agora entregue a sua gema."
Revenante olhou para a sua líder.
Generalíssima estava com a cara virada.
A mulher negra voltou a olhar para Inquisidor.
Ela ainda estava com a mão aberta, esperando.
Com desgosto, Revenante estendeu a mão esquerda e soltou a sua gema da alma branca na mão dele.
Inquisidor prontamente colocou a jóia em forma de ovo no chão e o enrolou com o seu chicote. "Não sinta vergonha, ninguém com uma gema da alma de verdade consegue tolerar essa dor."
"Faz logo!" Revenante esbravejou.
Ele olhou nos olhos dela, não disse mais nada, apenas fez seu chicote ficar incandescente.
"Gnnn!" Revenante baixou a cabeça e seus músculos enrijeceram.
Sortuda desviou o olhar, ela sabia o que estava por vir, assim como as outras irmãs e noviças.
No entanto, Revenante não caiu. Ela lentamente levantou cabeça e respirou fundo, seus músculos relaxaram.
Inquisidor piscou os olhos. Seu semblante não havia mudado, como se ainda estivesse esperando acontecer o que era para acontecer.
Porém, Revenante sorriu.
Com os olhos arregalando e sua cabeça tremendo, ele olhou para o chão.
A gema da alma brilhava, a luz branca competindo com a luz quente do chicote.
Compreendendo o que estava acontecendo, ele olhou para a mulher negra, agora com raiva. "Você cometeu um grave erro!"
"Eu quero que você continue acreditando que eu sou uma bruxa," Revenante disse.
Inquisidor franziu o cenho. "Sério?"
"É." Revenante assentiu. "Assim, quando você resolver me perseguir, eu te mato e alego legítima defesa."
O homem compartilhou o sorriso irônico brevemente, então ele liberou a gema e seguiu para próxima garota mágica.
Revenante pegou a gema no chão. Estava extremamente quente, mas era incapaz de queimar a sua pele. Ela então olhou para Sortuda.
Ela ainda estava sentada no chão, surpresa com o que acabara de acontecer.
A mulher negra deu uma piscadela. Aquilo foi o suficiente para a garota mágica coelhinha sorrir novamente.
Inquisidor parou na frente da Matryoshka.
A garota mágica russa logo falou, "Você vai fazer esse teste comigo? Eu tenho imunidade diplomática, fufufu..."
"Isso não faz você imune as minhas chamas," ele respondeu.
"Você ameaça a me queimar? Na verdade, você vai acabar me explodindo, matando você e mais alguns nesse espaço confinado." Matryoshka segurou um dos tubos transparentes conectados a sua máscara, contendo químicos, enquanto enviava uma mensagem telepática para o homem, [Eu me pergunto o que Willa realmente disse para você estar tão desesperado, ou será que a sua inteligência tem data de validade curta?]
"Se você for uma bruxa disfarçada, vale o risco." Ele semicerrou o olhar. [Eu retornei a central de dados e parece que seus amigos da União da Terra-Mãe não responderam a sua mensagem. Eu me pergunto se você realmente enviou um pedido de ajuda.]
"Hmmm... Você está muito paranoico hoje." Ela começou a desabotoar o casaco. [Eles ainda devem estar decidindo se vão ajudar ou me deixar por conta própria, mas eu posso pedir que eles confirmem que receberam a minha mensagem. Agora que você me deu acesso a sala da central de dados, você só vai precisar distrair a bailarina das câmeras para mim.]
Inquisidor engoliu seco.
Matryoshka abriu o casaco e vasculhou por dentro. Ela puxou um monóculo dourado, com uma lente de cor âmbar com manchas escuras que estavam espalhadas como veias sanguíneas. "Vamos continuar amigáveis, sim? Aqui está a minha gema da alma. Nada como a dor para nos deixarmos vivos."
O homem assentiu, em silêncio, e estendeu a mão para pegar pequeno objeto.
Uma mão segurou o seu braço.
Era Madre. "Você pretende fazer isso com as noviças também?"
Ele respondeu, "É preciso."
A ruiva ficou mais aflita. "Elas não vão aguentar!"
"Você deve prepará-las," Inquisidor instruiu, "como nos ciclos de confissão que você promove."
"Não!" Madre balançou a cabeça, franzindo as sobrancelhas. "Se você está referindo as punições que eu recomendo as noviças, elas são autoinflingidas, uma escolha consciente, somente assim é eficaz para que a gravidade do pecado seja reconhecida e evitada. O que você está fazendo aqui não é mais do que uma tortura."
"Uma tortura que pode salvar a Irmandade," ele retorquiu, "você acha que estamos errados? Converse com Generalíssima, ela concordou com isso."
"Chega, Inquisidor."
Ouvindo Generalíssima, o homem se virou imediatamente para ela.
Ela ordenou, "Você vai parar com isso, agora."
Inquisidor exasperou, apontando para ela, "Você não pode voltar em sua decisão!"
Generalíssima cruzou os braços. "Eu decidi voltar em minha decisão."
Ele avançou até ficar face a face com ela.
A mulher ergueu o queixo enquanto olhava nos olhos do homem.
Segurando a cólera, Inquisidor perguntou, "Você acha que isso é uma piada?"
"Claro que não!" Generalíssima apontou para a garota mágica coelhinha. "Olha o que você fez com a Sortuda!"
A fileira de irmãs e noviças haviam se tornado platéia da discussão daquele casal. Para muitos era motivo de vergonha alheia, mas para uma certa garota mágica com máscara e capuz, era uma diversão e tanto.
"Eu disse que haveria dor," Inquisidor afirmou.
"Dor? Você a quase transformou em uma bruxa!" Generalíssima exclamou, "do que adianta encontrar o traidor se metade dos nossos membros morrerem?"
"Eu sei o que estou fazendo. Eu jamais deixaria isso acontecer." Inquisidor ficou frustrado. "Você disse que confiava em mim."
"É um erro deixar qualquer coisa em suas mãos," ela disse friamente, "vamos fazer o teste das cento e nove jardas, ou cem metros, que seja."
"Isso..." Inquisidor balançou a cabeça, ultrajado. "Isso é ridículo. Eu havia convencido você que esse método não daria certo, você concordou comigo. Você..." De repente, ele arregalou os olhos.
Generalíssima estranhou. "O que foi?"
Ele ficou boquiaberto, só fechando quando deixou escapar um sussurro, "Sua puta..."
A mulher paralisou.
"A sua sugestão de termos a nossa conversação no meu quarto, sua admissão de que eu estava certo quanto a existência de uma bruxa na nossa base e toda aquela atitude de humildade... Tudo isso foi engodo." Inquisidor rangeu os dentes. "Você sempre soube o que eu faria. Você deixou Sortuda sofrer, você a usou, para então se virar contra mim e receber suporte dos outros membros. Você premeditou isso."
"Do que está falando?" Generalíssima balançou a cabeça. "A idéia desse teste foi completamente sua."
"Você concordou comigo, você me deu a permissão! Você não pode negar a sua responsabilidade!" Após levantar a voz, Inquisidor acalmou-se, mas com um semblante de desapontamento. "A Irmandade está à beira do colapso, nossos inimigos estão aqui, e você só pensa em sua imagem."
Generalíssima descruzou os braços, cerrando os seus punhos.
"Mas o que mais poderia se esperar de um 'mito'?" ele continuou, "você não é uma líder. Você jamais deveria estar nessa po-"
Um flash de luz rosa e Generalíssima estava com o corpo seminu, coberto pela sua segunda pele.
Inquisidor ficou sem palavras.
Ninguém sequer respirava na sala. Esses instantes de silêncio foram apenas quebrados por Madre. "G-Generalíssima?"
A pele rosa escura dançava sobre pele original da mulher freneticamente, como a crepitação de uma chama. Ela disse para o homem, "Você tem uma idéia equivocada do porquê eu ser a líder aqui. Eu vou te dar uma dica: eu sei onde está a sua gema da alma."
Inquisidor estremeceu e olhou para sua gema vermelha em forma de cruz que estava no fecho direito de sua manta.
"Isso é muito injusto, não é?" A segunda pele de Generalíssima passou se mover mais lentamente. "Eu tive idéia. Se eu te disser onde está a minha gema da alma, quanto tempo você precisa para destruí-la? Dois segundos? Um segundo? Uma fração disso? Quanto tempo você acha que tem?"
Inquisidor não respondeu, não somente por não esperar tais questões, mas na clara ameaça entre as palavras.
Revenante deu um passo à frente, exclamando, "Nós tamos contigo, Generalíssima!"
O homem olhou para a mulher negra e para a fileira de garotas. Ninguém se opôs ao que ela havia dito. Ele olhou de volta para Generalíssima e ela não disse nada, e nem precisava mais. Com um efêmero sorriso sardônico, ele sussurrou, "Eu sou a minoria aqui." Então ele se afastou de Generalíssima e ergueu a voz em direção a fileira de garotas, "Vocês acham que eu tenho orgulho da minha voz autoritária?"
Ninguém respondeu, alguns membros até ficaram confusas com a pergunta.
"Vocês acham que eu aprecio o sofrimento de vocês?" Inquisidor pousou a mão no próprio peito e balançou a cabeça. "Não, mas preferiria ouvir os seus gritos agora, do que quando as nossas últimas sementes forem roubadas também e nós estivermos matando uns aos outros."
Generalíssima revirou os olhos em face àquele apelo emocional.
"Eu desisto." Inquisidor abaixou a cabeça. "Sem a colaboração de vocês, não será possível pegar esse traidor." Ele se virou e andou para o túnel de saída, passando por Generalíssima. "Estarei em meu quarto. Se alguém quiser provar que não é uma bruxa, fique livre para me visitar. Eu faço o teste e serei honesto quanto ao resultado."
"Espere."
Ouvindo Generalíssima, ele parou, mas não se virou.
Ela disse, "Você tem razão."
Madre ficou perplexa.
Revenante muito mais. "Hein?"
Inquisidor olhou para trás.
Um novo flash de luz rosa e Generalíssima havia retornado ao uniforme padrão da Irmandade. "Nós estamos sendo passivos demais com esse ladrão. Eu tenho um plano."
/人 ◕‿‿◕ 人\
A noite estava em uma escuridão total.
Era lua nova, havia muitas nuvens no céu bloqueando as estrelas e não havia um sinal de luz artificial no horizonte em qualquer direção.
Para Homura, era melhor assim, seria menos provável que alguém iria avistar ela voando em alta velocidade com suas asas de energia negra. Usando um modelo militar de GPS portátil, ela tinha um destino claro.
Ela não estava sozinha, havia passageiros sob suas asas, sendo seguradas por muitas mãos que haviam brotado da energia negra.
Era uma situação nada confortável, como Kyouko havia constatado. Com a pele da face sendo puxada pelo atrito do ar, ela exclamou, "ALGUÉM ME ENVIA DE VOLTA NO TEMPOOOOÔÔÔ! EU QUERO BATER NA MINHA VERSÃO DO PASSADO POR TER ACEITADO ISSOOOOÔÔÔ!"
Infelizmente, apenas Sayaka estava próxima o suficiente para ouvir o grito abafado. Era melhor usar a telepatia. [Aguenta mais um pouco, Kyouko.]
[É fácil falar, mas já estamos horas assim!] Uma mão de energia negra começou a tatear o rosto de Kyouko e ela reagiu mordendo um dos dedos. [Não dá pra enxergar nada, mas só deve ter o oceano lá embaixo, né? Se você cair, você afunda e ninguém mais te acha.]
[Então fique quieta e não se mova.] Oriko se intrometeu. [Assim nós não teremos incidentes, é o que eu prevejo.]
Na outra asa, o clima era mais leve.
[Homura-san é incrível!] Kaoru comentou, [Ela consegue voar assim e ainda para o tempo! Imagina se nós tivéssemos ela nas Santas Plêiades.]
[Sim. Ela uma amiga muito próxima da Madoka-san, ela deve ser tão especial quanto ela.] Kazumi concordou. [O que me deixa mais excitada é que essa minha primeira viagem para fora do Japão. Eu estou pouco preocupada também, pois eu não sei nada sobre a Austrália.]
Umika disse, [Isso não importa. Nós vamos pousar em um deserto, não deve ter muitas coisas para ver. Talvez seja até melhor que não haja nada mesmo.]
Com a escuridão e na posição que estava, Oriko não conseguia ver o semblante de Homura. Contudo, não era arriscado apostar que ela estava muito compenetrada. [Se continuarmos nessa velocidade, chegaremos nas coordenadas antes do Sol aparecer.]
Homura já sabia disso, ela tinha feito os cálculos. O que a preocupava era o que estava fora de seu controle. [Você teve mais alguma visão do ataque à Mitakihara?]
[Não, mas quanto a isso... Você se lembra da nossa primeira conversa? Quando lhe dei o aviso.]
Homura segurou a respiração. Ela nunca iria esquecer.
[Eu lhe disse que esse não era o futuro que eu estava vendo, ele foi alterado. O que quer encontremos nessas coordenadas, nós devemos estar preparadas para lidar com alguém que tem agência sobre o destino. Alguém como eu e você.]
Anomalia temporal.
Homura se lembrou do que Madoka havia dito, algo que ela preferiu não compartilhar com ninguém. O tempo era seu inimigo, ela já sabia, mas agora ele poderia ser o seu adversário direto, o pior de todos.
Próximo capítulo: E os portões do inferno não prevalecerão
