Capitulo 2

Passeio

Shaka estava debruçado sobre sua mesa, lendo os documentos sem a mínima vontade. Fazia a coisa mecanicamente até perceber que não estava se concentrando. Então se levantou e foi até o bebedouro. Enquanto tomava sua água reparou no ar condicionado.

- Será que limparam o filtro? – pensou alto.

- Como é que é? – indagou uma voz rouca e familiar.

O jovem advogado virou e reconheceu o senhor que falara com ele. Era um homem grande, um grosso bigode, sobrancelhas volumosas e com pouco cabelo. Fumava um charuto fedido e tinha um ar de rabugento. Era Dr. Armed, pai de Shaka.

- Nada pai, estava pensando alto.

- Ahn... E o caso Hattori? Já sabe como vai argumentar amanhã à tarde?

- Er... Mais ou menos, pai. Tem muitas coisas que não batem. O cara estava acima do limite permitido de velocidade, tinha levado nove multas só aquela noite e se negou a fazer o bafômetro. Tá na cara que ele estava bêbado quando atropelou os rapazes!

O velho Armed respirou fundo. Abaixou o olhar e depois voltou inflamado para o filho.

- E daí! Você vai chegar na frente do juiz e falar isso tudo? Esta é a parte que você tem que esconder, rapaz! Olha Shaka, não ouse fazer uma besteira! Te dei um caso moleza! Hattori Kido é filho do velho Mitsumasa, ele é podre de rico! O dono da Fundação Kido! Não vai ter dificuldade nenhuma! Não vá fazer cagada!

- Mas o cara atropelou três pessoas... Não é justo!

- Ei, ei! Vamos parar por aqui! Recapitule aqui comigo, garoto! Você é o advogado. O Mitsumasa está pagando uma fortuna para nossa firma defender aquele playboyzinho do seu filho. Vamos nos limitar ao nosso trabalho, ok? Vá lá e defenda o moleque! O juiz é que deve decidir se é justo ou não. Este é o trabalho dele, não o seu!

Shaka suspirou fundo e abaixou a cabeça.

- Você tem razão. Meu trabalho não é dizer o que é justo...

Armed sorriu e deu mais uma tragada no charuto antes de abraçar o filho cabisbaixo.

- É isso mesmo filho! Vá lá e alegue problemas psiquiátricos. Vão mandar o cara para uma clínica, passa um mês e o liberam. Talvez não seja justo, mas o que podemos fazer? Vamos nos limitar a nosso trabalho e não nos meter em encrenca!

- Certo pai... Mas não sei...

- Olha filho... – Armed segurou Shaka com firmeza e olhou-o nos olhos – Muita coisa no mundo não está certa. Mas você não vai conseguir mudar tudo sozinho. Eu já me senti como você se sente agora. E acredite no seu velho pai: a melhor coisa a fazer é fazer apenas seu trabalho. Preocupe-se com você apenas... É triste, mas o mundo é assim, meu filho.

Shaka assentiu e pesaroso voltou para sua sala. Sentou-se e olhou a papelada vagamente. Suspirou profundamente e resolveu sair. Tomar um pouco de ar lhe faria bem.

- Ah... É tão bom respirar aqui dentro! Precisava relaxar mesmo! – disse Shaka sentado no banco de madeira. Olhava descontraidamente para a fonte de águas cristalinas do shopping center.

Foi então que viu, sentada na borda da fonte, uma silhueta familiar. Apressou-se em esconder o rosto. Tentou sair de fininho para não ser visto, mas não resistiu e voltou seu olhar para a garota. Era Marjorie.

A garota não parecia a mesma do dia anterior. Estava cabisbaixa, com um olhar triste perdido na água. Parecia chorar enquanto remexia a água da fonte de forma melancólica. Shaka sentiu-se afetado pela tristeza da garota, afinal algo de muito ruim deveria ter acontecido para alguém com tanta animação como Marjorie estar com um semblante tão deprimido.

- Ei... Marjorie. Está tudo bem? – disse Shaka aproximando-se cautelosamente.

A garota suspirou profundamente e virou-se para ele.

- Eu...

Imediatamente ilustrou um enorme sorriso na face.

- ... estou ótima! – e deu um peteleco na água espirrando em Shaka.

- Grrrr! Ô garota pentelha! /

- Iauhiahiahiuhaiuhaihaia XD

- Posso saber por que fez isso? – resmungou Shaka enquanto secava-se com seu lenço. – Achei que você estava triste... ¬¬"

- Uia! Achou mesmo? Quer dizer, você veio até aqui pra saber se estava tudo bem comigo?

- Er... é!

- Alas que legal! Então você se importa comigo! XD

- Er... É que bem, você parecia tão triste... O que aconteceu?

- Nada ué! Só queria que você viesse falar comigo! Me paga um sorvete?

- Afs... Eu tenho escolha?

- Claro que não!

- Duh... Não sei por que perguntei... U.u"

Marjorie agarrou o braço de Shaka e puxou-o até a sorveteria. Agora ela parecia a mesma garota incansavelmente radiante do outro dia.

- Er... Precisamos andar de braços dados?

- Ué, você tem namorada? É perigoso alguém nos ver juntos?

- Não... Mas é que sei lá... O que podem pensar?

- Oras, no máximo que a gente ta ficando! Que mal tem nisso lindo? – E Marjorie deu um beijo no rosto de Shaka, que corou imediatamente.

- Huiahuiaiuaiuha! Que lindinho você corado! XD – riu ela.

- Afs! Pare com isso, eu fico vermelho fácil. Ú.ù

- Eu sei! Por isso te deixei sem graça!

Marjorie mostrava grande satisfação em andar de braços dados com Shaka, enquanto ele sentia-se um pouco desconfortável. Mas aos poucos foi relaxando enquanto conversava. Sentiu-se bem em passear de braços dado com uma bela garota, algo que não fazia há muito tempo.

- Do que vai querer? – perguntou ele.

- Chocolate! Yeaaah!

- Nossa! Você gosta mesmo de chocolate ein! U.u

- Adoro! HAuhuAUHauAHAuhaUH! D

- ú.Ù

Intimidado com a cara de maníaca compulsiva de Marjorie Shaka apressa-se em pagar os sorvetes e achar um lugar para sentar. Enquanto ela deliciava-se com o seu sorvete Shaka ocupava-se mais em admirar a garota tão espontânea que tinha à sua frente.

- Qui voxê fax mexmu? – perguntou ela com a boca cheia de sorvete.

- Hein?

GLUMP

- Ugh...! Aaaah! Gelado! Gelado! Gelado! – a garota levantou e correu para buscar um copo de água. – Ãi... doeu meu dente...E minha cabeça... Nhai... T.T

- Você também é doida! Engoliu aquele pedação de sorvete de uma vez!

- Bleh... Bem, eu perguntei o que você faz!

- Ah, sou advogado!

Marjorie pula de volta para mesa. Animou-se no mesmo instante em que ouviu a profissão de Shaka.

- Que legal! Adoro essa profissão! Acho tão bacana defender os outros e talz!

O rapaz suspirou fundo.

- Eu também achava, mas as coisas não são bem assim...

- Como axim? – disse ela de boca cheia.

- Bem, nós não defendemos quem está certo. Defendemos quem está nos pagando. Não é nosso trabalho decidir pelo que é certo.

- Oras! Mas o trabalho de vocês é defender a justiça!

- Não... É defender o cliente.

- Mesmo sabendo que ele está errado?

- Sim...

Marjorie mostrou-se, pela primeira vez, realmente séria. Inflamou-se para falar, mordendo a colherzinha de plástico do sorvete.

- Você não pode defender alguém que sabe que está errado! É um absurdo!

Shaka mostrou-se pesaroso. Um dia ele já fora idealista como a garota, mas acabou por descobrir de forma bem dura que a vida não é como pensava.

- Mas é assim que funciona... Eu também pensava como você. Mas não fui eu quem bolou as regras. Há muito tempo as coisas funcionam assim e eu não posso mudar sozinho. O que quer que eu faça?

- Oras, não faça!

- Como assim?

- Se você não pode fazer nada para melhorar, ao menos não faça nada para piorar! São pessoas como você que tornam o mundo mais injusto, que promovem a impunidade! Afs! Não achava que você fosse assim!

- Mas... Mas eu não sou! Tento fazer meu trabalho!

- Que raio de trabalho é esse que se faz algo em que não se acredita?

- Menina, a vida não é feita de ideais!

- Pois devia ser! Se for pra viver defendendo algo em que não se acredita, é melhor não viver!

Marjorie levanta-se furiosa da mesa e aponta o dedo para Shaka. Tenta dizer algo, mas não sai nada senão um gemido de revolta. E então ela vai embora pisando duro e bufando de raiva. Mas em seguida volta e apanha seu sorvete que tinha deixado na mesa.

- Ham! Isto me pertence! E escuta aqui: Se a vida não é feita de ideais, é feita de quê? Afs! Você não sabe de nada! Grrr!

E finalmente a garota parte, desta vez definitivamente.

- Putz...

Shaka continuou na sorveteria, quieto, sozinho. De um instante para outro tudo que a garota tinha dito lhe pareceu fazer um sentido enorme. E então ele lembrou-se de seus sonhos, idéias, motivações e como perdeu tudo com o passar dos anos.

Como pôde perdê-los? Como pôde ter dado ouvidos ao discurso corrompido de seu pai?

E então Shaka sentiu as dores de suas escolhas. Levantou-se melacólico e fez o caminho de volta para o escritório. No caminho pensou em apagar tudo que tinha feito até agora e recomeçar do zero, resgatando seus ideais. Mas logo achou que era tarde demais...

- Não dá para voltar atrás... Se for para viver defendendo algo que não acredito, talvez não valha a pena minha vida... Talvez eu a tenha jogado fora... Acho que preciso... acabar logo com isso.

Respirou fundo. Levantou os olhos para o céu avermelhado do fim de tarde. E lamentou não poder ver o pôr-do-sol por causa dos prédios que tapavam o horizonte.

- Não é isso que eu acredito... Mas a audiência de Hattori Kido é amanhã. Então ainda mais uma vez terei que defender algo que não acredito...