Capítulo 8:
Eu nunca te amei...
Sakura estava no banheiro, de frente para o inimigo. Estava transtornada, como se tivesse discutido por horas com a mais teimosa das criaturas.
- Você... Será minha testemunha. – ela disse fracamente.
- Eu sempre sou sua testemunha. – respondeu com a voz fria.
- Primeiro tenho de testemunhar outra morte. A primeira morte real que chegou perto de mim. O assassinato covarde de uma mulher que sabia rir. Acho que devo isso à ela. Alguém a empurrou para a morte. Ela não escolheu. – ela quase sussurrou, sentindo um imenso remorso dentro de si. Um remorso que ela não conseguia entender.
- E você?
- Ninguém escolhe por mim.
- Touya pode escolher... – o inimigo pareceu inconfortável ao dizer isso, fazendo Sakura, subitamente, olhá-lo. Touya... Sakura imaginou aquelas enormes mãos agarrando, apertando, estraçalhando. Que método usaria Touya para matar? Linamarina? Um fino pó branco em um envelope plástico? Não. Sem sangue, sem carnes dilaceradas, nem ossos esmigalhados não seria uma ação de Touya.
- Ninguém escolhe meu caminho. Ninguém escolhe a minha hora. Aqui está a minha escolha! – esbravejou decidida, e ao mesmo tempo aflita. Na palma da mão esquerda, o pequeno frasco de comprimidos.
- Sakura...!
- Chega de você! Adeus! – quase gritou. Em sua mão direita, a escova de cabelo começou a trabalhar, a demolir. Sakura golpeou o inimigo, uma, duas, dez vezes. – Adeus! Vamos embora juntos! – dizendo isso, Sakura engoliu alguns comprimidos.
- Sakura, abra! – a campainha tocou com insistência. Depois, batidas frenéticas à porta da frente despertaram parte da consciência de Sakura.
- Já vou, Touya. Já estou indo! – sussurrou, meio confusa. Espalhadas pela pia e pelo chão de ladrilhos, milhões de imagens de Sakura.
Foi uma Sakura diferente à atender a porta. Uma mulher. Por fora, calma, adulta, controlada. Ao ver quem estava na porta, Sakura hesitou. Não esperava aquela professora. O que viera ela fazer ali? E quem estava com ela? O mesmo investigador que cuidara do interrogatório no colégio? Como era mesmo o nome dele? A professora avançou para Sakura e abraçou a menino com o carinho de uma irmã mais velha.
- Trouxe a polícia comigo, Sakura. Podemos entrar? – ela sorriu. Sakura apontou o sofá da sala para os dois, como uma perfeita dona de casa que estivesse recebendo convidados para o chá. O investigador começou, direto, sem perder tempo.
- Algumas perguntas eu deixei de fazer daquela vez, na diretoria, Sakura. E eu sei que também houve muitas respostas que você deixou de dar. Você é menor de idade, e eu não posso chamá-la oficialmente para depor, se você não quiser. Mas, agora, que tal colocarmos essas perguntas e essas respostas em dia? – uma pequena elevação nos lábios do investigador, parecia uma espécie de sorriso.
Sakura hesitou novamente. Mas, depois do ataque de Touya, ela estava convencida de que precisava falar tudo o que sabia. O medo do que Touya pudesse fazer não contava. Apesar do que já tinha decidido fazer consigo mesma, ela devia isso à memória alegre da diretora. Ela devia falar. E ninguém melhor para ouvir do que a polícia. A professora tirou um pacote de bombons da bolsa.
- Alguém quer bombom? – ela perguntou, parecendo animada.
- Obrigado. – o investigador pegou um.
- Não, obrigada. – Sakura sentou-se depois de recusar.
- Eu é que estou nervosa por você, Sakura. Estou deixando de fumar e como bombons para distrair a vontade. Assim, eu me livro do câncer nos pulmões e estouro de engordar! – ela disser, rindo. Ninguém achou graça. Ela deixou o saco de bombons na mesinha, em frente ao sofá, e ficou mordiscando um deles. Conscientemente, claramente, Sakura começou a falar. Deixou de lado o triste diálogo com Eriol, mas descreveu a visita ao laboratório, no primeiro dia de aula. Contou da penumbra, da falta de óculos, do vulto de avental, do frasco de linamarina, até das lágrimas. – Você estava chorando? Por quê?
- Nada, é que... Eu tinha tirado zero em redação...
- Você! – a professora se surpreendeu. – Você tirou um zero em redação? – sem dar atenção à pergunta, Sakura continuou a contar. Falou da conversa com Syaoran na pracinha, e da suspeita de que Touya os estivesse ouvindo às escondidas. Depois contou do ataque na rua. Da ameaça de morte de Touya.
- Então tudo se ajusta. – disse a professora, lambendo a pontinha do dedo suja de chocolate. – Touya é o culpado. Foi ele quem você viu no laboratório.
- Não. – Sakura sacudiu firmemente a cabeça. – Não podia ser ele. Mesmo sem óculos, eu reconheceria facilmente aquela figura enorme. Era alguém muito menor.
- Você fez muito mal em não me contar tudo o que sabia na primeira vez, Sakura. – censurou o investigador.
- O senhor acha que eu poderia falar tudo ali, na frente de Touya?
- Está bem. Talvez você tenha feito bem em não contar na frente de Touya. Mas você poderia ter me procurado depois. Às vezes, um pequeno detalhe é a última peça que falta para completar o quebra-cabeça.
- Estou falando agora. Disse tudo o que tinha a dizer.
- De qualquer modo, a ameaça de Touya contra você é suficiente para envolvê-lo no caso até o pescoço. – o investigador perguntou o verdadeiro nome de Touya à professora, pegou o telefone e ligou para a delegacia. Do outro lado da linha, alguém recebeu a ordem para que se iniciasse a caçada a Touya. – Suspeita de homicídio... Um elemento potencialmente violento... – desligou o telefone e virou-se para Sakura. – O vulto que você viu estava de avental branco, não estava?
- Estava.
- Isso aponta para algum professor. – raciocinou o investigador. – Você poderia me ajudar mais, Sakura. Vamos tentar um jogo. Pense em todos os professores da escola. Um por um...
- Um por um?
- Sei que estava nervosa naquela manhã. Sei que viu pouco por causa da escuridão, das lágrimas e por estar sem óculos, Mas o pouco que viu pode se encaixar ou não no porte físico de algum dos professores que você conhece bem. Se você se concentrar, poderá eliminar muitos, como fez com dona Kaho e Touya, por serem, ambos, grandes demais. Assim, eu poderia ter uma lista menor de suspeitos a investigar. – Sakura não respondeu. Já tinha dito tudo. Da morte da diretora já tinha cuidado, o resto era com a polícia.
- Ah, não! – a professora levantou-se bruscamente. – Chega de atormentar a pobrezinha. Ela já passou por muitos hoje. Agora precisa descansar. É hora de irmos embora. Deixemos as tais comparações e eliminações para amanhã. Trate de dormir, minha querida. Amanhã, tudo parecerá mais cor-de-rosa. – o investigador concordou.
- Está bem. Descanse sossegada, Sakura. Vou deixar um policial aqui na frente, na rua, a noite toda. Você estará perfeitamente segura. – Sakura fechou a porta atrás dos dois.
Agora, estava sozinha, com seu último dever cumprido. Colocou um disco na vitrola e estendeu-se no sofá, embalada por uma canção suave, que falava em desalento, em solidão, em amores perdidos. Sobre a mesinha, o pacote havia sido esquecido, com um último e solitário bombom dentro dele. Sakura ainda não tinha jantado. Aliás, nem tinha almoçado naquele dia. Pegou o bombom.
O telefone precisou tocar três vezes para arrancar Sakura do agradável torpor que aos poucos tomava conta do seu corpo. Lentamente, tirou o fone e atendeu.
- Alô...
- Sakura?
- Eriol... É você...
- Eu preciso de você, prima.
- Eu também preciso muito de você, Eriol... – sussurrou.
- Primeiro, ouça: Tomoyo deixou uma carta aqui em casa que... Sei lá! Nem sei como explicar. Quando eu me encontrar com ela amanhã, nem sei o que falar...
- Você não gostou do poema?
- Não é isso. É que... Ei, como você sabe que é um poema?
- É fácil adivinhar, Eriol. Tomoyo sempre manda poemas para você, não é?
- Só que desta vez... é um poema estranho...
- Estranho...
- Eu queria que você me explicasse o que Tomoyo quis dizer com isso. Eu não estou entendendo nada!
- Ah, Eriol...
- Eu vou ler pra você, prima. Quem sabe, até amanhã, você me prepara uma resposta?
- Até amanhã...
- Ouça, Sakura. – Eriol começou a ler o poema, pausadamente, com a voz insegura. Do outro lado, estendida no sofá, Sakura acompanhava cada sílaba, cada verso, de olhos fechados, sem um som, mas pronunciando tudo para dentro de si mesma. – ...a cabeça o possui, manipula, e faz dele o que quer!
- Bonito, Eriol...
- ...haja o que houver, do meu amor esse garoto foi o rei... O que ela quis dizer com "foi o rei"?
- Continue, continue...
- ...a marca desta lágrima testemunha que eu o amei perdidamente,
- Perdidamente... – sussurrou.
- ...assinei com minhas lágrimas...
- ...com minhas lágrimas...
- ...mas a cabeça apaixonada delirou... – embalada pela voz do amado, Sakura tomou seus próprios versos e declamou, esquecendo-se dos segredos e das promessas.
- ...foi farsante, vigarista, mascarada, foi amante, entregando-lhe outra amada, foi covarde que amando nunca amou! – durante um segundo de surpresa, Eriol emudeceu do outro lado. E foi quase com um grito que a compreensão de todos aqueles enganos veio à tona.
- Como? Como você conhece esse poema? Acabei de encontrar debaixo da porta! – apesar da tontura, Sakura percebeu o que fizera. Desorientada, tentou consertar o erro.
- Eu... eu não conheço...
- Você sabe de cor o poema! Você...
- Não, não é isso, Eriol... Tomoyo me mostrou. Ela...
- Você sabe!
- Não, Eriol, eu não sei de nada...
- Esta voz... Aquela tarde, ao telefone... Sakura! Era você!
- Não, Eriol... Não era eu...
- As cartas, os poemas, o tempo todo! Era você, Sakura!
- Não, não...
- Como eu fui ingênuo! Pedi a você que respondesse a suas próprias cartas! Todo aquele amor, toda aquela paixão, era você!
- Não, não era eu... Era Tomoyo...
- O tempo todo era você! O tempo todo eu amei você através das cartas, pensando que eram de Tomoyo! O tempo todo você amou! O tempo todo!
- Não, não...
- Você me amou, Sakura! – por um instante, Eriol sentiu-se completamente chocado.
- Não, meu grande amor, eu nunca te amei!
- Sakura, minha querida! Eu sempre te amei pelas tuas cartas, pelos teus poemas. Era você, Sakura! É você o meu amor! – as palavras de Eriol ressoavam longínquas dentro da cabeça de Sakura, que mergulhava cada vez mais num torpor de ausência, mas agora leve, gostoso, cheio de todas as palavras que ela tanto ansiava ouvir.
- Eriol...
- Sakura! – chamou Eriol, sentindo um pressentimento ruim.
- Tarde demais... Tudo tão lindo... mas tarde demais...
- Sakura! Eu não consigo ouvi-la direito!
- Estou tão tonta, Eriol... Sono... Amor... Tão tonta... Tão linda... Tão tarde... Eu...
- Sakura! Sakura! Fale comigo! Sakura! Responda! – do outro lado da linha, só o silêncio. – Sakura! Não me deixe, Sakura! Vou correndo pra aí! Me espere, meu amor! Espere por mim! – Eriol desligou o telefone violentamente e correu apressadamente para fora de casa.
