CAPÍTULO QUATRO

Tantas portas trancadas, tantos vidros escuros ocultos por cortinas! Aquela casa era sombria, tinha uma aura que Deacon não conseguia definir. Pela decoração e pelo estilo da construção, parecia mais um mosteiro há muito tempo abandonado do que uma casa onde morava um jovem que aparentava cerca de vinte e um anos.
Até aquele instante Deacon pensara que aquela era a mansão onde havia sido dada a festa na noite anterior. Somente ao descer até o salão principal é que deduziu, pelo tamanho do espaço e pela decoração do assoalho, que estava em outra casa – mas as cores da parede e da madeira dos moveis eram iguais às da outra mansão. Como ele não pensara nisto antes? Claro que, depois de apunhalá-lo no peito, Lilith não o arrastara, ensangüentado, pelo meio dos convidados da festa da agência. Era lógico que o levara para uma outra casa.
Em um canto do salão havia um piano. Apesar de não saber tocar, Deacon era fascinado pelo instrumento – pelas formas, pela sofisticação, pela elegância da peça, afinal de contas, era um admirador de tudo aquilo que fosse belo, mesmo que não tivesse uma real utilidade para ele. Correu os dedos pelas teclas brancas, produzindo um som desafinado que ecoou pela sala, e surpreendeu o próprio garoto – ele não sabia que soaria tão alto.
Ouviu passos que pararam à porta. Virou-se. Lilith.
– Ah, é você – ela lambia os dedos, falando de boca cheia– pensei que fosse uma assombração.
Falava em tom de brincadeira, e acrescentou.
– Não deveria mexer nisso, sabe, Nikki é meio ciumento com as coisas dele. Ele ama esse piano, foi comprado na Áustria.
Deacon tirou os dedos do piano enquanto Lilith desaparecia pela porta. Que garota irritante. Resolveu seguí-la para responder à provocação.
O cômodo onde Lilith estava era uma sofisticada sala de jantar. A jovem estava sentada a uma grande mesa de madeira, tendo à sua frente uma bandeja com um pedaço de bolo e algumas frutas, além de um pote de chantilly.
– Quem é você, afinal? – reclamou Deacon, aproximando-se – uma espécie de puxa-saco oficial de Nikki, que fica dizendo o que devo fazer ou o que devo evitar para que ele não se irrite?
Lilith ergueu o olhar, parecendo surpresa.
– Não precisa ficar nervoso, não falei por mal.
Pegou um morango tão vermelho que nem mesmo parecia uma fruta de verdade, e mergulhou-o no pote de chantilly. Levou a fruta aos lábios e mordeu-a.
– O que está fazendo? – Deacon estava intrigado. Não imaginou que haveria comida de verdade na casa de Nikki.
– Estou jantando – ela falou, como se fosse óbvio – na verdade estou fazendo um lanche. Não dá pra jantar de verdade em uma casa sem fogão, sem geladeira... normalmente compro umas coisas na padaria do bairro.
Deacon observou-a enquanto ela terminava de comer o morango e preparava-se para devorar o bolo.
– Então você é mortal.
Não era uma pergunta, ele somente estava pensando alto.Uma mortal! Sim, Lilith, coma, coma bastante... engorde para o abate.
– Ah, esqueci – ela falou, levantou-se subitamente e pegando um morango. Falava com uma voz de quem sentia pena, fazendo bico – você não pode comer... que pena, está tudo tão gostoso.
Mordeu a fruta devagar, estreitando o olhar com ar provocativo. Seria sensual se Deacon não estivesse achando patético. Aquele gesto, aquele cheiro lembrava sua época de mortal. O que ele não daria por uma mordida daquelas? Começava a compreender que ainda não se desprendera totalmente de seus costumes mortais e que levaria algum tempo para que conseguisse superar tudo.
Desviou o olhar, com raiva.
– Eu sabia que não deveria dividir o mesmo espaço com você...é insuportável, não sei como Nikki te atura.
– Eu é que não deveria me arriscar a dividir o espaço com um garoto que matou a própria família.
Sem pensar duas vezes Deacon avançou para ela, e os dois caíram no chão com estrondo. Não se importava que ela fosse mortal, muito menos que fosse uma garota. Há muito desistira de ser gentil.
– Me larga! – ela choramingou, assustada – saia de cima de mim!
– Você sabe o que posso fazer com você – ele segurava os braços de Lilith para que ela não se movesse, mas ela se debatia – Você tem toda a razão, é bem perigoso para uma mortal desagradável ficar sozinha comigo.
Deacon não estava com sede, mas Lilith o havia provocado, e afinal de contas, ela era mortal. Azar o dela, que ficara sozinha na mansão com ele. Ela exalava um perfume tão bom,mas ao mesmo tempo tão enjoativo... e a sua pele emanava um calor que há muito tempo Deacon não sentia. Ainda assim, ela era somente uma presa. Afundou o rosto em seu pescoço, abriu a boca.
– Eis a cruz do Senhor, fugi, fugi, ausentai-vos inimigos da natureza humana. Eu vos esconjuro em nome d.
Deacon levantou o rosto, surpreso. O que era aquilo? Nunca escutara aquela reza estranha antes.
– Cale a boca! – ele gritou, irritado, repetidas vezes, até que ela obedecesse. Olhou-a nos olhos, ameaçador – fica quieta.
Como ela poderia ficar quieta, sabendo que iria morrer?
Outra investida, e as palavras de Lilith encheram o ar novamente, dessa vez em outra língua.
– Spiritus Dei ferebatur super aquas, et inspiravit in facien hominis spiraculus vitae.
Deacon largou-a e afastou-se subitamente. Não sabia explicar o que sentira, mas tinha certeza que aquelas palavras o haviam repelido. Era algo parecido com um golpe, mas não era físico.
– Que diabos é isso? – ele estava sentado no chão, com ar intrigado.
Lilith levantou-se apressada, brava. Tinha vontade de estrangular Deacon com as próprias mãos, mas se conteve ao escutar o barulho de um trinco sendo aberto.
– Nikki acaba de chegar – ela ajeitou o vestido, que estava amarrotado, uma das alças caindo-lhe do ombro – não conte a ele que usei o "Esconjuro", e eu não conto que você tentou me estuprar.
– Eu não tentei te estuprar! – protestou Deacon, furioso – eu estaria louco se sentisse desejo por você... você não chega aos pés da Holly.
– Se continuar falando tão alto Nikki vai escutar – ela falou – promete que vai ficar calado?
Mesmo contrariado, Deacon assentiu. Mas prometeu a sim mesmo que, se Lilith quebrasse a sua parte do trato, ele quebraria a sua também.
Os dois dirigiram-se à sala, calados, como se nada houvesse acontecido. Nikki havia acabado de entrar e tirava o casaco, sem pressa.
– Que bom que voltou, Nikki. – Lilith aproximou-se dele e segurou-lhe o casaco – o garoto só estava esperando você chegar para ir embora.
Nikki virou-se para Deacon, surpreso em ver que ele ainda estava na mansão.
– Ir embora? Ele vai ficar morando aqui... se quiser, é claro.
Deacon ergueu as sobrancelhas, pasmo. Morar ali? Nikki o encarava como se estivesse à espera de uma resposta, e Lilith parecia tentar disfarçar a indignação.
– De onde tirou essa idéia, Nikki? – ela pôs as mãos na cintura, incrédula.
– Eu não ia propor isso, mas a minha mãe praticamente me obrigou – Nikki não a encarou ao responder; Lilith conhecia Victoria muito bem, e sabia perfeitamente que o rapaz estava mentindo. Ele prosseguiu – eu preciso tomar conta dele, sabe... por causa da Tradição.
– Não preciso que tome conta de mim – retrucou Deacon imediatamente. Não queria parecer mal agradecido, mas gostaria que Nikki houvesse apresentado um motivo melhor para convidá-lo a morar na mansão.
– Não falei por mal – falou Nikki, mas não estava se desculpando. Fez um gesto vago em direção à escada – Me espere na biblioteca, Deacon, a gente conversa melhor.
Deacon assentiu com a cabeça. Era melhor mesmo conversar sem que Lilith, com aquele ar de reprovação, escutasse a conversa e fizesse comentários desagradáveis. Caminhou até a escada, mas parou com o pé no primeiro degrau, virando-se para Nikki.
– Eu não sei onde fica a biblioteca.
Foi Lilith quem respondeu.
– Lá encima, último cômodo do corredor. Você deve ter passado por lá quando bisbilhotava a casa agora a pouco.
– Eu não bisbilhotava a casa, cobra. – Deacon retrucou, enfezado, enquanto terminava de subir as escadas.
Assim que o garoto desapareceu de seu alcance de visão, Lilith virou-se para Nikki, ainda com a mão na cintura.
– Então está fazendo isso para contrariar a sua mãe?
Ele não respondeu, apenas deu um leve sorriso, o que irritou ainda mais a jovem.
– Esse garoto me odeia, e agora vou ter que viver debaixo do mesmo teto que ele! – baixou o tom de voz e aproximou-se de Nikki – Ele matou a própria família e a namorada... e se eu tiver que ficar sozinha em casa com ele? Afinal, ele também é vampiro, e você me proibiu de usar o Esconjuro dentro da sua casa. Ele pode tentar me atacar.
– Não se preocupe com isso – Nikki deu-lhe um beijo na testa.
– E quando devo começar a me preocupar? Quero dizer, você traz uma pessoa violenta para morar conosco, e nem mesmo me consultou! Sei que a casa é sua, mas você poderia ter me falado antes... Victoria deve ter te repreendido por ter adotado esse garoto, e por isso resolveu trazê-lo para cá, para provocá-la.
Com um suspiro de impaciência, Nikki afastou-se.
– A culpa é toda usa, Lilith... foi você quem foi correndo contar à minha mãe o que eu e Deacon havíamos conversado a sós. – Caminhou até a escada – E não tente escutar atrás da porta novamente, eu não vou ser tão tolerante se isso voltar a acontecer.

As duas portas de madeira entalhada no fim do corredor estavam somente encostadas. Deacon empurrou-as devagar e adentrou um cômodo grande e mal iluminado, com dezenas de estantes enfileiradas, e uma poltrona antiga perto de uma lareira desativada. Surpreso, o garoto correu os olhos pelas prateleiras das estantes: havia centenas de livros, volumes grossos e muito antigos, com capa dura e folhas amareladas, com uma coloração semelhante a um chá. O garoto nunca vira uma biblioteca particular tão grande, parecia-se com a biblioteca pública da cidade. Era curioso pensar que todos aqueles livros tão antigos e eruditos pertenciam a um sujeito que parecia se tão jovem, namorador e habituado a festas.
Deacon pegou um livro ao acaso e tirou-o da prateleira. Começou a folheá-lo. Não conseguia ler; além da luminosidade ser fraca, o livro estava em latim.
– Deacon, tome cuidado.
A voz de Nikki tinha um quê de aflição, quando o rapaz adentrou a biblioteca. Deacon virou-se, surpreso.
– Não vi você entrar.
– Cuidado com esses livros – Nikki aproximou-se e tomou-lhe o livro das mãos com polidez. – eles são muito, muito velhos, podem acabar rasgando na sua mão.
– Ah... Lilith me preveniu sobre seu lado possessivo-obsessivo – lembrou o garoto – ela disse que você tem ciúmes das suas coisas.
Nikki colocou o livro na prateleira com cuidado.
– Ciúme? Não é ciúme, é zelo. Ela é que morre de ciúmes de mim, quase me bate porque te chamei para morar aqui.
O rapaz tinha tanta habilidade com essas meias-verdades que Deacon sempre acreditava. Não que o garoto fosse ingênuo; Nikki é que era muito convincente.
Deacon desejava perguntar qual a relação entre Nikki e Lilith – se eles eram casados, se eram namorados ou o que quer que fosse; porém mal abriu a boca, Nikki o interrompeu.
– Antes que você responda se quer ou não morar aqui em casa, eu queria esclarecer que isso não tem nada a ver com nós dois... quero dizer, não estou propondo que a gente "more junto.
– Eu entendo. – Deacon olhava para a lombada dos livros na estante, pensativo – ainda assim, acho que é um passo muito grande, depois de ontem à noite.
– Se o problema é esse, eu não guardo rancor. – Nikki levou a mão ao peito, local onde Deacon o apunhalara – temos um pacto de sangue agora. Esse tipo de coisa cria laços, mesmo que a gente não queira.
Deacon não o encarava. Se soubesse que beber do sangue de Nikki criaria laços entre eles, preferia não tê-lo feito. O seu objetivo ao reencontrá-lo havia sido apenas feri-lo, vingar-se de alguma forma. Agora não sabia mais se ainda sentia raiva e ressentimento – afinal, Nikki o ajudara. Estavam finalmente quites. – Eu não sei o que dizer – Deacon foi sincero.
– Então diga que quer ficar aqui. – insistiu Nikki – pelo menos por um tempo. Depois, se não gostar, se não se sentir à vontade, pode ir embora.
– Para que exatamente quer que eu fique? – Deacon indagou, desconfiado.
Nikki pensou um pouco antes de responder. Não podia dizer a verdade – que achava Deacon violento e desajustado e que queria ficar de olho nele para que ele não fizesse besteira, além de tentar conversar um pouco com o garoto. Também não queria que o garoto pensasse que ele estava tentando seduzi-lo. Sabia que o próprio fato de estar em silêncio e de não ter respondido imediatamente já deixava Deacon desconfiado.
– Você não tem para onde ir mesmo – falou Nikki, por fim – e eu pensei que você tinha me procurado e feito toda aquela cena para que eu fizesse alguma coisa pro você. E eu estou fazendo.
– Se é isso, não preciso que faça nada por mim – retrucou Deacon, entre ofendido e humilhado – sei me virar sozinho.
– Você é muito mal-agradecido. Se sair daqui agora, para onde vai?
Deacon deu de ombros, não respondeu. Nikki insistiu.
– Onde você mora? Tem uma casa?; Onde você costumava ficar até ontem à noite?
– Pare de me encher de perguntas! – Deacon impacientou-se – eu não vou dar satisfação da minha vida a você, não tenho q.
Parou de falar subitamente. Estava sendo ingrato. Nikki só estava tentando ajuda-lo. E, se o rapaz estivesse com alguma outra intenção, Deacon não seria tão ingênuo como havia sido da primeira vez em que os dois haviam se encontrado.
– Desculpa, eu... – levou a mão ao rosto, sem perceber – eu vou ficar, não tenho mesmo pra onde ir... o problema é aquela garota. Lilith... ela me odeia.
– Não te odeia não... só está com ciúmes. – Nikki não deu importância – Isso vai passar. Acho que você já sabe que ela é mortal, então gostaria de te pedir para não encostar nela. Sei que não é necessário te fazer prometer que não irá atacá-la.
A frase mais parecia um ameaça. Deacon tentou novamente perguntar o que havia entre Nikki e Lilith, mas não achou uma brecha na conversa, já que o rapaz continuou a falar.
– Deixe-me ver o que Lilith fez em você.
Deacon assentiu, e tirou a camisa. De alguma forma queria que Nikki sentisse pena – mesmo que não admitisse isso nem para si próprio.
No local do ferimento só havia uma leve marca. Nem parecia que o garoto havia sido apunhalado na noite anterior; a pele e os tecidos haviam se regenerado rapidamente.
– Daqui a pouco a marca desaparece. – comentou Nikki, pensativo.
– E você, o ferimento já está curado? – perguntou Deacon, somente para não parecer ingrato o corresponder à preocupação de Nikki.
– O seu punhal saiu nas minhas costas – lembrou o rapaz – vai demorar mais um dia inteiro para fechar completamente. Mas não se preocupe com isso.
Deacon ficou ainda mais sem graça, afinal havia sido o causador do ferimento de Nikki. No olhar do rapaz não havia raiva e nem ressentimento, somente um ar de repreensão. O silêncio entre os dois era intimidador; Deacon se sentia desconfortável. Olhou instintivamente para a porta, como se estivesse planejando sua fuga estratégica. Talvez fosse o momento de se retira, ficar sozinho por um instante. – Aquele quarto onde eu estava... posso voltar para lá, Nikki? Era um quarto de hóspedes?
– É o meu quarto, na verdade . Mas não acho que vai querer voltar para lá. Passou o tempo inteiro trancado nessa casa, naquele quarto. Pensei que gostaria de sair um pouco.
– Talvez uma outra hora. – Deacon estava desanimado. – Não tenho nada para fazer na rua.
– E nem tem nada para fazer nesta casa – Nikki segurou-o pelo pulso e arrastou-o consigo, enquanto saía da biblioteca.
Deacon resistiu, mas acabou sendo arrastado para fora do cômodo. Protestou; não estava com a mínima vontade de fazer o que quer que fosse.
– Nikki, eu não quero ir a lugar algum! – ele falou, com um olhar suplicante, como se o rapaz estivesse obrigando-o a sair de casa contra a sua vontade. Mas não era essa a intenção.
– Tudo bem, Deacon – Nikki o largou – se quer ficar largado em casa e deprimido, a opção é sua. Mas acho melhor se distrair um pouco.
– Outro dia – Deacon esquivou-se e começou a se afastar.
Caminhou devagar pelo corredor, e ouviu a voz de Nikki.
– Deacon.
O garoto parou, sem se virar. Porque Nikki não parava de insistir?
– O que foi?
– Se for deitar, não põe os sapatos em cima da cama, ok? – falou em um tom sério, porém gentil – e se precisar de algo, me chame.

"Se precisar de algo, me chame"
Longe de estar se colocando à disposição de Deacon caso ele precisasse, Nikki parecia ter sugerido que o garoto, mesmo sendo hóspede, agisse como uma visita eventual – ou seja, que não tocasse em nada sem permissão, como se fosse uma criança prestes a estragar os pertences de Nikki caso mexesse em algo sem supervisão. Era melhor mesmo ficar trancado no quarto, largado na cama, olhando para o teto durante horas e horas. Não tinha escola, não trabalhava, não tinha ninguém com quem conversar. Deacon se sentia sozinho, um tanto deprimido. Não queria sair de casa, tampouco queria ficar circulando pela mansão. Já fizera isso uma vez, e havia constatado que a mansão não era nem tão grande nem tão interessante quanto ele pensava.
Uma suave musica tocava ao longe. Deacon pensou em ir procurar de onde vinha a música, mas não queria parecer curioso logo no primeiro dia em que viera morar ali. Talvez pudesse perguntar a alguém mais tarde. Virou-se de costas para a porta e fechou os olhos.
Ouviu a porta ranger e virou-se bruscamente, sentando-se na cama. Lilith estava parada à porta. Que diabos, nem mesmo poderia enxotá-la dali ou recriminá-la por ter aberto a porta sem bater – afinal, estava no quarto de Nikki, e Lilith morava naquela mansão a muito mais tempo do que ele.
– O que quer? – ele perguntou, irritado – tem alguma coisa para falar ou simplesmente veio me atormentar?
– Vim trazer uma coisa que te pertence.
Só então Deacon percebeu que Lilith trazia algo embrulhado em panos. A jovem desenrolou o objeto devagar, e logo Deacon reconheceu o seu próprio punhal. Sobressaltado, pôs-se de pé.
– Se você ousar se aproxim.
– Calma, Deacon, não estou tentando te ferir – ela jogou o punhal no chão a um canto, com desprezo. – trouxe essa sua arma, Nikki mandou te devolver.
– Ele mandou? – repetiu Deacon, sem entender. – ele não acha perigoso que eu tenha uma arma?
– Pois é, eu pensei nisso também, mas ele não mencionou nada a respeito durante as centenas de vezes em que me falou a seu respeito hoje, então acho que ele não faz nenhuma objeção a isso. Ele não quis ficar com algo que não pertencia a ele.
– Bom,se é só isso, pode ir embora.
E apontou a porta. Entretanto, ao invés de se retirar, Lilith deu alguns passos à frente, devagar.
– O que está fazendo, dê o fora! – Deacon olhou de esgueira para o punhal, temendo que a jovem tentasse atacá-lo. – O que quer agora?
– Não precisa ser tão agressivo. Desde que entrei aqui você não para de gritar comigo. Porque é tão hostil?
– Não quer tentar adivinhar? – Deacon cruzou os braços com um sorriso cínico.
– Você é muito rancoroso, garoto.
– Rancoroso! Talvez eu deva te apunhalar no peito e poderemos ver em quanto tempo você esquece.
Os dois encararam-se por alguns segundos. Se Deacon não houvesse praticamente prometido a Nikki que não atacaria Lilith, certamente ela se arrependeria de tê-lo provocado.
– Esqueceu que sou mortal? – Lilith estreitou o olhar – se me apunhalar no peito eu morro, não haver tempo para te perdoar.
– Não vou tentar fazer isso, prometi ao Nikki – o tom de voz de Deacon era mais ameno. – mas, afinal de contas, o que quer aqui?
– Vamos morar sob o mesmo teto, acho que não devemos ser inimigos. Não vou pedir para sermos amigos, não tenho o mínimo interesse. Mas seria mais agradável se não gritássemos um com o outro toda vez que nos encontrarmos.
– Tem razão, Lilith, isso vai poupar a minha garganta.
Aproximou-se do punhal e pegou-o do chão. Pelo jeito alguém limpara a lâmina recentemente, não havia sequer uma gota de sangue. Era um objeto caro, bem trabalhado, que o garoto comprara com um pouco do dinheiro que sua família havia deixado. Era o único pertence seu que sempre levava consigo. Mal tinha objetos pessoais, e não os carregava.
– E então, como se sente sendo o novo joguete de Nikki? – indagou Lilith, com ar solidário.
– Hum? – fez Deacon, sem entender, enquanto colocava o punhal sobre a mesa de cabeceira.
– A mãe de Nikki odeia mortais como eu e mestiços como você. Está claro pra mim que Nikki só quer irritá-la, e é claro, se distrair com um de nós quando ele estiver entediado.
Deacon sentou-se na cama.
– Se sabe que está sendo usada porque continua aqui?
– Eu e Nikki temos um pacto. Vou me tornar uma de vocês em breve.Ele me prometeu.
Lilith parecia contente, esperançosa. Deacon estava chocado.Tudo que ele mais queria era voltar no tempo, ter continuado com sua vida mortal, e ali estava uma garota que havia pedido para se tornar uma vampira.
– Pra que você quer isso? – indagou o garoto, com desprezo.
– Beleza e juventude eternas não são bons motivos para você, Deacon? E não é só isso... sempre quis ser uma de vocês, eu tenho milhares de outros motivos que talvez eu te explique algum dia, com paciência. Pedi ao Nikki que me adotasse, e ele disse que faria isso se eu a servisse por alguns anos... quero dizer, eu dou um pouco do meu sangue para ele de vez em quando, assim ele não precisa ir à caça tão freqüentemente. Ele tem outros mortais que o servem dessa mesma forma, mas eu não os conheço. Claro que nem todos desejam ser transformados, alguns pedem coisas em troca, mas eu desejo muito me tornar como vocês.
Ela deu alguns passos e sentou-se na cama, mantendo uma certa distância de Deacon.
– Isso parece loucura para você, não é?
– Parece sim – ele confessou. E, antes que ela o interrompesse, apressou-se em perguntar – Qual a relação entre você e Nikki? São namorados?
Para sua surpresa, Lilith deu uma gargalhada. Deacon ficou ofendido.
– Está rindo de mim?
– Desculpa – ela engoliu a risada – é que... Nikki, namorando alguém... logo se vê que você não o conhece bem. Parece que ele sai cada dia com uma pessoa diferente, e se fica com alguém mais de uma vez, pode ter certeza que é somente para brincar.
– Mas você parece gostar dele – observou Deacon.
Ela desconversou.
– Nikki não se apaixona por ninguém, então coitada da pessoa que se apaixonar por ele. Não estou criticando-o, nem fazendo fuxico... só comentei porque você perguntou.
Um silêncio estranho se seguiu. Deacon não se sentia à vontade na presença de Lilith, queria que ela saísse do quarto e o deixasse sozinho novamente, mas por outro lado Deacon poderia saber coisas sobre Nikki através dela. Porém dessa vez foi a jovem quem perguntou.
– E quanto a vocês, Deacon?
– Como assim? – ele perguntou, distraído.
– Você e Nikki. Como é... quero dizer, ficar com outro cara? – ela tinha um ar curioso – quero dizer, dormir junto.
Deacon deu de ombros.
– Não sei, nunca aconteceu entre a gente.
– Não precisa mentir para mim.
– Não estou mentindo. Todas as vezes que eu e Nikki nos aproximamos com alguma intimidade era na verdade para tentar matar um ao outro.
Pela expressão no rosto de Lilith, ela não havia acreditado. Deacon não insistiu, preferia deixar que ela pensasse o que quisesse. A jovem pôs a mão no queixo, pensativa.
– Se você está falando a verdade, então porque Nikki me falou aquelas coisas de você?
– O que ele disse? – perguntou o garoto, desconfiado.
– Ele me falou o que aconteceu entre vocês, falou que você é... experiente.
Deacon encarou Lilith por alguns segundos, surpreso. Como Nikki poderia ter dito isso a Lilith, e com que intenção? Começava a descobrir o lado mentiroso do rapaz, e não estava gostando nem um pouco. Levantou-se, decidido.
– O que vai fazer, Deacon? – indagou Lilith, preocupada.
– Perguntar a Nikki quem ele chamou de experiente.
Lilith chegou a falar algo do tipo "você não precisa ficar tão ofendido", mas Deacon ignorou-a e saiu, batendo a porta.
A música que Deacon escutara no quarto ficava mais alta à medida que ele se aproximava da sala. Era um piano, e muito bem tocado por alguém que era muito profissional. O garoto, que havia descido as escadas correndo, diminuiu o passo. A música era suave e envia a casa numa atmosfera de sonho, de tranqüilidade.
À entrada da sala, Deacon parou. Nikki estava tocando o piano, muito absorto, com os olhos fechados, enquanto as mãos deslizavam sobre as teclas rapidamente, com uma destreza incrível. Deacon esperou que ele parasse de tocar, mas não havia pausa. Ou a peça era muito longa ou Nikki estava emendando uma música em outra. Ao fim de vários minutos de espera, Deacon decidiu interromper o rapaz. Pouco importava se ele se irritasse.
– Nikki – chamou, aproximando-se. Como o rapaz não escutou, repetiu – Nikki!
Nada. O rapaz estava muito concentrado. Depois de várias tentativas infrutíferas de chamar a atenção de Nikki, Deacon tocou o seu ombro. O rapaz parou de tocar e ergueu o olhar – um olhar de descontentamento e reprovação.
– O que pode ser tão urgente que não poderia esperar que eu parasse de tocar?
Deacon foi direto ao assunto.
– Você acha divertido inventar coisas sobre mim para Lilith?
– Do que está falando?
Lilith apareceu na sala ressabiada, parecendo muito apressada.
– Nikki, eu estou atrasada para o trabalho. Até mais.
Era óbvio que ela estava saindo de casa para se safar – afinal, não queria que Nikki a chamasse de fofoqueira. Deacon a seguiu com o olhar, enquanto ela abria a porta e saía. Depois voltou-se para Nikki.
– E então, já se lembrou ou está outra vez fingindo que esqueceu?
– Se você for mais claro, talvez eu saiba do que você está falando.
Deacon contou a Nikki o que Lilith lhe dissera. O rapaz deu um leve sorriso, balançando a cabeça. Realmente havia dito aquilo a Lilith, mas não iria admitir.
– Ela deve ter entendido errado. – Nikki fechou o tampo sobre as teclas do piano – pena que ela acabou de sair, a gente poderia chamá-la e esclarecer tudo. Eu não acredito que se chateou com isso, que sensibilidade, que mau-humor.
– O que você queria? Você e Lilith ficam falando de mim pelas costas.
– Vocês dois também falam de mim – Nikki levantou-se e se aproximou de Deacon – Não dê ouvidos a ela. Olha, eu tenho uma idéia.
– Uma idéia? – repetiu Deacon, arisco.
– Hum-hum – confirmou Nikki, enquanto afastava do rosto de Deacon uma mecha de cabelo que cobria-lhe os olhos – já que Lilith saiu e a casa está vazia, porque a gente não aproveita para tentar descobrir se o que Lilith disse que eu falei de você é verdade?
Deacon levou alguns segundos para entender o que Nikki estava propondo. Surpreso, olhou de esgueira.
– Sério?
– Eu pareço estar mentindo? – Nikki segurava-o pelo queixo, para que Deacon o encarasse, enquanto avançava fazendo o garoto caminhar para trás. Precisou curvar-se para falar-lhe ao ouvido – então, você vem comigo até o meu quarto?
Deacon assentiu com um movimento de cabeça. Mas, quando fez menção de aproximar-se de Nikki, o rapaz afastou-se e deu-lhe um tapa nas costas.
– Você não aprende. Senão quer que falem de você, não pode ser tão fácil.
– Quê? – Deacon ficou parado, com ar abobado.
– Pensei que tinha aprendido a não cair no papo de qualquer um. Você se acha muito esperto, mas é muito ingênuo.
– Você estava só tentando me... idiota! – Deacon o empurrou, com raiva.
Nikki não se moveu, nem teve qualquer reação. Apesar do ar sério, parecia se divertir por ter enganado Deacon. E, sádico, acrescentou.
– Você parece ser o tipo de cara que nunca levou um fora. Sempre tem a primeira vez, não é?
Retirou-se da sala, enquanto Deacon acompanhava-o com o olhar, enfezado. Não acreditava que tinha que agüentar essas coisas vindas de Nikki e não conseguia ter força de vontade para deixar aquela mansão imediatamente, como se algo o prendesse ali. Logo ele, que se orgulhava tanto de ser insuportável, havia encontrado uma pessoa mais insuportável que ele próprio. Nikki parecia se divertir muito em contrariá-lo... sim! Era isso, Nikki gostava de contrariá-lo; bastava fingir que queria o contrário do que realmente desejava, e o rapaz iria acabar agradando-o e fazendo a sua vontade sem perceber.