Ato 3: O Pastor
"Ai que ninguém volta/ ao que já deixou
ninguém larga a grande roda/ ninguém sabe onde é que andou
Ai que ninguém lembra/ nem o que sonhou
E aquele menino canta/ a cantiga do pastor
Ao largo/ ainda arde
a barca/ da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
deixa a alma de vigia
Ao largo/ ainda arde
a barca/ da fantasia
e o meu sonho acaba tarde
acordar é que eu não queria"
( Madredeus)
- Leah, ele não vão mais aparecer. – disse Lílian, já deitada na cama de casal. – Vamos descansar.
- Af. – resmungou, suspirando e voltando da janela, para se sentar numa cama de solteiro, colocada no canto da parede – Que diabos é esse bando de pirata morto vivo?
- Amanhã conversaremos com o reverendo Joaquim.
- Reverendo Joaquim. – riu Leah – aquele padreco baixinho e gordinho do meio da muvuca?
- É. Mannuel disse que ele pode nos contar a história dos piratas. Mas, por motivos religiosos, ele disse que o padre insiste em dizer pra população que tudo isso "é coisa do demônio". E, convenhamos, não é difícil o pessoal concordar.
- Eu, heim. Melhor dormir. Fortes emoções para uma primeira noite. – murmurou, deitando-se e virando para o lado.
Lílian, deitada no centro da cama, adormeceu rapidamente. Ao acordar em seu próprio sonho, estava deitada na mesma cama, no mesmo quarto. Mas a mobília era um pouco diferente. Usava uma camisola branca, cheia de babados. Levantou-se e se olhou no espelho. Sentia-se diferente, não sabia porquê, apesar de ela no sonho ter olhos azuis e cabelos mais longos, mais cacheados e castanhos. Olhou para um pequeno porta jóias na penteadeira e leu: "Tula de Castro".
- ...Tula de Castro? – estranhou – Será que eu... – virou-se ao escutar alguém pulando pela janela – Quem é...?
- Como quem sou eu?... – sorriu o rapaz – Esqueceste de seu amante, minha doce flor?
Lílian, na pele de Tula, não se sentia mal em ver aquele homem. Ao contrário, sentiu seu coração acelerar e seu corpo todo gelar e se esquentar em um segundo ao ver seu sorriso. O homem, jovem, alto, forte, vestia uma calça e uma blusa sem manga azul acinzentado, botas de couro, com uma faixa vermelha de tecido prendendo sua espada e seu revólver na cintura. Usava também um lenço na cabeça, prendendo os longos cabelos loiro escuro. Tinha um rosto marcante, com uma cicatriz na sobrancelha, nariz fino, olhos repuxados e penetrantes como os de uma serpente, e usava cavanhaque. A única jóia que usava era um brinco de ouro de argola. E ele lhe dava um sorriso maroto que deixava Lílian paralisada. Ela, sem saber ao certo porque, sabia quem era ele:
- ...Roz.
- É óbvio que você não se esqueceria de mim. – sorriu, lhe abrançando pela cintura e lhe beijando quase que com urgência.
Lílian tentou se desvencilhar de seus braços, mas simplesmente não conseguia força para isso. Era apenas espectadora, dentro do corpo da jovem Tula. Naquele momento ela teve uma certeza: não importava o que acontecia, em que época ou situação estava, ou qual a vida deles fora daquele quarto; o fato é que aqueles dois eram perdidamente apaixonados um pelo outro.
Roz ajoelhou-se na cama junto com sua amante, sem cessar os beijos, e, sem pressa, tirou suas botas, suas armas, seu lenço e sua camisa. E Lílian, na pele de Tula, não conseguiria segurar a paixão por aquele homem: não se importou de retirar sua camisola e se entregar completamente a ele, fazendo amor com um desejo e uma intensidade que ela achava que jamais pudesse existir.
Ao acordar com o barulho da taverna pela manhã, Lílian pôs a mão na testa, percebendo que estava exausta e relaxada ao mesmo tempo, espirando pela boca, um pouco zonza. Quase teve certeza que havia mesmo feito amor com aquele jovem. Ela fechou os olhos, respirando fundo, e lembrou-se de várias cenas da noite anterior: Roz beijando seu pescoço, sua boca, sua barriga, tocando cada parte do seu corpo com paixão e delicadeza, ela prendendo seu quadril com as pernas, enquanto segurava a nuca de Roz com força ou passava as unhas em suas costas...
- Oh, mulher, que cara é essa?
Lílian voltou a abrir os olhos e viu Leah ao seu lado, curiosa com sua aparente exaustão.
- Nada... – disse Lílian, tentando recuperar o fôlego – Eu só... sonhei... que... bem...
- Ahm... você pode contar outra hora?... O do bigode já mandou chamar a carruagem pra levar a gente pra igreja. Você tem que descer pra tomar café antes que aquele chato venha trazer na sua cama, porque ele acha que eu matei você durante a noite. - resmungou, levemente ofendida.
Lílian balançou a cabeça e se ergueu, indo logo para a Igreja, esquecendo-se do sonho alguns minutos depois.
Ao chegarem na pequena e antiga igreja, Lílian e Leah foram para uma salinha ao fundo, e se sentaram, enquanto o padre, incomodado, verificava se todas as portas e janelas estavam bem fechadas, inclusive as cortinas. Na quinta vez em que ele conferia tudo isso...
- Ei, reverendo... – começou Lílian – Não se incomode, nós duas só...
- Não é isso. – disse, aflito – É que as duas... enfim...
Ele, ansioso, sentou-se na mesa, de frente para as duas, como se elas fossem assombrações:
- Bem... há cerca de 3 séculos atrás... este vilarejo bruxo era um porto seguro para piratas e corsários, também bruxos. E o pirata mais famoso e temido era Iolaus... comandante da maior frota de piratas desses mares. E seu irmão caçula, Roz, era seu melhor homem, e também sub comandante dos seus piratas.
- Iolaus... aquele pirata que me deu um tapinha e me jogou longe? – perguntou Leah.
- Sim, eles eram irmãos por parte de pai, outro famoso pirata... eles viveram durante muito tempo por aqui. Um dia, Roz acabou salvando Tula, a jovem filha do responsável pela vila, dono da taverna onde vocês estão... ele acabou facilmente com um bando de ladrões das montanhas, salvando a vida dela. Como recompensa, o pai dela cedeu a mão da filha ao Iolaus.
- ...Ao Iolaus? - perguntou Lílian.
- Que sacanagem! – riu Leah – O cara salva a mulher e o pai dá a menina pra outro!
- Leah, por favor. – resmungou Lílian.
- O fato é que, mesmo com o irmão e chefe sendo apaixonado por Tula, Roz não abriu mão de sua amante. Nem Tula abriu mão de Roz para casar-se com Iolaus... isso fez com que o ódio crescesse entre os dois... a ponto de Iolaus se amaldiçoar. Tula morreu, ninguém sabe como ou porquê, e Roz, enlouquecido, desapareceu, provavelmente se matou... enquanto Iolaus jamais descansou, achando que o culpado era o irmão, que havia matado Tula por inveja. Ele jurou que viveria eternamente, até matar o irmão e recuperar sua noiva.
- Pô, fala sério... – comentou Leah – Quando o cara disse que não descansaria... não descansaria mesmo, heim?
- Sim. – murmurou o padre – Os piratas de Iolaus estão de volta... junto da maldição dele. Voltam como mortos vivos para recuperarem a vida que lhes foi tirada. E Iolaus... tem de devorar o coração dos escolhidos para poder voltar á vida. Cada coração devolve um pouco da vida à Iolaus. Mas nenhum deles irá fazer ele voltar, como será quando ele devorar o de Roz.
- O coração? – murmurou Lílian – Ele gritou que queria o coração de Leah na praia...
- Sai fora. - gemeu Leah.
- Ah, sim, sim... temos um... problema com vocês duas... – murmurou, estalando os dedos – Pelo que me pareceu na praia... você se parece com Tula... enquanto sua amiga... faz Iolaus se lembrar do irmão.
- Ah, fudeu! – xingou Leah – Foi por isso que ele ficou puto da vida quando me viu, ele acha que sou o irmão dele!
- E que sua amiga... é a amada Tula, tirada dele pelo irmão.
Lílian parecia petrificada:
- Eu... sonhei. – começou, em tom baixo – Esta noite, que eu era Tula... que estava no mesmo quarto... no passado...
- O quarto em que vocês estão era o mesmo dela, quando viva. - disse o padre. - A família do taverneiro é descendente da de Tula.
- Sim, e eu sonhei que... Roz ia no meu quarto, e... e...
- E...? – perguntou Leah.
- ...Bem... – encolheu-se, acanhada – Dizer exatamente o que fizemos... não é muito apropriado na frente do reverendo padre...
Leah e o padre ficaram olhando Lílian, que se corou. Até Leah, boquiaberta, exclamar:
- ...Você deu pro cara?... Que arreganhada, Lílian! Puta merda, você viu o cara no 1º sonho e já trepou com ele?
O padre olhou Leah um tanto assustado, quanto Lílian punha a mão na testa:
- ...Eu pedi pra não dizer, Leah. – suspirou – Mas esse não é a questão principal, no momento...
- Sua piranha!
- Senhorita! – exclamou o padre, olhando Leah.
- O que aconteceu... – disse Lílian, ríspida – É que, sim, Tula se parece comigo... e que, por incrível coincidência que seja... você lembra o Roz, Leah.
Leah ergueu as sobrancelhas:
- Impossível.
- Parecia. – lamentou Lílian – Era alto, forte, usava cavanhaque e tinha o rosto mais forte, obviamente, ele era um cara muito masculino, mas o rosto lembrava você sim, Leah.
- Quer dizer... uma versão macho minha te comeu? Credo! – resmungou Leah, parecendo enojada.
- Vocês querem parar? – exclamou o padre – Vocês duas podem ter parentesco com os piratas, não podem?
- Não. – esclareceu Lílian. – Como você disse, eles eram meio irmãos. Sou filha de trouxas, e minha família toda é trouxa, e inglesa.
- E meu pai é meio sangue, inglês também. E minha mãe era uma bruxa espanhola. Mas nada de piratas na família. – avisou Leah.
O padre balançou a cabeça:
- Coincidência ou não, a história é essa. E vocês, por parecerem essas pessoas, estão no alvo dos piratas. E eles hoje estão muito mais poderosos que antes.
- Você tem idéia de como pará-los?
- Não faço idéia.
- Ah, que booooooom! – exclamou Leah, contente, batendo as mãos.
Nisso um menino, que era coroinha na paróquia da vila, entrou, desesperado:
- Reverendo! Os piratas, reverendo!
Os três se ergueram, assustados:
- Mas de dia!
Nessa hora Lílian, seguida de Leah, já se adiantavam, correndo para fora da Igreja. O padre, antes de sair, pegou na mesa um grande colar com cruz dourada, e pendurou no pescoço, para depois segurar a barra da batina e sair atrás das duas.
Ao chegarem na praia, o grande navio fantasma estava novamente ancorado no centro da baía, com as velas rasgadas balançando no vento. Pela praia, alguns pedaços dos pescadores que tentaram sair do mar a tempo de salvarem suas vidas.
O padre parou na rua de pedra, sem descer a escadaria para a areia. Já as duas correram para o centro da praia.
- Nem vou perder tempo usando varinha. – murmurou Leah, sacando sua espada – Não somos bruxas especialistas com espadas? Vamos ver quem fatia mais, esses piratas nojentos ou a gente.
- Bom, se tivéssemos o que fatiar, seria mais fácil, não? – comentou Lílian, olhando os lados, a praia deserta.
Da areia, duas mãos agarraram os pés de Lílian, que gritou de susto e sacou a varinha, a tempo de atingir a cabeça do pirata que saltava na sua direção, vindo da terra, a olhando, gargalhando. O feitiço usado por Lílian explodiu a cabeça do pirata, que caiu de costas assim que terminou de sair da areia. Lílian deu alguns passos para trás, se desequilibrando.
Vários outros zumbis saltaram da areia, sorrindo.
- Lascou. – gemeu Leah.
Lílian olhava o corpo do pirata caído. De sua cabeça saíram apenas pedaços de carne podre e muitos, mas muitos pequenos vermes amarelos. Os bichos se agitaram e sumiram na areia. Em seguida, o corpo se erguia e, aqueles mesmo vermes se agitavam, reconstruindo a cabeça do pirata, dessa vez mais apodrecida que antes.
- ...Eca! – murmurou Lílian, se afastando.
Enquanto isso, Leah não se acanhava: saia mutilando cada morto vivo que lhe aparecia na frente, sem perceber que os pedaços em instantes eram colados e o zumbi se erguia novamente.
- Leah, eles sempre voltam, não adianta nada!
- ...Jura? – parou Leah, agora segurando duas espadas, a sua e uma de um pirata abatido. – Bem que reparei que já matei o mesmo pirata umas cinco vezes...
Um estrondo de tiro ecoou na praia, e Leah foi violentamente jogada de costas. Lílian, parada a alguns metros, sentiu o corpo gelar, olhando a fumaça sair do peito de Leah, caída na areia, o rosto coberto pelo cabelo negro. Olhou para frente e viu Iolaus, com a pistola soltando fumaça, apontada para onde a bruxa estava antes de ser atingida em cheio no peito.
- Volte para mim, Tula. – disse, baixando a arma e olhando Lílian, como se jogar alguém a metros de distância de costas com um só tiro fosse corriqueiro como matar uma mosca.
- Com essa delicadeza...? – murmurou, sem coragem de olhar se Leah estava viva ou não. – Bem capaz...
N.A 1: Se a Fantasma ficar mais de 2 dias sem atualização, é pq tou escrevendo ela em casa. o que não significa muita coisa, já que cada Ato é minuscularmente pequeno e nãod evo demorar muito para aumentá-lo.
N.A 2: Cada música do Ato tem algo a ver com o capítulo, mas, também era porque essa era basicamente as músicas que eu escutei enquanto escrevia. A idéia base da Fantasma (maldição de fantasmas zumbis que detonam tudo) não veio de Piratas do caribe, mas da música do Iron Maiden, que dá o título à fic. Pensei nessa história na época em que o CD Brave New World saiu. Mas, de certa forma, é bem parecido com Piratas do Caribe, que eu tb curto de mantão. )
