Notas: Nada de Harry Potter é meu. É tudo da J.K. Rowling; eu apenas não me conformo com o final que ela deu ao Snape e sempre arranjo uma forma diferente de contrariá-la. Ainda assim, possuo direitos sobre o que escrevi, de acordo com a Lei nº 9610/98. Plágio é crime; não seja um babaca!
Essa oneshot surgiu a partir de um mini desafio proposto por um seguidor anônimo no Twitter do Severo Snape Fanfictions. A proposta era escrever uma fanfic curta em até 5 tweets com a temática de Halloween, usando as palavras fantasma(s) e travessura(s). Eu, é claro, me empolguei demais e transformei meus tweets nessa one. Aliás, eu sou cruciushoney lá no Twitter.
→ Essa fanfic também está postada nos sites Spirit Fanfics, Wattpad e AO3. Se você ver essa fic postada em outra plataforma e/ou por outro perfil, não sou eu. Por favor, denuncie e me avise.
Sem mais delongas, desejo a todes uma boa leitura!
Capítulo único
Ela ainda se lembrava da semana da mudança dele. Mary morava numa vizinhança discreta — ainda bem —, e os primeiros comentários não passavam de pequenas trocas de informações sobre quem seria o novo inquilino da casa do número 22. Numa manhã de março, porém, Mary saía do banheiro, secando os fios crespos do seu cabelo com a toalha, quando flagrou seu (agora ex) marido colado à janela do quarto, um olho observando pela fresta mínima da cortina de tecido branco.
— O que você está olhando?
— O novo vizinho chegou — disse Elias sem tirar sua atenção da rua. — Nossa, ele parece ter saído de um filme. Que cara estranho!
Ele mal havia terminado de falar quando Mary o empurrou para o lado com o quadril, pegando um vislumbre do homem que adentrava a casa mais à frente, segurando uma caixa de papelão em seus braços. Naquela distância e ângulo, pôde apenas visualizar uma figura masculina alta e magra, toda trajada de negro.
— Ele parece bem elegante, na verdade — comentou ao se afastar da janela.
Elias, ciumento, não gostou do comentário. Na verdade, Elias geralmente não gostava de nada — às vezes parecia nem mesmo gostar dela —, então não foi grande surpresa que seu divórcio tenha se tornado uma realidade cerca de um ano mais tarde.
Já nas primeiras duas semanas que o novo vizinho se instalara no bairro, certo burburinho se iniciou. O bairro, antes calmo e discreto, em que seus moradores mantinham relações saudáveis e amigáveis, agora vibrava com a fofoca que começou quando aquele homem se mudou.
Ele não saía de casa. Absolutamente ninguém da rua havia flagrado mais algum vislumbre dele depois do dia de sua chegada. A casa estava sempre totalmente fechada; portas, janelas e cortinas. Também não havia nenhuma decoração do lado de fora que demonstrasse alguma personalidade ou algum indício de que uma alma viva ali morava.
— Eu vou até lá — disse Elias uma vez.
— O quê?! — exclamou, desacreditada, enquanto ajudava sua filha, Theodora, a calçar os sapatos. — Não seja enxerido, Elias. Deixe o homem em paz.
— Um homem estranho se muda para a minha rua e ninguém nem sabe o nome dele. Eu não quero nenhum maníaco morando perto da minha família, Mary. Não sou enxerido, estou apenas averiguando o indivíduo.
Por mais que discordasse e achasse aquela ideia absurda, Mary foi com ele. Disse a Elias — e a si mesma — que o fazia para ter certeza que o marido não seria inconveniente, embora soubesse que escondia dentro de si muita curiosidade. Com Theo no seu colo e seu marido ao lado, ela caminhou até a casa de número 22.
Havia algo de diferente ali, embora não soubesse dizer o quê. Sentiu uma espécie de formigamento quando se aproximou da porta — e pensou que Elias também sentira, porque ele esfregou os próprios braços — e notou que, na verdade, havia, sim, personalidade ali. Além das plantas e gramado parecerem mais verdes que os das outras casas (e Mary não conseguiu evitar sentir certa inveja, porque nada do que ela fazia parecia melhorar a qualidade do seu próprio jardim), ela percebeu que havia, agora, uma pequena plantação de algumas ervas nos canteiros mais próximos à casa. Ao lado da porta, entre a campainha e a arandela, havia uma placa com os dizeres alemães "Geh weg".
— O que significa? — sussurrou-lhe o marido.
— "Vá embora" — sorriu. — Charmoso.
— Eu não disse? Esse cara é estranho. — Ele apertou a campainha.
Através da casa completamente fechada, o som foi abafado. Não puderam ouvir nenhum passo, nenhuma voz, nada que indicasse que o vizinho estranho estava lá. Um breve pensamento macabro atingiu Mary e ela se questionou se o homem não havia morrido lá dentro — talvez devesse dar um tempo de ler Stephen King.
— Talvez ele não esteja aí.
O seu marido não lhe respondeu e tocou a campainha novamente. Desta vez, entretanto, puderam claramente escutar o som de uma cadeira sendo arrastada com brutalidade. Os dizeres da placa gritaram na mente dela e, segurando Theodora, quieta, fortemente em seus braços, Mary por um mísero segundo cogitou seriamente a ideia de dar as costas à casa. Antes que pudesse se decidir, a porta se abriu. Nada preparou a família para o fantasma que os encarava de volta.
O homem alto bloqueava quase totalmente a passagem da porta, embora não tivesse aberto mais do que alguns centímetros, o suficiente para que um pouco mais da metade do seu corpo aparecesse através da fresta. Sua pele macilenta e pálida fazia com que ele aparentasse pouca saúde; sob muitas camadas de roupas escuras, seu corpo parecia cadavérico e bolsas escuras debaixo dos seus olhos contavam a história de uma pessoa cansada. Mary quase se prontificou a levá-lo ao hospital mais próximo.
— Bom dia! — disse Elias, com um sorriso falso. — Nós somos Elias e Mary Carter, moramos no número 25.
Os olhos do desconhecido pousaram sobre cada uma das três pessoas à sua soleira. Elias foi recebido com uma expressão feroz, entre raiva e arrogância. Quando as íris escuras deitaram sobre Mary e Theodora, porém, algo na feição carrancuda do homem se amenizou. Ele observou estranhamente a mão estendida de Elias por alguns segundos, como se cogitasse ignorá-lo ou não, antes de se mover para cumprimentá-lo.
— Severus Snape.
— Tipo o imperador romano? — perguntou Mary antes que pudesse se conter. Os dois homens a olharam; Elias com confusão e Snape com indiferença. — Septimius Severus? — Encabulada, sua voz não passou de um sussurro.
— Ela é professora de História. — Elias riu forçadamente, mas nem um único músculo do rosto duro de Snape se mexeu. — Bem — a risada sem graça dele findou —, passamos apenas para lhe desejar boas-vindas.
— Se precisar de alguma coisa, pode falar conosco. — Mary ofereceu, recebendo um olhar incrédulo do marido. — Seja bem-vindo, Sr. Snape. Perdoe o incômodo.
Antes mesmo de darem as costas completamente para Snape, a porta se fechou com força. No curto caminho de volta para casa, Elias passou resmungando sobre a estranheza e grosseria do novo vizinho. O restante do dia foi gasto para reclamar da simpatia desnecessária de Mary para com o homem misterioso.
Aquela tinha sido a primeira e única vez que falara com Snape. Além dele quase nunca dar as caras pelo bairro, Mary sabia reconhecer quando alguém queria pouco — neste caso, nenhum — contato humano, e também sabia respeitar isso. Nas raríssimas vezes que acontecia de o encontrar pela rua, se reservava a apenas um manear de cabeça, que era igualmente respondido por ele.
Cerca de um ano e meio depois da chegada de Severus Snape à vizinhança, ela e Elias se separaram. Fora muito mais difícil por causa de Theodora do que por eles mesmos. Nunca haviam sido um casal muito apaixonado e dedicado, e Elias mais reclamava sobre tudo do que qualquer outra coisa. Ainda assim, lidar com sua nova solteirísse era estranho — chamava-a de neosolidão, porque sozinha ela já se sentia há algum tempo, mesmo com Elias dormindo ao seu lado na mesma cama. Sua resposta um pouco inconsciente à reviravolta da sua vida fora trancar-se em casa, tal qual seu vizinho do número 22.
Isolada, cuidando da filha pequena e da casa e trabalhando — porque professores sempre tinham que levar o trabalho para casa —, teve ainda mais escassos vislumbres de Snape. Exceto por um dia que, surpreendentemente, flagrou a janela da cozinha dele aberta. Ele mexia em algo no fogão e usava, da cintura para baixo, um avental azul-escuro. Ele sumiu da sua vista por alguns segundos. Mary observou, encantada, Snape reaparecer com um pequeno pote em mãos. Deixou o pote no parapeito da janela e menos de cinco segundos mais tarde, um gato alaranjado saltou de um dos arbustos para a refeição que lhe era oferecida. Os dedos longos de Snape acariciaram a cabeça do animal, entre suas orelhas, e Mary, poucos metros à frente, suspirou. Ele era, de fato, uma figura estranha e surpreendente.
Durante aqueles meses que optou por ficar em casa, descobriu que admirar — pois espionar dava uma conotação um tanto sombria ao que fazia — o cotidiano de Snape podia ser um passatempo muito interessante. Ela não conseguiu, porém, descobrir muita coisa, já que ele realmente não tinha o costume de sair de casa e raramente abria as janelas, ou até mesmo as persianas. Contudo, o que pôde desvendar sobre Severus — tal qual ao imperador romano — Snape era curioso.
Todo dia quinze do mês ele saía para fazer compras. Mary achava curioso que, diferente dos outros moradores, Snape não tinha um carro (nem uma moto, nem uma bicicleta), mas isto nunca o impedia de retornar, a toda quinzena, para casa com diversas sacolas em seus braços, como se as compras não pesassem mais do que alguns quilos.
Ele também parecia ser um jardineiro talentoso, e por diversas vezes se questionou se seria sábio tentar arrancar uma ou duas dicas sobre cultivo com ele. Seus arbustos eram verdes e magníficos, suas ervas cresciam como num passe de mágica e ele plantara uma muda de carvalho, belíssima, que causou inveja na Sra. Hopkins, a moradora do bairro que há anos carregava as honrarias de ter as plantas e flores mais bonitas de Solihull.
Toda noite ele cozinhava. A partir de uma determinada hora, a luz da cozinha sempre estava acesa, ou, em raras ocasiões, ele abria a janela da frente. Ele cozinhava com uma seriedade quase assustadora. Mary chocou-se, uma vez, quando voltava de uma breve caminhada noturna e o flagrou com a janela aberta, picando alguma coisa numa velocidade absurda. Ela indagou-se se Snape era um chefe de cozinha, e aquela foi a primeira vez que realmente se perguntou sobre qual seria a profissão daquele homem misterioso, já que, aparentemente, ele nunca saía de casa. Inclusive, tinha quase certeza que Snape escutava música enquanto cozinhava, porque embora não pudesse ouvir nada, Mary o pegou algumas vezes mexendo a boca, como se cantarolasse, ou até mesmo batendo o pé em algum compasso.
Por algumas semanas, ela achou que o gato alaranjado era dele. Mais tarde descobriu, entretanto, que ele possuía o hábito de pôr um pouco de alimento no peitoril da janela ou próximo às raízes da sua árvore, alimentando alguns animais de rua. Num dia particularmente estranho, Mary até mesmo o viu dando um petisco para uma coruja, em plena manhã de sábado. E cerca de um mês depois daquela cena, ela ouviu pela primeira vez um som vindo da casa dele. Um latido, fino. Tarde da noite, ela descobriu, quando todos já estavam seguramente em suas casas e em suas camas, Snape saía para passear com o seu cãozinho.
Severus Snape era pai de plantas e amigo dos animais. Mary verdadeiramente quis acreditar que não havia a menor chance dele ser alguém ruim.
E então aconteceu algo estranho. No Halloween de 2002, havia sinal de vida na casa dele, o que um acontecimento tão bizarro que todos os vizinhos pareciam cochichar sobre isso. Ele nunca decorava a casa para as festividades (Páscoa, Halloween, Natal e Ano Novo… Nada!). Contudo, especificamente na época de outubro, o vazio que exalava da casa de número 22 parecia se estender por toda rua. No primeiro ano dele ali, muitas crianças (e suas famílias) se mostraram curiosas e incertas sobre se aproximar ou não da casa. Ainda assim, muitos jovens tentaram a sorte, nenhum deles bem-sucedido. Muitos dos vizinhos se questionavam: "Que tipo de pessoa amargurada não comemorava sequer o Dia das Bruxas?". No ano seguinte, inclusive, ele até deixara seu recado mais explicitamente e a fofoca de que um aviso dizendo "Não perturbe!" havia sido pendurado na porta de Snape correu por todo o bairro.
Só que naquele ano algo havia mudado. Mary talvez nunca saberia dizer o que e por que, mas algo diferente havia acontecido, porque havia uma pequena abóbora iluminada sobre o guarda-corpo da varanda da frente e a arandela ao lado da porta estava acesa. Entretando, pelo visto, os dois Halloweens passados pareciam ter sido o suficiente para desencorajar todas as crianças da vizinhança a tentar conseguir doces do "Snape rabugento" — como ele fora carinhosamente apelidado —, além, é claro, do receio dos próprios pais do que o homem poderia tramar caso escolhesse pelas travessuras.
Theodora, porém, estava disposta a tentar o contrário. Fantasiada de Branca de Neve, Theo, agora com cinco anos, foi acompanhada pela mãe por quase toda a rua durante sua caça aos doces.
— Você conseguiu doces para até o ano que vem, Theo. Agora vamos para casa, que tal?
— Mamãe, ainda falta o Sr. Snape! — Ergueu as sobrancelhas.
— Oi? — Mary paralisou, quedando-se perante a disposição da filha em enfrentar o vizinho misterioso.
— Não tem nenhum aviso na porta — apontou para a casa — e ele até colocou uma abóbora na entrada. Vamos, mamãe! Por favor, por favor, por favor, po-
— Está bem, Theo! Eu não ia negar, só fiquei surpresa. — Isto era uma mentira. Por um momento pensou, sim, em negar, mas não pela sua filha.
Elas caminharam em silêncio até o número 22. Mary, assim como fez nas outras casas, parou no quintal, de braços cruzados, e assistiu à filha subir, bravamente, os três degraus que levavam à varanda de Snape. Surpreendentemente, não demorou mais do que quinze segundos para que ele abrisse a porta. Mary quase perdeu o ar. Realmente o analisando de perto depois de tanto tempo, podia dizer que nem de longe ele aparentava a decadência e magreza de outrora. Ele parecia muito saudável.
— Doces ou travessuras?
Mary percebeu que Snape pareceu estagnar por dois ou três segundos. Por algum motivo desconhecido por ela, algo passou pelo rosto dele enquanto observava Theodora, pequena e com a cesta erguida na sua direção. Viu, com assombro, a austeridade daquele homem se atenuar até dar lugar a algo que beirava um micro sorriso. Ele se afastou e voltou com as mãos cheias de doces — ela pensou, com pena, que ele gastara dinheiro com as guloseimas que não foram entregues. Talvez este fosse o motivo da sua imprevista compaixão pela chegada de Theo: ela veio a ser sua salvação.
A menina se afastou com um grande sorriso no rosto e os olhos brilhando. Mary não pôde fazer outra coisa que não fosse sorrir de volta para a sua filha. Ela abraçou-a pelos ombros antes de erguer os olhos para Snape, que a encarava abertamente. Aquilo a pegou, mais uma vez, de surpresa. Havia certa curiosidade naqueles olhos escuros.
— Boa noite, Sr. Snape.
— Noite, Mary.
Ela congelou. Nada havia a preparado para o fato de que Snape ainda se lembrava, três anos depois, do seu nome, ainda mais que escolhera a chamar pelo primeiro nome. Ele acenou com a cabeça e retornou para dentro, trancando a porta sem nenhuma grosseria. O som do trinco pareceu a despertar e ela olhou para a filha.
— Vamos para casa? — sugeriu Theo.
— Sim… Vamos.
Uma última vez, antes de se virar, ela arriscou mais um olhar para a porta da frente. Notou, então, que agora havia mais uma pequena placa abaixo daquela que lhe chamou atenção quando o visitou com Elias. "Geh weg. Oder bestehe darauf, wenn du mutig bist."
Vá embora. Ou insista, se for corajoso.
Mary sorriu. Não se achava tão corajosa assim — Theodora, com certeza, era muito mais do que ela —, mas decidiu aceitar o elogio de Snape.
…
— Ela é a melhor manicure que já vi na vida — garantiu Kylie. — Me lembre de te passar o contato dela depois.
Três semanas após o Halloween, Mary se encontrava conversando com Kylie numa das praças de Solihull. Kylie era uma boa amiga e sua vizinha da frente, do número 26. Nos últimos dois anos, elas haviam se aproximado ainda mais, devido, principalmente, ao divórcio de Mary. Ela havia contado, minutos antes da conversa sobre a manicure, sobre o estranho dia 31 de outubro.
— Ele é uma figura estranha. — Kylie dissera. — Mas também nunca acreditei que fosse alguém ruim, como alguns dos nossos vizinhos gostam de inventar. Ele só é alguém muito reservado. Aliás — piscou os cílios loiros para a amiga —, será que ele me daria uma muda de alecrim se eu pedisse com jeitinho?
— Eu acho que não, Kylie.
O breve contato com Snape mexera com ela — e muito! —, embora não soubesse dizer bem o porquê. Observá-lo por todo aquele tempo à distância, em silêncio, secretamente, talvez tivesse a feito atribuir a ele uma imagem utópica, como se Snape fosse alguém inalcançável, ou um personagem fictício de um livro. Todo aquele mistério e as fofocas dos moradores transformavam-no numa pessoa maldosa, sombria e perigosa que, agora, Mary sabia não combinar muito com ele; pelo menos não com o homem que assistiu pela sua janela durante meses, muito menos com a imagem que encontrou no Halloween.
Sentada com Kylie, alguns metros distante de onde as crianças brincavam, Mary não percebeu a pequena disputa que aos poucos se instalava entre Theodora e um grupo de meninos. Sua atenção só foi capturada quando a voz dele a atingiu, mesmo que ao longe.
— Deixem-na jogar.
Assim que apercebeu o estranho cenário — Theodora com as mãos na cintura, um garoto pelo menos cinco anos mais velho que ela com uma bola de futebol nas mãos, rodeado por outros meninos, e Snape com uma sacola parda num braço, furando o menino com seus olhos penetrantes —, Mary correu, seguida pela amiga, ao mesmo tempo que Lauren, mãe do menino mais velho, também se aproximava, já pegando o filho pelos ombros e o trazendo para perto.
— Algum problema, Sr. Snape? — O rosto branco de Lauren se avermelhava gradualmente.
— Ele não quer deixá-la jogar.
— E por qual motivo? — Mary ergueu a sobrancelha para o garoto.
— Porque ela é uma menina. — A palavra foi dita com asco, como se a ideia de que uma garota pudesse sequer tocar na bola fosse inconcebível.
Mary apenas pôde revirar os olhos, desacreditada, enquanto Snape fechou as mãos em punho. Por um momento, ela pensou tê-lo visto levar a mão ao bolso da calça, embora não soubesse bem o porquê. Talvez apenas quisesse esconder as mãos trêmulas.
— E por que isso deveria ser um motivo para que Theodora não brinque com vocês? — Aproximou-se ainda mais da filha, os braços cruzados firmemente sob seus seios.
— Não é óbvio? — disse o garoto com insolência. Sua mãe o interrompeu antes que pudesse dizer algo pior.
— Bem, a bola é do John — disse ela. A mesma arrogância que o filho possuía se mostrando na sua atitude. — Certamente ele pode decidir quem-
— Ele é seu filho? — Snape a interrompeu enquanto apontava para o menino, que tremeu perante a voz de trovão do homem.
— Sim, ele é! — respondeu Lauren com algo que soava como puro orgulho.
— E é assim que você cria ele? Para que se torne um homem medíocre?
Mary arregalou os olhos — assim como as outras poucas pessoas que acompanhavam, ao longe, a situação. Kylie, com certeza, tampou a boca aberta com uma das mãos, embora Mary não precisasse olhar para trás para saber disso. A arrogância de Lauren titubeou com as palavras certeiras e cortantes de Snape. Seus braços ao redor de John se fecharam ainda mais, quase como se desejasse levar o garoto de volta para o calor e proteção do seu útero. Engolindo em seco, conseguiu recuperar sua voz.
— E o que você — havia nojo no jeito que se dirigia ao homem, fitando-o de cima a baixo como se transmitisse uma doença contagiosa — sabe sobre crianças, Sr. Snape?
— Eu fui professor por quase vinte anos, parece que sei mais do que você. — Mary nunca o vira falar tanto (e com tanto ardor). — Pais que mimam seus filhos como se nada no mundo pudesse atingi-los, como se nada pudesse ser negado a eles, até o dia que eles crescem e decidem que podem negar a própria família. Acredite, Sra. Torres — a memória dele para gravar os nomes daquelas pessoas com as quais ele só trocara uma palavra, ou nenhuma, por três anos era assustadora —, eu vi isso acontecer com meus próprios olhos, muitas vezes.
"Agora você, John", virou-se para o menino trêmulo, "ainda vai aprender uma coisa muito importante na vida: não subestime ninguém, nunca. Não queira pagar para ver."
Surpreendentemente, o garoto assentiu e entregou a bola nas mãos de Theodora, dizendo num muxoxo que estava tudo bem se ela quisesse jogar com eles. Lauren apenas encarou a cena estupefata. Ainda havia um rancor sombrio no canto dos seus olhos esverdeados enquanto encarava Snape e Mary, mas ela simplesmente ergueu o nariz antes de retornar para o banco onde estivera, outrora, sentada.
Theodora, ainda com a bola nas mãos, sorriu exuberante, primeiro para a mãe, que a sorriu de volta, depois para Snape, que ainda assistiu às costas de Lauren por algum tempo antes de voltar sua atenção para a pequena à sua frente.
— Muito obrigada, Sr. Snape!
— Acabe com ele. — Foi o seu conselho.
Ela correu para o gramado, os cabelos negros e encaracolados balançando junto à sinfonia do vento enquanto Theo se unia às outras crianças. Mary pareceu perceber, então, que ficara calada na maior parte do tempo e que seu assombro com tudo (neste caso, com Snape) havia sido tão grande que nem mesmo teve recursos para proteger e defender a própria filha; foi preciso que uma segunda pessoa o fizesse. Pigarreou, sentindo-se um pouco envergonhada.
— Obrigada por isso, Sr. Snape. Não era sua obrigação. Mas fiquei tão surpresa que… — Deixou que as palavras morressem em seus lábios grossos quando o olhar dele, sério e enigmático, caiu sobre ela.
— Não precisa agradecer, Sra. Carter.
— Connor. Meu sobrenome de solteira é Connor, mas pode me chamar de Mary — pediu por sentir falta do seu nome na boca dele.
— Então pode me chamar de Severus. Tenha uma boa tarde.
Ela o observou se afastar, os cabelos negros ricocheteando, açoitados pela ventania fria de novembro, tão inebriada que não notou Kylie se aproximar.
— O que foi isso?
— Se descobrir a resposta — sorriu para a amiga —, me conte.
— Ele realmente parece uma pessoa interessante. Com certeza ganhou muitos pontos comigo por ter defendido a Theo.
— Não é?
— E, sabe… Ele até que é bonito.
— Kylie? — Estreitou os olhos marrons para a mulher ao seu lado.
— É apenas uma opinião. — Deu de ombros para logo depois provocar: — Mas sabe o que não é uma opinião? A maneira como ele olhou para você. Isso é um fato.
Com as palavras de Kylie em mente e a doce insistência de Theodora, Mary se viu caminhando para a casa dele cerca de uma semana depois. Após o sábado na praça, Theo havia passado alguns dias com o pai. Mary esperou que a filha não falasse muito sobre Snape quando estivesse com Elias, pois sabia que o vizinho misterioso jamais cairia nas graças do seu ex-marido; e se ele sequer pensasse, por um momento, que Theodora tivera contato com o homem duas vezes, ele faria um inferno com Mary. E aquela era uma briga que ela não estava disposta a comprar (pelo menos por enquanto), mesmo que defender Snape não soasse como uma má ideia em sua mente.
Theodora esticou seu bracinho para apertar a campainha e as duas esperaram. Um minuto se passou enquanto elas aguardaram pelo nada. Snape só surgiu após uns quinze segundos do segundo toque na campainha. Ele parecia impecável como sempre, embora seus cabelos estivessem arrepiados e presos no fim da nuca. Quando abriu a porta, um cheiro aconchegante de ervas alcançou o olfato de Mary e ela se perguntou se Snape praticava algum tipo de esoterismo.
— Perdoem-me a demora. Estava um pouco ocupado.
— Oh! Nós que pedimos desculpa por atrapalhar você. Podemos voltar uma outra hora.
— Não! — disse mais rápido do que Mary previra. — Está tudo bem. Algum problema?
Mary, então, desceu os olhos para a filha, encorajando-a a falar. De repente, perante a figura alta de Snape, a insistência que já durava dias pareceu fugir e ela curvou os ombrinhos, desencorajada.
— Vamos, Theo. Diga.
— Sr. Snape — falou após tomar fôlego —, eu queria agradecer a você por ter me ajudado naquele dia, na praça.
— Não há de quê, Srta. Carter. — Mary não pôde deixar de sorrir, abertamente, achando encantador a maneira como ele acabara de chamar uma criança de cinco anos de senhorita.
— Então… — disse com ênfase na última sílaba. — O senhor gostaria de ir à minha festa de aniversário? Vai ser no próximo sábado, às 16h.
Sorriu para ele, com seus dois dentinhos faltosos na frente. Snape arqueou ambas as sobrancelhas, totalmente pego de surpresa. Em uma atitude despreocupada, algo que jamais havia sido presenciado por Mary (e ela pensava que nem por qualquer outro morador da rua), ele encostou o ombro no batente da porta, a mão direita no bolso da calça, e um ar de sorriso brincalhão estremeceu o canto da sua boca enquanto ele fitava Theodora.
— Quantos anos você estará fazendo?
— Seis!
— Bem, ninguém faz seis anos duas vezes, não é? — Ele finalmente se rendeu à vontade de sorrir quando a menina balançou a cabeça para cima e para baixo, veementemente. Mary nunca esteve preparada para a maneira como a face rabugenta se iluminou. — Digamos que vou pensar no seu caso, Srta. Carter.
— Você jura juradinho?
Snape levantou uma única sobrancelha grossa, seu olhar vagou de Theodora para Mary, que deu de ombros, dizendo silenciosamente que não era uma escolha sábia brincar de promessas com a sua filha. Com os olhos nos dela — e ela se arrepiou —, ele pareceu considerar. Por um segundo de um silêncio tão aprazível quanto intimidante, Mary pensou que Snape havia esquecido da pergunta que perdurou; ele parecia focado demais no seu rosto.
— Juro. — Num instante, sua atenção estava de volta a Theodora. Ela semicerrou os olhos verdes, mas isso não o constrangeu. — Sou um homem de palavra, Srta. Carter.
— Agora precisamos ir-
— Você tem um cachorro! — gritou a menina quando flagrou o beagle farejar os sapatos desbotados do dono. Mary suspirou.
— Ah, essa é a Cherry.
Um discreto rubor pintou as maçãs do rosto dele. Snape se curvou para pegar a cadela nos braços e se aproximou de Theodora, ajoelhando-se à sua frente. Olhos brilhantes e respiração ofegante, a menina chegou mais perto para acariciar a cabeça amarronzada da cachorrinha.
— Mamãe! Olha que fofa!
— É o sonho da Theo ter um cachorro. — Mary contou. — Ando conversando com ela sobre as responsabilidades que isso exige.
— E sua mãe está certa — disse para a criança. — Cherry é uma criança, assim como você. Que tal um teste?
— Como assim? — sussurrou, interessada.
— Eu já iria levá-la para passear hoje. Quer ir conosco?
Theodora arregalou os olhos para o homem à sua frente, como se ele fosse algum tipo de anjo. Ela se virou para a mãe, trocando o peso de um pé para o outro, num pedido — uma súplica! — ansioso para que dissesse "sim". Mary hesitou com os olhos vagando entre a filha e a cachorra, que lambia os dedos do dono — evitou propositalmente olhar para Snape, pois sabia que aquelas íris infinitas estavam cravadas nela.
— Sua mãe pode ir também, é claro — sugeriu. Afinal, Mary não achava que ele tivesse o coração fora do lugar, mas ele ainda era um desconhecido, em certo grau.
Depois de pegar a coleira de Cherry e instruir Theodora, a menina passeava com a cachorrinha mais à frente, enquanto Snape e Mary a acompanhavam mais atrás. Alguns pedestres os fitaram com discrição, mas com faces assombradas. O Sr. Elton, do número 30, encarou-os abertamente, esquecendo até mesmo do regador em suas mãos, quase afogando suas margaridas. Eles deveriam parecer um trio e tanto, Mary pensou.
Ela gostou desse pensamento.
— Você disse naquele dia que era professor. — Iniciou uma conversa. — O que você lecionava?
— Química, num internato na Escócia. Lecionei por quase dezesseis anos.
— Uau! — Voltou os olhos para ele. — Me desculpa comentar, mas você não parece ter mais do que uns cinquenta anos.
— Tenho quarenta e dois.
— Começou bem novo, então.
— Comecei como estagiário, aos vinte e um. Fui contratado pouco tempo depois.
— E não dá mais aulas?
— Não. — Snape mantinha os olhos fixos na menina e na beagle. — Eu… Eu sofri um acidente alguns anos atrás. A experiência de quase morte me fez questionar algumas decisões — afastou a gola alta do suéter para mostrar uma cicatriz rosada no pescoço —, e eu percebi que não queria mais ser professor. Acho que todos saíram ganhando. Eu não fazia mais sucesso na escola do que faço aqui no bairro.
Mary lhe ofereceu um sorriso amarelo antes de dizer:
— E o que faz agora?
— Eu trabalho com pesquisas e ofereço assessoria a alguns bacharéis. É bem confortável, eu não preciso sair de casa nem aturar turmas e turmas de adolescentes.
— É, eles podem ser um grande pesadelo — riu, não tão ciente de que a atenção dele estava fixa em seu rosto de ébano. — Dei aulas para essa faixa etária por algum tempo. Eles podem ser tão arrogantes quanto o pequeno John, da Sra. Torres. Agora dou aulas para os pré-adolescentes do ensino secundário.
— Cherry! — Theodora exclamou.
Com chateação, ela assistia Cherry fazer suas necessidades no meio da calçada impecável. Mary riu perante o assombro da filha e viu, com gosto, Snape se aproximar da situação. Ele indicou para Theo o porta-saco acoplado à guia e com a mão sobre a dela, ajudou-a a limpar o cocô. O rosto de Theodora estava tão franzido com nojo que sua mãe, por um momento, pensou que ela ficaria daquele jeito para sempre.
— Talvez queira adiar a adoção de um cachorro em alguns anos, não é, querida?
…
Quando Elias chegou na festa de aniversário da filha, com seus pais, Mary gemeu e quase desejou que Snape não aparecesse. Não porque não o queria ali por causa de Elias, mas porque não poderia sustentar a ideia do ex-marido ser um babaca em pleno aniversário de Theodora. Mas Mary estava disposta a não se irritar naquele dia. Queria que tudo saísse o mais perfeito possível.
Deixou a filha conversando e matando as saudades do pai quando foi abrir a porta para o próximo convidado. Com uma singela sacola azul em sua mão grande, Severus Snape olhava para Mary, talvez tão surpreso quanto ela por ter ido.
— Oi — disse ele. O clima frio fez com que uma lufada esbranquiçada saísse por entre seus lábios.
— Olá. Entre, por favor.
Mary viu o exato momento em que as palavras de Elias se tornaram insignificantes para Theodora e a expressão dela se iluminou, antes de correr enquanto dizia: "Sr. Snape! Você veio!". Outros convidados, que moravam no bairro, ofereceram olhares estranhos para o convidado inesperado. O queixo de Elias caiu. Ele procurou, quase imediatamente, Mary com os olhos; num pedido discreto ela sentenciou que conversariam sobre aquilo depois.
— Espero que goste. — Snape estendeu o presente para a aniversariante, distraindo Mary da raiva do ex-marido.
De dentro da sacola, Theodora retirou um beagle de pelúcia. Rindo, ela agradeceu pelo presente e correu para guardá-lo junto aos outros, e depois procurou os amigos para brincar. Mary se aproximou dele.
— Obrigada por vir. Ela gosta de você.
— De verdade, não vejo razão nenhuma para isso. — Ele tentou fazer uma piada, mas o comentário autodepreciativo apenas gerou desconforto entre eles. Mary conseguia entender claramente os motivos para que Theo tivesse o homem em grande estima.
— Você nos conquistou de alguma forma. — Colocou-se na sentença antes que pudesse perceber. O escrutínio curioso dele a fez sentir suas bochechas esquentarem. Felizmente, sua pele negra não deixaria com que o rubor fosse visível, ou assim ela pensava. — Fique à vontade.
Nos quinze primeiros minutos após a chegada de Snape — os quais ele passou quieto num canto afastado, agarrado a uma taça de vinho —, o pai de Mary a encurralou na cozinha, interessado demais no homem acanhado e carrancudo que provocara um sorriso tão grande na sua neta.
— Ele é o Snape, pai. Aquele que o Elias nunca gostou muito.
— Em que momento ele deixou de ser "o estranho que mora ao lado" e se tornou… amigo da Theo?
— No Halloween — sorriu para o pai.
Contou a ele toda a história da ida em busca de doces na casa de Snape, a intercepção dele no embate na praça e o convite para a festa, seguido do passeio com Cherry. Samuel fitou a filha com interesse e assombro quando disse:
— Não soa nem um pouco com a imagem que eu tinha dele.
— Nem com a que eu tinha — confessou.
Assim, menos de cinco minutos depois que Samuel se retirou do cômodo e Mary voltou da cozinha, ela encontrou Snape aprisionado ao lado do seu pai, preso num assunto acadêmico. Pelo que pudera escutar, os dois papeavam sobre algo da área de bioquímica — o pai de Mary era chefe do Departamento de Ciências Clínicas da Universidade de Birmingham.
A festa correu sem maiores problemas, além de Elias querendo conversar antes de ir embora. "O que ele faz aqui? Por que Theodora falou com ele?" foram algumas de suas perguntas, repetitivas, contra Mary. Ela lhe deu respostas vagas, suficientes para deixá-lo satisfeito por ora, e garantiu que poderiam conversar melhor outro dia. A pressa da mãe de Elias em ir embora (pois seus tornozelos estavam começando a inchar) também contribuiu para que ele não questionasse mais.
Theodora já estava sonolenta no colo de Jason, irmão mais velho de Mary, e ele já se preparava para levá-la para o quarto. Seu pai comia mais um pedaço de bolo e suas primas limpavam algumas coisas; nenhuma delas deixou com que Mary ajudasse, alegando que ela já trabalhara demais pelo dia. A porta dos fundos entreaberta lhe chamou a atenção. Ofegou quando notou que não vira mais Snape depois que os convidados começaram a se dispersar. Encontrou-o, então, no seu quintal, com as costas apoiadas na parede da casa e um cigarro entre seus dedos.
— Se escondendo? — brincou ela.
— Tomei a liberdade de invadir seu jardim dos fundos. Espero que não se importe.
— Tudo bem. — Deu de ombros, juntando-se a ele no frio daquela noite de dezembro. — Meu pai alugou você, não é? Me desculpe por isso.
— Foi uma ótima conversa, na verdade. — Ele estava sendo sincero.
— Ele… — Mary fitou seus pés. — Ele anda meio carente — odiava aquela palavra, mas era a verdade — desde que minha mãe morreu, quatro anos atrás. Então quando ele vê uma oportunidade de conversar com alguém, ele se agarra a isso, e às vezes se torna um pouco incômodo.
— Sinto muito pela sua mãe, Mary. E não, seu pai não foi incômodo em momento algum.
Snape apagou a guimba na sola do coturno e soltou a fumaça para cima, longe de Mary. Pela falta de um recipiente para descartar o cigarro, permaneceu com ele entre os dedos. À luz fraca da arandela, com delicados resquícios de flocos de neve revoando pela cintilância amarelada da lâmpada, Severus realmente era bonito.
— Seu ex-marido, entretanto… — Havia um sorriso maroto nadando nos lábios dele. — Acho que se ele me encarasse mais um pouco, abriria um buraco na minha nuca.
— Elias é um idiota. Existem razões para ele ser meu ex-marido.
— Tenho certeza que sim. — Deitou os olhos sobre ela. — Eu sempre… — Alguns segundos de hesitação quase o pararam, mas prosseguiu: — Eu sempre achei que vocês faziam um casal diferente.
— Um casal estranho, pode dizer. Não tem problema. — Já havia entendido aonde ele queria chegar, e ela, de verdade, queria compartilhar aquela história com ele. — Nós nos conhecemos no ensino secundário, mas não éramos grandes amigos. Depois ele se mudou, foi fazer faculdade em outra cidade, mas a namorada dele morava em Nottingham, assim como eu. Eu fiz faculdade lá. Aí um dia ele foi visitá-la, de surpresa, e a flagrou transando com um cara.
— Traumatizante. — Foi tudo que pôde dizer.
— Com certeza. Eu era a única pessoa que ele conhecia que morava por perto. Ele conseguiu me ligar, eu ofereci um ombro amigo e nós nos aproximamos. Alguns anos depois nós começamos a namorar, mas… — Soltou o ar com força. — Mas nunca houve aquela fagulha, sabe? Embora ele realmente gostasse de mim, não duvido disso.
— E você? Por que aceitou?
— Porque é difícil para garotas como eu, sabe? — Mary esfregou o indicador e dedo do meio sobre seu antebraço, indicando a cor da sua pele. — Nós não somos, geralmente, a namorada dos sonhos que os rapazes apresentam aos pais. Eu estava acostumada a ser escondida, e o Elias foi o primeiro que não parecia ter vergonha de mim. Nossa, isso soa muito melancólico, não é?
— Soa real — rebateu, sem perder um segundo. — É a sua história, Mary, não tem que se sentir envergonhada por isso.
— Obrigada. — Snape, pelo visto, jamais cansaria de surpreendê-la. — E você? Tem uma namorada? Ex-esposa? Ou ex-esposo?
— Não — riu soltando o ar pelo nariz.
— Nenhuma?! — Ela se virou totalmente para encará-lo.
— Eu amei muito uma mulher — revelou —, mas ela não sentia o mesmo. Cada um seguiu o seu caminho. Ela, infelizmente, morreu muito jovem.
— Meu Deus! Eu sinto muitíssimo!
— Eu também sinto. A morte dela foi muito complicada para mim; inclusive, anos mais tarde eu dei aula para o filho dela. Minha vida foi uma grande confusão por muito tempo, Mary. Não me restou muito tempo para desenvolver algum relacionamento que fosse além de uma noite num motel.
— Mas agora você tem muito tempo disponível, não tem?
Ela quase não acreditou no seu próprio ímpeto de coragem. Perdeu o ritmo da sua respiração por alguns instantes e tentar recuperá-lo foi ainda mais difícil quando os olhos profundos dele caíram sobre ela. A face de Snape, a princípio, parecia desprovida de qualquer emoção, mas Mary descobriu que ele tendia a depositar seus sentimentos na intensidade do seu olhar; e o olhar de Severus Snape sobre ela era intenso e sedutor. Quando ele lhe respondeu, as íris nebulosas estavam presas entre os olhos e os lábios de Mary.
— Sim, eu tenho.
Ela pressionou os lábios um no outro e depois sorriu, tímida. Ele se aproximou, com certa resistência, procurando na expressão dela qualquer coisa que o fizesse se afastar. Snape, porém, apenas encontrou encorajamento, principalmente quando Mary mordiscou o lábio inferior.
A guimba de cigarro que ainda estava em sua posse caiu sobre o chão, esquecida, quando o braço dele a enlaçou pela cintura, trazendo-a para perto. O corpo dela se chocou contra o seu peito, quente e duro, e ela apenas resfolegou antes de ser beijada pelo vizinho-agora-não-tão-misterioso do número 22. Mary colocou-se na ponta dos pés, alcançando o pescoço para circundá-lo com seus braços, e ela quase gemeu quando Snape a puxou ainda mais, quase a erguendo do chão. Ele tinha gosto de vinho, nicotina e algo a mais que ela não soube identificar, então chamou de "sabor Snape". Era bom. Muito bom!
Ele se afastou lentamente, as pálpebras ainda cerradas, desfrutando do torpor do beijo arrebatador que lhe dera. Mary lambeu os lábios, desejando sentir mais daquilo, mas avaliou que, no momento, era mais sábio se afastar. Descruzou os braços que o cingiam pelo pescoço, abusando um pouco da situação ao deixar que as palmas das suas mãos percorressem o peitoral dele, e os braços dele abandonaram sua cintura, caindo ao lado do seu corpo.
— Você-
Disseram ao mesmo tempo. Mary gargalhou e ele ofereceu um curvar do canto da boca. Cavalheiro, ele indicou para que falasse primeiro.
— Você aceita mais uma taça de vinho?
— Aceito.
— E o que você ia dizer?
— Eu ia perguntar se gostaria de jantar comigo, na próxima quarta-feira.
— Quarta é um dia ruim. — Fez uma careta para ele.
— Dá aulas até tarde?
— Sim, aulas de reforço. Pode ser na quinta?
— Quinta é um dia ruim. — Snape devolveu, tentando com toda força do seu ser não se render ao sorriso que ela exibia. — Tenho uma reunião importante.
— Tudo bem, nós vamos chegar a um acordo.
— Você é quem manda.
Ela olhou para ele por mais um tempo, sagaz e provocativa, antes de lhe dar as costas para retornar para o calor da sua casa. Quando atravessou a porta — suas primas ainda andando para lá e para cá —, sentiu a mão quente de Severus se apoiar no seu quadril, caminhando logo atrás dela, em busca da taça de vinho que lhe fora prometida e do seu futuro jantar pendente. Mary o fitou por cima do ombro.
Ele a sorriu.
