Na sua estante - parte 2
O som de uma porta batendo fez com que ele acordasse, pulando na cama. Remus piscou os olhos, confuso por alguns instantes, antes de tomar consciência de onde estava. Olhou para o relógio no pulso. Passava das sete e a chuva continuava a bater em sua janela.
Ele rapidamente se levantou, descendo as escadarias a tempo de ver uma Tonks totalmente encharcada, parada junto ao vestíbulo, tirando o cachecol e a capa azul que estava usando.
Ela voltou-se para ele ao ouvir seus passos, passando a mão pelo suéter molhado, fazendo com que a poça de água que surgira aos seus pés aumentasse ainda mais.
- Hum... Boa noite, Remus. Mau tempo, não?
- Você estava na casa da Andie? – ele perguntou, tirando a varinha do bolso, apontando para ela – Secare.
- Estava. E quando eu saí de lá, não havia nem uma nuvem no céu. De onde veio todo esse aguaceiro? – ela perguntou, tirando também o suéter, ficando apenas com a camisa de manga longa que usava sobre toda aquela roupa – Obrigada.
- Começou a chover mais cedo. – ele respondeu, acercando-se dela – Você não deveria ter levado chuva. Ainda está fraca pra isso.
Ela abriu um meio sorriso, arqueando a sobrancelha na direção dele.
- Não estou não. Tem alguma coisa para comer aí?
- Acho que Mundungus deixou uns pacotes de carne mais cedo... Eu posso ver se... Vá vestir alguma coisa mais quente, Nymphadora.
- Você nunca vai entender que eu detesto meu nome, não é? – ela perguntou, já se dirigindo para as escadas – Você e minha mãe são as únicas pessoas que insistem em me chamar de Nymphadora.
Remus ficou em silêncio, lembrando-se por algum motivo, de James e Lily e da ruiva gritando para o rapaz "É Evans para você!". Tonks observou-o por cima dos ombros enquanto começava a subir os degraus. O homem tinha um sorriso meio nostálgico nos lábios e meneava a cabeça para si mesmo.
Fechou-se no quarto, tirando o resto da roupa ainda meio úmida. O feitiço de secar era tão eficiente quanto uma máquina secadora de roupas. Podia até tirar a maior parte da água, mas não era a mesma coisa que estar realmente seca. Guardasse uma roupa logo depois de passar pela tal máquina e acabaria com o guarda-roupa cheio de mofo.
Isso já acontecera pelo menos duas vezes com o pai...
Sorriu, trocando-se, ao mesmo tempo em que se lembrava das "dicas" da mãe. Quem precisava de livros de auto-ajuda se tinha Andrômeda Black como mãe?
- Muito bem... Roupas ligeiramente decotadas... Justas... Maquiagem leve, perfume... A música eu providencio lá embaixo. Velas... – ela olhou para os candelabros e para a lareira que assegurava a luz de todos os aposentos do número 12 do Largo Grimmauld – Bem, estamos numa autêntica mansão bruxa. Não há eletricidade, nós estamos sempre à luz de velas... Quem foi que disse que luzes de velas são românticas? Por que não funcionou até hoje?
Meneou a cabeça, terminando de se arrumar e lançando um feitiço de glamour em si mesma. Se não conseguisse deixar Remus de joelhos aquela noite, não haveria mais para onde correr.
Olhou-se no espelho improvisado junto à cômoda. Uma calça ligeiramente mais justa, uma blusa com decote quadrado revelando o colo branco... Nada que o fizesse perceber diretamente suas intenções, mas o suficiente para deixá-lo de queixo caído.
Ao deixar o quarto, percebeu luzes no quarto de Remus, ao final do corredor. Aparentemente, ele deixara a lareira acesa. Tudo bem que tinham feitiços anti-incêndio e tudo o mais, mas aquela não era exatamente uma boa idéia...
Ela seguiu até os aposentos dele, aproximando-se da lareira, parando a meio caminho ao perceber a velha estante que ela considerava o altar dele. E surpreendeu-se ao perceber que havia uma foto dela ali. Ou melhor, duas. Em uma ela estava, sorridente, entre Moody e Shacklebolt. E na outra...
Era a mesma foto. Só que ele dera um jeito de recortá-la e deixá-la sozinha em sua moldura. A fotografia estava mais afastada das outras e não havia nela a mesma fina película de pó das outras. O que significa que ela era relativamente recente.
Um sorriso bobo brincou em seus lábios. Silenciosamente, ela desceu as escadas, parando junto à porta da cozinha. Remus observava o forno, agachado no chão, enquanto o cheiro delicioso da carne se espalhava pela casa, por alguns instantes sobrepondo-se ao ar antigo e viciado que vicejava sempre.
- Então... Já está pronto? Eu estou morrendo de fome.
Ele levantou os olhos, preparando-se para responder, mas parou com a boca aberta, olhando para ela, ligeiramente confuso.
Tonks sentiu vontade de fazer uma dancinha da vitória naquele exato instante. Santa Andrômeda Black!
- Hum... Você... Você pode ir se sentando, fica pronto em um instante.
Ela sorriu, sentando-se à mesa do refeitório. Alguns minutos depois, Remus abriu a porta do forno, tirando com cuidado uma travessa de filé. Colocando-a sobre a mesa, ele ofereceu a faca à moça, que começou a cortar a carne enquanto ele buscava pratos limpos para os dois.
- Tem um pouco de molho na despensa. Você quer que eu traga? – ele perguntou, sem olhar para ela, enquanto colocava dois pratos sobre a mesa.
Tonks estava perdida entre o cheiro do prato e o jogo de luz e sombra em que a cozinha estava mergulhada. Nunca tinha prestado atenção na ligeira penumbra em que a casa vivia mergulhada.
- Pode ser. – ela respondeu, tirando um pequeno pedaço da carne e levando-a aos lábios.
Se algum dia se casasse com Remus, eles certamente passariam muito tempo na cozinha. Aquele arranjo deles ficarem em Grimmauld Place era temporário, por conta da necessidade de sempre ser necessário membros da Ordem na sede para qualquer eventualidade; a turma estava se revezando mensalmente ali e, dentro de duas semanas, seria a vez dos Weasley passarem uma temporada na mansão Black.
Em todo caso, nem em casa comera tão bem quanto comia na companhia de Remus. Andrômeda cozinhava bem, era verdade, mas não era a mesma coisa de Remus. Ele tinha um certo dom para os temperos...
Pensamentos ligeiramente pervertidos dançaram em sua mente e ela meneou a cabeça, embora mantivesse um sorriso malicioso nos lábios rosados. Pouco depois, Remus voltou à cozinha com o molho e um pacote de biscoitos da sorte.
- Mundungus também trouxe isso com os últimos mantimentos... Parece que ele anda freqüentando o bairro chinês da cidade.
- Estamos dando uma festa? – ela perguntou, sorridente – Acho que está faltando a música, não?
Ele estreitou os olhos enquanto ela tirava a varinha do bolso, girando-a entre os dedos enquanto murmurava algo quase inaudível. Um suave "thump" fê-lo perceber que ela isolara acusticamente a cozinha para impedir o quadro da mãe de Sirius de acordar. Pouco depois, uma melodia suave preencheu o aposento, enquanto ela se sentava, começando a se servir.
Remus apenas suspirou, sentando-se também. O jantar transcorreu em estranho silêncio. Ele quase se sentia incomodado. Era difícil ver Nymphadora quieta por tanto tempo. Teria acontecido alguma coisa de errado?
- Nymphadora... – ele se ouviu dizer, sem raciocinar muito bem no que estava fazendo.
Ela fez uma careta em resposta.
- Você é um chato.
Ele não deu atenção à provocação.
- Aconteceu alguma coisa? Andie e Ted estão bem?
Tonks assentiu, ainda fazendo bico.
- Sim, eles estão bem e não, não aconteceu nada.
- Você está muito quieta. – ele observou, antes que conseguisse se refrear.
- E você, muito falante. – ela respondeu, sorrindo – Parece que houve uma troca de identidades aqui hoje, não? Talvez fosse uma boa idéia...
Remus sentiu uma sirene tocando em sua cabeça. Não era uma boa idéia saber o que seria uma boa idéia para a moça à sua frente.
- Acho que vou lavar os pratos. – ele se levantou, voltando-se para a pia – Já terminou o seu jantar? É bom voltar para a cama e cobrir-se bem, não faz muito tempo que você esteve no hospital e...
Tonks mordeu os lábios, levantando-se e tirando a varinha do bolso novamente.
- Você vai continuar mesmo fugindo de mim, não é?
Ele estreitou os olhos.
- Nymphadora, você...
Ela apontou a varinha para ele, o rosto rubro. Remus deu um passo para trás, ligeiramente surpreso até perceber que seu suéter e suas calças tinham se transformado em um... vestido de festa?
Passou as mãos pelo veludo do vestido vinho, justo até a cintura antes de se abrir numa saia rodada.
- O que você pensa que está fazendo? – ele perguntou, voltando-se novamente para ela.
Apontando a varinha para si mesma, ela fez suas roupas transformarem-se em um elegante smoking preto.
- Bem, já que sempre sou eu que tenho que tomar as atitudes, parece-me que deveria ser eu a usar calças por aqui. – ela sorriu – E não me olhe com essa cara! Estou apenas seguindo todas as velhas piadas chauvinistas que contam por aí.
Remus cruzou os braços, arqueando uma sobrancelha.
- É impressão minha ou você está tentando dizer que eu não sou homem?
- Não, estou tentando dizer que você é uma lesma. Agora, aceita dançar, gentil senhorita?
Remus observou ela estender a mão em sua direção. Aquilo era simplesmente... Inacreditável! O que aquela maluca pensava que estava fazendo?
- Você não vai dançar comigo?
- Não acho que seja uma boa idéia. – ele respondeu, voltando-se novamente para a pia.
Tonks sentiu o sorriso morrer em seu rosto. Estreitando os olhos, ela colocou a mão sobre o ombro dele.
- Fugindo da raia, querido?
Havia um ligeiro tom de ironia nas palavras dela, mas os olhos cinzentos traíam a mágoa que ele acabara de causar. Remus respirou fundo, lembrando-se dos pensamentos que tivera mais cedo naquele dia. Não podia se deixar levar pelo lobo. Não podia.
- Apenas deixando para outra oportunidade.
Ela deu um passo para trás, fechando os pulsos com força.
- Ótimo. – ela resmungou, dando as costas e ele - Ótimo! Vá ficar com suas fotos ou o que diabos quiser!
Com uma tranqüilidade que ele estava longe de sentir naquele momento, Remus voltou a se aproximar dela, segurando-a de leve pelo ombro.
- Você está com raiva de mim agora? – ele perguntou em um sussurro.
Ela virou-se para ele, extremamente vermelha, os cabelos, que usara negros naquela noite, caídos sobre o rosto de porcelana.
- Não, não estou com raiva. Eu estou completamente frustrada, incrivelmente perdida e quase que perdendo o controle sobre minha sanidade!
- Tonks... – ele soltou o ombro dela, abaixando a cabeça. - Eu deveria ter previsto isso...
- Por Merlin e Agrippa, Remus! Você não deveria ter previsto nada! Eu que fui idiota o suficiente para me apaixonar por você! Eu devo ter pirado no hipogrifo doido...
Ela voltou a dar as costas a ele, caminhando nervosamente pela cozinha.
- Nym...
Voltando-se para ele com o dedo em riste, ela rilhou os dentes.
- Agora você vai me ouvir! Eu não fiz nada nos últimos tempos, nada, NADA além de pensar em você, em me perguntar o que fazer para você me notar, em me perder em sonhos e conjecturas... Em acreditar que eu realmente poderia ser feliz ao seu lado... Mas você... Você parece se sentir feliz em se fazer de vítima, você só está realmente satisfeito quando mergulha na fossa, quando, quando... Argh! Por que eu ainda perco tempo com você?
Ela se virou para sair, mas nesse instante ele a segurou pelo braço.
- Tonks, por favor... – ele pediu timidamente – Eu não queria... Eu sinto muito...
- Você sente muito? – ela rugiu – VOCÊ SENTE MUITO?
- EU GOSTO DE VOCÊ! SATISFEITA?
- E EU GOSTO DAS MINHAS PANTUFAS DE ZEBRINHA! GOSTAR, Remus Lupin? Gostar, eu gosto dos fios de barbante amarrados na minha cama. Gostar? Entenda de uma vez por todas: EU AMO VOCÊ. Mas por que eu perco o meu tempo, não é mesmo? Adeus, Lupin!
E, furiosa, ela sumiu rapidamente pela porta da cozinha. Remus sentiu o corpo todo reagir dolorosamente quando a porta da frente bateu, ao mesmo tempo em que os gritos da Senhora Black começavam a ecoar pela casa.
- BASTARDOS IMUNDOS! COSPURCANDO MINHA CASA! MALDITOS, MALDITOS SEJAM TODOS VOCÊS!
Sentindo o coração falhar duas batidas, ele se sentou junto à mesa, observando os biscoitos da sorte que trouxera para depois do jantar. Uma melodia triste ainda ecoava, fazendo contraponto aos gritos ensandecidos da mãe de Sirius.
Com os dedos trêmulos, ele abriu a embalagem do biscoito, sentindo a textura doce e delicada do doce em seus lábios. O pequeno bilhete da sorte enrolado rolou entre seus dedos e, quase inconscientemente, ele abriu o papel.
Não deixe sua sorte escapar entre os dedos, seu imbecil! Vá atrás dela!
Arregalou os olhos, olhando o papel mais intensamente. Mas que raios...
O que você está esperando? Quer que eu vá aí lhe dar uns bons chutes para ver se você acorda? Vá atrás da minha prima!
- Sirius? – ele perguntou para si mesmo – Acho que estou tendo alucinações...
Agora!
Incapaz de desobedecer a ordem do biscoito da sorte, ele levantou da cadeira e, ainda com seu longo e recém-adquirido vestido de veludo, saiu tropeçando pela porta, ainda sem notar os gritos de Walburga Black. Tinha assuntos mais importantes a tratar...
