Disclaimer: I do not own Rurouni Kenshin. These charaters belong to Nobuhiro Watsuki.

Sumário: A redoma de cristal que protegia o delicado mundo de Soujiro estilhaça-se em mil pedaços, e aquele que fora outrora o assassino perfeito, Tenken no Soujiro, volta a descobrir a alegria e a dor que são fundamentais à existência humana, depois de tantos anos de vida desapaixonada ao serviço de Shishio Makoto.

Alma Recuperada
Capítulo IV

O sol nascia, timido entre as nuvens matinais, recortadas sobre o azul pálido da manhã. O orvalho pendia sobre as pétalas das flores, e a brisa fresca entoava a sua canção entre os ramos nus das árvores.

Hano-san segurava nas suas mãos experientes a corda que sustentava o pequeno balde na sua viagem ás profundezas do poço da vila . A roldana chiava, como se se queixasse dos incontáveis anos durante os quais esteve ao serviço dos aldeões, incansavelmente.

Soujiro enrolou cuidadosamente o shikibuton e o kakebuton, colocando-os juntamente com a makura ao lado do futon. Dirigiu-se até ao shoji, que emanava a luz da manhã, e abriu-o, sentindo o vento frio tocar a sua face, recebendo os primeiros raios de sol, tímidos e doirados, que escapavam entre os contornos sinuosos da montanha. Ouviu, sorrindo, as primeiras canções dos pássaros que passeavam de árvore para árvore, pousando ocasionalmente sobre o telhado das casas do outro lado da rua.

Sentiu o aroma convidativo da sopa de miso e do arroz estufado, e o seu estômago fez questão de lhe recordar a sua carência, após uma noite tão atribulada. Pousou o seu olhar sobre as árvores desnudadas e deixou a sua mente vaguear através dos acontecimentos da noite passada. Recordava-se com clareza do azul frio dos seus olhos, do seu sorriso e das suas palavras nuas e cruéis. "És fraco". As palavras continuavam a assombrar a sua mente, repetindo-se através do minuto seguinte, que de facto lhe pareceu uma hora. O ruído da fusuma a deslizar subitamente do lado oposto do quarto acordou-o das suas memórias. Voltou-se, e viu Harumi-chan, sorrindo alegremente, os seus olhos côr-de-amêndoa sorvendo cada gota do céu matinal. O seu kimono era amarelo, recordando os campos de trigo sob o sol da tarde, onde se sobrepunham belas flores de lótus azul.

Passou um mês sobre a sua chegada à casa da família Yamamoto. Todos os membros da família se haviam afeiçoado a Soujiro, à sua simpatia, aos seus olhos azuis, profundos e meigos, e ao seu sorriso sincero. Harumi-chan via-o agora como o seu irmão mais velho, e pedia-lhe todas as noites que não abandonasse a pequena vila. Mas Soujiro sentia o apelo persuasivo do caminho diante de si, e sabia que teria de o percorrer sozinho.

"O pequeno almoço está pronto, Sou-onissan!" exclamou, correndo para abraçar Soujiro. Ele sorriu, tomando-a carinhosamente nos seus braços e envolvendo-a num abraço meigo e quente. Fechou os olhos inspirou profundamente, conhecendo o impacto que as suas próximas palavras teriam na menina que segurava entre os braços.

"Harumi-chan..." começou, sentindo os seus olhos humedecer, "...foram as duas melhores semanas da minha vida.". Sentiu o abraço da pequena apertar-se à sua volta. Trazia o mesmo laço cor-de-rosa que prendia os seus cabelos na tarde em que se haviam conhecido. "Mas chegou a hora de retomar o meu caminho." disse, deixando uma lágrima rolar pela sua face, detendo-se por breves momentos na base do seu queixo, percepitando-se depois em direcção ao chão de madeira de carvalho. Harumi-chan olhou-o, a surpresa expressa nas suas feições.

"Oniichan..." disse, quando a surpresa abandonou a sua face, dando lugar à mais profunda tristeza, "...não podes ir embora...!". Os seus olhos encheram-se de lágrimas, que rapidamente rolaram livremente pela sua face, "...eu quero-te aqui, pertinho de mim, oniichan!"

"Não posso ficar, Harumi-chan." afirmou, pressionando os seus lábios um contra o outro e tentando conter as lágrimas. "Ainda tenho muitos lugares para ver, e muitas sensações para conhecer..."

"Não percebo! Disseste que eras feliz aqui...então..." deixou-se interromper pelos soluços, e olhou resolutamente nos olhos de Soujiro "...então porque vais embora?"

Soujiro permaneceu em silêncio. Harumi correu em direcção ao corredor, deixando cair o laço que prendia os seus longos cabelos castanhos, que fluturaram livremente atrás de si. Ergueu-se e caminhou até ao corredor, apanhando o lenço que Harumi-chan havia deixado para trás na sua partida desesperada. O lenço era feito da mais pura seda, e dele emanava um perfume suave. Suspirou, e fechou a porta atrás de si, dirigindo-se ao Yoritsuki. Lá, já era esperado por Hano-san que o olhou triste mas compreensivamente. Ela sabia, pelas palavras que havia trocado com Soujiro durante a última semana, que ele procurava uma verdade pela qual viver. E essa verdade não poderia ser encontrada permanecendo estático. A sua experiência indicava-lhe que o rapaz que tinha à sua frente, embora esboçasse um dos mais belos sorrisos que já havia visto, e pudesse ver as duas lagoas de azul turquesa que eram os seus olhos, de águas límpidas e calmas, sabia que por detrás de tudo isso existia um passado conturbado, embora não pudesse saber de que forma.

Hano-san colocou a mão sobre a sua face, sorrindo, tal como uma mãe. "Gostava que aqui ficasses." começou, "Apesar de ter sido apenas um mês, começamos a ver-te como se fosses parte da nossa família; Harumi-chan vê-te como o seu novo irmão mais velho, e Yasuo vê-te como se fosses o seu filho mais velho."

De facto, Harumi-chan passava uma parte significativa do seu tempo perto do seu novo irmão. Corriam os dois pelos campos, subiam ás arvores e passeavam pela vila pelo crepúsculo, quando toda a gente se havia recolhido no interior das suas casas. Yasuo, por sua vez, ensinara Soujiro a pescar junto ao pequeno rio que corria pelo vale. Soujiro conservava a pequena cana que Yasuo-san lhe havia oferecido, e sorriu ao lembrar-se do primeiro peixe que apanhou com ela.

"Queremos que voltes,." disse, por fim, "mas primeiro deves encontrar o teu próprio caminho."

Afastou-se, e abriu a fusuma, dando um passo para o exterior da pequena sala. "É o teu pequeno-almoço. Sei que este é um momento importante para ti, por isso, deixar-te-emos comer em paz." voltou a sorrir, e fechou a fusuma atrás de si.

Soujiro sentou-se sobre a pequena almofada e deu início à sua refeição. Pegou reverentemente nos hachi e levou uma pequena porção de arroz à boca. "Hano-san é uma cozinheira formidável." pensou, recordando-se dos pratos que havia experimentado durante o último mês.

Ergueu-se silenciosamente e recolheu o pequeno tabuleiro que Hano-san lhe havia preparado. Dirigiu-se à cozinha e pousou-o sobre uma bancada, chamando a atenção da mulher que começava agora a preparar o almoço.

"Soujiro-kun," disse, pousando a faca de cozinha perto dos vegetais que acabara de cortar, "Yasuo-san espera-te na tokonoma." finda a mensagem, Hano-san voltou a dedicar-se à sua tarefa, cortando cada pedaço rapida e eficientemente, como se fosse um gesto que dispensasse a sua atenção.

Soujiro percorreu o corredor que levava à tokonoma da casa. Fez deslizar a porta que e deu um passo para o seu interior. Yasuo-san esperava-o, sentado perante o pequeno altar. Sobre ele, encontravam-se um vaso, que Soujiro reconheceu como sendo oriundo de Kyoto, através dos motivos que o decoravam. Dentro dele, um dos mais belos arranjos florais que havia visto durante a sua vida. Hano-san era também Mestre de Ikebana, a julgar pela qualidade da composição, o seu ritmo e pela harmonia das cores. Ao centro, pendendo da parede, um scroll onde se podia apreciar os caracteres desenhados segundo os preceitos do estilo shousho, o mais apreciado dos estilos de caligrafia japonesa.

Em baixo, ao lado do arranjo floral, encontravam-se, expostas sobre o suporte, duas katanas e uma wakizashi. Soujiro podia deduzir pela presença das espadas que o scroll havia saído das mãos de Yasuo-san. Muito frequentemente, os mestres de Kenjutsu eram também exímios mestres na arte da caligrafia japonesa. Avaliando o grau de detalhe que a pequena composição caligráfica apresentava, a forma como expressava o sentimento do seu criador, o traço, controlado e preciso, Soujiro pode concluir que Yasuo-san era de facto dotado no manejo da espada.

"Soujiro," chamou, acordando-o da sua breve reflexão sobre o pequeno espaço. "por favor, senta-te." ordenou, apontando a almofada vazia à sua frente. Soujiro sentando-se respeitosamente sobre a almofada.

"Então..." Yasuo-san começou, "...estás mesmo de partida."

"Sim." respondeu Soujiro.

"Para encontrares o teu próprio caminho?"

"Sim." Soujiro voltou a responder, reverentemente.

"Para compensares os teus crimes?" disse Yasuo, sob a forma de um sussurro

As palavras atingiram Soujiro como dardos de gelo. Como é que ele tinha descoberto? Conhecia o seu passado enquanto assassino ao serviço de Shishio Makoto?

Yasuo reparou no olhar alarmado que o jovem guerreiro lançava sobre si. Sabia que as suas afirmações haviam sido correspondidas, e sorriu.

"Nada conheço sobre o teu passado," disse Yasuo. Soujiro compreendeu, então. As espadas, a mestria caligráfica, a intensa aura que emanava do seu ser. Yasuo, também ele, era um guerreiro experiente, capaz de ler nas entrelinhas de cada gesto.

"Capitão da Quarta Esquadra da Shinsengumi, Yamamoto Yasuo."
As palavras atingiram Soujiro de novo, como se fossem feitas de gelo. Este homem havia passado pelo caos da Revolução, no entanto as suas espadas permaneciam embainhadas. Trocara as ruas sangrentas pelos campos doirados de trigo, e a espada pela foice. "Também eu empreendi a mesma busca pela verdade, pelos caminhos tortuosos da alma manchada de sangue." Soujiro observava-o, sem desviar o olhar por um momento "E posso senti-lo...cheirar o seu aroma..."

Seguiu-se o silêncio, período durante o qual Yasuo fitou os olhos de Soujiro, como que em busca de uma resposta. Uma resposta que apenas quem derramou sangue através da sua lâmina pode dar.

Yasuo quebrou o silêncio, satisfeito com a resposta. "Mas tu não és simplesmente um monstro sedento de sangue. Vejo-o nos teus olhos: o sangue que derramaste, foi derramado em nome de um ideal."

"Os fortes vivem, os fracos morrem. Esta é a verdade do mundo."

"És fraco."

"Posso tornar-me mais forte, Shishio-san?"

"Finalmente, percebeste que o ideal pelo qual roubaste tantas vidas era dúbio, e embarcaste numa jornada em busca de respostas."

Soujiro suspirou, e concordou, acenando levemente com a cabeça. " Não voltarei a matar. E porque os fracos, e aqueles que não se podem defender não devem cair presa dos mais fortes, erguerei a minha espada para os proteger"

O silêncio entre os dois guerreiros voltou-se a instalar. Yasuo olhava Soujiro, mas desta vez com profundo respeito. Ele conhecia perfeitamente o inferno pelo qual o jovem estava a caminhar, pois também ele próprio já tinha trilhado o mesmo caminho.

Yasuo ergueu-se solenemente, voltando-se para o altar onde jaziam as três espadas. Pegou cuidadosamente na espada que estava colocada no suporte do meio, entre a katana e a wakizashi. Contemplou-a por breves momentos, voltando-se novamente para Soujiro, que permanecia sentado. Yasuo pediu-lhe que se erguesse, e Soujiro, intrigado pelo comportamento, obedeceu.

"Sem uma espada, serás um homem incompleto." começou, olhando Soujiro determinadamente " e um homem incompleto nunca poderá proteger ninguém. Viverás pela espada, morrerás pela espada!" Com estas palavras, estendeu a katana a Soujiro, que a tomou na sua posse, hesitantemente. Desembainhou lentamente a espada, que deslizou facilmente. Sentiu o seu equilibrio perfeito, equilíbrio que apenas encontrou na sua lendária Kikuichimonji Norimune, e a beleza da katana, que brilhava sob a pouca luz da tokonoma. Soujiro constatou surpreendido que a espada não possuia uma lâmina capaz de cortar. Olhou para Yasuo, a sua confusão expressa claramente no seu olhar.

"Um dos últimos trabalhos de Sawahara Shigetane. Uma iaito."

A lâmina recordava-o da Sakabatou de Himura-san. Esta encontrava-se no lado oposto donde se deveria situar.

"Este é o meu presente de despedida."

Sem mais uma palavra, Yasuo saiu da sala, deixando para trás Soujiro, que comtemplava a sua nova espada.

Soujiro dirigiu-se para a porta, reflectindo uma última vez sobre a sua decisão de abandonar a casa dos Yamamoto. Ali, encontrou carinho e afecto, tudo aquilo de que sempre se sentira privado. Agora que havia encontrado tudo o que lhe faltara durante a sua existência perturbada, iria partir, em busca de outras respostas, e em busca da sua redenção.

Hano-san observava-o já havia alguns momentos, e sentia a dúvida presente no espírito do jovem guerreiro. "Não hesites," disse, quase num sussurro, "o caminho é longo, mas o mesmo caminho que te leva, também te trará de volta."

Soujiro voltou-se e abraçou delicadamente Hano-san. Sabia que iria sentir saudades dos seus cuidados maternais e do seu olhar côr-de-amêndoa. Subitamente, Harumi-chan revelou-se, saindo do esconderijo que mantinha atrás da pequena bancada e abraçou-o com toda a força que o seu pequeno ser pôde reunir. As lágrimas caíam através do seu rosto, e os seus lábios tentavam articular uma despedida dolorosa, que era silenciada pelo soluçar incontrolável. Soujiro acocorou-se e abraçou-a, tentando conter as suas próprias lágrimas. Hano-san, que se encontrava ao seu lado, lutava também para conter as suas lágrimas.

Acariciou os cabelos longos de Harumi-chan e lembrou-se subitamente que guardava o laço côr-de-rosa que ela havia perdido naquela manhã. Levou a mão ao seu kimono e mostrou o laço perfumado que costumava prender os seus cabelos. Estendeu-o a Harumi-chan, que se recusou a recebê-lo. "É para ti, para que não te esqueças nunca de mim e voltes depressa!" a sua face iluminou-se e as lágrimas começavam a secar no seu rosto, sob o Sol moribundo do Outono.

"Soujiro..." disse Hano-san, estendendo-lhe um cachecol azul celeste, "em breve, o frio será menos compassivo para com os viajantes. Tem cuidado, sim...?" As suas palavras soavam iguais à preocupação que a mãe nutre pelo seu filho. Sorriu, aceitando o cachecol, que imediatamente colocou à volta do seu pescoço. Era quente e confortável, feito da mais pura lã.

Olhou para a estrada que atravessava a pequena vila e que levava até às montanhas. Apesar de díficil, o percurso através das montanhas parecia-lhe o mais razoável. "Hano-san," disse, "onde estamos, e para onde devo ir, a seguir?"

Hano-san riu levemente. "Depois das montanhas, e a meio dia de caminho através dos campos, fica a estrada para Nagoya. Depois, basta seguir os traçados de caminho de ferro até Tokyo."

"Nagoya, eh?" voiciferou, alegremente, "verei o que Nagoya tem para me oferecer!"

Pegou no seu saco e colocou-o ás costas. Hano-san havia-o preparado, aprovisionando-o de tudo o que achou que poderia ser útil ao jovem, incluindo algum dinheiro e roupas quentes.

Caminhou em direcção à estrada e voltou-se uma última vez na direcção da casa que o acolhera durante um mês. Fora apenas um mês,mas as memórias que guardava de tão curto período pareciam preencher o vazio provocado por anos de solidão. Hano-san e Harumi-chan ainda se encontravam junto à porta.

"Voltarei...um dia!" disse, sorrindo.

Fim do Capítulo 4

Lista de Termos Japoneses utilizados:

shikibuton/kakebuton: o equivalente aos nossos lençois e edredon.

Futon: o equivalente à nossa cama.

Fusuma: porta de correr

Yoritsuki: sala de jantar

Hachi: pauzinhos para refeições

Tokonoma: Alcova

Shoji: Paineis translucentes

Waraji: Sandálias

Ikebana: Arte Japonesa do arranjo floral

Shousho: O mais popular dos estilos entre os Mestres da Arte da Caligrafia Japonesa.

Comentários: Este capítulo lida essencialmente com os problemas que um Rurouni enfrenta, face à sua incapacidade de permanecer durante muito tempo num determinado local. Inerente a isso, vem a dor da separação que é sentida não só por Soujiro, mas por aqueles que aprenderam a amá-lo. Lida também com o profundo entendimento entre dois assassinos, que apesar de se encontrarem em facções diferentes, procuram defender o ideal pelo qual arriscariam a sua vida.

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