CAPÍTULO TRÊS

Deacon estava encostado em uma parede fria, os olhos semicerrados. Alguém tirava o punhal do seu peito, mas o ferimento ainda doía, e sentia uma estranha fraqueza. Percebeu que sua roupa estava toda ensangüentada. Pelo jeito perdera boa parte do sangue que ingerira da última vez.
– Eu... preciso – ele gemeu.
As imagens foram ficando menos embaçadas. Estava num cômodo sem móveis; em pé, à sua frente, estavam Nikki e sua acompanhante.
– Acordou, Deacon? – Nikki aproximou-se, com raiva na voz, e deu-lhe um chute no rosto. Depois abaixou-se e segurou o queixo de Deacon, obrigando-o a encará-lo – Então o garotinho inocente trazia um punhal escondido... eu vou repetir, pela última vez... o que quer de mim?
Encostou uma lâmina em seu pescoço. Pelo brilho pálido, era prata pura. Era a primeira vez que Deacon via Nikki com raiva, mas não tinha medo. Estava apático, prestes a entrar em um profundo torpor. Reuniu suas forças e empurrou o rapaz, de uma maneira agressiva – Pode me matar. Vai estar fazendo um favor.
– Mata ele, Nikki – falou a jovem acompanhante – é ele quem está pedindo.
– Não se mete, Lilith – ralhou o rapaz; voltou-se para Deacon, confuso – você quer que eu te mate?
Deacon fechou os olhos.
– Você deveria ter me matado de verdade naquele dia, em seu apartamento. Porque você me transformou nisso? Segurou as mãos de Nikki e apontou a lâmina para o próprio peito. Um instante, e tudo estaria acabado. Mas ele mesmo não teria forças; Nikki é quem deveria enterrar-lhe o punhal. – Deacon, escuta – o tom de voz do rapaz era mais ameno. Afastou o punhal do garoto – precisamos conversar.
– Não temos nada para conversar! – ergueu a mão, com a intenção de socar o rosto de Nikki, mas o rapaz segurou o seu pulso.
– Então é isso... você me provocou para que eu o matasse... mas porque quer isso?
– Porque foi você quem começou com isso; e é você quem deve dar um fim.
Lilith caminhou devagar e aproximou-se de Nikki; pôs a mão em seu ombro delicadamente.
– Nikki, esse garoto é muito atormentado, ele não vale a pena. Acabe logo com isso e vamos embora.
– Não me leve a mal, Lilith... espere lá fora, por favor.– ele falou, impaciente. E, ao ver que a jovem iria retrucar, insistiu – Lá fora. Agora.
Contrariada, Lilith deixou o cômodo sem retrucar. Nikki franziu as sobrancelhas. Que mania irritante aquela garota, de se meter em qualquer conversa que não lhe dizia respeito.
Nikki guardou o punhal em um abainha e colocou-o de lado. Depois virou-se para Deacon. O garoto estava apático, a cabeça pendia levemente para o lado.
– Parece que você perdeu boa parte do sangue que ingeriu. A quanto tempo você não se alimenta? – Faz tempo... estou cansado, não quero mais matar ninguém.
–Matar... você não precisa necessariamente matar alguém se quiser s.
– Eu só não posso deixar alguém vivo depois de atacá-lo...Sempre... – as palavras saíam desconexas, meio atropeladas. Deacon ergueu um olhar desafiador para Nikki – Pelo menos eu tenho piedade deles. Não quero que eles passem por tudo que eu passei... toda a rejeição que eu fui obrigado a passar.
Calou-se por um instante, mas logo acrescentou .
– Pare de me olhar desse jeito, eu não quero que tenha pena de mim. A culpa é toda sua, por ter "me poupado.
Nikki estava sem jeito. O que poderia dizer a Deacon? Não tinha a mínima obrigação de consola-lo, ele havia sido somente a sua presa. Não devia pedir desculpas ou explicar-se. Seria patético.
– Escuta, eu não te matei e nem vou te matar. Não é por você... é porque não quero ser punido pelo meu clã.
– Ah, então foi por isso que você não me matou? Pra não ser punido pelo seu clã?
– Não, não... entenda... eu não seria punido por matar um simples mortal, seria punido se te matasse agora, já que é um de nós... O que aconteceu foi que, naquela noite, você nem mesmo tinha perdido muito sangue e simplesmente apagou, teve uma espécie de colapso, não sei bem o que foi. Imaginei que poderia ser aquele tipo de choque que acontece com as pessoas que tem anemia quando perdem muito sangue.Acho que você ia entrar em coma, morrer, e achei que seria muito melhor para você ser imortal do que ter uma morte infame num apartamento de um estranho... – Nikki parou de tentar explicar, havia se dado conta repentinamente de que nem ele mesmo sabia porquê não havia matado Deacon. Estava prestes a acrescentar "você deveria me agradecer e não me culpar", mas achou que o momento não era propicio, afinal Deacon estava muito revoltado. Levantou-se, ajudando o garoto a fazer o mesmo.
–Está muito fraco. Consegue ficar de pé?
–Não precisa me segurar, eu mesmo posso.
A visão de Deacon ficou repentinamente turva, e foi escurecendo até que ele sentiu que não podia mais sustentar o peso do próprio corpo...

Deacon abriu os olhos devagar, mas a visão ainda estava turva. Não sabia quanto tempo havia se passado, há muito perdera a noção entre o dia e a noite.Isso não mais importava, agora ele só conhecia a noite, uma noite interminável da qual ele nunca mais sairia. Era amargo pensar que, em seus tempos de mortal, a noite era sua hora preferida do dia... que irônico.
A sede! Ou seria fome? Ele não saberia dizer ao certo. Mas dessa vez, pela primeira vez, ele não queria satisfazer-se. Preferia permanecer ali deitado, sem se mover, tentando descobrir quanto tempo demoraria para alguém imortal morrer de fome.
Sem se preocupar em olhar ao redor, percebeu que estava em uma cama macia, cercado de almofadas. Era tão confortável que resolveu não se mexer; continuou a fitar o teto, apático.
– Acordou.
Sim, Nikki. Como pudera esquecer?
– Você ainda está aí! – resmungou, azedo.
– Eu te trouxe pra cá, seu ingrato... vê se pelo menos agradece.
O colchão afundou ao lado de Deacon; o garoto imaginou que Nikki se sentara a seu lado. Virou-se lentamente e percebeu que estava certo.
– Agradecer? Eu não quero que você me salve de nada... Você mandou aquela sua namorada estúpida me perfurar com um punhal e agora finge que se preocupa comigo.
Nikki não se abalou com a grosseria. Indagou, impassível.
– Porque queria que eu tivesse te deixado morrer no meu apartamento naquele dia? É tão ruim assim ser como você é agora?
Deacon deu de ombros. Indagou.
– O que a sua família fez quando você se tornou um vampiro?
– Não me tornei , nasci assim. Família tradicional, muito antiga, sabe.
– Então você não me entende, nunca vai entender. Voltou a fitar o teto.
– Eles encenaram um enterro de verdade para mim, com velório, caixão lacrado na capela do cemitério mais caro da cidade. Lá tem uma lápide com o meu nome, e uma data indicando que eu morri aos dezessete anos. E realmente eu acho que morri naquela data. Acho que o que aconteceu comigo os abalou bastante, e eles decidiram reconstruir a vida em uma cidade distante onde moram os nossos outros parentes. Decidiram esquecer de uma vez o filho morto. Eles saberiam que eu continuaria aqui, mas simplesmente me ignorariam, como se eu não tivesse sentimentos. Eu era perigoso, uma ameaça. Não podiam aceitar conviver com uma pessoa que se alimentava de sangue humano. Eu nunca iria esquecer aquelas palavras, aqueles olhares.
Nikki escutava em silêncio, sem qualquer reação. Deacon continuou.
– Eu não tinha mais nada nem ninguém, mas pelo menos eu tinha a Holly. Dei um jeito de marcar um encontro com ela sem assustá-la demais, mas é claro que ela se assustou em saber que eu não estava exatamente morto. Fugimos juntos, e é claro que não deu pra resistir por muito tempo, logo ela de tornou um de nós. A ilusão de que podíamos viver juntos eternamente durou pouco. Pensei em toda a dor e rejeição que a Holly poderia passar ao renunciar ao mundo, e a matei.
Tinha um tom de voz tão trivial que pela primeira vez Nikki surpreendeu-se.
– Você matou Holly.
– Porque o choque, Nikki? – estranhou Deacon – você nem se conheciam direito... Ou talvez se conhecem bem, Deacon suspeitou, mas não perguntou nada. Holly já estava morta, não adiantaria nada ser rancoroso.
– É exatamente assim que eu penso... não adianta nada viver como se fosse uma fera, esperando o momento da fome para procurar uma caça. Se um ano foi tão ruim para mim, eu nem quero imaginar como serão os próximos cem... não quero continuar com isso.
– O que você quer? Que eu me sinta culpado? – o tom de voz de Nikki era frio – eu já perdi a conta de quantos mortais eu adotei, e nenhum deles jamais voltou para se vingar de mim, nem para ficar enchendo meus ouvidos com histórias piegas sobre como é doloroso ser rejeitado, e sobre família, namoradinha.
Deacon pensara que todo o seu ódio e desejo de vingança haviam se dissipado no momento em que fincara o punhal no peito de Nikki, mas no momento em que o rapaz lhe disse aquelas palavras duras, sentiu que desejaria muito apunhala-lo novamente, mais uma, duas, quantas vezes fosse necessário para deixar um imortal meio morto.
Sentou-se na cama e pôs os pés no chão. Onde estavam seus malditos sapatos?
– O que está fazendo? – indagou Nikki.
– Indo embora – Deacon encarou-o, desafiador – já me sinto bem.. não que você se preocupe.
– Você se sente melhor porque o ferimento no peito já está se regenerando.
– Não me lembro de ter pedido uma explicação médica, Nikki.
Não achou os sapatos, resolveu ir embora assim mesmo. Deu alguns passos à frente, Nikki o segurou.
– Você não vai a lugar nenhum. Não tem pra onde ir.
Deacon virou-se, furioso. Não conteve sua vontade de esmurrar Nikki, afinal não era mesmo um costume seu deixar de fazer o que tinha vontade. Nikki, que era mais alto, mais forte, não reagiu; nem sequer levantou a mão. O que era um muro de Deacon? Parecia somente uma criança brincando de bater com um colega de classe mais velho. Tudo que o rapaz fez foi caminhar para trás, até se chocar com a parede branca do quarto. Então segurou os pulsos de Deacon com força e gritou-lhe.
– Pare com essa infantilidade... foi você mesmo que disse que a sua família não quer mais saber de você, você quer ir até lá para ser rejeitado de novo?
– Claro que não! Estão todos mortos! O que você acha que eu fiz depois que fizeram tudo isso comigo? Que eu saí chorando? Eles não me consideravam mais parte da família, o sangue deles não corre mais nas minhas veias. Eu nem deveria me importar.
Parou de falar, ofegante por causa da raiva. Se fosse uma pessoa sensível, certamente estaria com lágrimas nos olhos. Mas não, Deacon não derramaria uma lágrima, nem mesmo se fosse de raiva. Apenas cerrou os dentes. O cabelo cobria-lhe o rosto, os pulsos começavam a doer. Se Nikki podia detê-lo tão facilmente porque se deixara apanhar?
– Porque você está respirando? – o rapaz apertava-lhe os pulsos, sem se incomodar com a dor que Deacon poderia estar sentindo – Não precisa mais disso... Você ainda quer ser humano, é isso? Que voltar a ser mortal?
Deacon não respondeu, apenas engoliu em seco. Desde sempre costumava ficar ofegante quando estava com raiva, nunca imaginou que alguém o repreenderia por estar respirando. Mas Nikki tinha razão. Ele não precisava mais disso. Era só um costume da sua época de mortal, costume do qual não conseguia se livrar.
– Você quer que eu fique aqui na sua casa? Porque?
– Eu não quero – Nikki não largou os pulsos do garoto – é que você está faminto, está descontrolado. Se sair pela rua assim, pobre daquele que cruzar o seu caminho. Não que eu esteja com pena, mas acho que você precisa aprender a se alimentar sem causar um estrago.
– E você vai me prender aqui mesmo sabendo que estou faminto? Não acha isso meio cruel?
Nikki largou-o.
– Não. Se é de sangue que você precisa, lhe darei um pouco do meu. É mais forte do que o de um mortal, você vai se restabelecer mais rápido.
Deacon olhou-o desconfiado.
– Você está brincando.
– Não estou – Nikki puxou-o para si – e anda logo antes que eu mude de idéia.
O garoto hesitou por um instante.
– Você me chamou de idiota, de vagabunda, mandou a sua namorada me apunhalar e agora está querendo me fazer um favor desses... não entendo.
– Tudo bem – Nikki deu de ombros – como quiser. Mas acabou de amanhecer, se quiser sair para se alimentar vai ter que esperar até anoitecer. E, do jeito que você é impulsivo, duvido que você consiga esperar.
A casa era fechada de tal forma que mal dava para perceber que a noite havia terminado. Nenhum raio de sol entrava pelas poucas janelas cobertas com grossas cortinas de veludo e renda sobrepostos. Esperar até que anoitecesse novamente? Nem pensar. Pendurou-se no pescoço de Nikki e fiou na ponta dos pés.
– Tem razão, não consigo esperar.
– Ah, quase me esqueço que você não alcança. – falou Nikki, em tom de provocação. Caminhou até a cama e jogou-se no colchão macio, puxando Deacon consigo. – ah, e tem mais uma coisa.
Segurou as duas mãos de Deacon.
– Sabe que eu não confio em você, então não adianta tentar me apunhalar de novo. Não vou largar as suas mãos.
– Eu não tenho mais nenhum punhal escondido, Nikki, você sabe disso – Deacon afundou a cabeça em seu pescoço – ou pensa que eu não sei que você me revistou antes que eu abrisse os olhos?
Ainda que tivesse certeza de que Deacon não trazia nenhuma arma escondida, Nikki não largou as mãos do garoto. Sentiu uma dor fina no pescoço, uma espécie de pontada, e instintivamente inclinou a cabeça um pouco para trás. Nunca havia sido mordido; pertencia a uma tradicional e muito antiga família de vampiros. Imaginou o que eles pensariam se soubessem que ele estava saciando a fome de um garoto mimado que a cerca de um ano era um mortal.
Deacon estava ávido por recuperar todo o sangue que perdera quando Lilith o apunhalara. Por mais que sentisse o liquido espesso e levemente adocicado descendo em grandes goles pela sua garganta, aquecendo cada parte do seu corpo, achava que não era suficiente. Estava acostumado a não deixar uma só gota de sangue no corpo de suas vitimas, não costumava se contentar com pouco.
– Deacon – Nikki correu os dedos pelos cabelos muito finos do garoto – acho que... só mais um pouco e chega.
O garoto nem mesmo escutou ou pelo menos fingiu que não havia escutado. Nikki sentiu uma dor funda, diferente da anterior, como se Deacon houvesse enterrado mais fundo os dentes em sua carne. Empurrou-o delicadamente, afastando-o de si.
– Deacon, chega.
O garoto deitou-se ao seu lado, parecendo contrariado. Ainda parecia faminto. Passou a língua pelos lábios.
– Ainda me sinto fraco, você não sente pena?
– Se está fraco trate de dormir um pouco. – Nikki levantou-se devagar, passando a mão pelo pescoço e franzindo o cenho. – a gente conversa depois.
Parou e encarou Deacon por um instante. O garoto tinha o rosto corado, como se fosse o de um mortal que acabara de correr e pular. Parecia cheio de vida. Nikki não pode evitar um leve sorriso.Sentindo-se fraco... era óbvio que estava mentindo. Não o conhecia direito, mas a única coisa que tinha certeza era de que não podia confiar em Deacon. Ainda assim, iria sair e deixá-lo em sua casa. Se ele quisesse ir embora, que fosse. Se roubasse alguma coisa... não, ele não parecia do tipo que roubaria algum objeto. Então, não havia qualquer implicação em deixa-lo ali, deitado, parecendo meio inofensivo, meio perverso.
Fez menção de caminhar em direção à porta. Porém Deacon ajoelhou-se na cama para alcança-lo e segurou-o pelo pulso.
– Nikki – falou, pensativo – Porque fez isso? Eu acabei de te apunhalar, você mandou aquela garota revidar, eu te esmurrei . Então porque me ajudou?
– Não é óbvio? – respondeu Nikki , com ar altivo – É que você queria morrer, e eu te ajudei a continuar vivendo. Não tem nada mais divertido do que te contrariar.

Era uma manhã ensolarada, e Claire aproveitou para fazer compras com Melissa. Precisava se distrair um pouco, se divertir, depois do encontro malfadado da noite anterior. Achou que contar a Melissa o quanto havia detestado sair com Deacon iria diminuir a inveja que a amiga provavelmente havia sentido ao saber que Claire tinha um encontro com o garoto que ela achava tão lindo – e ajudaria ela mesma a esquecer mais rápido.
– Então ele te deixou sozinha, e quando voltou simplesmente disse para irem embora? – Melissa estava impressionada – E enquanto estavam juntos? Pelo menos conversaram, não é?
– A gente mal conversou – contou Claire – ele nunca fala nada.
– É tímido?
– Não... é anti-social – retrucou Claire, torcendo o nariz – quando nos despedimos ele me beijou, mas... acho que ele estava só tirando uma lasquinha, se aproveitando de mim.
– Quê? Ele te beijou? Pelo menos isso... – Melissa se sentiu na obrigação de ficar contente pela amiga – e então vocês.
– E então nada. Não tenho o telefone dele, e nem ele tem o meu; não sei onde ele mora e mesmo que o visse novamente não iria querer nada com um cara tão entranho quanto esse Deacon.
As duas caminhavam pela calçada, carregando cada uma diversas sacolas com as coisas que haviam comprado. Chegaram a uma praça recém inaugurada, construída em um lugar que antes era completamente abandonado. Algumas pessoas iam para lá conversar e namorar no fim da tarde, quando o sol era mais ameno, ou à noite, mas durante a manhã quase ninguém freqüentava o lugar. Para a surpresa das duas garotas, havia uma moça tomando sol no meio da praça, os braços abertos e os olhos fechados. Claire reconheceu-a.
– Eu vi aquela garota na festa... ela estava com o cara que deixou Deacon perturbado.
– Mesmo? – Melissa estreitou o olhar – e porque será que ela está tomando sol?
Como se estivesse escutando a despeito da longa distância, a moça olhou na direção de Claire e Melissa. As duas disfarçaram, mas não adiantou. A moça sorriu e aproximou-se.
– Você estava ontem com aquele garoto que importunou Nikki... eu queria mesmo te encontrar – Ah, desculpa por ele – falou Claire, sem graça. E, para se isentar da responsabilidade, acrescentou – olha, eu não o conheço não .
– Não tenha medo – a moça estendeu-lhe a mão – meu nome é Thais, mas todos me chamam de Lilith, acho que você pode me chamar assim também. Trabalho na agência de modelos e ia te convidar para um teste de fotogenia, mas você saiu correndo da festa.
– Teste de fotogenia? – repetiu Claire. – eu?
Lilith explicou a Claire do que se tratava. Ela iria até a agência e faria algumas fotos, sem compromisso, como se fosse um book. Depois as fotos seriam avaliadas por um profissional e, se ela fosse aprovada faria um workshop e depois outro teste final. Se quisesse, claro. Claire estava surpresa. Nunca pensara em fazer um teste para modelo, mas Melissa praticamente obrigou-a a aceitar.
– Então esteja na agência neste horário – Lilith entregou um cartão à garota – agora tenho que ir, eu tenho que visitar a mãe de um amigo, só estava esperando que você viesse.
– Como sabia que eu vinha? – Claire levantou as sobrancelhas, surpresa.
– Intuição – Lilith sorriu – a minha é fora do comum... Bom, boa sorte no seu teste. Ou ela era muito mística, ou era mais uma pessoa estranha que cruzava o caminho de Claire. A garota tomou a liberdade de perguntar, tentando não parecer grosseira.
– Porque estava tomando sol na praça? Você sempre faz isso ?
– Bom, nunca se sabe até quando isso vai durar... – ela ergueu o rosto, fechando os olhos e sentindo o calor dos raios solares – então é melhor aproveitar, não acha?

Deacon não queria se levantar. Preferia permanecer deitado, meio adormecido, sozinho. Apesar de já não estar mais fraco e cansado, não tinha motivação alguma para o que quer que seja. Não tinha para onde ir, nem o que fazer, era como um animalzinho que simplesmente levava à frente sua vida vazia, sem nenhuma motivação além de satisfazer os instintos básicos – alimento e sexo.
Entretanto, estava na casa de um estranho – sim, porque Nikki ainda era um estranho para ele – e não queria abusar da hospitalidade. Sem contar aquela sensação de que as pessoas podiam feri-lo sem que ele esperasse; não conseguia se livrar dessa idéia, e a culpa era toda de Nikki.
Levantou-se e caminhou até a porta do quarto. Assim que a abriu, viu Lilith parada no corredor.
– Você! – ele exclamou com raiva, cerrando o punho – que inferno, abrir a porta e dar de cara justamente com você!
– Olha o linguajar, menino... ainda está com raiva de mim? – ela indagou, com um leve sorriso de sarcasmo.
– Você me apunhalou. Como não quer que eu sinta raiva?
– Você apunhalou Nikki primeiro.
– Este é um assunto entre ele e eu! – Deacon aumentou o tom de voz, com o dedo em riste – falando nele, onde ele está?
Lilith não recuou frente ao tom de voz alto e grosseiro Deacon. Continuo serena.
– Nikki saiu. Estive com a mãe dele durante o dia, e ele me pediu para chamá-lo. Ele saiu faz menos de vinte minutos.
– Vinte minutos? – repetiu Deacon, decepcionado. Se houvesse se levantado mais cedo teria conseguido falar com ele – E quando ele volta?
– Não sei...depende. Há dias em que ele volta logo, em outros, ele dorme na casa dos pais, até mesmo por alguns dias.
Deacon estava indeciso. Queria ir embora, mas não queria faze-lo sem antes falar com Nikki. Lembrava-se perfeitamente que o rapaz lhe dissera que conversariam depois. Não podia – ou melhor, não queria simplesmente ir embora.
– Eu vou esperar até ele chegar – decidiu, cruzando os braços. – e você, por acaso mora aqui?
– Sim, moro – ela jogou os longos cabelos para trás, despreocupada.
Deacon ergueu as sobrancelhas.
– Então vou ter que te agüentar até ele chegar?
– Teoricamente não. A mansão é grande. Não precisamos ficar no mesmo cômodo se você odeia tanto estar na minha presença.
– Ok – ele deu de ombros – então posso mesmo circular pela casa?
Com um sorriso forçadamente simpático, Lilith assentiu. Porém fez uma ressalva.
– Só não vá ser muito curioso... senão Nikki vai ficar chateado com você.
– Eu não ligo – Deacon fez um gesto vago. – não dou a mínima para o que ele pensa de mim. Se eu não bisbilhoto, é porque eu tenho educação.
Deu as costas e caminhou devagar pelo corredor. Apesar de não ser algo empolgante, pelo menos havia arrumado uma coisa para mantê-lo ocupado.

– Madame Victoria. O senhor Nikolai acaba de chegar.
Victoria ergueu o rosto, devagar. Era uma mulher muito bonita, dona de uma grande sensualidade presente em seus olhos claros. Os cabelos castanhos não tinham nenhum fio branco, apesar de sua expressão aparentar ser a de uma mulher madura muito conservada. Quem a via certamente lhe dava cerca de quarenta e cinco anos. Somente ela mesma, porém, saberia precisar a quantos séculos nascera. Até mesmo seu filho único já perdera a conta de sua idade.
Estava sentada em uma poltrona, lendo um grosso volume em latim clássico. Não se moveu ao ver a criada. Apenas indagou.
– Qual Nikolai? Meu marido ou meu filho?
– O filho, madame. Com licença, irei chamá-lo.
A criada curvou-se e desapareceu atrás de uma porta. Pouco depois Nikki adentrou a sala. O rapaz caminhou até Victoria e sentou-se no chão, em frente a ela.
– Mandou me chamar, mãe?
– Eu queria te ver – ela descansou o livro sobre o colo.
Curvou-se para frente e segurou-o pelo queixo;suavemente, inclinou a cabeça do rapaz para o lado, e com a outra mão, abaixou-lhe a gola da camisa. Nikki não ofereceu resistência.
– Que dizer que andou servindo de gado para um ex-mortal.
O filho de Victoria franziu as sobrancelhas, ofendido. Gado.
– Só estava seguindo a tradição. Devo cuidar bem da minha progênie, não é? – deu um sorriso cínico.
– Ou por acaso teria se comovido com a historinha que o garoto te contou?
Nikki levantou-se bruscamente. Então sua mãe sabia de tudo.
– Eu sabia que Lilith estava escutando atrás da porta, como sempre, mas não posso acreditar que ela tenha vindo correndo te contar.
– Ela não fez por mal. Afinal, percebeu que o garoto é um manipulador. Andou enchendo sua cabeça com coisas, para que você se sentisse culpado. Por um acaso ele pedia desculpas aos bois e vacas ao se alimentar deles? Nikki levou a mão à cabeça, com um suspiro. Odiava quando Victoria usava a comparação grotesca entre seres humanos e gado, sempre que falava sobre se alimentar. Ela era muito tradicional, muito fundamentalista. Quanto a esse aspecto, o clã ao qual pertencia o seu pai – e, conseqüentemente o próprio Nikki – era bem mais complacente. Os membros do clã tratavam os mortais com mais tolerância, e até se permitiam uma convivência pacifica, encontrado neles muitas vezes amigos, amantes.
Devagar, Victoria aproximou-se e encarou o filho. – Mas pelo menos ele fez uma pergunta sensata.Porque não o matou? Porque ao invés de deixá-lo morrer, o adotou? Teve pena? – Falou com desprezo na voz.
– Eu não sei – confessou Nikki, confuso – mas é claro que não foi pena, só não sei ainda explicar o motivo. Victoria deu alguns passos pela sala, a barra do longo vestido negro arrastava-se pelo tapete.
– Na minha época de juventude, só podíamos adotar um mortal com a permissão do ancião do nosso clã. Hoje em dia muitas das nossas tradições caíram por terra, não são mais respeitadas pelos mais jovens. E começam a povoar a terra desses mestiços, incluindo-os nos clãs junto aos vampiros de sangue puro. É degradante – tinha uma expressão de nojo no rosto.
Segurou o rosto do filho entre as mãos.
– Segundo a antiga tradição, se ainda fosse seguida, claro... em um caso como esses, onde um mortal foi abraçado sem a permissão do ancião, a sua progênie seria sacrificada... –ela acariciou-lhe o rosto, como se Nikki fosse uma criança – você sacrificaria esse garoto se eu lhe pedisse?
– Sei que não iria me pedir isso, mãe – respondeu o rapaz – apesar das críticas a senhora sempre aceitou as minhas decisões. Além disso a tradição também diz que sou responsável pela minha progênie, como se fosse um filho. Então sou eu que decido o que acontece com ele.
Victoria sorriu. Contrariava-se ao ver o quanto ele era rebelde, mas ao mesmo tempo admirava-se em ver como seu filho era decidido.
Afastou-se e retornou à poltrona. Abriu o livro e repousou o olhar sobre as pagina amareladas.
– A decisão é sua. Mas quero ver o garoto. Pode trazê-lo aqui da próxima vez em que vier?
– Claro – assentiu Nikki.
Como se houvesse esquecido de algo importante, Victoria ergueu o olhar do livro e voltou a encarar o filho, séria.
– Lembre-se que a mesma tradição diz: "os pecados de teus filhos recairão sobre ti". Portanto, trate de fazer esse garoto se comportar vem, se não quer ser punido.
– Eu vou tentar – garantiu Nikki – não posso garantir que vou conseguir, mas vou dar o melhor de mim.