4. A Cinderela gosta de pudim

Faltavam duas horas para as seis e trinta. Faziam já vinte e duas horas que tudo havia acontecido. Hermione prometera que em seu tempo livre o ajudaria a buscar algum feitiço que lhe fosse de utilidade. Como não tinha tempo para esperar que isto ocorresse, planejou cuidadosamente cada passo a seguir para esse dia.

A primeira parte de seu plano não pode ser levada a cabo. Ainda que já tivesse podido percorrer o quarto com luz, e o recordasse quase à perfeição, tinha pensado em dar uma ajuda adicional à sua memória e ir um pouco antes para fazer uma última inspeção. Quando chegou, encontrou a porta fechada e, por mais tentativas que fizesse, foi impossível abri-la. Consolou-se, pensando que se lembrava do quarto o suficiente para não ter problemas ao movimentar-se mesmo sem luz.

Às seis em ponto regressou, disposto a não deixá-la ir tão fácil desta vez. Abriu a porta com apenas um girar do trinco. A escuridão era total, como no dia anterior. Entrou e tentou posicionar-se no mesmo lugar que da primeira vez. No entanto, nessa ocasião era diferente. Não era o impulso estranho que movia seus pés, quase contra a sua vontade, ele estava onde queria estar. Esperou por vários minutos. Sua paciência começava a se esgotar. E se ela não aparecia? E se a tinha decepcionado? E se...?

Antes que pudesse terminar de formular a pergunta voltou a ouvir o mesmo ranger de madeira. Ficou parado esperando que ela se aproximasse. Em questão de segundos sentiu sua respiração perto de seu rosto... Porém, desta vez, suas mãos não se pousaram suavemente em suas bochechas. Elas agarraram seus pulsos, imobilizando-os e impedindo-lhe de segurá-la como planejara.

Sua mente deixou de funcionar quando seus lábios fizeram contato novamente com aquele embriagante sabor de baunilha. Durou muito menos do que ele houvera desejado. Quando sentiu-a afastar-se, tentou soltar suas mãos para detê-la e impedir que escapasse, mas ela não cedeu; de um forte empurrão o fez retroceder três passos enquanto saía correndo. Harry tentou segui-la mas topou com uma cadeira que havia mudado de lugar desde a última vez que a vira. Tropeçou nela e caiu no chão, conseguindo, tão somente, segurar um pedaço de sua túnica por um breve momento, antes que também deslizasse de sua mão.

Arrastando os pés retornou à Sala Comum. Hermione ainda não regressara da biblioteca. Rony folheava uma revista de Quadribol. Quando o viu tentou conversar com ele sobre algumas jogadas e as últimas partidas da temporada, mas rapidamente se convenceu-se de que seu amigo não estava com ânimos de se socializar e voltou à sua revista.

Quase meia hora depois viu entrar Hermione, que se encaminhava para os dormitórios. Passou ao longe, como se não o tivesse visto. Porém, ele a deteve. Necessitava contar a alguém.

- Harry! - saudou distraída. - Como foi?

Conduziu-a até um local longe da Sala Comum e começou a contar-lhe o sucedido. Ela o escutou friamente, quase por compromisso. Parecia ter pressa para ir a seu dormitório. Por fim, permitiu-a ir depois que ela lhe prometera, uma vez mais, que encontraria a forma de ajudá-lo.

Seu sonho voltou a ser intranqüilo. À altas horas da madrugada, podia-se escuta-lo dando voltas e retorcendo-se entre os lençóis.

Uma longa fila estava diante dele. Eram quilômetros e quilômetros de garotas perfiladas frente a ele. Esperando sua vez de serem beijadas e descobrir qual delas tinha gosto de baunilha. A fila avançava lentamente e, como nas caixas de partilhas Berttie Bott, encontrava um sem fim de sabores, mas nenhum era remotamente parecido ao da "garota baunilha".

- Harry! Harry! - ouviu os gritos de Rony. Sentiu uma forte sacudida e abriu os olhos profundamente cansado contudo, muito agradecido para com seu amigo. A seguinte na fila era Millicent Bullstrode.

Neville estava saindo do dormitório à toda pressa. Rony, que estava totalmente vestido diante dele, lhe indicava o relógio. Em cinco minutos teria aula de Trato de Criaturas Mágicas. Precisaria de um vira-tempo para chegar pontualmente. Levantou-se sem vontade alguma, deixando que Rony saísse correndo rumo à Cabana de Hagrid. Por alguma razão, sentia os lábios entumecidos. Lembrou do sonho. Aquilo começava a afetá-lo demasiadamente.

A vários metros de distância pode ver Hagrid e o restante da turma, que perambulava atrás de um estranho animal, do qual unicamente pode distinguir umas patas parecidas com as de um avestruz e uma estranha cauda pela qual lançava um vapor que queimava, a julgar pelos gritos que saíam de quem era alcançado por ele.

Hermione falava com Hagrid numa distância prudente de todo aquele movimento. Aproximou-se deles enquanto afrouxava sua túnica. Sentou-se sobre uns velhos sacos de sementes, esperando que ninguém, a exceção de Hagrid e Hermione, percebesse seu atraso. Afortunadamente para ele, sua entrada ocorreu no mesmo instante em que o animal tomava por bola o livro de Dino e começava a jogar com ele uma partida de futebol. Depois de intercambiar uma breve saudação, o silêncio entre eles se fez total.

Quando Hagrid conseguiu controlar o animal e este foi encerrado num curral especialmente disposto para isso, pediu-lhes que se aproximassem e tomassem notas e alguns desenhos. Aproveitou, como sempre, para aproximar-se de Harry e Hermione no intento de conversar um pouco com eles.

Dirigiu-se a ele com um enorme sorriso nos lábios.

- Hermione já me contou... - disse-lhe com satisfação.

- O que! Você não podia ter ficado calada! - gritou, dirigindo-se a Hermione, sem importar-se que a turma inteira estivesse agora atenta a ele. - Para sua informação, eu tenho tudo sob controle. Hoje mesmo penso ir e dizer-lhe que seu joguinho não me agrada e que...

- Harry! - gritou também Hermione. Abriu e fechou a boca várias vezes. Ao final, pareceu não encontrar as palavras que expressassem o que queria dizer, e recolheu suas coisas antes de lançar um eloqüente olhar a Hagrid e partir rumo ao Castelo.

- Ela não tinha nenhum direito de dizer a você... - justificou Harry, mas se deteve ante o olhar decepcionado de Hagrid.

- Ela me contou que fora uma das selecionadas para representar o colégio nas Olimpíadas de Magia. Mas, evidentemente, você falava de outra coisa. Não, não, não... - disse, levantando sua mão, quando Harry tentou explicar-se. Pegou um dos sacos que continham o alimento da nova mascote da turma e afastou-se dele. - Não farei perguntas.

Sentindo-se mais tolo do que havia se sentido nos últimos dias, dedicou-se a contemplar o animal. Pusera tão pouca atenção na aula que não sabia sequer se essa criatura estranha diante dele - e não estava falando de Crabbe - tinha um nome. Dedicou-se, por um momento, a contemplar seus grandes olhos negros e brilhantes. Realmente havia acordado. Não apenas não ajudara Hermione a preparar-se para a concorrência, como também não estava nem inteirado de que ela participaria... na realidade, era a primeira vez que ouvia sobre as Olimpíadas de Magia. Tinha-a pressionado com perguntas, subtraindo-lhe um precioso tempo que bem poderia ter aproveitado para preparar-se. Pensou que, na próxima vez em que aquela besta - e novamente não se referia a ninguém de Sonserina - quisesse estirar suas longas patas numa partida de futebol, iria oferecer-lhe a sua cabeça como bola, no lugar do livro de Dino.

Não voltou a ver Hermione até a hora da ceia. Uma espessa mata de cabelo castanho que se assomava pela capa de um grosso livro de Transformações, indicou-lhe que ela estava ali. Sentou-se a seu lado, a única prova de que sua presença havia sido notada foi um rápido olhar, quando ela suspendeu momentaneamente a leitura para tomar um gole de seu copo de suco.

- Quer que eu ajude você a estudar? - Perguntou timidamente, tentando pegar uma batata com seu garfo. A batata escorregou e saltou de seu prato para o suco de Hermione, que salpicou não só no livro como numa parte de seu cabelo. Ela fechou o livro e colocou-o de lado, enquanto girava os olhos.

- Eu sinto. - Desculpou-se, ajudando-a a secar o livro com uma guardanapo.

- Foi um acidente. - disse, dando de ombros sem olha-lo.

- Não, eu falo pelo ocorrido nesta manhã. - Murmurou.

- Qual parte? Por ter gritado comigo? Por ter desconfiado de mim? Por não saber que eu vou representar a escola? - Perguntou-lhe em voz baixa, mas com um tom frio. Seus braços estavam cruzados e se dirigia mais a jarra de suco diante dela do que a Harry, que estava à sua direita.

- Por tudo, suponho. - Respondeu, espetando, com êxito, outra batata com menos desejo de escapar.

Hermione suspirou e, por fim, pegou um dos pudins diante de si. Harry considerou aquilo como uma silenciosa declaração de paz. Hermione passou um longo tempo com o olhar fixo num ponto a vários metros a sua frente. Um sorriso malicioso começou a desenhar-se em seu rosto. Finalmente, a curiosidade venceu Harry e ele quis saber o que era que chamava tanto a sua atenção, seguiu seu olhar até chegar a mesma de Sonserina, especificamente, até Draco Malfoy, que saboreava despreocupadamente um dos pudins de sua mesa.

- O que tanto você vê em Malfoy? - Perguntou-lhe, com um gesto de desagrado.

- A noite você disse que sua Cinderela era muito forte. Ou seja... - disse num tom analítico.

- ... que o único que sabe dela é que é muito forte para uma garota e o assunto da baunilha. - Terminou sem tirar os olhos de Malfoy.

Harry assentiu sem muita convicção. Não entendia aonde ela queria chegar e nem porque, para fazê-lo, tinha que devorar Malfoy com os olhos.

- Ontem também teve pudim. Malfoy já está na quarta porção da sobremesa. - Dissimuladamente observou Harry encolher os ombros. - Parece ser muito aficcionado em pudim. - Afirmou como se acabasse de fazer uma grande descoberta.

- E? - Perguntou Harry, afastando seu garfo.

- Francamente, Harry! O pudim leva baunilha! - Disse-lhe, enquanto, por fim, voltava o rosto para ele. - Você não chegou a pensar que a sua Cinderela bem poderia ser um garoto? Depois de tudo, do ódio ao amor... - Sugeriu, enquanto indicava, com muita dissimulação, Draco.

Harry começou a negar com a cabeça, ao tempo em que olhava alternativamente Hermione e Draco, o qual, pela primeira vez, parecia totalmente alheio a qualquer coisa que acontecesse na mesa da Grifinória.

Um gesto de horror mesclado à incredulidade distorceu suas feições. Negava com a cabeça cada vez mais com maior veemência. Sentiu seu estômago contorcer-se, quase pode sentir também como empalidecia.

- Você está louca! - Exclamou, erguendo-se da mesa. De imediato, havia sentido o impulso irrefreável de lavar a boca uma dezena de vezes seguidas. Queria vomitar. Encaminhou-se, correndo, para o dormitório, passando longe de Rony, que parecia mais surpreendido pela gargalhada de Hermione que pela corrida veloz de seu amigo.

- O que se passa? - Perguntou inquieto, enquanto o via afastar-se a toda velocidade.

- Creio que está se tornando alérgico à baunilha. - Respondeu Hermione, entre risos.


Continua...