Shaka estava dividido: corria em socorro de seu amado ou salvava a criança das chamas? Os ensinamentos budistas fizeram sua consciência falar mais alto e o loiro adentrou o edifício. Procurou desesperadamente pelo choro. Fechou os olhos e prestou atenção. A voz parecia vir do 3º andar. Correu até lá e começou a abrir as portas dos apartamentos.
A cada segundo as chamas ganhavam mais força e vigor. O indiano começara a sentir fraqueza devido à nova intoxicação pela fumaça inalada, mas não se deu por vencido. Já havia entrado em quase todos os apartamentos. Teria se enganado? Não! Tinha certeza de que era ali.
Percebeu que uma última porta havia restado. Foi até ela e tentou abrir. Para sua infelicidade e desespero, estava trancada. Correu até uma parede onde estava o machado de emergência, pegou-o e deu vários golpes contra a porta de madeira até conseguir abri-la.
Entrou e logo viu o responsável pelo choro: um bebê de 2 anos de idade, encolhido no sofá e tentando escapar do calor infernal das chamas. O indiano pegou o menino no colo e tentou dirigir-se à saída, mas não pôde. Havia sido bloqueada por um pedaço do edifício que havia cedido. Agora percorria o apartamento com o bebê nos braços, tentando achar uma saída. Não tinham mais tempo! Logo o apartamento teria sido consumido pelas chamas e o edifício estaria no chão.
Dirigiu-se à janela e olhou para baixo. Seria arriscado, mas teria que pular. Suas roupas estavam em estado deplorável devido ao incêndio e não tardaria para que ambos morressem sufocados. A criança já havia começado a demonstrar sinais perigosos de intoxicação.
Sem alternativas, Shaka saltou protegendo o bebê e conseguiu um milagre: não causara nenhuma grave lesão em nenhum dos 2. Os vizinhos começavam a aproximar-se com curiosidade e apontavam o indiano que agora se encontrava semi-nu. O budista deixou o menino no chão e saiu apressadamente. Tinha de cumprir a sua verdadeira missão: salvar a vida de Mu.
Estava ferido, mas não estava morto! Seu corpo apresentava queimaduras em todas as partes – a maior parte de 1º e 2º grau, mas não se importava com o seu estado físico ou com a atual aparência e sabia que um dos adultos que se aproximaram cuidaria do bebê. Entrou numa residência vizinha e não teve dúvidas: roubou as roupas do primeiro varal que viu. Até teria deixado um dinheiro se sua carteira não tivesse sido consumida pelas chamas no incêndio.
Não tinha percebido, mas tratava-se de um vestido rosa com flores francas, folhas e galhos num tom verde-mar. O modelo antiguíssimo caiu-lhe como uma luva! Seus longos cabelos (um pouco chamuscados) e sua pele alva, avermelhada pelas queimaduras davam-lhe um ar afeminadamente desleixado. Murmurou um "Eu mereço!" ao olhar para baixo e sentiu suas faces ainda mais afogueadas com o visual. Estava ridículo, mas não tinha escolha! Suspirou fundo e correu na máxima velocidade que seus delicados pés descalços o deixava. Passou bravamente pela lama numa rua imunda, lotada de casas mal-conservadas. O lixo urbano feria seus pés desacostumados a esse tipo de terreno e situação. Não sabia como, mas conseguira manter o celular em uma de suas mãos.
– Mu?
– Shaka, meu amor!
– Eu estou chegando... Como você está?
– Muito bem... Quer dizer, muito melhor apesar de tudo.
– E a situação, como está?
– Ele está nervoso... Um pouco inseguro, eu acho. Pode parecer loucura, mas há pouco juro ter visto seus olhos fiando vermelhos.
– Tem certeza de que não há como chamar a polícia?
– Tenho. Ele não é normal! Mataria a todos sem dó nem piedade, começando por quem fizesse a ligação.
– Vai dar tudo certo, acredite! Logo estaremos lado a lado.
– Eu confio em você!
Shaka novamente readquiriu novas forças para prosseguir seu trajeto. Algo lhe dizia que chegaria no apartamento de Mu a tempo. Salvaria seu amado e ficariam em paz. Talvez ele até se declarasse!... Sentiu o cabelo ser puxado e, ao olhar para trás, percebeu tratar-se de um grupo de marginais.
– A mocinha que companhia? – perguntava o maior e mais bêbado.
– Eu não sou mulher! – respondia Shaka, desviando-se dos sujeitos.
– Hum... É uma boneca! Adoro Barbie... – provocava outro mal encarado, sujo e feio.
– Me soltem! Odeio que me chamem de Barbie! – protestava o indiano.
– Venha, minha Mulher Maravilha! – pedia um sujeito magro e drogado.
Mesmo lutando com todas as forças, Shaka não conseguia vencer o grupo de marginais. Eram 8 contra 1 e o loiro já estava muito ferido e cansado. Um policial que acompanhou a cena correu em seu socorro.
– Soltem a moça imediatamente!
– Ah! Qualé, seu guarda! Deixa nóis brincar...
O grito altamente agudo que o loiro dera afastou os marginais, deixando-os em breve estado de pânico. O policial aproveitou e os expulsou. Pensou em dirigir-se ao que julgou ser uma bela e desafortunada moça, mas esta já havia sumido. Em verdade, Shaka havia aproveitado a confusão para usar toda a velocidade que conseguia e dar continuidade à sua missão.
Em instantes viu-se no meio de uma rua movimentada. Olhou o relógio e constatou que estava parado. Um vento frio arrepiava-lhe a pele delicada, já muito danificada pelos incidentes no meio do caminho. Sentou-se na calçada e chorou. Todos que ali passavam compadeciam-se da pobre moça e lhe davam esmolas.
O budista percebeu o que estava acontecendo, mas ouvira a voz de Mu saindo de seu aparelho telefônico antes que pudesse tomar qualquer atitude. Já estava desistindo de tudo! Sua vida virara de cabeça para baixo e tudo conspirava para seu insucesso naquela operação. Em tom de derrota, atendeu o amado.
– Tudo bem, Mu?
– Sha... Ele percebeu tudo... E o pior é que acho que já sei quem é! – dizia em prantos.
– V-você Descobriu? Quem é ele, alguém que conheço?
– Sim... O conhecemos muito bem!
– Quem é? Por favor, me diga! O que posso faz...
– É... NÃO, SAIA DAÍ, SAAAAAAAAIA! Meu Deus! Não sobrou mais ninguém... e agora?
– Não acontecerá nada. Eu...
– Droga! Ele está se aproxim... – Afirmava o trêmulo tibetano quando sua voz sumiu.
Shaka, no limite de sua angústia e desespero, constata que a bateria de seu celular havia acabado. Xingou-se por ter esquecido de carregar o aparelho naquela manhã. Surrou o chão, esfolando suas mãos e olhou o céu fechado. Gritava com raiva, a plenos pulmões:
– Oh Buda! Satisfeito? É o melhor que pode fazer? Não tem como piorar...
Mal terminou de proferir a palavra piorar uma forte chuva despencou. O indiano puxou seus cabelos, levantou-se e começou a bater a cabeça num muro próximo, inconformado pela sua má sorte. Em segundos estava com uma baita dor de cabeça e encharcado ela tempestade, o que deixava seu fino vestido transparente e colado ao corpo. Deixou-se cair com as costas grudadas ao muro, abraçou-se em posição fetal e, numa atitude digna de um autista, iniciou um movimento de vai e vem com o tronco, conformado com a morte do ser que mais amava.
Estava perdido, ferido dos pés à cabeça, com frio e fome, mas não se importava. Se morresse, encontraria o belo tibetano. Olhava as pessoas na rua. Era incrível que, mesmo sob uma noite de temporal como aquela, diversos casais podiam ser vistos de mãos dadas, sorrindo e correndo.
Sentiu um toque em seu ombro.
– Tia, você ta bem? – perguntava uma voz infantil.
Shaka fitava a criança. Aquele pequeno ser de cabelos rosados e olhos verdes lembrava tanto seu adorado Mu! Não conseguiu responder e já não tinha forças para fazer um único movimento. Pensou ter sido o toque de seu anjo. Ele adquirira viera despedir-se!
– Não chore... Olha, tente acreditar no seu coração... Siga em frente!
Aquelas palavras fizeram com que sua energia voltasse. Precisou de alguns minutos para voltar a ficar em pé, olhou para os lados e procurou o menino no intuito de agradecê-lo, mas havia sumido.Suspirou profundamente antes de levantar a cabeça e seguir em frente. Sentindo a boa energia que a chuva lhe trazia, pôs-se a caminhar na direção do apartamento do tibetano. Não esperava vê-lo com vida, mas agora sentia necessidade de reencontrar seu corpo. Um táxi parou no acostamento e abriu a porta ao loiro.
– Entre, senhorita. Acabará pegando um resfriado.
– Eu... – resolveu não responder e sentou-se no banco do carona. Não sentia vontade de corrigir o senhor ou mesmo de contar o drama em que estava envolvido. No fundo, talvez já não sentisse mais vontade nem de viver!
– Pelo seu sotaque, é estrangeira. Não sei o que faz a uma hora dessas nesse bairro, mas a levarei para casa. É só dizer o endereço.
Shaka sabia que não deveria abusar da gentileza daquele senhor, mas deu o endereço da casa de Mu. Recostou-se no banco e deixou-se tomar pela tristeza e amargura. Era incrível como agora tudo lhe parecia ser favorável. Era um castigo de Buda, agora tinha certeza! Depois da morte de seu amado, tudo daria certo.
Uma música melancólica tocava na rádio. Falava em morte, dor e sofrimento. O taxista percebeu que Shaka começou a chorar e mudou de estação. Tocava uma música romântica! Por ser de uma língua desconhecida, não sabia o que dizia, mas o ritmo o envolvia e encantava. Olhou pela janela e descobriu estar a poucos metros do corpo de seu falecido amante. Fechou os olhos fazendo uma prece em prol de sua alma e percebeu o carro parando.
– Droga!
– O que foi?
– O pneu furou.
– Eu o ajudarei trocar... – respondeu num timbre sereno. A dor em seu coração era cada vez mais forte, mas sabia que tinha de ajudar o motorista de alguma forma. Seria sua forma de pagamento pela corrida.
– Não precisa, senhorita. Estou acostumado...
– Por favor, eu insisto!... – desceu e foi ao porta-malas.
O loiro rapidamente trocou o pneu. Olhou fixamente avaliando sua performance e contatou, para sua desgraça, que havia posto o objeto de forma errônea. A roda estava torta! Torceu os lábios devido à frustração pela qual era tomado, olhou o prédio onde deveria entrar e viu o senhor aproximar-se, tocando seu ombro.
– Não se preocupe! Eu arrumo.
– Mas...
O taxista sorriu, deixando Shaka sem reação. O loiro acabou por retribuir o sorriso e tomou um tom levemente emotivo para falar. Um tom que não pretendia usar, mas era mais forte que ele.
– Obrigado! Olhe, eu não posso pagar-lhe em dinheiro, mas aceite isso como forma de recompensa. – Estendeu o rosário de pérolas brancas e negras que usava como colar.
– Não posso aceitar, senhorita. É uma jóia muito valiosa...
– Na verdade, é um tesouro de família.
A jóia era um presente dado por um rei à família de Shaka há mais de 10 gerações e sempre era passada ao primeiro homem que nascesse. A tradicional família budista sempre teve muito carinho pelo objeto e o loiro valorizava aquilo como a sua vida, porém, olhando àquele doce senhor, sentiu vontade de retribuir o gesto carinhoso que havia tido consigo. Não poderia pagar de outra forma e seu coração estava despedaçado. Primeiro Mu, agora o rosário! O que mais poderia perder? Tremia com a sua má sorte.
– Senhorita, não precisa me pagar. Faça o seguinte: retribua meu gesto quando tiver oportunidade, ajudando alguém, de alguma forma. – sorria ternamente.
– Obrigado senhor! Não sei como agradecer...
– Seja feliz, acredite na vida e passe pra frente.
Shaka notou que a chuva havia cessado. Colocou novamente a jóia em seu pescoço e estendeu a mão ao taxista. Correu em direção ao apartamento de Mu. Pisou em falso num buraco oculto pela água e torceu o pé. Respirou fundo, tentando não sentir a dor e continuou firme. Seus músculos começaram a retesar-se perante o prédio de seu amado, negando-se a prosseguir. Percebeu horrorizado que havia um silêncio horripilante ali e que era o único lugar sem luzes.
Um homem saía apressadamente do imóvel, trajando uma blusa negra e tinha o rosto coberto por um capuz. O vulto, com cerca 1,88m de altura e o corpo robusto aproximava-se perigosamente do indiano, que imediatamente o identificou. Estava escuro, mas seu instinto o fazia ver além. Era Saga!
O grego era um homem de boa família, porém emocionalmente desequilibrado e já estivera internado por causa de sua dupla personalidade. Seu irmão gêmeo era um conhecido criminoso que, no momento, cumpria sua pena em liberdade. Fora solto por bom comportamento!
Shaka percebeu que o homem de longos cabelos azuis levava um suspeito volume dentro de sua blusa. Teve a impressão de ter visto a calça suja de sangue e avançou sobre ele. Sabia que era o assassino do tibetano e estava disposto a largar toda a sua disciplina e fazer justiça com as próprias mãos! Espancou o grego sem dó nem piedade.
Saga havia sido pego de surpresa, mas não deixaria o loiro impune. Resolveu defender-se e, num momento de distração, acertou um chute baixo, atingido a parte sensível do outro. O indiano foi imediatamente ao chão, com o rosto coberto de lágrimas. Ao menos poderia morrer e reencontrar-se com o namorado.
