CASAMENTO GREGO

CAPÍTULO 10 – ANDRAS MOU, GINECA MOU

Terpsícore até pensou em fazer a cerimônia dos antigos na praia do Santuário, mas sua mãe e tia nem piscaram. Ali mesmo, em Milos tinha uma enseada própria pra isso. Os aldeões respeitavam o lugar, era tido como amaldiçoado pelos velhos só para mantê-lo longe de turistas e gente que não tinha nada a ver com o sangue antigo. Como tinham que esperar pela lua nova, Kanon, Camus, Milo e os gêmeos voltaram ao Santuário. Para todos os efeitos, Pipe e Saga já estavam aproveitando a lua-de-mel.

Os parentes também foram cada um pegando seu rumo. Saga passou a semana de espera, com seus cunhados e os primos navegando. Apesar de serem donos de comércio pesqueiro, os Andropoulos amavam estar no meio dos pescadores e dentro de um barco. Eram criaturas marítimas, devotos de S. Pedro e Poseidon.

Saga adorou aquela semana, no meio de homens rudes, de mãos calosas e coração aberto. A palavra "filo" (1) ali ganhava um significado maior. Durante o dia, ouvia as palavras sábias dos homens, aprendendo que o amor à Pátria era algo muito além do patriotismo idiota ensinado nas escolas. Amor por cada árvore, cada pedra, cada pedacinho de terra ou gota do mar azul da Grécia era uma coisa que só se aprendia ali, em contato direto. À noite, conversando com Euterpe e Mnemosina, conhecia um pouco da história dos antigos. Pura tradição oral, confundida com lendas, mas repetida para que não se perdesse. Na tribo de Mu, nas ilhas britânicas, no deserto do Saara, nas estepes da Lapônia, junto aos ciganos, sempre procurou-se salvar um resto do povo antigo, civilização matriarcal, que se preocupava com o coração, com o ser e o ambiente que o cerca. Um povo que sabia agradecer cada dádiva recebida da terra-mãe, até as pedras preciosas que atraíram a cobiça e a inveja e os destruíram.

-Eu sou o esposo, apenas o fecundador, então? – provocava ele, deitado com Terpsicore, depois de uma conversa.

-Claro que não. A sociedade era matriarcal, querendo dizer com isso que o nome da mãe era importante, por elas serem as sacerdotisas e quem detinha o conhecimento. Mas não eram como as amazonas de Hipólita, que odiavam e exilavam os homens. Isso é idiotice. O povo antigo sabia muito bem qual eram os lugares dos homens e das mulheres e como eles deviam trabalhar juntos para manter a sociedade estável.

-Se sabiam, como foram destruídos?

-Por ambição, da mesma forma que houve uma serpente na tradição cristã houve um núcleo que cansou de ser "igual" a todo mundo e quis ser "mais e melhor". Algo como vários Judas Iscariotes reunidos.

-Com certeza eram homens...

-Com certeza tinham mulheres de cabeça fraca com eles. Quando uma mulher decide que vai entregar tudo na mão de um homem, esteja ele certo ou errado, o mundo inteiro se ferra. Um homem não deve tomar nenhuma decisão sozinho. Ele precisa de um segundo ponto de vista. Se for de uma mulher, melhor ainda. Nós temos a intuição, nós podemos dizer claramente aquilo que ele nem pensou diante do problema.

-Então toda mulher é meio feiticeira mesmo.

-Toda. Algumas sabem disso outras não. Mas toda mulher nasce intuitiva. Para ler dentro do olhar o coração do outro. Só que você sabe. Todo mundo tem olhos e cérebro. Alguns sabem ler outros não.

-Vou fazer como o Shaka e andar de olhos fechados daqui pra frente.

-Oh, minha mãe, como posso ter casado com um homem tão tonto...

Um dia antes da lua nova, Terpsicore e as irmãs foram à enseada com os irmãos. Arrumaram tudo e logo Saga se juntou a eles. Agora ele estava meio ansioso, porque não quiseram lhe contar como seria o ritual. Apenas lhe garantiram que não seria nada demais nem teria um sacrifício humano.

-Só o seu – riu Markos. – Daqui pra frente, acordar todos os dias com essa megerinha de língua afiada e tapas doloridos.

Saga olhou para a praia. Madeira para uma fogueira, um balde, um pouco de terra. Ergueu uma sobrancelha. Parecia muita coisa, menos um ritual. Terpsicore esperou até que a noite estivesse alta, pediu a Saga que acendesse a fogueira, pegou água no mar e foi explicando.

-A mulher é fogo, o homem é água. Muita água no fogo o apaga, muito fogo pra água a seca. Na medida certa, produz vapor, cozinha alimentos, purifica a água...

-A mulher é terra, o homem é água. Muita água na terra vira lama que desmorona o que se constrói, afunda vidas que se apóiam nela, muita terra na água a sufoca, mata a vida que há na água. Na medida certa – e os dedos ágeis fizeram um boneco de argila – tornam-se construtores.

-A mulher é ar, o homem é água. Os dois são vitais, os dois são mortais. Bastam que esqueçam a força que tem e se enfureçam em cima dos inocentes.

Saga acompanhava as palavras, tão simples e tão profundas. Sussurrou à esposa:

-Só isso?

-Claro que não. Agora que você já ouviu a teoria, hora da prática.

-Prática? – E sorriu, vendo-a se despir.

-Sim, tire a roupa e entre no mar.

-Eu sou água... – sussurrou ele, enquanto os corpos se fundiam, como em todas suas noites de amor...

Mas naquele momento, Saga sentiu algo mais. Como se fosse ele mesmo líquido, sentia-se capaz até de respirar debaixo d'água, não porque fosse um peixe, mas porque era seu igual, a mesma coisa. Olhou para Terpsicore, e pensou que estava tendo uma alucinação, ela estava etérea, solta. E ao mesmo tempo eles respiravam e pulsavam vivos, como cada átomo, cada célula do planeta. Sentiam suas dores, suas alegrias, cada nova vida que vinha e cada morte que levava.

Sem perceber, Saga saiu do meio da onda e deitou Terpsicore na beira da praia, sussurrando: "eu sou água e você é a terra... deixe-me fecundá-la, Gaia" e fizeram amor com as marolas os cobrindo. E se lhe contassem que deitou a mulher no meio da fogueira, fazendo amor também acomodado nas brasas, em meio às labaredas, diria que estavam delirando. Como todos os homens que passaram pelo ritual, ele se lembrava de tudo como num sonho estranho. Muito bom, mas super estranho.

A única coisa real que ficou foi a voz de Terpsicore sussurrando em seu ouvido, antes de adormecerem:

-Agora sou sua de verdade, andras mou...

E ele respondendo, abraçando-a com firmeza:

-Gineca mou... (2)

N/A: Eu e a minha mania de rituais. Mas eu adoro ficar pensando neles. Na força dos elementos, na união do homem com o planeta. Tudo está vivo, tudo teve um Criador, então tudo tem mais é que estar junto Dele, de alguma forma.(1) "Filo" significa "amigo", mas em grego as palavras tem um significado muito maior que a definição. Um cinéfilo ou um bibliófilo são muito mais que amigos de cinema ou de livros. Quem é, me entende. (2)E pensar que eu escrevi toda essa fic só pra utilizar essas duas frases. Um dia, eu li um fic de Gundam Wing em que Duo chamava Heero de "andras mou". Quem lembrar de que fic é e de quem, por favor, se manifeste. Eu tenho a memória horrível pra relacionar titulo com autor. Eu li no shounen no jounetsu, da Evil Kitsune. Minha mente insana ficou virando essa frase na cabeça, pensando em como encaixá-la num fic de Saint Seiya, afinal, alguns personagens são gregos, certo? Persegui os professores de grego da minha faculdade, até que encontrei um aluno que fala grego moderno. E ele me disse a contraparte feminina da frase. "Andras mou" significa "meu homem" assim como "gineca mou" significa "minha mulher". (Se lê 'guineca") Como eu já disse, o sentido real é muito mais amplo que o mero sentimento de posse. 11/02/06.