Capítulo Dois – Roy Mustang

Roy terminou de fechar os últimos botões do sobretudo assim que colocou o primeiro pé fora do quartel general. E soltou um longo e animador suspiro, aspirando o ar lentamente, como se para apreciá-lo. Havia uma expressão satisfeita em suas faces, onde despontava um sorriso maroto.

Claro que, naquelas circunstâncias, estava bem óbvio que ele estaria sorrindo. Principalmente porque, durante o período da tarde, a tenente Hawkeye fora toda sua. Não que ela fosse de mais alguém – sinceramente, Roy não achava que fosse permitir que algum outro homem colocasse as mãos em cima dela. Riza era simplesmente boa demais para pertencer a qualquer um que não fosse ele.

Mas ambos haviam concordado em manter uma relação apenas carnal. Ela não exigia compromisso, eram apenas algumas horas de prazer. Bem, queria dizer que não precisava ser fiel.

Por mais fantástica que a tenente fosse na cama, fidelidade era uma palavra que não fazia parte do seu dicionário. Se não tivesse, pelo menos, um encontro com uma mulher diferente por semana, Roy não se sentia satisfeito. Isso porque ele se achava bom demais para ser de uma só e gostava de dar prazer a todas. Mas não pense você que ele fosse um galinha. Não, não! Na concepção dele próprio, era apenas um cara justo. Todas deveriam ter igual direito sobre ele e iguais chances de beijá-lo.

Até concordava que estivesse sendo um tanto egocêntrico demais, mas tinha direito. Afinal, Roy Mustang não era bom, era simplesmente o melhor.

Apertou os olhos ao olhar para os lados, como se quisesse se certificar de que não havia nenhum perigo a vista.

Tomou rumo para a floricultura da esquina, onde ficara de pegar Margareth após seu expediente. Roy lembrava-se perfeitamente da última florista dali com quem tinha saído. Absolutamente todas haviam caído no seu charme. Era questão de que uma saísse para que ele tivesse a oportunidade de abordar a seguinte e a seguinte, até que parecia ter virado karma. Nenhuma escapava a Roy Mustang.

Assim que chegou na floricultura, foi saudado por um sorriso suave e envergonhado da parte da atendente, Margareth, que era uma bela morena, com exóticos olhos verde-escuros.

"Olá, senhor." Murmurou ela, polidamente.

Trajava ainda o avental do lugar, com o nome estampado em um tom de vermelho.

"Esta noite, me chame apenas de Roy, Margô." Com uma súbita e indescritível intimidade, ele lançou-lhe um daqueles seus sorrisos arrasadores, que fizeram com que as bochechas dela atingissem um vermelho tão intenso que pareciam entrar na contagem regressiva para explodir.

Margareth, que depositava um vaso de flores sobre o balcão, teve sua mão acariciada gentilmente pela de Roy.

Ele pode sentir os dedos trêmulos abaixo dos seus. "Você está nervosa, Margô?"

"N-não, senhor."

"Roy."

Ela passou a língua pelos lábios, inquieta. "Desculpe. Roy."

"Isso mesmo."

O coronel deu um sorriso, gostando de ouvir seu nome pronunciado pela boca dela. Era uma entonação suave, tão gentil quanto a personalidade pacífica da moça.

Gostava das sensuais e seguras de si, daquelas que afirmavam sua presença, mas mulheres como Margareth, por exemplo, o faziam sentir-se quase normal. Sim. Não tinha dificuldade em imaginar-se casado com alguma delas, em uma casa tranqüila, onde tivesse sempre quem esperá-lo no final do expediente. Embora casamento fosse a última coisa que ele pretendia pensar, pelo menos por enquanto.

"Meu expediente está acabado." Disse Margô, gentilmente. Tirou sua mão debaixo da dele, escondendo-a por baixo do avental. "Vou lá dentro me trocar. Se o senhor puder me esperar um minuto..."

"Até uma hora inteira." Reiterou, sorrindo.

Ela entrou por uma porta lateral, sumindo da visão dele.

Roy enfiou as mãos enluvadas nos bolsos, assoviando enquanto observava as flores expostas dentro dos vasos, distraidamente.

Conforme pegou o ritmo da música, que seus lábios deixavam sair com certa animação, estalou os dedos seguidas vezes, fazendo com que pequenas chamas aparecessem sobre seu dedão, desvanecendo-se no ar. Ele achava divertido ver as chamas dançando entre seus dedos. Dava-lhe uma sensação de superioridade por poder controlá-las.

"Você por aqui, coronel?"

Roy foi pego tão de surpresa por aquela voz que seus dedos estalaram mais forte, criando uma labareda de fogo que chamuscou seu rosto.

Ele deu um pulo, virando-se na direção do som, batendo o cotovelo num dos vasos sobre o balcão.

"Tenente Hawkeye?" Arregalou os olhos, acuado.

Riza deu um pequeno sorriso, acariciando a cabeça de Black Hayatte, que arreganhou os dentes para Roy, começando a latir furiosamente. Foi preciso que ela o apertasse entre os braços para que o animal não saltasse direto no pescoço do coronel, que olhava para os lados, nervosamente.

Sua mente pensava rápido. Talvez a tenente sequer fizesse idéia do encontro dele com Margô. Isso. Ela podia apenas ter resolvido comprar algumas flores para enfeitar sua casa. Nada mais normal vindo de uma mulher.

O sorriso dela cresceu, chegando a ser tão maravilhosamente tranqüilo que Roy começou a ficar assustado.

"Está comprando flores...para mim, Roy?" indagou Riza, aproximando-se dele.

Black Hayatte estava tão raivoso que sua boca parecia duas vezes maior do que realmente era enquanto latia. Respingos de baba começaram a atingir o rosto de Roy, que tinha o queixo chamuscado pela chama que o atingira.

Ele deu uma risada sem graça, forçando-se a se mexer, e voltou-se para o balcão, fingindo estar escolhendo algo.

"Por que não?" Assentiu, rapidamente.

Riza começou a rir.

Aproximou-se tanto que seus lábios encostaram-se ao ouvido dele, de modo que pôde sentir sua respiração.

"Acontece, coronel" sussurrou ela, numa voz rouca. "que eu odeio flores!"

Roy percebeu a movimentação súbita e no instante seguinte um disparo foi ouvido.

Ele gritou.

Margareth veio correndo para fora, terminando de ajeitar os cabelos castanhos num coque, assustada.

"Passar bem, Roy Mustang."

Riza acenou com a cabeça, tornando a guardar a arma no coldre.

Ela deu as costas, afastando-se.

Apenas os latidos furiosos de Black Hayatte ainda eram ouvidos no silêncio da rua.

Roy gemeu. Havia acabado de levar um tiro no pé.


Na manhã seguinte, ele adentrou no quartel mancando, com a pior expressão do mundo e um curativo no queixo.

Seu pé doía horrores, mas isso não era nada perto da expressão tranqüila de Riza quando o olhava, como se estivesse realmente penalizada do estranho incidente que acontecera com ele ao tentar carregar sua arma. Antes mesmo que ele chegasse, ela já havia espalhado para todos da sua trágica história e a primeira coisa que Roy percebeu ao entrar, era que quase todos o olhavam com uma discreta expressão de riso.

Se havia coisa que o deixasse mais furioso do que ter um encontro frustrado, era ser alvo de piadas. Teve de se utilizar de muito auto-controle para que não saísse dando alguns disparos no crânio daqueles indigentes. Mas é claro que ele achava que já estava de muito bom tamanho o tiro que tomara no pé e pretendia deixar as coisas passarem, pelo menos era um risco a menos de atingir o outro pé. Não tinha qualquer intenção de revidar as gracinhas, já que nenhuma delas chegava a ele, praticamente. Mas ouvia muito bem o que diziam as suas costas.

Roy só foi tomar conhecimento da história dita por Riza quando Fuery passou por ele, lançando-lhe um sorriso piedoso.

"A tenente Hawkeye nos disse que o senhor se machucou, coronel." Falou, gentilmente. "Sei como é isso, de se machucar enquanto carrega a arma." Ele fez uma careta, massageando a própria mão. "Espero que o senhor melhore rápido."

E ele se foi.

Roy estava surpreso demais para falar qualquer coisa.

"Bom dia, senhor." Cumprimentou Havoc, malicioso. "Tudo bem com o pé?"

Sentindo suas faces corarem de raiva, ele se encaminhou até sua mesa – com passadas bem mais lerdas do que as normais. Seu andar devagar causou risinhos abafados dentro da sala, o que serviu apenas para deixá-la ainda mais mal-humorado.

Estalou os lábios, percebendo que Riza o olhava fixamente. "Como vai, senhor?"

Ela cumprimentou com um aceno de cabeça.

"Muito bem, tenente." Respondeu o alquimista, irônico. "Obrigado por me ajudar."

"Disponha." E Riza sorriu.


Roy sentou-se no banco da praça, cansado.

Havia tido um dia de cão. Tirando as imensas pilhas de papéis para assinar, onde ele era encarregado de todo aquele serviço burocrático irritante, fora alvo de piadas sem fim, todas devidamente camufladas através de insinuações que ele havia feito o favor de ignorar. O curativo ridículo no queixo não havia tido tanta repercussão como seu pé machucado. Ele achava que era porque a história do tiro era muito mais cômica de ser contada.

Ninguém perdia a chance de ridicularizá-lo. Tanto porque ele também nunca perdia quando tinha a oportunidade, mas também porque todos achavam que Roy Mustang se achava demais. Não chegava ser engraçado? Todos achavam que ele se achava. Ora essa, desde quando o alquimista do fogo não tinha direito de se sentir superior?

Passou a mão pelos cabeços, dando um sorriso maroto a uma mulher que passou. E para provar que ele não havia perdido o charme nem com aquele curativo no queixo, ela sorriu de volta e piscou.

Bem, pensou, ao menos isso.

Quando estava preparando-se para levantar e seguí-la, ouviu passos atrás dele. Roy gelou. As experiências anteriores lhe induziam a se assustar. Talvez fosse Riza que novamente aparecia para assombrá-lo. Mexeu os dedos do outro pé, aquele que havia se salvado da bala, e maneou a cabeça. Não. Era melhor deixar que a mulher fosse embora, era a coisa mais segura a se fazer.

"Ei, senhor." Havoc saiu por entre os arbustos, afastando alguns galhos.

"Ah, é você." Mustang sentiu um alívio encher-lhe o peito.

O segundo tenente arqueou as sobrancelhas, ao mesmo tempo em que tateava os bolsos, a procura de alguma coisa. Ele sentou-se no banco também, praticamente deitado de tão estirado que se encontrava. "Estava esperando alguém?"

Levantando os ombros, ele respirou fundo. "Na realidade, não. Que bom que é você."

Deu um tapinha amigável no ombro de Havoc, que deu um pequeno solavanco para frente. O militar o olhou, quase espantado pelo tratamento tão natural vindo do coronel.

"O senhor está bem?" Puxou a carteira de cigarros do bolso, colocando um na boca.

Roy demorou a responder.

Não tinha certeza se realmente estava bem. Estava confuso e dolorido. Seu pé doía, seu queixo doía, mas a dor que mais doía era a dor do ego, que estava em frangalhos.

Podia aturar qualquer tipo de sofrimento físico, porém, que não pedissem para ele aturar humilhações, antes era preferível a morte. Afinal, a dor física passa num piscar de olhos, com o tempo e os cuidados necessários, mas nada sanava o desgosto de uma ridicularizarão pública. E Riza fizera questão de se vingar dele da maneira que, sabia ela, era a mais insuportável de todas: o colocando numa situação degradante.

Jamais imaginara tal reação da parte dela. Na sua concepção, a tenente Hawkeye sempre fora a mais controlada das mulheres, comedida tanto em sentimentos como no trabalho. Nunca dera a entender que podia ser plenamente vingativa se a circunstância pedisse. E ele preferia ter sido avisado da sua natureza vingativa mais cedo. Teria lhe poupado um ferimento.

Que diabos ela esperava do relacionamento deles, afinal?

Riza nunca falara sobre um envolvimento mais profundo e a única vez que haviam se arriscado a isso, foi quando ela disse que Roy Mustang, para ela, era apenas trabalho e algumas noites de prazer. Tal coisa não queria dizer que ela não desejava compromisso? No dia, aquela constatação, de que era livre e ainda dispunha de uma mulher fantástica como Riza, o deixara mais que satisfeito, o deixara exultante. Mas deveria ter suposto que ela não fazia o típico papel de quem dividia um homem.

Até então, as coisas se encaminhavam bem. Roy confiava na sua primeira tenente cegamente, tanto porque dividia os segredos, como também sua cama com ela. E agora tudo continuaria como sempre?

Suspirou. "Não tenho certeza..."

Havoc havia observado o silêncio e as expressões dele com sua típica faceta sonolenta. Deu um trago no cigarro, soltando a fumaça pelo nariz, passando-o para o outro lado da boca. "Nota-se." Lançou-lhe um sorriso de escarninho. "É por causa da tenente Hawkeye, senhor?"

Voltando-se subitamente na direção do seu subordinado, Mustang ergueu as sobrancelhas. "Por que pergunta isso?"

"Você ficou olhando para ela o dia todo." E ele levantou os ombros, mostrando descaso. "Foi impossível deixar de perceber."

Será então que todos lá haviam notado a sua confusão, seu receio e a sua indignação?

Mas se tiverem notado, pensou, não havia o que pudessem decifrar. Jamais poderiam imaginar que a tenente me daria um tiro no pé. Não Hawkeye. Ela era correta demais na sua profissão para que pudesse atentar contra a vida do seu superior.

Então, o que deviam estar pensando dele?

"Todo mundo já sabe que você gosta da tenente, coronel." Declarou Havoc, exteriorizando seus pensamentos.

Sua pergunta mental não poderia ter sido respondida de maneira mais direta.

Roy se viu pego de surpresa pelas palavras dele. Transar e gostar eram coisas bem diferentes, pelo menos no seu conceito. Ele gostava sim de Riza, mas não do jeito que supostamente andavam pensando por aí. Viu-se mais apressado do que gostaria para negar aquela afirmativa. "Eu-eu não gosto dela!"

Havoc soltou a fumaça por entre os lábios mais uma vez e apenas o barulho dele a expelindo era ouvido.

"Tem certeza, coronel?" Perguntou, desconfiado.

Ele teve vontade de gritar "sim" com força, mas algo o fez se calar. Isso era porque não tinha certeza das suas palavras. Quando pôde perceber, já se contradizia, num tom frustrado. "Não."

"O senhor não tem. Todo mundo tem." Havoc jogou a bituca do cigarro longe, espreguiçando-se antes de se levantar do banco, devagar. Ele colocou as mãos nas costas para alongar a coluna, fez alguns exercícios e então ficou reto, soprando o cabelo que caía nos olhos para cima. "Bem, preciso ir, senhor."

Erguendo a mão numa despedida, o segundo tenente deu as costas, afastando-se.

Roy o observou partir em silêncio.

Quem sabe ele realmente gostasse daquela mulher.