Libertação
Os olhos ressecavam expostos ao vento frio e cortante, a boca pálida rachava e o corpo todo estremecia. E não podia ser diferente, independente de sua vontade. E então, mais uma vez derrotada pelo frio, voltou para dentro do palácio, vestiu um pesado casaco de peles e retornou à sacada. Ainda que munida de cobertura não se privaria de algo mais. Gostava da vista dali e iria apreciá-la.
Com o queixo apoiado pelas mãos geladas olhava com pesar a cidade lá embaixo. O povo pacato levando sua vida simples. Seguros pela força dos Guerreiros Deuses. Pela fé de Hilda de Polaris. Ignoravam os sacrifícios da sacerdotisa. As horas a fio que passava sob o vento cortante, as exaustivas orações para pedir segurança àquele povo ignorante e sem fé. E orações para agradecer...
Agradecer? Sim... Agradecer por nunca vislumbrarem o calor nem a luz do sol. Por serem castigados por intermináveis tempestades de gelo. Por suas paupérrimas plantações sucumbirem ao impiedoso frio... Por ter abandonado sua vida, sua família e seu amor para se tornar uma das mais poderosas e solitárias mulheres de Asgard: A sacerdotisa de Odin. Aquela que deve orar pelo povo. Que deve provar a fé que eles não têm. Sacrificar o que eles não sacrificam... E sofrer o que eles não sofrem...
Mas estão todos bem. Protegidos. Confortáveis com a ignorância... Tamanha ignorância! Desrespeito. Não lembram de sua sacerdotisa. Não a conhecem, nem a reconhecem pelos sacrifícios. Na há glória em ser sacerdotisa. A conversa não passava de hipocrisia. Artimanhas para iludir uma jovem que sonhava em se casar... Para persuadi-la a largar tudo e servir com lealdade à Odin. E orar por um povo que esqueceu de seu deus. E de sua sacerdotisa.
Não foi sempre assim. Ah não... Quando precisaram dela os clérigos ajoelharam-se. Falavam em profecia. Ela era a escolhida. Não poderia ser ninguém senão ela. E sua família, seu amado, os seus sonhos? Ora, nada disso era mais importante que o povo... Sim, o povo... Grande coisa! Abandonou tudo pelo povo! E o que recebeu?
Solidão...
Tinha uma modesta morada. Agora tem um enorme palácio... A família era grande, a casa era quente. Agora vaga à esmo pelos infindáveis corredores. Tudo tão vazio. Frio. Deserto. Muitas vezes teve vontade de gritar. E ao explodir todo o ar de seus pulmões tudo que ouviu em resposta foi o eco de sua própria voz.
Pelo povo... Por uma população de ignorantes. Que desconhecem os sacrifícios que é feito por eles. Que não a reconhecem na rua. Que não a glorificam, que não respeitam. E ainda se tratam como animais. Roubam, matam... Será que é difícil dar um pouco de valor pelo que lhes é feito?
Ela lhes dera a vida... O mínimo que poderia querer é que vivessem em paz. Mas sequer isso conseguem. Ingratos! É o que são!
O que vale dar à vida por anônimos? Por quem a desconhece?
Valeria a pena...?
Sempre achou que valeu... Mas agora...
Talvez não agüente viver sem o que lhe foi tirado.
Ia casar-se. Gostava do homem que lhe fora prometido. Estava pronta para se entregar a ele. Estava pronta para se tornar mulher, mas... Até isso lhe foi negado. Como se não bastasse a privação da luz e do calor. Não poderia encontrar-se com o homem que amava. Deveria manter-se pura. Não poderia ter filhos, formar família. E até o fim de seus dias suas companhias seriam as frias paredes... O mármore, seu eterno companheiro, não escuta. Não fala. Não toca.
Vale a pena...?
É justo...?
Suspirou longamente. Mergulhou o rosto de olhos lacrimejantes nas mãos trêmulas. Soluçou baixo, escondendo sua fragilidade de ninguém.
O que estava acontecendo com ela? Para onde foi o amor por sua terra?
O povo era mais importante que sua individualidade. E não só Asgard, o mundo todo dependia de seu sacrifício. O que era abrir mão de certos caprichos terrenos quando se estava em jogo toda a vida na Terra? Abrir mão de seus amores, de sua família, de seus afetos, aceitar uma vida resignada, enclausurada em frias paredes mármores, sem o reconhecimento e glória devidos... Tudo isso é válido. Um sacrifício por uma causa maior.
Agora afasta estes pensamentos revoltos de tua mente!
Está na hora de voltar às orações. Incansáveis, maçantes e nauseantes orações... Orações e sacrifícios irreais, ignorados, desvalorizados.
E ao ver o povo lá em baixo, em sua vida selvagem e rude, sentiu uma súbita náusea. Repugnância, asco. E revolta.
Sua mão fina e pálida apertou com toda a força a balaustrada da sacada. Suas unhas negras forçaram a rocha fria, desejando que fosse a carne de um daqueles ignorantes. Os músculos contraíram-se e tremiam, mergulhando todo seu corpo em um furor incontrolável e violento. Retorceu-se enquanto sentia um turbilhão de emoções e sensações inéditas invadir-lhe o peito e se espalhar pelo corpo todo junto com um calor excitante até à última ponta de seu corpo, fazendo-a lançar seu casaco e estender os braços para o alto buscando no ar frio refresco para seu corpo em chamas.
Então veio a calmaria com um gemido abafado entremeado por um suspiro...
O riso. Sádico, nervoso, excitado e violentamente obscuro. Ecoou pelo vale e pelas frias paredes de mármore, sendo ouvido por ninguém.
O suor escorreu-lhe da testa e umedeceu os olhos fixos. Possuíam agora um brilho diferente. Decidido. Livre de medos, hesitações. Olhar convicto. E os lábios corados subiam vertiginosamente, delineando um sorriso enigmático e desafiador. Intimidador.
E não sentiu mais medo de seus pensamentos. Nem receio da revolta com a ignorância do povo. Agora a sede de liberdade invadia-lhe o coração.
Está farta do frio. Da alma vazia, sendo corroída por dentro. Farta de sua própria submissão e subserviência. Farta da ignorância. Do descaso e desrespeito. Farta destes que não reconhecem os sacrifícios. Que não os valorizam nem mesmo em suas ações mais simplórias. Farta de se matarem, manchar a terra com o sangue de seus semelhantes enquanto ela dá sua vida por eles...
Farta disso tudo!
Que tudo se desfaça como o gelo exposto a sol! Que tudo seja engolido pelas águas revoltas. E que todos pereçam e provem do gelo que tomou por anos seu coração...
E agora que seu clérigo mais devotado vem a ela, tomado de preocupações, indagar sobre as orações diárias eis o que ela responde:
- Não haverão orações hoje, Siegfried...
E antes que ele pudesse questionar, completou:
- As coisas vão mudar por aqui... Confie em mim...
E ficou sozinha, atirada sobre seu trono.
A escassa luz através dos vitrais fazia tremeluzir em seu rosto o brilho dourado do anel que admirava...
Palavras do Autor
"Pessoal, esta é a fic para o comcurso Saint Seiya 20 Anos do Pandora´s Box, Fase Asgard. Espero que tenham gostado da fic. Minha intenção foi mostrar a libertação de Hilda, soltando-se das amarras que a prendiam ao serviço clérigo, logicamente influenciada por Poseidon. Foi para que vejam que os vilões também se justificam...uehuheue! Abraços!" Pinguim.Aquariano
