Capítulo 2:

Um Domingo de espera – A primeira marca

- Como eu "sou" idiota! Fiquei escondida naquele jardim, como uma idiota, imaginando que Eriol estava com Tomoyo à festa inteira! Pobrezinho, vai ver ficou o tempo todo me procurando... Até me encontrar no jardim, bêbada, como uma idiota! - disse Sakura bem alto, não acreditando o quanto fora burra.

- Idiota... – xingou o inimigo rachado. Sakura despertou e o fitou calmamente. – E se ele ficou mesmo com Tomoyo a festa inteira? – ele perguntou irônico.

- Cale-se! E por que ele foi me procurar no jardim, então! Por que me beijou! Ah, eu posso morrer agora, mas aquele beijo ninguém vai me tirar! – ela quase gritou para que o inimigo pudesse assimilar todas as suas palavras.

Aquele beijo... Sakura ainda sentia os lábios queimando e as narinas embriagadas com aquele doce cheio de sonho. Sua tia tinha se incumbido de levá-la para casa e Sakura acordara, naquele domingo, com enjôo de ressaca e um gosto de maravilhoso de Eriol na sua boca. A manhã começou mal, naturalmente, com a mãe piorando da enxaqueca e lamentando-se pelo que diriam os vizinhos ao ver sua filha, uma fedelha de 14 anos, chegar bêbada em casa como uma porca.

- Ah, se seu pai fosse vivo, você ia ver só o que ia lhe acontecer! – esbravejou sua mãe.

- Mas o papai está vivo! – retrucou Sakura.

- Não! Pra mim ele está morto! Com aquela sujeitinha ele está morto! – ela disse bem alto, sentindo os olhos arderem e as lágrimas querendo cair.

- Mortos não mandam cheques, mamãe.

Tudo, afinal, tinha passado, menos a lembrança daquele beijo. Menos a lembrança de Eriol. Pensou em telefonar para ele, mas o que diria? Na certa ficaria nervosa e estragaria tudo com suas piadas e gozações. Mas... Tudo não. Não havia nada que pudesse estragar o que começara com aquele ardente beijo. Aquilo fora um compromisso. Não por ter sido um beijo, mas por ter sido um beijo como aquele. Sakura tinha pressa, é claro. Só podia ter. Era preciso reencontrar Eriol para não largá-lo mais.

Mas era domingo, "dia-de-sair-com-o-papai". Essa era outra razão para esperar mais um dia para ver sua grande paixão e começar uma nova vida, uma vida ao lado de Eriol. Pensou em escrever, talvez uma carta. Ou mais do que isso. Talvez um texto, onde poria tudo, desde versos nascidos da paixão até pequenas confissões, como se quisesse pôr-se a limpo, exibir sua alma nua, preencher um passaporte para que Eriol a levasse embora e nunca mais a deixasse voltar.

Escrever ela sabia. No colégio, ninguém podia disputar com ela na hora de falar e de escrever. Ah se pudesse ela usaria aquela domingo apenas para pensar, repassar cada momento daquele encontro estonteante, daquela felicidade imensa. Os domingos, porém, não eram para Sakura, nem para escrever nem pensar. Os domingos eram de papai. Quando a buzina soou, Sakura deu uma última olhada para o inimigo, mostrou-lhe a língua e foi ao encontro do "pai-de-todos-os-domingos".

- Papai, você me acha linda? – Sakura perguntou num sobressalto à seu pai. O restaurante estava lotado. Há quantos domingos, em quantos restaurantes Sakura já almoçara com o pai, desde que a "sujeitinha" o havia arrancado de casa? Talvez esse número não tivesse tanta importância se a menina não viesse percebendo que, a cada domingo, caía a qualidade do restaurante. Mas ainda era em dinheiro que o pai lhe falava todos os domingos, e era em dinheiro que ele estava falando quando foi pego de surpreso pela pergunta da filha.

- Hein? Ah, é claro que eu acho! Você é a princesa do papai! A garotinha mais linda do mundo! – ele disse sorrindo de uma forma abobada.

- Ah, não! Como garotinha não, papai! Quero saber se você me acha uma mulher linda! – Sakura sorriu, estava feliz como nunca naquele domingo. Queria fazer algo bom, algo grande para dividir sua felicidade com alguém. Suspirou antes de fazer uma nova pergunta. – Papai, eu quero conhecer a Eri. – ela disse em tom baixo. Eri, a sujeitinha. Imagem de bruxa e megera imaculada em sua mente pelos lamentos da mãe, que era abandonada à sua enxaqueca e à pensão mensal que garantia à menina as refeições de todos os dias, mas que já estava comprometendo a qualidade do almoço de domingo.

- A Eri? Mas você sempre se recusou a...

- Isso foi antes, papai. – ela o interrompeu. – O antes acaba passando. Hoje eu me sinto diferente. Acho que quero fazer todas as pazes que puder. Vamos começar pela Eri? – ela disse enquanto fitava seu pai, que passou o guardanapo pelos lábios e pareceu subitamente interessado em examinar o paliteiro.

- Sabe, Sakura... Eu estava esperando o momento certo para te contar... É que... Eu não estou mais com a Eri... – sua voz saiu baixa, como um sussurro.

"Não está mais com a sujeitinha?", pensou Sakura meio que surpresa. "Quer dizer que o serviço de informações da mamãe perdeu essa fofoca?"

- Talvez sua mãe tivesse razão... A Eri era... Bem... Mas eu encontrei alguém realmente fora de série. O nome dela é Ayumi. Você vai gostar dela. Hoje não é possível, porque ela foi visitar os pais já que eu ia sair com você. Mas no próximo domingo, eu vou... – Sakura interrompeu o pai tocando- lhe delicadamente os lábios com as pontas dos dedos e sorriu.

- É melhor não fazer planos, papai. No domingo que vem, talvez não seja mais Ayumi. Pode ser Keiko, ou Kagome, ou...

- Sakura! Você não devia ficar falando essas coisas!

"Como será que papai conheceu essa Ayumi? E a Eri? E a mamãe? Será que ele encontrou alguma delas bêbada, caída num jardim? Será que tudo começou com um beijo? Um beijo como o de Eriol?" À noite, abraçada ao travesseiro, um só nome ocupava todo o ser de Sakura. – Eriol... – não conseguiu lembrar-se do primo em meio às pálidas recordações dos garotos da sua infância. Teria sido aquele que se divertia batendo nos menores? Ou seria aquele que teimava em tentar tirar sua calcinha? – Quer tirar minha calcinha agora, Eriol? – Sakura sussurrou maliciosamente.

Sakura sentou-se em sua nova carteira e olhou ao seu redor, nova sala, novos e velhos "colegas". Mas Tomoyo não estava lá. Suspirou, era de se esperar que ela não chegasse cedo. Pegou um livro qualquer seu e começou a ler. Depois de alguns minutos, Tomoyo entrou na sala super apressada, no mesmo instante em que o sinal soou. Ela correu até Sakura.

- Oi, Sakura! Nem telefonei pra você ontem! Desculpe! – ela disse meio sem jeito e sorrindo. Nesse instante, a professora entrou na sala, e Sakura só pôde dizer uma frase.

- Eu tenho uma coisa maravilhosa pra te contar, Tomoyo! – ela sorriu como nunca.

- Eu também, Sakura! Tenho uma novidade que vai te fazer cair dura! – ela também sorriu e correu até sua carteira. Sakura se virou e sussurrou para a amiga.

- Depois a gente se fala. – Sakura virou-se novamente. Física! Uma matéria nova, como deveria ser tudo naquele início de colegial. Tinha um certo jeito de Matemática. Naquele momento, porém, o que Sakura precisava era de uma boa aula de literatura, com poemas de Fernando Pessoa, Vinícius, João Cabral... Eriol, naquele momento, também estaria assistindo à sua primeira aula no segundo ano, e Sakura pensou em fingir não entender a tal Física só para ter aulas particulares com ele.

Sempre o primeiro da classe, não foi isso que disseram? Mas não era sobre Física que ela iria falar com ele. Ah, não era não! A professora procurava conquistar a classe, mostrando-se simpática e engraçada. Simpática ela era, mas definitivamente não era engraçada. Distraída, Sakura deixava a caneta deslizar pelo caderno. Devia tomar notas, mas as palavras que entravam pelos ouvidos chegavam totalmente transformadas às pontas dos dedos. A professora explicava um pouco sobre a matéria e o que ela trabalhava.

- ...a física estuda a relação que existe...

Neste físico de um deus grego,

numa intensa relação

eu, pálida e bêbada, tremo

e me afogo e me sufoco

entre loucura e paixão...

- ...entre a matéria e a energia...

Quero fundir meu corpo

no teu corpo junto ao meu.

Nos teus braços serei cega

pra que sejas o meu guia. Nós seremos a matéria,

nosso amor será a energia...


- ...a energia afeta a matéria...

Se esse amor me modifica,

me transforma, me edifica

se ele afeta tanto a mim,

também te transformará.

A energia desse amor

afetou-nos para sempre,

e a matéria que hoje somos

outra matéria será...

- ...e a matéria afeta a energia...

Seremos dois novos amantes

pelo amor energizados,

transformados,

mas em quê?

Quem eras antes de mim?

Quem sou depois de você?

- ...esse processo de transformação é o objetivo...

No meu seio serás meu

para o uso que eu quiser.

Nos teus braços me abandono,

ao teu lado sou mulher...

O sinal veio interromper a aula e o poema. A aula seguinte seria Inglês, e a classe se dividiria, misturando-se a grupos de outras séries, de acordo com o nível de conhecimento de cada aluno. Sakura estudava Inglês há tempos e, por isso, fora selecionada para a turma mais adiantada. Pensou em entregar o poema para Eriol. Destacou a folha do caderno e guardou-a cuidadosamente dentro fichário. Nem assinou, não era preciso. Não havia duas pessoas no mundo que pudessem dizer o que estava escrito naquele papel. Acenou para Tomoyo, que no Inglês ficara numa turma mais fraca, e correu para a sala, pretendendo conseguir um lugar bem no fundo, onde pudesse recolher-se à sua idéia fixa.

A idéia maravilhosa de Eriol. Eriol! Foi a primeira imagem, em carne e fascinação, que surgiu diante dos olhos de Sakura. Eriol sorriu, lindo como sempre, e a menina vacilou por um momento. Pronto! Estava sentada na primeira carteira, longe de Eriol e ao alcance da respiração do professor de Inglês. Tonta! Agora nem podia olhara para Eriol sem chamar a atenção. Mas ela tinha certeza de que ele estaria olhando para ela, o tempo todo. Cerrou os olhos e recebeu a atenção de Eriol como se fosse um beijo. Um beijo suave, longo e quente. Um beijo como só ele sabia dar.

- I think we could begin by reviewing the detective verbs. Of course, during the holidays you forgot most of your English, didn't you?

À frente de Sakura, o professor iniciou a aula, falando com aquele mesmo tom amistoso de todo início de ano letivo. Em poucos dias, ele, na certa, estaria aos gritos, pedindo silêncio em português. Por cima do ombro de Sakura, a mão de um colega passou-lhe furtivamente um papelzinho dobrado. Com todo cuidado, para que o professor não notasse, a menina desdobrou o papel no colo, por debaixo da carteira. Foi como se um anjo tivesse surgido de camisola azul e trombeta de outro para anunciar-lhe o paraíso.

Priminha querida, preciso muito falar com você. Onde podemos nos encontrar sossegados? Te adoro!
Eriol



- It? Easy, isn't But you mustn't forget that there's no rule to help you use those verbs...

"Ele quer falar comigo... Comigo!", pensou a menina, sentindo-se quase febril. Rabiscou rapidamente quatro palavras – "Me encontre no laboratório" – em uma folha de caderno, dobrou-a e passou para o colega de trás.

- You must practice, in order to know which tense has to be he employed without the need of...

A torrente de palavras estrangeiras perdeu todo o sentido para Sakura, enquanto as palavras de Eriol penetravam-lhe como se fossem vírus caindo em suas veias, misturando-se ao seu sangue e indo infectar-lhe o coração.

"Neste momento, ele dever estar igualzinho a mim, pensando em mim... Vamos pensar juntos, um no outro, Eriol. Será como se estivéssemos de mãos dadas..." Num repente, Sakura baixou a cabeça e beijou o bilhete. Ao olhar novamente para aquela letra apressada, notou que uma marca redondinha havia borrado a palavra "adoro". Era a marca de uma lágrima. De felicidade... – Eu também te adoro, meu amor... – balbuciou ela, apertando o bilhete contra o peito.

O sinal para o recreio tinha acabado de soar, e Sakura correra em direção ao laboratório. Mal podia esperar para ver Eriol. Mas, no meio do corredor, a figura de um rapaz a deteve, sorrindo e olhando-a bem de frente, bem nos olhos.

- Senhorita Ilusão! Que ótimo reencontra você! – ele sorriu mais ainda.

- Hein? – Sakura ficou confusa.

- Não se lembra de mim, senhorita Ilusão? A festa de sábado, o aniversário de Eriol... Sou o Syaoran, lembra?

- Ah, oi, Syaoran. Desculpe, mas... – ela tentou arranjar uma desculpa, mas foi interrompida.

- Quer dizer que você estuda aqui? – ele perguntou não conseguindo conter sua alegria. – Que sorte a minha! Acabo de me transferir para o terceiro ano e talvez...

- Desculpe, Syaoran. Estou com um uma pressa danada. Depois a gente conversa, tá? – ela o empurra gentilmente e volta a correr pelo corredor.

- É... Dizem que a ilusão é como uma ave que vem e vai. Só que eu não gostaria de perder essa ilusão, entende? – ele pergunta alto, a fim de que ela escutasse.

- Tchau, Syaoran! – Sakura se vira e acena.

Sakura certificou-se de que não havia ninguém olhando e entrou silenciosamente no laboratório. Fechou a porta sem nenhum ruído e esperou que a visão se acostumasse ao escuro. As janelas eram cobertas com cortinas pesadas para proteger da luz os produtos químicos. O lugar ideal para um encontro de namorados. Aos poucos, com a fraca luz que se filtrava através das cortinas, Sakura pôde perceber as estantes envidraçadas, cheias de frascos contendo formas assustadoras conservadas em formol.

Uma enorme cascavel, com seus guizos, estava mergulhada num líquido avermelhado por seu próprio sangue. Ao lado, uma caranguejeira peluda movia-se lentamente numa gaiola de vidro. A cobra, a aranha, o sangue... Um calafrio percorreu a espinha de Sakura e ela tremeu, pensando que aquele talvez não fosse o lugar mais adequado para o início do seu namoro. Por um momento, teve medo do encontro com Eriol. Mas seu medo transformou-se em ansiedade ao ouvir o ruído suave da porta que se abria.

- Priminha! Oi, priminha! Você está aí? – ele perguntou fechando a porta. Acobertada pela penumbra, Sakura sorriu e deixou passar um tempo de suspense, antes de responder com a voz mais suave que conseguiu fazer.

- Estou aqui, meu querido... – Eriol guiou-se pela voz e veio abraçar Sakura apertado, como da primeira vez. E beijou-lhe o rosto com um estalo.

- Há quanto tempo que não nos víamos, priminha... Desde crianças. Mudamos muito, não é verdade? – ele disse docemente, sorrindo logo em seguida. – Como foi bom reencontrar você, priminha... Isso mudou minha vida...

"A minha também, meu amor...", pensou Sakura ardente de paixão.

- Era isso que eu queria falar com você, Sakura... Nem sei como começar...

"Me abrace, meu querido. Me abrace que eu espero a vida inteira..."

- Sakura, estou apaixonado... – ele ruborizou um pouco. – Já houve outras garotas, mas, agora...

"Agora sou eu, Eriol. Meu Eriol!"

- Agora é diferente. Eu sei que é amor... – ele fez uma pequena pausa. Era um pouco embaraçoso falar disso assim, para ela. – Estou apaixonado...

"Por mim, Eriol!" Sakura aproximou mais seu rosto, desesperada para ouvir seu nome entre aquelas palavras que formavam uma improvisada declaração de amor. "Por mim!"

- Por Tomoyo, Sakura!