Capítulo III

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O jantar transcorreu com tranqüilidade, ninguém abriu a boca para falar nada ou perguntar algo a Julliete. Óbvio que estavam muito curiosos, mas preferiram esperar para poderem conversar com calma.

Quando acabou, Aioros ajudou a garota a tirar os pratos da mesa e levá-los para a cozinha, enquanto Camus e Shura trocavam impressões sobre a casa e a sua moradora. Já Miro... Esse aí descobriu a vasta coleção de licores, todos guardados sobre o aparador da sala, e ficou rodeando, doido de vontade de experimentar todos.

-Se aceita uma sugestão... – Julliete entrou pela sala, secando as mãos no vestido – o licor de pêssego é delicioso, senhor Miro.

-É claro que vou aceitar a sua sug... Peraí, como a senhorita sabe meu nome?

-Isso é algo que eu também gostaria de saber... – comentou Shura, encarando Julliete. Ciente de que todos esperavam por respostas, a garota serviu o licor em cinco pequenos cálices e os deixou sobre a mesa de centro.

Recostando-se e uma poltrona, Julliete bebeu um gole e falou, sorrindo.

-Simples... Os amigos de Raul são meus amigos também...

-Raul? Conheceu Raul de Montparnasse?

-Claro... – Julliete serviu-se de mais licor, enquanto Camus esperava por mais respostas – Eu o conheci muito bem... Herdei esta casa quando ele morreu naquela maldita guilhotina.

Ao dizer isso, a garota deixou seu cálice sobre a mesinha e, discretamente, secou uma lágrima que teimava em querer rolar por sua face. Observando os movimentos de Julliete, Shura acabou notando, surpreso, a aliança dourada que ela usava na mão esquerda. Como não reparou nesse detalhe antes? Lembrando-se do que Raul tentara lhe dizer na prisão, o rapaz acabou tirando sua própria conclusão: ela deveria ser a jovem viúva de seu amigo.

-Foi Raul quem lhe ensinou a esgrimar daquela maneira? – perguntou Aioros, fazendo com que Shura voltasse a prestar atenção na conversa.

-Sim... Ele sempre dizia que seria útil para mim, caso ficasse sozinha um dia.

-E como sabia que iria nos encontrar naquela floresta, lutando contra os homens de Rochefort?

-Não sabia, senhor Miro, estava voltando da cidade quando ouvi os gritos. Eu sempre me visto daquela maneira quando saio sozinha, é um modo de não chamar a atenção. Agora, me digam uma coisa...

-Se estiver ao nosso alcance, senhorita.

-Por que Rochefort está trás de vocês?

-Pelo mesmo motivo que levou Raul à guilhotina... O Cardeal plantou falsas provas contra nós, nos acusando de traição...

-Aquele desgraçado! – gritou Shura, socando o braço da poltrona onde estava sentado, derrubando no chão o pobre Miro que estava estabelecido por ali.

-Ai, minha bunda! Ficou maluco, Shura?

O rapaz bufava de raiva, lançando olhares assassinos para o amigo. E Julliete, ao ver a cena, não agüentou: desatou a rir com gosto, as bochechas coradas pela falta de ar. A reação da garota acabou levando Aioros às gargalhadas, seguido pelos risinhos nervosos de Camus e a risada gostosa de Shura.

-Pô, como têm coragem de rir da desgraça alheia? E nem me ajudam a levantar daqui!

-Nhai... Isso foi demais... Serviu para esquecer um pouco a tristeza dos últimos dias...

Levantando-se e guardando a garrafa de licor no lugar, Julliete chamou os rapazes para o andar superior, para lhes mostrar os quartos. Puxando Miro com tudo para cima, Camus o ajudou a se levantar.

-Não sei se devemos, senhorita... Não seria de bom tom uma jovem sozinha hospedar quatro homens em sua casa...

-E quem iria saber se não passa ninguém por essas bandas? Andem, vocês devem estar cansados, uma noite bem dormida fará bem a todos.

-Pois eu concordo em gênero, número e grau com a senhorita Julliete!

Rindo novamente da espontaneidade de Miro, a garota levou o rapaz e Camus para um dos quartos e Shura e Aioros para o outro. Desejando boa noite a todos, ela foi para seu quarto e trancou a porta.

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Shura apagou as velas que estavam próximas à sua cama e se ajeitou para dormir. Na outra cama, perto da janela, Aioros estava ajoelhado, rezando como fazia todas as noites. Revirando de um lado para outro, Shura não conseguia nem fechar os olhos, pensando nos acontecimentos do dia, nas tramóias do Cardeal para derrubar o rei e em Julliete. Deus, como era linda, tão delicada e... E com uma aliança dourada no dedo! Seria mesmo viúva de Raul?

Levantando-se, Aioros fez o sinal da cruz e já ia apagando as últimas velas quando o amigo o chamou.

-Aioros?

-O que foi, Shura? Pensei que já estivesse dormindo.

-Não... Eu tô com a cabeça cheia, não consigo dormir.

Sentando-se na cama, Aioros encarou o rapaz. Sabia que quando Shura encucava com alguma coisa, só sossegava depois de desabafar e compartilhar suas idéias.

-Eu estava pensando... Pensando na senhorita Julliete, no que ela falou sobre conhecer o Raul.

-E o que tem isso? Provavelmente eram amigos ou parentes...

-Ou casados... Não viu a aliança que ela usa na mão esquerda?

-Aliança? Sinceramente, não reparei nesse detalhe... Mas agora que falou, é estranho...

-Estranho, como?

-Bem, que eu me lembre, o Raul nunca usou aliança.

-Vai ver ele não usava porque atrapalhava na hora de manejar o florete.

-Pode ser, mas por que então ele nunca mencionou a existência de uma esposa?

-Não sei, talvez ele não tenha dito nada porque a senhorita Julliete ficava a maior parte do tempo sozinha, e Raul não queria colocar a vida dela em risco.

-Essa sua teoria até faz sentido, mas ainda acho estranho... Ao menos para você, que era o mais próximo, Raul diria alguma coisa a respeito da senhorita Julliete.

Shura ergueu o olhar para o teto e suspirou, ajeitando os cabelos com as mãos. Um gesto típico de quando estava confuso.

-Ele me falou, Aioros... No dia da execução, quando eu o visitei. Raul me pediu para procurar pela senhorita Julliete e cuidar dela...

-Raul falou assim, com todas as letras?

-Não exatamente, o guarda chegou bem nessa hora e o levou... Mas estava na cara que era isso, Aioros, eu tenho certeza.

O mosqueteiro ficou em silêncio, ouvindo as últimas palavras do amigo. Depois, apagando as velas e ajeitando seu cobertor, ele deu sua opinião e encerrou a conversa.

-Se isso está te atormentando tanto, amanhã nós falamos com a senhorita Julliete e tiramos essa história a limpo... Agora, me deixe dormir!

E assim foi feito. Aioros dormiu logo, mas Shura ainda ficou acordado, fitando o teto escuro. E a todo momento ele balançava a cabeça, tentando afastar de sua mente a imagem da garota, aqueles olhos âmbar que pareciam querer hipnotizá-lo.

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Julliete acordou com o primeiro raio de sol entrando por sua janela. Espreguiçando-se, ela se levantou e foi até o quarto de banhos, cuidar de sua higiene matinal. Mas, ao invés de jogar uma água no rosto para despertar de vez, a garota molhou a nuca, massageando-a sem pressa. Precisava esfriar os ânimos depois de uma noite inteira sonhando com um certo mosqueteiro que dormia no quarto ao lado.

Vestindo um conjunto de saia e blusa de camponesa, Julliete foi para a cozinha e colocou água para ferver, além de pão cuja massa estava pronta desde a noite anterior. Enquanto esperava que tudo estivesse no ponto, a garota pegou uma bacia que guardava embaixo de um armário e foi para o quintal, dar milho às galinhas e cenouras ao cavalo, ou melhor, égua.

-Bom dia, Milady... Como passou a noite?

A égua relinchou, o que acabou acordando Shura. O rapaz levantou-se da cama e foi até a janela para observar o dia. E viu Julliete dando comida à égua, estava tão bonita usando roupas femininas, o frescor da manhã refletido em seu belo rosto e sorriso.

-Mantenha-se firme, Shura... Ela é a viúva de seu melhor amigo...

Ainda bocejando, Shura saiu do quarto e desceu à cozinha, onde a água já fervia no caldeirão. Olhou pela janela e viu que a garota ainda estava entretida com o animal e não quis atrapalhar, ele mesmo decidiu preparar o café.

Estava tão compenetrado com os afazeres que não viu quando Julliete entrou pela cozinha e se encostou à porta, observando-o preparar o café, colocando as geléias e frutas em bandejas e monitorando o pão no forno a lenha. Shura só percebeu a presença da garota quando, ao se virar para procurar por copos nos armários, deu de cara com ela, sorrindo para ele.

-Não sabia que os mosqueteiros do rei possuíam habilidades culinárias!

-Er... Eu... Eu vi a água fervendo e não quis te atrapalhar com o cavalo.

-A Milady é uma égua... Obrigada pela ajuda, mas agora pode deixar que eu cuido das coisas por aqui.

-Eu faço questão de ajudá-la, senhorita.

-Senhor Shura, não precisa, eu posso...

-Já disse que faço questão. E pare de me chamar de senhor, odeio esse tipo de coisa!

Julliete riu e acabou acatando o pedido do rapaz. Em pouco tempo, a mesa do café estava posta e faltava apenas o pão, terminando de assar. Enquanto esperavam, os dois jovens ficaram conversando na cozinha, Shura pensando se deveria perguntar ou não sobre Raul para a garota. "Ai, que eu faço, meu Deus? Pergunto ou não? E se a resposta for positiva e Julliete era realmente esposa de Raul? O que eu vou fazer?".

-Ah, já está pronto... Pegue aqueles panos para mim, Shura. – disse Julliete, abrindo o forno para tirar o pão. O rapaz pegou os panos e ele próprio retirou a forma para que a garota não queimasse as mãos.

Julliete cortou um pedaço da massa macia e cheirosa e ofereceu à Shura, que ainda segurava os panos.

-Experimenta, é uma receita de família.

-Não dá, minhas mãos estão sujas... – o rapaz respondeu, mostrando as mãos e braços sujos de fuligem, apesar de ter usado os panos para retirar a forma do forno.

-Isso não é problema, vem cá.

Julliete aproximou-se de Shura e deu-lhe o pedaço de pão na boca. O rapaz sentiu o corpo estremecer com o gesto e também com...

-Nossa!

-Ai, me desculpe... Eu esqueci que está quente! – disse Julliete entre risos, segurando com uma mão o pedaço que o rapaz acabou cuspindo, enquanto limpava o queixo dele com a outra.

Por instinto, Shura fechou os olhos, o toque das mãos de Julliete era tão delicado e macio. A garota percebeu a atitude do rapaz e se afastou, mas ele segurou suas mãos no ar, encarando aqueles belos olhos âmbar. Sentiu uma vontade enorme de beijar aquela boca tão pequena e rosada, chegou a aproximar seu rosto, mas...

-Uau, eu nunca tinha dormido em um colchão tão macio! – exclamou Miro, entrando pela cozinha, se sentando em uma cadeira.

Julliete se soltou de Shura e foi servir o mosqueteiro, o rapaz teve ímpetos de socar o amigo. Depois, considerou, melhor assim. Vai que ele realmente não conseguisse se conter e fizesse uma besteira! Porém, pode-se dizer que o castigo de Miro veio à cavalo...

-Esse pão parece delicioso... Ai, minha língua! – Miro cuspiu o enorme pedaço que colocou na boca – Por que não me avisaram que estava quente?

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Bem, chegamos ao final de mais um capítulo e eu gostaria de saber uma coisa: sou eu que sou louca ou acontece com vcs também, de os personagens às vezes criarem vida na suas cabeças e pentelharem as idéias? Sim, porque eu estou quase ficando maluca com o Miro me enchendo o saco, reclamando do que fiz com ele nessa fic... Isso é um sintoma de que minhas faculdades mentais já não são as mesmas?