5. Os mil e um truques da Cinderela

Levava mais de meia hora sentado, contemplando o fogo com expressão de asco. Constantemente, levava a mão à boca e a limpava com a manga da túnica; depois, sacudia a cabeça como se fosse repentinamente atacado por um tique nervoso. Aquilo era uma piada, Hermione devia estar brincando. Era uma brincadeira, era uma brincadeira, era uma brincadeira... depois de quinze minutos se repetindo mentalmente, aceitou como verdade. Levantou-se e a imagem de Draco e o pudim voltaram à sua mente... sentou-se novamente e receitou-se outra dose: é uma brincadeira, é uma brincadeira, é uma brincadeira.

Não notou a chegada de Hermione, nem que esta levava quase dez minutos contemplando-o, com um riso abafado, desde longe. Por fim, acercou-se e sentou-se na cadeira mais próxima da que Harry ocupava. Sem poder recobrar a seriedade habitual de seu rosto, continuou observando-o por um tempo.

- Realmente, você não acreditou que foi Draco, não é? - Soltou prontamente, com o mesmo tom que se emprega para fazer entender a um menino de cinco anos que não existe nenhum monstro dentro do armário.

- Obviamente que não! - Respondeu-lhe com um risinho nervoso, que a fez acreditar no contrário. - Como sabe que não foi ele? - Perguntou, tentando soar indiferente.

Hermione voltou a rir com todas as forças. Várias lágrimas começaram a assomar-se por seus olhos e apertava com força o estômago. Sentiu-se humilhado.

- Porque ontem teve treino de Quadribol durante toda a tarde, lembra?

- Sim, já sabia. - Replicou, com ar despreocupado, mas seu rosto se relaxou visivelmente.

- Bom, já é quase hora, não? - Perguntou Hermione, olhando seu relógio com ar profissional. - Espero que ela dê a você a oportunidade de dizer que está cansado do 'jogo', antes que ela saía correndo. Não se concentre muito no beijo ou você poderá esquecer o que ele quer dizer... - Terminou Hermione, tentando manter-se séria.

Harry olhou-a ofendido. Na última vez que a vira rir dessa forma ela tentava dissimular o efeito que lhe provocava o exagerado medo de Rony à aranhas. Procurou adotar o que ele considerava de um rosto decidido e consultou também seu relógio com total indiferença.

- Sim, já é hora e não se preocupe. - Disse, pondo-se de pé. - Não vou perder meu tempo com tolices, simplesmente lhe direi que já basta, não haverá distrações desta vez.

- Ah! Pensei que você gostava muito dessas distrações... - Respondeu Hermione, com uma sobrancelha erguida.

- São tolices. Tenho coisas mais importantes em que pensar e não nos caprichos de uma menina boba. - Declarou, desejando que ele mesmo pudesse acreditar em suas palavras. Saiu com passo firme e, uma vez fora da Sala Comum, quase correu porque faltavam menos de cinco minutos para as seis e meia. Quando chegou ao quarto se deu conta de que teria sido mais fácil e mais "acreditável" pedir a Lucius Malfoy que o adotasse do que dizer à sua misteriosa Cinderela que estava farto de baunilha.

Ansioso, esperou e esperou. Quando seus olhos notaram a escuridão profunda, seu cérebro reagiu levando até seus lábios uma breve recordação do sabor ao qual tão aficcionado havia se tornado. Seu coração começou a bater mais rápido que o normal. Lembrou de uma lição na escola trouxa, algo sobre um Pavlov, cujos cachorros começavam a salivar ao escutar a campainha que lhes anunciava o alimento. Sentiu-se como um deles. A escuridão era sua campainha e, no lugar de salivar, suas mãos começavam a suar. Esperava, ansiosamente, seu prêmio. Contudo, seu prêmio não chegou.

Faltavam uns minutos para as sete quando, por fim, se convenceu de que não receberia sua dose de baunilha aquela tarde. Saiu com a cabeça baixa, arrastando os pés enquanto se encaminhava, com um profundo olhar de decepção, para os dormitórios.

Viu Hermione esperando-o na Sala Comum mas, quando ela estava por abrir a boca, ele ergueu uma mão pedindo-lhe silêncio e, sem mais, se dirigiu ao dormitório.

Totalmente distante, na manhã seguinte sentou-se para comer sem dar a mínima atenção à habitual briga de Rony e Hermione. Não percebeu os venenosos comentários de Malfoy sobre sua próxima partida de Quadribol, ainda que este se encontrasse a uns passos dele. Na realidade, o mesmíssimo Voldemort poderia estar diante dele, compartilhando o cereal e pedindo-lhe que lhe passasse o leite, que Harry haveria lhe dado a jarra, a pedra filosofal, ou a própria profecia sem sequer piscar.

Pôs-se de pé por inércia quando o fizeram os demais, deixou o prato intacto, pegou suas coisas e, sem saber porquê, seguiu Rony e Hermione para a sala de aula, supôs, mas não estava muito certo.

- Você se sente bem? - perguntou-lhe Hermione um pouco inquieta, estava a metros de distância caminhando atrás de Rony para que ele os deixasse.

- O que? - Perguntou Harry, com o mesmo gesto de incompreensão que haveria colocado se acabassem de perguntar-lhe a hora em russo. Segundos depois o eco da pergunta de Hermione chegou a seu cérebro, justo quando ela estava por formulá-la novamente. - Sim, sim. Estou bem.

- Francamente, Harry! - Exclamou Hermione, estancando em pleno corredor e provocando que o tráfego rumo à sala de aula de Feitiços aumentasse. - Não me diga que está assim porque essa sujeitinha deixou você plantado ontem, verdade? - Perguntou-lhe, deixando cair sua pesada mochila no chão e cruzando os braços.

- Ela não... - deteve-se. Ia dizer que ela não era nenhuma sujeitinha, porém antes que as palavras saíssem de sua boca deu-se conta do quão ridículas seriam e se conteve. - Ela não tem nada a ver com isso. Estou preocupado com a partida da semana que vem, isso é tudo.

- Continuou caminhando para evitar o olhar de Hermione, como sempre fazia quando mentia.

- Sim, claro, pela partida. E eu faltarei a meu exame de Aritmancia para ir a Hogsmeade afim de renovar meu guarda-roupa. - Levantou a mochila e seguiu-o de perto. - Talvez você tenha sorte e hoje a encontre nesse quarto, para que acalme a sua angústia por causa da "partida". - acrescentou, com um acentuado tom de sarcasmo. Harry continuava sem olhá-la, razão pela qual não pode notar o estranho sorriso de satisfação que se desenhou no rosto de sua amiga.

A curiosidade e a ansiedade foram mais fortes em Harry do que o bom senso e a prudência, que lhe aconselhavam não ir e acabar com isso de uma vez por todas. Pontualmente, chegou ao mesmo lugar e esperou uns segundos. Ouviu uns passos conhecidos; mas, desta vez, antes de senti-la aproximar-se mais, sentiu umas diminutas gotas de alguma coisa que caíam sobre suas mãos e estas ficaram entumecidas no mesmo instante. Depois disso, ela começou a aproximar-se e, uma vez cumprida sua missão, se foi. O efeito daquelas gotinhas sobre as mãos de Harry passou ao fim de dez minutos. Contudo, começava a acreditar que o efeito do beijo o acompanharia para sempre.

A partir daquela tarde um toque extra foi acrescentado ao jogo de mistério: o da incerteza. Cada tarde, sem falta, Harry estava presente no mesmo local e na mesma hora. Mas a "Misteriosa Cinderela de Baunilha", como Hermione a chamava, fazia todo o possível para pôr em prova a paciência de Harry. Aparecia uma em cada três ou quatro tardes e nunca se sabia, ao certo, se seria um domingo ou uma terça-feira a próxima vez em que ela se apresentaria. E, tampouco, sabia que novo feitiço, poção ou simples truque ela usaria para impedir que ele a alcançasse.

Com o passar dos dias, sua imaginação tinha voado e já havia formado mais que um rosto, e sim todo um caráter de sua garota-baunilha. Era inteligente, disso não havia dúvida. Era forte, o comprovara; decidida e valente, ou do contrário, nunca teria se atrevido a começar aquele jogo. Mas também era terna e doce quando o beijava. Ela era simplesmente perfeita, o tipo de pessoa que podia estar ao lado de alguém como ele.

Se tão somente conhecesse alguém assim...!

Os dias passavam normalmente para o resto da escola e, enquanto Harry passava as noites atormentado por seus novos pesadelos e as tardes cheio de ansiedade, tentando averiguar se teria ou não sorte na próxima ocasião, Hermione se deixava ver cada dia menos e passava quase a totalidade de seu tempo livre enfiada na biblioteca. Quando aceitava sua companhia era simplesmente para que a ajudasse a repassar alguma lição, depois da qual Harry podia convencê-la a que lhe explicasse, em dez palavras no máximo, o novo feitiço graças ao qual ele tinha falhado, novamente, na captura de sua presa. Quando ele se queixava das explicações tão vagas que ela lhe dava, ela abria de imediato algum livro, enterrava o nariz nele e reclamava por fazê-la perder tempo com bobagens, quando ela devia estar se preparando para a Olimpíada. Harry tinha que aceitar a sua derrota e, com certa culpa, pegar um livro para ampliar a explicação por sua própria conta.

Numa quarta-feira, justo quando a neve começava a derreter, Harry cruzou com um cartaz que anunciava uma visita a Hogsmeade para o próximo fim de semana. Pensou que passar o dia num longo passeio e, talvez, uma cerveja amanteigada, seria uma boa forma de descarregar suas idéias. Sugeriu a Hermione, que o seguia a dois passos de distância, lendo enquanto caminhava e murmurava sem parar parágrafos inteiros do livro, quase sem deter-se para respirar. Harry não tardou em arrepender-se de sua brilhante idéia.

- Está louco! - Gritou-lhe, histérica, suspendendo a leitura por um momento. - Na segunda-feira é a Olimpíada! Você acha que perderei todo o dia em Hogsmeade?

Harry retrocedeu dois passos, afastando-se dela. Quando estava sob muita pressão, realmente podia fazer um Rabo-Córneo Húngaro parecer um doce cachorrinho pequinês comparado com ela.

- Está bem, era apenas uma idéia. - disse, em tom de desculpa.

Acomodaram-se em seus lugares de sempre na Sala Comum e, uma vez que Hermione terminou de cobrir a mesa com pergaminhos, livros e penas, Harry dedicou-se a observá-la com a cabeça apoiada nas mãos e o rosto aborrecido porém, lentamente, sua expressão foi mudando até converter-se na mesma que teria adotado, se soubesse que Voldemort havia morrido vítima de uma intoxicação com frutos do mar. Seu sorriso não podia ser maior.

- O que ocorre? - Questionou Hermione ao notá-lo.

- Bom... - disse, sem deixar de sorrir. - Na segunda-feira é a Olimpíada, ou seja, todos os nerds da escola... - Hermione olhou-o com as sobrancelhas perigosamente juntas. Considerou a advertência e se corrigiu. - Quer dizer, os mais inteligentes estarão fora todo o dia, ou seja, se ela não aparecer na segunda... Quem mais irá à Olimpíada? - Perguntou, entusiasmado.

Hermione olhou-o, sem palavras, por um momento. Harry deu por fato que acabava de surpreendê-la com o uso de sua lógica e de suas habilidades dedutivas.

- Bo-bom... - gaguejou Hermione - ... isso não quer dizer nada...

- Claro que sim! - Exclamou impaciente. - Diga-me, quem mais vai?

- Não tenho tempo para isso agora, Harry. Espere até a segunda e, se ela não aparecer... então... então, talvez, tenha tempo para dizer a você o que quiser, agora tenho muito a estudar. - Disse, recolhendo suas coisas antes de encaminhar-se, a toda velocidade, para o dormitório enquanto deixava pergaminhos espalhados à sua passagem.

Nos dias seguintes, Hermione mostrou-se distante e esquiva mas Harry não se surpreendeu em absoluto, estava seguro de que uma vez passado o assunto das Olimpíadas ela voltaria a ser a mesma. Ele, enquanto isso, esperava a segunda com mais ânsia que Hermione, sobretudo porque sua misteriosa Cinderela levava quase uma semana sem dar sinais de vida.

A segunda-feira chegou quando, então, pode averiguar os nomes de quase todos os que integravam o grupo que representaria o colégio - sem ajuda de Hermione, claro. Entre suas possíveis candidatas, estava uma garota da Corvinal do sexto ano e outra do sétimo, além de uma Grifinória do sétimo e uma do quinto da Sonserina, que parecia a irmã gêmea de Dudley. Passou horas rezando que não se tratasse desta última.

Apenas pode desejar boa sorte a Hermione antes de vê-la retirar-se atrás da Professora McGonagall e um pequeno grupo de alunos. Depois de fazer uma última análise de cada uma de suas candidatas, saiu correndo para a aula. Pela tarde, passada a hora da ceia, teve prática de Quadribol. Desgraçadamente, quando estava a ponto de dar por terminado o treino, Gina, ao tentar exibir uma de suas piruetas para um de seus pretendentes, que a observava desde as grades, deu um giro demasiado brusco e caiu estrondosamente de sua vassoura, para grande angústia de seu apaixonado. Harry teve que suspender precipitadamente o treino para levar Gina à enfermaria. Quando Madame Pomfrey saiu e lhes assegurou que num par de horas estaria bem, seu relógio já marcava 6:25.

Nas escadas do segundo andar, viu-se obrigado a deter, momentaneamente, sua corrida para tomar um pouco de ar antes de prosseguir; o descanso ajudou-o a adquirir maior velocidade e quando dobrou a última curva chocou-se com alguém, que, ao que parecia, tinha tanta pressa quanto ele. Era a Professora McGonagall. Com mais pressa que eficiência, ajudou-a a recolher parte dos livros que haviam caído de suas mãos, depois de dar um descuidado "Eu sinto", e tratar de sair correndo novamente.

- Por todos os céus, Potter! - Exclamou algo irritada quando, ao tentar sair correndo, sua túnica enganchou-se no broche que ela levava ao peito. Harry o observou enquanto tentava retira-lo de sua túnica, era uma pequena varinha que se entrelaçava com cinco aros de diversas cores e sob a qual estava uma pequena placa, que, com letras negras, dizia: Minerva McGonagall. - Quer ter mais cuidado?

- Sim, sim. Eu sinto... é que... tenho algo urgente que fazer, eu sinto Professora. - disse, quando, por fim, conseguiu livrar-se.

- Eu também tenho pressa, mas isso não é motivo para... - Ainda conseguiu ouvir enquanto se afastava correndo.

Chegou, ainda, com a respiração agitada e abriu a porta sem saber, ao certo, se ela havia chegado ou não. Como sempre, ouviu a porta fechar-se automaticamente. Esperou, em total silêncio, por vários segundos, sentindo como seu coração continuava batendo aceleradamente. O rangido de madeira fez com que suas mãos começassem a suar. Justo quando começava a perguntar-se que novo truque usaria desta vez para fugir com facilidade, seu rosto aproximou-se do dele e pode perceber que ela também parecia agitada. Para sua surpresa não houve truques nessa ocasião. Apenas deixou-se ouvir um leve suspiro quando ela começava a afastar-se. Quase por impulso, esticou sua mão para retê-la e conseguiu pegar um pedaço de sua túnica, dentro do qual encontrou algo frio e duro. De imediato, sentiu outra mão lutar com a sua para recuperar a liberdade. Um ruído breve, como de metal rompendo-se, chegou a seus ouvidos.

- Não se vá! – Suplicou, quando ela deu um passo, distanciando-se, e ele tropeçou novamente com algo no chão. Mas seu punho seguia apertado, com algo dentro dele.

Tremendo e sentindo o coração bater descompassadamente em sua garganta, saiu do quarto em busca de uma melhor iluminação. A débil luz da noite que começava a cair iluminou-o ao sair, aproximou-se de um archote em busca de maior claridade. Observou mais de perto seu punho ainda fechado, sem atrever-se a abri-lo. Segurando a respiração, esticou os dedos lentamente, e o que encontrou na palma de sua mão o fez sentir-se enjoado.


Continua...