Disclaimer: I do not own Rurouni Kenshin. These charaters belong to Nobuhiro Watsuki.

Sumário: A redoma de cristal que protegia o delicado mundo de Soujiro estilhaça-se em mil pedaços, e aquele que fora outrora o assassino perfeito, Tenken no Soujiro, volta a descobrir a alegria e a dor que são fundamentais à existência humana, depois de tantos anos de vida desapaixonada ao serviço de Shishio Makoto.

Alma Recuperada

Capítulo II

"É hora de ires para casa, Harumi-chan. Os teus pais...estou certo que começam a ficar preocupados." disse Soujiro. As outras crianças haviam partido alguns minutos antes, deixando apenas Soujiro e a menina do laço cor-de-rosa junto à estrada.

O Sol punha-se por detrás das montanhas que se erguiam até aos céus, imponentes e imemoriais, mas desnudadas e tristes. À bela luz do poente, aparecia no horizonte o casario e o fumo cinzento que subia das chaminés em suaves rolos apontavam a existência de uma pequena vila. A pequena menina que Sou-Chan transportava aos ombros falava alegremente sobre a sua vida entre os camponeses, que todos os dias cuidavam dos campos de trigo doirados, entre os artesões cujas mãos criavam tudo a partir do nada. Falava de uma existência pacífica que Soujiro nunca havia conhecido na sua infância, nem no vazio que preenchera a sua alma naquela noite fatídica.

"Será que tal existência seria possível se Shishio tivesse levado os seus planos avante? Teriam estes camponeses pacíficos, ou esta menina que carrego aos ombros, sobrevivido ao caos que em que Shishio desejara mergulhar este país?" Soujiro olhou o céu vermelho que se estendia até para lá das montanhas "Os fortes vivem, os fracos morrem. Foi esta a mais importante das lições que ele me ensinou. No entanto, à medida que percorro os meus caminhos, vejo pessoas que não se poderiam defender duma espada..."

Soujiro interrompeu a sua marcha por alguns momentos, fitando o céu, como se fosse um tapete azul coberto de sangue ainda quente, "será que essas pessoas...será que merecem morrer, apenas porque não são...fortes?"

--

"Percebo." disse Shishio, deixando o seu corpo envolto em ligaduras descansar sobre os fardos de arroz que Soujiro havia carregado diligentemente apenas algumas horas antes.

"Se te espancam tão violenta e constantemente, porque continuas a sorrir?". Soujiro ergueu a cabeça, que descansava sobre os seus braços doridos e sorriu.

"Eh? C-certo...é...é estranho. Mas não foi sempre assim. Quando aqui cheguei, zangava-me e chorava quando me batiam..." baixou o seu tom de voz, enquanto as memórias invadiam a sua consciência, "mas...sempre que ficava zangado, ou sempre que chorava, chamavam-me egoísta, e ainda me espancavam mais. Se aguentar calado e sorrir, eles cansam-se e param de me espancar..." afundou de novo a face entre os seus braços, e a mágoa tomou conta da sua voz, "mesmo que me doa...e sinta o medo tomar conta de mim...Se continuar a sorrir..."

Houve um momento de silêncio entre os dois. Shishio observava curiosamente o jovem rapaz, e lembrava-se da noite em que o conhecera. Face à morte, Soujiro sorria, apenas, como se feliz pela sua chegada através da lâmina fina e reluzente ao luar.

"Mas não há nada que eu possa fazer." disse, reerguendo o seu rosto para enfrentar o olhar de Shishio, "mesmo sendo um dos irmãos, não sou membro desta família, por isso..."

"Errado." disse por fim Shishio, "não tem nada a ver com o berço onde nasceste. Tudo isto acontece porque és fraco."

As palavras de Shishio penetravam a pele do jovem como se fossem finas agulhas. "No fim, apenas os fortes sobrevivem. Se fores forte, vives, se fores fraco, morres. É esta a verdade do mundo."

"Se fores forte...vives...se fores fraco...morres..." as palavras ecoavam através da mente confusa de Soujiro. Subitamente, Shishio apresentou-lhe uma wakizashi (trad: pequena espada), "Ofereço-te isto." disse, estendendo-lhe a espada. "É o pagamento pela minha estadia."

--

As palavras daquele que fora o seu mestre apresentavam-se ainda frescas no seu pensamento. Fora aquele o adágio pelo qual havia guiado a sua vida durante tantos anos. Mas olhando pelos seus próprios olhos, parecia-lhe agora uma visão distorcida da realidade.

Harumi-chan havia já mergulhado num sono sereno, embalada pelos passos e pela brisa que soprava na sua face e fazia os seus cabelos negros dançar livremente. Quando Soujiro emergiu das suas memórias, já se encontravam às portas da pequena vila, que permanecia num calmo silêncio.

Pousou a menina suavemente sobre o tapete de folhas e abanou-a com doçura. Despertada do seu sono, olhou Soujiro curiosamente. Este sorriu e sussurrou-lhe: "Chegámos". Levantando-se subitamente, correu para uma das pequenas casas que se encontravam iluminadas por uma luz amarela e suave, abrindo bruscamente a porta. Podia-se ouvir as queixas da mãe sobre o facto da menina ter chegado tão tarde, e as suas preocupações sobre os bandidos que pululavam pelos caminhos, sobretudo à noite. A menina contou que fora trazida a casa pelo seu novo amigo, e Soujiro achou que este seria o melhor momento para continuar o seu caminho, evitando incorrer nos olhares suspeitos dos pais extremosos.

"Sou-Chan! Anda!"

Soujiro olhou para trás supreendido. Contra a luz suave que vinha de dentro da casa, encontrava-se Harumi-chan, acenando alegremente na sua direcção. Pensou em desaparecer na crescente escuridão. Tinha medo de ser mal-entendido ou de ser reconhecido por alguém que conhecesse o seu passado sangrento.

Contra todas as expectativas de Soujiro, os pais estavam bastante agradecidos. Pediram-lhe que ficasse para jantar, e ao saber que este era um viajante, estenderam-lhe um convite para passar a noite fria debaixo do seu tecto. "Uma cama quente e uma boa almofada fazem melhor ao corpo e à alma que o chão duro e frio lá fora" disse alegremente o pai de Harumi.

"Então, quais são os motivos que te levam a vaguear, sem destino?" perguntou o pai de Harumi, levando de seguida o ochoko aos seus lábios. A refeição havia sido deliciosa, a melhor que Soujiro provara em semanas de estrada. O dinheiro que havia trazido consigo começava a escassear, e o jovem começava a ver o cerco apertar-se à sua volta. Durante os anos em que permaneceu ao serviço de Shishio, este era abundante como a àgua numa fonte.

Soujiro explicou o motivo das suas viagens através de uma desculpa que não era de todo falsa. "Um diferendo que surgiu entre mim e a filosofia do meu mestre de kenjutsu, que me levou a abandonar o dojo...". Os pais de Harumi compreenderam, e observando o desconforto que o assunto causava ao jovem, não o questionaram mais.

Apesar de trabalhar de sol a sol nos campos, a cuidar das colheitas de trigo que garantem o sustento da vila, os olhos de pai de Harumi transpareciam o cuidado e o carinho. Os olhar da mãe era doce, e os seus olhos côr-de-amendoa mostravam o amor maternal que ele nunca havia experimentado.

A mãe de Harumi despejou cuidadosamente um pouco de chá na chávena de Soujiro. O aroma era delicioso, e revelava o cuidado e a mestria com que a bebida havia sido preparada. Levou a pequena chávena aos lábios: o sabor ligeiramente mais amargo do Bancha de Outono era evidente, fazendo jus ao aroma que pairava no ar.

Soujiro bebeu o seu chá, enquanto a mãe de Harumi lhe preparou os seus aposentos. Quando fez deslizar a fusuma, cuja decoração apresentava um pequeno ribeiro de águas azuis, as suas margens pedregosas e as montanhas, meio ocultas pelo nevoeiro, encontrou um quarto limpo e deliciosamente aprazível. O shikibuton e o kakebuton encontravam-se cuidadosamente enrolados, juntamente com a makura. Tocou-lhes, sentindo a suave textura da seda a partir da qual haviam sido criados, e preparou o seu futon.

Hano-san abriu docemente a fusuma, avisando que a água do seu banho já estava pronta. Soujiro olhou-a incrédulo, não esperando tamanha hospitalidade por parte da sua anfitriã. "Depois de um duro dia de caminho, sei qual é a benesse que um banho quente pode ter no corpo e na alma do viajante cansado" disse-lhe, sorrindo e indicando-lhe o caminho até ao pequeno quarto de banho.

Dentro do quarto de banho, esperavam-no um novo kimono, limpo e dobrado, e a água quente, onde se podia sentir o aroma único de diversos sais de banho. Hano-san recolheu o kimono azul, e fechou a fusama atrás de si.

Imerso na água tépida, Soujiro deixou a sua mente vaguear pelos corredores da sua memória. Pensou se poderia merecer tantos cuidados, mesmo tendo as suas mãos tão tingidas de sangue. Certamente que Hano-san, Jimon-san e Harumi-chan não se poderiam defender do caos que Shishio desejava para o Japão. Também eles caíriam, como alimento para os mais fortes e capazes.

A simples visão dos corpos ensanguentados e vazios de vida de Hano-san, Jimon-san e Harumi-chan causou-lhe intensa repulsa. Quando imaginou que ele, ou melhor, que Tenken no Soujiro poderia ser o seu carrasco, as lágrimas afluiram livremente aos seus olhos, abrindo caminho pela sua face e percipitando-se sobre a água.

"Nunca mais..." sussurrou, "nunca mais levantarei a minha espada para roubar a vida de alguém...nunca!"

Compreendia agora, claramente, as razões que levaram Kenshin a pôr de lado a sua espada e adoptar uma Sakabatou. Compreendia também as razões que o levavam a proteger os fracos e os incapazes de se defender, erguendo a sua espada contra as intenções sanguinárias de Shishio Makoto.

--

"Soujiro..." disse Kenshin, enquanto esperava que Soujiro remendasse a sua waraji "é certamente alguém que não teve uma vida fácil, disso estou certo."

"Os fracos morrem...e apenas os fortes sobrevivem. Foi isso que Soujiro disse." Kenshin manteve os seus olhos azuis sobre o jovem guerreiro "Até hoje, ninguém chorou lágrimas de afecto por ele...se ele tivesse conhecido alguém como ele naquela altura...estou certo que a sua vida teria tomado um rumo radicalmente diferente"

--

Soujiro suspirou. Nunca ninguém havia chorado lágrimas de afecto por ele, e nunca ninguém o viu doutra forma sem ser como uma ferramenta útil para atingir outros fins. Mas agora...Soujiro estava a conhecer um mundo diferente, um mundo que podia ver através dos seus próprios olhos. A água não poderia lavar os seus inúmeros pecados: eram tantos e tão horríveis que não existia redenção possível. Mas no mínimo...poderia erguer a sua espada em defesa daqueles que não se poderiam insurgir contra os mais fortes.

Saiu do conforto que a água morna lhe providenciava e vestiu o Kimono que Hano-san lhe havia preparado tão carinhosamente. Dirigiu-se silenciosamente aos seus aposentos e aninhou-se no seu futon, deixando-se imediatamente cair num sono profundo.

Fim do Capítulo 2

Agradecimentos: Misau, por fazer o beta-reading deste capítulo e pelas ideias que me deu relativamente aos próximos desenvolvimentos.