A despeito de todos os boatos de crimes e ataques, a vida noturna da cidade não se abalou, e continuou movimentada como sempre. As pessoas comentavam e repetiam a mesma velha história do garoto assassinado num apartamento de luxo, até que se cansassem, até que tudo aquilo se tornasse uma lenda urbana ou uma pequena fábula com a qual os mais velhos aconselhavam os garotos a não darem confiança a desconhecidos. Ainda que houvesse passado muito tempo, o apartamento no sexto andar do prédio de luxo ficou trancado por muito tempo. Ninguém queria comprar ou alugar um imóvel que havia sido cenário de um crime - ainda mais de um crime tão mal resolvido.
Em uma casa de classe média, não muito longe, uma garota se arrumava em frente ao espelho. Já experimentara diversas roupas e penteados, mas não conseguia se decidir por nenhum.Claire não se considerava vaidosa, mas parecia que quanto mais comprava roupas, menos opções tinha para vestir. Acabou optando por uma blusinha rosa e um jeans.
- Acho que estou pronta - piscou para a própria imagem.
A porta se abriu subitamente.
- Claire! Aonde pensa que vai assim?
A garota virou-se, surpresa. Quem acabara de entrar era uma garota com longos cabelos pintados de vermelho, usando uma roupa preta com detalhes vermelhos e um coturno. As unhas estavam pintadas de preto, mesma cor da maquiagem em seus olhos. Claire sorriu.Pelo jeito sua mãe não perdera o habito de deixar sua prima entrar em seu quarto sem avisar que Claire tinha visitas.
- Oi para você também, Melissa.
- Claire, estamos indo a um show de rock!Não me diga que você vai assim... blusa rosa, cabelo escovado.
- Você sabe que eu não curto esse tipo de show, e que só estou indo pra te acompanhar, porque você é minha priminha favorita e a casa de show aonde você vai não deixa criança entrar desacompanhada.
Melissa cruzou os braços e franziu as sobrancelhas.
- Criança uma ova... tenho quase quinze anos! O problema é esse maldito convite.
E mostrou uma pequena propaganda do show. "Classificação – 16 anos. Crianças e adolescentes entre 12 e 16 somente acompanhadas"
- Tá vendo, Melissa? Criança - provocou Claire – estão falando de você.
Melissa abriu a boca para responder a provocação com um impropério qualquer, mas logo seu humor mudou ao ver na penteadeira a maquiagem de Claire. Havia uma grande variedade de maquiagem e perfumes. A garota pegou um batom vinho.
- Ah, que lindo! – ela aproximou-se do espelho, com a intenção de passar o batom nos lábios.
–Melissa, esse batom não fica bem em garotas de pele clara.
Não adiantou o conselho. O batom era exageradamente chamativo, e por mais que Claire insistisse em dizer que a prima estava horrível, Melissa se recusava a tirar aquela maquiagem dos lábios.
– Já que você vai ao show com essa roupa rosa ridícula, eu também não vou tirar o batom. E ainda por cima está de bolsa, como é que você pode ir a um show usando bolsa! Vai acabar sendo roubada, Claire! Escuta o que estou dizendo.
–E onde vou colocar os meus pertences? E... numa boa, amiga...você está ridícula... parecendo uma morta, uma vampira.
Nenhuma das duas cedeu, e Claire e Melissa saíram de casa, uma odiando o visual da outra. Eram ótimas amigas, mas sempre divergiam quando o assunto era moda.E embora Claire admitisse que era perigoso ir a um show usando bolsa, não conseguia encontrar um outro modo de carregar seu dinheiro, documentos, celular.
Já estavam na rua quando Melissa comentou, distraída.
– Falando em vampiros, a minha amiga Érica conhece um vampiro de verdade.
– Vampiro? – repetiu Claire, balançando a cabeça – de onde você tirou isso?
– É verdade – insistiu Melissa – Aliás, é um casal de vampiros... são os donos da agência de modelos. Eles tem um filho tão lindo, ele também só pode ser um.
– Melissa, não deve inventar coisas sobre as pessoas desse jeito! – aconselhou Claire, tentando fazer com que seu tom de voz não parecesse uma bronca.
– Mas eu não inventei, foi a Érica que... ah, deixa pra lá. – Melissa falou, amuada. Como Claire poderia repreendê-la por uma coisa que outra pessoa dissera? Que injusto. Ela não havia inventado nada, estava apenas compartilhando.
Claire apalpou a bolsa, com um sorriso malicioso.
– Se você está com medo dos donos da agência, acho que você não vai querer ir è festa da agência comigo... acho que vou convidar outra pessoa.
– Festa? Você não me falou de festa nenhuma, Claire.
– Eu ganhei dois convites ontem, no colégio.Uma garota da minha sala é modelo e trouxe um monte de convites para todos. Mas pelo jeito você tá com medo.
– Não estou com medo... – Melissa fechou a cara.
Antes que chegassem à casa de shows, avistaram ao longe a grande fila para comprar o ingresso. O convite que Melissa trouxera daria um desconto para o ingresso das duas, mas de nada adiantaria se não conseguissem entrar a tempo.
– A gente deveria ter comprado ingresso antecipado. – Melissa estava ansiosa, e a todo instante consultava o relógio – o show vai começar e nós ainda vamos estar aqui.
– Não se preocupe, a fila estava andando rápido.
Faltavam apenas dez minutos para o início do show quando chegou a vez das duas garotas comprarem o ingresso. Melissa respirou aliviada.
– Identidades, por favor.– pediu o bilheteiro. As meninas entregaram-lhe o documento. – hum... catorze, dezesseis... e o responsável?
– Bem, eu não preciso, porque a classificação do show é dezesseis anos – lembrou Claire – e ela está comigo, sou responsável por ela.
– Não pode – e apontou uma placa atrás de si, que dizia:
"Classificação dezesseis anos – menores entre doze e dezesseis anos somente acompanhados de um responsável maior"
– Não era isso que estava escrito no convite! Não é justo – ralhou Melissa, indignada. Tinha um personalidade forte, bastava falar um pouco mais alto e todos pensavam que ela estava brigando – Pelo que soube, bastava ter dezesseis anos e poderia ser acompanhante. Além disso ela é minha prima.
– Prima? Vocês são tão diferentes ... – o bilheteiro olhou as duas garotas, uma bem alta, magra e negra, a outra baixinha, pálida, um pouco fora de forma e com cabelos vermelhos – de qualquer forma o documento não prova que vocês são primas. Próximo!
Melissa continuou reclamando, mas Claire acabou convencendo-a de que não adiantaria nada continuar insistindo. Poderiam voltar um outro dia, acompanhadas de um amigo mais velho. Afinal, aquele show acontecia todos os meses, a banda era da própria cidade onde moravam e sempre se apresentava na mesma data.
– Nem acredito que me produzi tanto para nada! Que raiva! – queixava-se Melissa, emburrada – E que vou ter que esperar até o mês que vem para a próxima apresentação... pelo que eu soube, tem tantos gatos.
– Gatos, Mel? – Claire empinou o nariz – pensei que a gente tinha vindo aqui para ver a banda.
Súbito, o rosto de Melissa se iluminou.
– Aah, Claire! Acabei de me lembrar de uma coisa. Sempre quando eu passo pela rua perto de casa, encontro no caminho um garoto sentado à toa por aqui... ele é lindo! Será que a gente não poderia passar por lá, só para vê-lo?
–O que é isso, por acaso é um caso de amor platônico? – Claire sorriu.
–Nada disso. Hoje eu vou criar coragem e falar com ele, você vai ver só.
As duas garotas dirigiram-se para a rua onde Melissa morava, sob um intenso luar. Claire adorava a cor pálida do luar, embora suas horas favoritas do dia fossem o nascer e o pôr do sol, quando o céu da cidade ganhava um tom dourado, assustadoramente belo. Não se cansava de ver esse espetáculo sempre que tinha oportunidade.
–Olha, Claire... ali.
Pararam de caminhar. A certa distância, viam um muro baixo sobre o qual estava sentado um garoto que aparentava ter aproximadamente a idade de Claire, abraçado às próprias pernas e com o rosto parcialmente escondido pelas sombras. Estava tão imóvel que parecia um boneco de cera que havia sido colocado ali em exposição.Melissa aproximou-se, decidida, mas Claire estava hesitante; não sabia se deveria falar com aquele estranho, interromper-lhe aquela curiosa meditação.
Melissa estreitou o olhar para vê-lo melhor e comentou.
– Minha mãe costuma dizer que ficar tanto tempo exposto ao luar deixa as pessoas melancólicas.
O garoto virou o rosto devagar, como se só agora houvesse notado a presença das duas garotas. A luz do poste de iluminação pública incidiu sobre seu rosto, e Melissa e Claire puderam vê-lo melhor. Não era somente a imobilidade que o fazia parecer uma estátua de cera; a perfeição e delicadeza dos traços de seu rosto eram impressionantes. Ele definitivamente não parecia uma pessoa comum.E tinha uma pele tão alva, e era tão magro que nem parecia saudável.
– Sua mãe também não costuma lhe dizer para não falar com estranhos?
Melissa ficou boquiaberta. O tom de voz havia sido tão grosseiro, nunca esperaria uma reação como aquela. Falou, sem graça:
– Bom, desculpa se incomodo.
– E incomoda mesmo – ele retrucou.
– Melissa, acho melhor irmos embora – falou Claire, segurando o braço da garota. – ele não quer conversar, talvez uma outra hora.
Melissa assentiu com um movimento de cabeça, mordendo o lábio. Tinha um ar ligeiramente chocado enquanto se afastava com a prima. Que garoto estúpido.
– Deixa pra lá, Melissa – disse Claire, com a mão no ombro da amiga – ele era tão mal-educado que não vale mesmo a pena.
– Mas ele é tão bonito – Melissa estava muito decepcionada. – Será que ele me achou feia? Acho que foi esse batom horroroso que eu passei, você tinha razão, Claire.
Tirou um lenço de papel do bolso e pôs-se a retirar a maquiagem dos lábios.
– Não é nada disso... – retrucou Claire –Acho que ele só não estava a fim de conversar, só isso.
Claire deixou a prima na porta de casa, e rumou para a sua própria residência sozinha. Estava apreensiva, já que caminhar sozinha à noite não era muito seguro para uma garota naquela cidade, especialmente no centro. Apressou o passo e agarrou-se à própria bolsa. Resmungou sozinha ao perceber que passaria novamente pelo lugar onde estava aquele garoto grosseiro. Esperava sinceramente que ele não se lembrasse do seu rosto ou que ao menos não a visse passar. Por via das dúvidas, escolheu um atalho.
Havia caminhado apenas alguns metros, quando dois rapazes a abordaram. Pela expressão no rosto deles, não tinham boas intenções. Eram olhares sedentos, assustadores.
– Com pressa, princesinha?
Claire ergueu o olhar, gelando. Deu um passo para trás, fazendo menção de correr, mas um dos rapazes segurou a alça da sua bolsa. Surpresa, a garota puxou a bolsa pela alça e todos os seus pertences espalharam-se pelo chão.
– Não tenho dinheiro. – ela falou, ainda desejando sair correndo, mas parecia que suas pernas simplesmente se recusavam a levá-la dali.
– A gente não quer seu dinheiro, a gente quer você. – e seguraram-na pelos braços.
– Não! – ela tentou desvencilhar-se. Os dois rapazes não pareciam estar armados, e eram franzinos; ela não iria acompanhá-los assim tão fácil, sem pelo menos fazer um escândalo.
Porém apesar do físico pouco avantajado dos dois, eles eram fortes e começaram a arrastá-la. Claire largou-se no ar para que o peso do seu corpo dificultasse a empreitada. Súbito, os dois largaram-na de uma só vez e ela caiu de costas no chão. A garota encarou-os sem entender. Eles pareciam apavorados.
– Olha só! Aquele cara de novo!
Claire levantou-se e olhou na direção apontada pelos rapazes. Na entrada do beco, estava o garoto com quem Melissa falara há poucos minutos. Não era alto, nem forte – pelo contrário, também era franzino e tinha um ar quase angelical, embora seus olhos tivessem um quê de malícia – e estava desarmado, mas ainda assim a sua simples presença apavorara os rapazes que atacavam Claire.
– Vamos dar o fora daqui – um dos rapazes bateu nas costas do outro e os dois saíram correndo em desespero.
– Porque a pressa? – o garoto deu um passo à frente, com um sorriso malicioso – aonde estão indo?
Os dois rapazes desapareceram. Claire ficou confusa, não sabia se também deveria ficar apavorada ou agradecer ao garoto por tê-la ajudado. Sem saber o que fazer, ajoelhou-se no chão e começou a juntar os seus pertences, apressadamente.
– Obrigada – ela falou, sem erguer o olhar – você colocou aqueles marginais pra correr.
–De nada. Eu adoro fazer isso. – ele deu um sorriso sem graça.
–Porque eles têm tanto medo de você?
–Você também está com medo de mim, não está?
Claire mordeu o lábio. Ele era observador.
–É que... você foi meio grosseiro com a minha prima, sabe.
–Ela foi inconveniente. Deve ser bem chata.
Aproximou-se e agachou-se ao lado dela. Começou a ajudar Claire a juntar suas coisas e colocá-las na bolsa.
– Não, não precisa me ajudar com isso – ela tomou seus documentos das mãos do garoto – Você já me ajudou tanto, mandando aqueles caras embora! Eu nem sei como te agradecer.
O garoto pegou dois pedaços de papel laranja que haviam caído da bolsa de Claire, e correu os olhos por um deles. Eram convites para a festa da agência de modelos, que Claire mencionara para Melissa quando saíam de casa. Pensou rápido.
–Eu sei como pode me agradecer. Dando a mim um desses convites.
Surpresa, ela não conseguiu responder imediatamente. Precisava avaliar um pouco a situação.Ele era tão bonito, e estava pedindo a ela um daqueles convites... seria muito bom poder revê-lo na festa. Por outro lado, sua primeira impressão havia sido que ele não era muito educado.
– A não ser que esteja pensando em convidar alguém – o garoto girou os convites entre os dedos, ágil.
– Não, não, eu te dou um.– ela pegou um dos convites, e guardou na bolsa. O outro permaneceu na mão do garoto – pode ficar com este. A festa é na semana que vem, na.
– Eu sei onde fica – ele guardou o convite no bolso – já fui lá, uma vez.
Como já havia terminado de arrumar a bolsa, Claire se levantou e sacudiu a poeira de seus joelhos.
–Então a gente se vê na festa. – o garoto fez menção de afastar-se.
–Espera! – pediu Claire –Eu nem sei o seu nome.
Ele levantou as sobrancelhas, surpreso. Por um instante, Claire achou que estava sendo inconveniente.
– Meu nome é Deacon.
– Deacon – repetiu a garota, sem perceber – o meu é Claire.
– Tá, Claire... Vem, eu te acompanho um pedaço do caminho.
Deixaram o beco caminhando devagar, sem trocarem nenhuma palavra. Deacon mal olhava para ela, como se a garota nem estivesse ali. Claire não sabia se deveria puxar conversa, ou se era melhor continuar sem dizer nada – o garoto poderia dar-lhe uma resposta grosseira como fizera com Melissa. Súbito, ele parou.
– Fico por aqui. Vê se toma mais cuidado, foi meio idiota uma menina tão bonita quanto você andando sozinha em um beco.
– Ah, obrigada – ela não se cansava de agradecer.
– Eu é que agradeço – retrucou Deacon, misterioso, tateando o bolso onde havia guardado o convite para a festa da agência de modelos – você nem sabe o quanto me ajudou.
– Claire tem um encontro!
– Shh! Não é nada disso !
Melissa parecia ainda mais alvoroçada que a própria Claire. A primeira reação, óbvio, foi ficar brava.
– Claire, Claire, eu nem acredito que você conseguiu um encontro com aquele cara lindo! Ele não me deu a menor atenção.
– Não é um encontro – retrucou Claire – ele me pediu um convite e eu dei. Ele estava interessado na festa, e não em sair comigo. Ele me chamou de idiota! Se bem que depois ele disse que eu era bonita.
– Está vendo? Ele deve ter me achado feia – Melissa correu para um espelho, mirando a própria imagem – Acha que eu devo mudar de visual?
– Deixa de paranóia, Melissa... você queria mesmo sair com ele? Se você quiser, eu não vou a festa, posso te dar o convite.
Melissa virou-se para a prima, com um sorriso comovido.
– Que é isso, Claire... como eu iria gostar de um cara só porque o vi algumas vezes na rua? Aproveite sua sorte, e invista! Só que você vai ter que se produzir, nada dessas camisetinhas cor de rosa, sem graça. O Deacon... era esse mesmo o nome? Ele parece meio gótico... posso te emprestar alguma coisa pra você ficar com um visual legal.
– Eu não vou mudar o visual só por causa dele. Além disso, nem sei se ele vai falar comigo na festa. Tenho certeza de que ele só estava interessado na festa.
Deacon parou em frente à movimentada mansão. Finalmente encontrara uma chance de retornar àquele lugar. Era uma pena que as festas dadas pela agência de modelos haviam se tornado tão populares que agora era impossível entrar sem um convite. Uma grande bobagem. Se não fosse assim, Deacon já teria conseguido o seu intento a muito tempo.
Pisou no salão e olhou ao redor. O primeiro rosto conhecido que viu foi o de uma garota negra, cabelos castanhos caindo-lhe sobre os ombros, e um corpo esbelto metido em um conjunto listrado de rosa e preto. Sim, era a garota que lhe der ao convite. Como era mesmo o nome dela? Sim... Claire.
– Oi, Claire – ele aproximou-se, acenando – há quanto tempo está aqui?
– Acabei de chegar – respondeu a garota, no instante em que o viu, contente porque o garoto não a ignorara. Chegara a imaginar que os dois nem chegariam a se falar.
Ele olhou-a de alto a baixo, rapidamente, como se a analisasse. Depois apontou o lado do salão onde estavam as mesas.
– Vamos procurar algum lugar para sentar.
Como algumas pessoas preferiam conversar em pé ou circular pelo salão, nem todas as mesas estavam ocupadas.Deacon escolheu uma delas, próxima ao balcão de bebidas, e ali sentou-se com Claire. Observou que a arrumação do salão estava diferente, se comparada com a última – na verdade única – vez que ali estivera; as mesas estavam do lado oposto. Antes, elas não ficavam próximas ao balcão.
– Você sempre é convidada para esse tipo de coisa? – ele indagou a Claire.
– Na verdade não – ela respondeu, apoiando os cotovelos na mesa – Uma colega de classe conseguiu pra mim. Foi sorte eu ter arranjado.
– Sorte mesmo – Deacon olhou ao redor, ansioso – Quer uma bebida?
– Eu não bebo – ela recusou educadamente.
– Não, quando eu falo "bebida" pode ser qualquer coisa: água, refrigerante, vinho... – ele retrucou, com um acento de impaciência na voz
Claire franziu as sobrancelhas.Definitivamente o rapaz não tinha um tom de voz muito polido. Pensou em puxar um assunto agradável para a conversa, mas para Deacon o único assunto pertinente ali era a própria festa.
– Onde está o cara que está dando a festa?
– Não sei, não o conheço. – admitiu Claire – peguei o convite só para prestigiar a agência. Parece que os donos, Victória e Nikolai, quase nunca aparecem, eles estão meio velhos para esse tipo de festa. Mas creio que aquele que acabou de chegar é o filho deles.
Deacon virou-se bruscamente na direção da porta principal da festa. Nikki havia acabado de adentrar o salão, de braços dados com uma bela morena alta de cabelos longos. Continuava muito atraente, mas havia uma certa arrogância no modo como ele chegara à festa. Era como se fosse dono e senhor de tudo aquilo.
– Nikki – resmungou Deacon.
– Você o conhece? – Claire apontou com o queixo.
– Só nos encontramos uma vez... já faz um ano – comentou, pensativo. Levantou-se subitamente – Eu preciso ir até lá.
Olhou para a morena ao lado de Nikki e pensou rápido.Afinal, também estava acompanhado.
– Vem comigo, Claire.
Segurou a mão da garota, os dedos entrelaçados, e arrastou-a consigo. Claire estava surpresa, não entendia porque Deacon subitamente decidira atravessar o salão de mão dadas com ela.Tentou perguntar o que estava acontecendo, mas logo estavam frente a frente com Nikki, e ela resolveu permanecer calada.
Estavam parados a uma curta distância de Nikki, e ele parecia nem ter notado. Só agora Claire percebia como a mão de Deacon estava gelada.
– Nikki –ele chamou, com uma certa ansiedade na voz.
Nikki virou-se e encarou-o. Franziu as sobrancelhas levemente, como se estivesse fazendo um esforço para se lembrar de algo. A moça que o acompanhava pendurou-se em seu braço.
– Você o conhece, Nikki?
– Eu... provavelmente – o rapaz deu de ombros, encarando Deacon com ar pensativo. Perguntou ao garoto – De onde a gente se conhece?
Deacon ergueu as sobrancelhas.
– Não se lembra de mim?
– Eu deveria? – Nikki sorriu – Você é um dos modelos da agência?
– O nome Moon Bar não te diz nada?
A acompanhante de Nikki interrompeu a conversa.
– A gente está com um pouco de pressa, desculpa.
– Olha só, garoto – Nikki bateu levemente no ombro de Deacon – você pode ir lá encima falar comigo mais tarde.
O casal afastou-se e sumiu no meio dos convidados. Deacon permaneceu no mesmo lugar, com uma raiva crescente que parecia invadir o seu peito. Esquecer. Poderia tolerar tudo, menos isto.
– Filho da mãe. –resmungou, entre dentes.
– Deacon.
– Que foi!
Quase se esquecera de Claire. Ela ainda segurava sua mão, mas ele apertara sem querer com tanta força... e pela primeira vez foi gentil com ela.
– Desculpa... te machuquei?
Ela fez que não com a cabeça, embora a mão estivesse dolorida.
Os dois voltaram para a mesa, sem conversar, e assim permaneceram por um bom tempo. Deacon pediu uma taça de vinho, Claire um copo de refrigerante.
– Deacon – ela falou hesitante – como conheceu Nikki?
O garoto descansou a taça sobre a mesa, olhando para um ponto qualquer ao longe. Não podia explicara a Claire. "A gente ia dormir junto e ele me matou". Ela nunca entenderia, ficaria assustada.Era uma mortal. Nem deveriam estar ali juntos.
– A gente se conheceu numa festa como essa, no ano passado. – resumiu.
Ergueu os olhos para Claire, com um leve sorriso enviesado. Não havia reparado antes; ela era tão bonita... seria um desperdício se ele a usasse para satisfazer uma necessidade doentia, e depois ela se tornasse apenas um corpo sem vida, uma casca vazia... porém, dar-lhe uma sobrevida, transformá-la em um igual, como Nikki fizera com ele, seria ainda mais cruel. Como poderia controlar aquela sensação – aquela sede? Sentia-se como um animal à espreita da caça. E não era uma sensação nem um pouco agradável.
– Claire, desculpa – ele levantou-se bruscamente, nervoso. Empurrou a mesa sem querer, e a taça de vinho tombou, espalhando o líquido sobre a toalha branca – eu volto já.
Afastou-se da mesa sem dar qualquer explicação, deixando Claire sozinha e confusa. Deacon pensava em nem mesmo retornar à mesa depois que fizesse o que viera fazer. Não queria que Claire se tornasse sua presa. Nem a conhecia direito, não se preocuparia em larga-la na festa e ir embora. Era melhor deixa-la decepcionada do que acabar matando-a ou condenando-a a um a vida miserável como a dele.
Procurou Nikki com o olhar, mas não o encontrou. Lembrou-se que o rapaz dissera para procura-lo no andar superior, e mesmo sem ter certeza de que o acesso era permitido, subiu as escadas. Deacon não precisou procurar muito, só havia um único cômodo com uma luz acesa, e a porta entreaberta.Ansioso, parou à entrada e segurou o trinco. Não sabia se deveria bater ou simplesmente empurrar a porta.
– Pode entrar – a voz de Nikki veio de dentro do cômodo.
Deacon abriu a porta e deu um passou à frente, mas parou à porta. Ou Nikki ouvira seus passos ou então era bastante sensitivo para perceber que ele estava do lado de fora.
Era um quarto muito amplo, mas com poucos móveis, todos em estilo muito antigo – exatamente como no apartamento do qual Deacon se lembrava tão bem, embora só houvesse visto uma vez. Não poderia mesmo esquecer, afinal foi o ultimo cenário que viu enquanto era mortal.
Nikki estava deitado sobre uma cama larga, os braços atrás da cabeça, lendo um livro com folhas amareladas. Apesar de não ter nem mesmo erguido o olhar, parecia ter sentido a presença de Deacon.
– O que você queria falar comigo lá embaixo?
Deacon aproximou-se e sentou-se na cama ao lado do rapaz, sem pedir licença. Nikki colocou o livro sobre a cabeceira da cama e encarou-o com aqueles olhos claros, intensos, e refez a pergunta.
– O que você quer de mim?
Deacon não disse palavra alguma, apenas tomou uma das mãos de Nikki e beijou-lhe a ponta dos dedos.O rapaz deu um leve sorriso.
– Você não está acompanhado?
– Você também está – retrucou Deacon, debruçando-se sobre Nikki. Podia sentir o aroma de vinho em seus lábios, um aroma que por si só já embriagava. Poderia ainda resgatar o sabor do vinho de seus lábios?
O som da festa já não podia ser escutado, era como se estivessem sozinhos naquela mansão. Deacon sabia muito bem que não podia confiar em Nikki, mas naquele instante não estava preocupado com isso. Era o rapaz quem estava vulnerável, com os olhos cerrados , sentindo o peso do corpo de Deacon sobre o seu, subjugado.
–Detesto que deitem na minha cama sem tirar os sapatos – comentou Nikki.
–Odeia? Então me castigue.
Nikki encarou-o por alguns segundos, pensativo, segurando o rosto de Deacon entre suas mãos.
– Você tem um olhar perverso.
Deacon aproximou o seu rosto como se fosse beija-lo, mas desviou e sussurrou-lhe ao ouvido.
– Você não me reconheceu mesmo... mas dessa vez eu vou fazer uma coisa, e você nunca mais vai se esquecer de mim.
Começou a abrir a camisa de Nikki, botão por botão, devagar, com uma certa dificuldade, já que usava apenas uma das mãos. Enquanto Deacon voltava a beijá-lo, Nikki sentiu algo gelado tocar-lhe o peito. Não teve tempo para pensar ou reagir, sentiu uma dor aguda, uma lâmina rasgando-lhe a carne, e foi empurrado de encontro ao colchão com um gemido abafado. Deacon afastou-se, com um perverso sorriso triunfante, e Nikki pode ver que o garoto havia fincado um punhal em seu peito.
– Filho da puta – deu-lhe um tapa no rosto, mas Deacon não se abalou. Permaneceu olhando a cena, com uma satisfação doentia.
– Machuquei você? Desculpa.
– Seu idiota... isso não vai me matar. Não é prata.
– E quem disse que eu queria te matar? – Deacon curvou-se e pôs todo o seu peso sobre o punhal, que afundou ainda mais no peito de Nikki , espetando o colchão. O rapaz fez uma careta de dor, Deacon ainda tinha um sorriso diabólico no rosto – só queria que você sentisse dor... e que soubesse o que é ser ferido quando se está indefeso.
Nikki queria esmurra-lo, arrancar o punhal do peito e ferir-lhe a garganta, mas as forças lhe faltavam. Deacon curvou-se sobre o peito do rapaz e passou a língua pelo sangue que escorria do ferimento, repetidas vezes, de uma maneira selvagem, quase indecente. Depois ergueu o rosto.
– Vou te dar duas alternativas... o que prefere? Que eu tire devagar ou que deixe o punhal aí?
– Que tire depressa e corte os pulsos, sua vagabunda.
Sério, o garoto empurrou o punhal para o lado, único gesto que demonstrou sua reação ao xingamento. A dor provocada pelo sutil movimento era mais do que uma pessoa normal poderia suportar, mas Nikki era forte, continuava consciente. Viu quando Deacon levantou-se, caminhou até a porta e lhe disse.
– Não vai poder gritar por socorro, se não quiser arruinar a festa lá embaixo. E nem teria forças para isso... Talvez possa entender um pouco como me senti a um ano atrás, quando você me atacou no seu apartamento.
Antes que Deacon passasse pela porta, Nikki ainda conseguiu falar.
– Você nunca superou o fato de não ter dormido comigo naquela noite – a voz saía com dificuldade – mas você ainda tem chance, se quiser.
Deacon virou-se, parecendo profundamente chocado.
– Você disse que não se lembrava.
– Claro que eu lembro, estava só te zoando! Sabe qual é o problema, Deacon – fez questão de pronunciar bem o nome – eu odeio gente oferecida.
O ódio que Deacon já sentia pareceu crescer. Encarou Nikki momentaneamente mudo, mas quando recuperou a voz falou:
– Da próxima vez que nos encontrarmos, trarei um punhal de prata.
E saiu, batendo a porta atrás de si.
Procurou um banheiro. Precisava lavar o rosto, tirar aquele ar animalesco de sua aparência. A lembrança de Nikki com um punhal espetado no peito ainda lhe causava uma imensa satisfação, mas sentia também um grande vazio. Esperara tanto por aquele momento e passara tão depressa...Talvez pudesse ter aproveitado um pouco mais, lhe dizendo tudo que tinha em mente , tudo que sempre desejara dizer àquele miserável, mas não tinha tempo para isso.Tinha que abandonar aquele lugar logo, se quisesse não ser pego.
Desceu as escadas correndo, com o rosto ainda molhado. Caminhou em direção à saída.
– Deacon.
Ele virou-se, surpreso. Claire. Que diabos, esquecera-se completamente dela! Que estorvo.
– Vou te levar para casa – ele segurou-a pelo pulso e começou a arrastá-la consigo, sem dar tempo da garota questionar se ele estaria indo embora sem ela. A garota não entendeu.
–O que aconteceu, Deacon?
–Nada – ele desconversou, enquanto saíam da mansão
Caminharam pela rua em silêncio. Claire estava decepcionada; não havia se divertido, e Deacon havia desaparecido de perto dela sem dar a menor explicação. Era bom mesmo que estivessem indo para casa.
Ao seu lado, Deacon travava uma épica batalha interior. Olhava Claire de esgueira, imaginando se deveria ou não transformá-la em sua presa. Ainda não havia decidido quando chegaram ao destino final.
– Bom, esta é minha rua – Claire parou de caminhar – obrigada por ter me acompanhado.
– Espere –ele segurou-a pelo braço e puxou-a para si.
Aproximou-se da garota e beijou-lhe os lábios, só para não perder o hábito – afinal, se não fosse tão impulsivo e sedutor, não seria Deacon. Mas imediatamente arrependeu-se. O gosto de sangue em sua boca... teria ela percebido?
Não, não percebera. Ou, se percebera, estava surpresa demais para comentar. Claire era linda, e ficava ainda mais, com aquele olhar confuso e envergonhado.
– Bem... boa noite... a gente se vê.
Deacon acompanhou Claire com o olhar até que a garota entrasse em casa. Havia alguma coisa nela, algo puro e angelical que o fizera resistir aos seus impulsos, à sua sede. Talvez fosse bom eventualmente andar na companhia de mortais.
Assim que virou-se com a intenção de ir embora, viu uma moça parada na calçada a alguns metros, com as mãos nas costas. Deacon reconheceu-a imediatamente: era a acompanhante de Nikki.
– Você me seguiu? Odeio mulher ciumenta.
–Não é comigo que você vai acertar as contas.
Avançou rapidamente e, antes que ele tivesse tempo para reagir, a moça ergueu um punhal já ensangüentado –que, aliás, pertencia ao próprio Deacon – e cravou a arma no peito do garoto. Ele não conseguiu reagir, não era tão forte quanto Nikki. Caiu, sem forças. A jovem segurou-o pelo colarinho e começou a arrastá-lo pela calçada.
–Vem, temos que conversar melhor.
