"Tu deveria conversar com ele."
"Mas Laura, não é meio, sei lá, cedo pra ter uma conversa dessas? Sabe, faz menos de um mês que a gente tá junto, e..."
"Mila, se tu realmente quer que as coisas aconteçam, acho que tu precisa falar com ele."
"Mas será que dói?"
"Falar não, mas na hora dói um pouquinho"
"Ai, sua pervertida." – Camila bateu de leve no ombro de Laura, rindo. – "Bom, agora só tenho que criar coragem."
"Tu vai se encontrar com ele?"
"A gente marcou pra se encontrar lá em casa. Hoje é o último dia pra pagar a viagem pra capital."
"E tu vai? Pensei que tu não queria fazer faculdade na capital."
"Eu não tava afim, mas meu pai insistiu. Só pra saber como eu me sairia. Aff, quer saber, vou fingir que eu vou, guardar o dinheiro pra mim, e deu. Tu não vai ne?"
"Não. Nem tem motivo, por que mesmo que eu passe no vestibular, eu não tenho como me mudar pra Porto."
"É isso mesmo que eu penso. Bah, sem falar na mudança de ares, de pessoas, de costumes...é tudo tão..."
"Confuso?"
"Tirou as palavras da minha boca."
As duas caminharam mais meia quadra até chegarem à casa da amiga. Quem as recepcionou foi a mãe de Paola, dizendo que a amiga estava no quarto, e que provavelmente estaria dormindo.
"Uma hora dessas, tia? Ma já passa do meio-dia!"
"Pois é, Mila. Ela anda meio estranha, vocês que sempre andaram com ela, não sabem o que aconteceu?"
Camila e Laura se olharam sem saber o que responder. – "Olha, tia. Ela não tá passando por nada, nem de amores ela tá por ai. Quer dizer, tu entende né?
"Sim...entendendo, Laurinha." – A mãe de Paola ainda lembrou as meninas, que se fossem acorda-la, era para avisa-la que dentro de meia hora, ela estaria pondo o almoço na mesa.
As duas abriram a porta, com o máximo de cuidado, sem fazer o menor ruído. O quarto entre as escuras, e Paola deitada de barriga para cima, toda descoberta pelo fino lençol que se amontoara em seus pés. Laura notou o rádio ainda ligado, e Camila se postou ao lado da cama, agitando a amiga com os braços.
"Camila?" – Paola relutava em abrir os olhos, enquanto a amiga sentava ao seu lado. Esfregando um pouco os punhos fechados nos olhos, pode perceber a presença de Laura, que se juntou a elas.
"Então dorminhoca." - Camila acendeu a luz do pequeno abajur rosa, em cima do criado-mudo, forçando ainda mais os olhos da amiga. – "Um motivo pra faltar a aula."
Paola virou-se, e procurou os chinelos, e mesmo sem acha-los, caminhou até a janela, abrindo de leve as cortinas.
"Ai, gurias. Só vocês que vão na aula. Não tem mais nada pra estudar, todas as recuperações já foram marcadas, não tô em nenhuma...prefiro ficar em casa e..."
"Pára, Paola." – Laura riu da situação, enquanto se escorava na pequena cômoda. – " A gente sabe por que tu tá faltando..."
"Sabem?" – Paola não sabia o que correra pela sua espinha, mas tinha certeza que não era nenhuma formiga ou semelhante.
"Tu tá passando por uma depressão pré-formatura!" – Camila riu da piada de Laura, e atirou um travesseiro na amiga, que segurou-o antes que a atingisse. Paola sorria amarelo para as amigas.
"Alguma novidade?"
"Fora a agitação pra viagem...nada. Tu vai? Por que eu e a Camila estávamos pensando em fazer alguma coisa no sábado. Algo só das mulheres, já que os guris vão."
"Ai, gurias. Minha mãe já pagou, e não adianta eu não ir. Mas eu queria muito passar uma tarde com vocês."
"Olha só Mila. A gente que tá namorando, e a Paola que não pode se encontrar com as amigas!"
As três riram, duas pela mesma causa, e uma para que não começasse a dizer, toda a verdade que tinha guardado. Camila levantou-se e conferiu no relógio de pulso que já passava um pouco, da uma da tarde.
"Gurias, eu preciso ir. Marquei de encontrar o Marcelo lá em casa, e eu preciso almoçar ainda."
"Não quer almoçar aqui em casa, Mila?"
"Ai, amiga, eu adoraria. Mas eu tenho que pegar o dinheiro com o pai, ainda."
"Mas tu não tinha dito que não ia?"
"Ela não vai" – Laura levantou-se e se pôs ao lado de Camila. – "Só vai pegar o dinheiro, se esconder o sábado inteiro lá em casa, e guardar o dinheiro."
"Espertinha. E tu, Laurinha? Não quer almoçar aqui?"
"Não dá amiga. Mas fica pra próxima." – Laura a abraçou. Nesse momento, Paola sentiu algo estranho, e como se uma voz a tivesse assoprado, falou sem mesmo ter noção do que aquilo significava.
"O Júlio já sabe?"
Laura arregalou os olhos, enquanto Camila encarava as duas sem entender nada. Paola fechou os olhos, lutando consigo mesma, para manter a calma, enquanto Laura tentava entender as palavras da amiga.
"Até quando tu vai esconder isso dele?" – Paola voltou a repetir aquilo que ecoava em sua cabeça. Laura sorriu amarelo para a amiga, e puxou Camila pelo braço, alegando a insanidade da amiga. Paola sentou-se na cama, e ali ficou tentando entender as coisas que mencionara.
Marcelo caminhava sem muita atenção. Dois motoristas já haviam buzinado para ele, que atravessava as ruas sem cuidar de vinha algum carro. Na verdade, só prestava atenção naquilo que sua mente planejava. Não podia mais viver aquela ilusão, enganando tanto Camila, como a si mesmo. Se lembrava como se fosse hoje, a conversa que tivera com Ana, e quanto ela o fez pensar. E até demais, já que passavam-se semanas desde que se encontraram na frente da casa. Repetia as palavras que ensaiara durante todo o trajeto, e cada uma, a cada passo, lhe parecia mais canalha. Mas já não tinha tempo para mudar o roteiro, ou era aquilo, ou teria que continuar com aquela farsa.
Abriu o portão, e entrou pela porta da frente. Notou que não havia ninguém na sala, e parou ao pé da escada. Olhou lá para cima, e não percebeu o menor ruído. Ouviu barulho na cozinha. O coração em disparado. Os pensamentos, agora mais embaralhados. O suor a escorrer pela testa. Quando chegou na porta que ligava o pequeno corredor à cozinha teve um choque: Dr. Luís um pouco inclinado, parado na porta que dava acesso ao pátio da casa, beijava calorosamente Ana. Ela afastou os dois lábios, e ainda com um sorriso enigmático, veio cair com seu olhar cravejante em cima de Marcelo, que de tão assustado, virou e saiu correndo.
"O que foi? Viu alguma coisa?" – Dr. Luís caminhou até a porta que antes Marcelo havia visto tudo, e percebeu que a porta da frente estava entreaberta. – " Ana...tu deixou a porta aberta?"
Ana caminhou até aonde ele estava, tentando, nervosa, riscar o isqueiro que não parava em sua mão tremula. – "É...acho que sim."
A noite chegou, e junto dela, algumas nuvens, que encobriram a pequena cidade em poucas horas. Laura e Júlio voltavam da sorveteria a pé, enquanto ele tentava convence-la a ir até a sua casa.
"Vai, alguns minutinhos...meus pais vão naquela festa chata do clube...a gente aluga uns filmes, come uma pipoca...qualquer coisa."
Laura sorriu e acabou cedendo ao convite de Júlio. Em seguida, a chuva que começara fina aumentou a força, fazendo-os correr até se abrigarem na varanda da casa de Júlio. Tal foi a surpresa para os dois, quando ao chegarem lá, encontrarem Marcelo de pé, escorado na parede.
"Também veio aqui pra se proteger da chuva?"
"É..." – Marcelo notou a presença de Laura, e pensou que tinha perdido a viagem. Não poderia contar o que vira com ela ali. Queria que o menor número de pessoas soubessem, e preferia que antes de mais nada, Júlio o orientasse. – "Vocês estão encharcados."
Júlio destrancou a porta, e foi buscar duas toalhas para que ele e Laura se secassem.
"Então, Marcelo. Pagou a excursão?"
"Sim. A Mila me contou que tu também não vai, Laura. Por quê?"
"Ai, mesmo se eu passar, não vou morar lá."
"Mas o Júlio vai fazer também, e não vai morar na capital."
"O que vocês tão falando de mim?"
Júlio apareceu com as duas toalhas, e entregou uma para Laura. Eles ainda falaram mais um pouco sobre a viagem, até que Laura pediu para ir ao banheiro. Marcelo esperou que a amiga fechasse a porta do lavabo, para chegar mais perto de Júlio, e lhe dizer aos sussurros o real motivo de sua vinda.
"Cara, tenho pouco tempo. Mas o que eu tenho pra te contar é sério. Hoje, quando eu fui me encontrar com a Camila, lá na casa dela, eu...eu peguei o pai dela com a enfermeira. Os dois se beijando, na cozinha."
Júlio ficou ainda um tempo encarando o amigo, boquiaberto. Passado o susto, Júlio soltou uma risada irônica e voltou a encarar o amigo.
"Coitada da Camila. Já não basta ter a mãe doente, um namorado que nem gosta dela..."
"Pára, Júlio. Não é bem assim."
"Ah, não. Tu só é apaixonado pela Paola, a melhor amiga da guria. Mas tá com ela."
"Qual é a tua, Júlio? Primeiro me crucifica por que eu quero acabar com a Camila, agora me fala que eu tô fazendo errado em continuar com ela. Quer saber o que eu fui fazer na casa dela? Eu fui terminar com ela. Não agüento mais essa farsa."
Laura tinha dado descarga. Conferiu uma ultima vez: nenhuma mancha de sangue. Abriu a torneira e lavou as mãos, enquanto encarava-se no espelho. Foi quando reparou no tom de sussurro que a conversa se desenrolava na sala, e colou o ouvido esquerdo na porta, mantendo a torneira ainda ligada.
"E tu acha que a Paola ia te aceitar de volta?"
"Eu sei que não. Mas assim eu não estaria enganado ninguém. Olha, vou pra casa...diz que eu mandei um beijo pra Laura." – Marcelo abriu a porta e percebeu que a chuva ainda caia forte. Sem importar-se com ela, saiu caminhando pela rua, sentindo como se cada gota daquela chuva lavasse sua alma.
Ouvindo: Tomorrow - Avril Lavigne
