Capítulo III
Se Sakura achava que poderia livrar-se dele com tal facilidade, esta redondamente enganada!, pensava Shoran, enquanto passava pelos edifícios da parte velha da cidade. Lançou um olhar aborrecido às janelas escurecidas do New Assembly, o salão de bailes mais concorrido de Tomoeda, mas agora já estava as escuras, pois seus freqüentadores havia muito voltado para suas casas. Depois dos dois últimos dias, nos quais sofrera com um condenado, estava a ponto de amaldiçoar o local onde vira pela primeira vez sua problemática ex-amante.
O que teria acontecido a ele e a Fuutie se não tivesse deixado que a irmã o convencesse a ir aquele baile, o primeiro dessa temporada?, avaliou, aborrecido. Se, de repente, diante de si aparecesse um ser fantástico que lhe desse a oportunidade de realizar um desejo, o de voltar atrás no passado, dois meses antes precisamente, para modificar o que acontecera, não tinha certeza se aceitaria a oferta ou não...
Tudo acabara de forma tão amarga! Aquele romance com lady Kinomoto mudara tanto a sua vida! Mas, enquanto durara, ele vivera os momentos mais maravilhosos que um homem poderia sonhar em ter.
Shoran meneou a cabeça, querendo afastar os pensamentos sombrios. De nada adiantava ficar se lamentando, analisou. Precisava apenas pensar na viagem que ainda queria fazer a Kioto.
Diminuiu os passos apressados com que deixara, indignado, Tsuki, sentindo a brisa suave, mas fria, que passava pelas ruas de Tomoeda. Havia nela o suave aroma de comida que vinha das janelas das cozinhas de muitas das casas elegantes daquele bairro. Também podia ouvir de longe os últimos ruídos, risadas e notas musicais de festas que estavam acabando só agora. Havia no ar uma sensação de convívio social e de riqueza que pareciam zombar de sua situação e o deixavam ainda mais zangado.
Mas não podia deixar-se abater por tais idéias, lembrou-se, seguindo adiante. Estudava o problema que ele tinha diante de si com a mesma determinação com que enfrentava os problemas financeiros que sua família vinha enfrentando havia já algum tempo. Sabia muito bem que, com uma boa analise, calma e segurança, qualquer problema poderia ser resolvido. E tinha mais experiência do que a maioria dos homens de sua idade e classe no que se regeria a arranjar uma solução para o que parecia sem solução.
Passou a descer a rua Imen, ponderando sobre o problema da forma mais sensata e fria que conseguia, mantendo-se firme e determinado. Uma solução podia não ser a melhor, entao avaliava outra, pesando prós e contras, descartando idéias absurdas, seguindo as mais prudentes.
Ainda possuía alguns artigos de valor dos quais podias se separar no intuito de fazer dinheiro para a viagem ate Kioto. Muitos dos itens que pretendia vender eram-lhe caros e valeriam muito menos em dinheiro do que em consideração pessoal, mas esse era um aspecto do problema que precisava ser superado.
Seus passos agora ecoavam na madrugada quando pesava sobre o calçamento um tanto irregular da rua Tomoe. Muitas das peças que pensara vender eram-lhe queridas demais. Tinha de haver outra solução. Alem do mais, se quisesse apenas empenha-las, as lojas de penhores ainda estavam fechadas e assim permaneceriam por muitas horas, e ele tinha pressa em arranjar uma solução para poder partir em breve.
A sensatez dizia-lhe para regressar a sua casa, separar o que tinha de valor, dormir um pouco e depois voltar ao problema pela manha. No entanto a idéia de ver a irmã e Hideki Kinomoto tomando uma dianteira muito grande o impelia a agir naquele exato momento. Outro motivo o empurrava, e com mais força ainda: o fato de que Sakura estaria numa bela carruagem, sozinha, cruzando boa parte do país. Mesmo porque ela levaria como companhia apenas um velho cocheiro e um criado jovem demais para poder protege-la.
Seus pensamentos desviaram-se para outro aspecto do problema, pensou por instantes e, de repente, com um sorriso, murmurou:
-Mas é claro...
Podia estar sem dinheiro agora, mas ainda dispunha do que a maioria dos homens de bem possuía: amigos. Se pudesse falar com seu cunhado! Yamazaki Yatsuro tinha muitos cavalos, carruagens e fundos, e estava certo de que ele os colocaria a sua disposição de imediato, quando fosse necessário. Infelizmente, a propriedade de campo de Yamazaki ficava a quilômetros de distancia de Tomoeda... Se fosse até lá, estaria provocando um atraso ainda maior em sua perseguição ao casal de namorados que ele pretendia trazer de volta. Pensou nos amigos que ele tinha em Tomoeda e ao quais poderia recorrer de pronto.
Lembrou-se de Eriol Hiiraguizawa. Se havia alguém que poderia ajuda-lo num momento tão difícil, esse alguém era o homem que o havia apresentado a lady Kinomoto!, avaliou, com um breve sorriso. E seus passos se apressaram quase que automaticamente.
Estava praticamente diante de sua casa e, ao chegar, entrou apressado e lá permaneceu tempo suficiente apenas para escrever um recado a sua governanta dizendo que Fuutie e ele tinham sido chamados para fora da cidade e que não retornariam senão em alguns dias.
Quando saiu mais uma vez para a escuridão da rua, Shoran virou ao sul, em direção a Japan Gardens. Era naquele exato lado da cidade que Hiiraguizawa mantinha sua bela casa.
Não haveria problemas em acordar seu velho e melhor amigo de infância, mesmo no adiantado daquela hora. Ao contrario, temia ate que o noctívago e farrista Eriol ainda não tivesse voltado para casa e fosse demorar muito a faze-lo.
Dobrou a esquina, apressado, e, ao ver que havia uma luz na sala da frente da casa do amigo, respirou aliviado. Bateu na porta entalhada e não esperou muito ate que um criado viesse abri-la. Quando este o introduziu a presença de seu patrão, Eriol mostrou-se espantado e também um tanto divertido:
-Ora, ora! Li?! Mas o que houve para estar aqui tão cedo? Problemas com lady Kinomoto?
Shoran não sorriu.
-Estou surpreso que ela não lhe tenha contado- disse, muito serio. Conhecia muito bem o amigo para saber o quanto ele gostava de saber de todas as novidades da cidade.- Ela rompeu comigo há dois dias.
-Mas que pequena travessa, não?- Eriol indicou-lhe uma poltrona e sentou- se à sua frente.- Mas devo dizer-lhe, meu amigo, que o invejo até por ter passado algumas semanas na companhia de uma dama tão bela e interessante!- Indicando uma mesa próxima, onde havia bandejas com copos e uma garrafa de conhaque, ofereceu:- Não quer afogar suas mágoas?
Depois do que acabara de passar com Sakura, a oferta parecia tentadora, mas Shoran preferiu recusar:
-Acho que não ousaria...
-Não?- Eriol olhou-o com certa indulgência.- Claro... Nunca afoga suas mágoas né? Nunca foge delas. Não gosta de cobardices. Sei muito bem que prefere encarar os problemas e lutar com eles até vencer.
Shoran encarou-o por alguns segundos, depois comentou, um tanto amargo:
-Uma maneira um tanto aborrecida de ser, não?- Imaginava como conseguiram, ambos, continuar aquela amizade durante tantos anos tendo temperamentos tão opostos.
Sakura poderia ter feito uma escolha melhor se tivesse ficado com Hiiraguizawa, avaliou, em vez de apenas usa-lo como menino de recados entre ela mesma e Shoran. Alem de ostentar uma beleza masculina clássica, de ser elegante e atraente, Eriol tinha um jeito todo especial para com as mulheres que as fazia esvoaçar ao seu redor como abelhas em torno de uma fonte de néctar.
-Aborrecida?- ele repetiu.- Não, meu amigo. Muito ao contrario!- Hiiraguizawa serviu-se de conhaque e ajeitou-se melhor na poltrona que ocupava.- Sou uma pessoa que costuma cansar-se das outras até com felicidade, porque a maioria das que conheço é como eu: um tanto frívola, preguiçosa, egoísta... Mas pessoas que são o sal da terra, como você, frustram-me o tempo todo. Vivo numa constante antecipação de que vocês possam sair de seu caminho absolutamente reto e honesto e se deteriorar num mar de orgias e maldades.
Shoran assentiu.
-Foi assim que me imaginei.
-Está se referindo ao seu romance com lady Kinomoto? Ora, foi apenas um leve escorregão seu, porem discreto demais para acabar com sua honra impecável, amigo. Mas, vamos deixar isso de lado e falar coisas mais praticas: o que o traz a minha casa a esta hora? Acho que eu até poderia adivinhar, mas como você continua a me confundir... Vamos lá, diga-me o que ouve.
-Trata-se de minha irmã, Fuutie. Ela enfiou na cabeça que deveria fugir com Hideki Kinomoto, sobrinho de lady Kinomoto.
Eriol ergueu as sobrancelhas.
-E ela o fez?!- indagou, surpreso. Sentou-se mais para a frente, interessado com os olhos brilhando.- Oh, eu queria ter uma bela irmã que me obrigasse a correr atrás de seus pequenos pecados...
-É mesmo? Por que não fica com a minha, entao?- Shoran indagou, amargo. E contou ao amigo tudo o que acontecera, inclusive a insistência de Sakura em perseguir o jovem casal e sua necessidade desesperada de conseguir um bom cavalo e algum tipo de dinheiro para financiar aquela viagem.
Hiiraguizawa parecia divertir-se com toda aquela situação, porem Shoran procurou ignorar o sorriso do amigo; se queria partir ainda nessa noite atrás de Fuutie e Hideki, o homem a sua frente era a única fonte de ajuda possível.
-Imagino que queira que eu mantenha todo esse caso em segredo, agora que confiou em mim.- Eriol analisou. Levantou-se, entao, e, um tanto cambaleante, foi ate a lareira.
Shoran também se levantou, acrescentando:
-Não me adiantaria nada perseguir minha irmã até Kioto para traze-la e vê- la malfalada, se a informação que lhe dei vazar. Entao, eu seria obrigado a casa-la com Kinomoto para que a questão da honra ficasse resolvida. Mas você sempre foi um grande amigo, Eriol. O que me diz? Posso contar com a sua descrição e também com o seu auxílio?
-Olhe, quanto à discrição, juro por minha honra duvidosa que não vou abrir a boca! Agora, quanto ao auxilio...- Ele enfiou a mão no bolso e o revirou.- Acabei de chegar de uma noite de jogatina monstruosa. Não sei ao certo quanto perdi, mas, seja quanto for... você ficaria escandalizado em saber. Sinto informa-lo, meu querido amigo, mas não tenho o suficiente para você aqui comigo. Só terei quando me encontrar com o meu contador pela manha.
-Droga!- Shoran deixou escapar, passando, de imediato, a pensar em quem mais poderia ajuda-lo.
Eriol pareceu raciocinar um pouco e continuou, como se não o tivesse ouvido:
-A não ser que...
-Sim?- Shoran adiantou-se, ansioso. Mas sentia, no tom do amigo, que não deveria animar-se tanto.
-Não tem alguma coisa de valor com você?- Hiiraguizawa perguntou, olhando para o relógio que Shoran trazia em seu bolso, como se avalia-se quanto ele poderia render.
-Tenho isto- Shoran respondeu, erguendo o relógio.- E o cordão que foi de meu avô. Mas não vai adiantar, já tinha pensado nisso. As lojas de penhores estão todas fechadas a esta hora e ainda vão demorar muito para abrir.
-Não me referi à penhora de seus bens, caro amigo.- Eriol espreguiçou-se com prazer, como se tivesse acabado de acordar de uma relaxante noite de sono.- O que acha de apostar essas peças.
Shoran entreabriu os lábios para protestar, porem seu anfitrião o impediu de falar, adiantando-se:
-Uma boa mão no jogo no qual acabei de sair e você terá dinheiro suficiente para seguir com conforto até Kioto e depois voltar. Três boas mãos e você poderia financiar uma bela e longa viagem.- Eriol já o instigava a seguir para a porta.
-Mas eu nunca fui um jogador!- Shoran exclamou.- Sabe muito bem disso!
De certa maneira, ele jogara ao iniciar aquele romance com lady Kinomoto. Tentara ganhar uma partida de puro prazer. E jogara, chegando a acreditar que tinha tudo a ganhar absolutamente nada a perder. No entanto avaliara tarde demais que ua aposta fora em suas habilidades para levar uma mulher para cama sem se apaixonar por ela... O risco maior havia sido para o seu coração. E Shoran perdera.
Eriol Hiiraguizawa parou à porta e se virou para encarar o amigo.
-Pode tentar o quanto quiser jogar em segurança, meu caro, mas a vida é um grande jogo, em qualquer aspecto. Pode ficar aqui esta noite, é bem-vindo, sempre foi. E, quando amanhecer, poderemos procurar meu contador para que eu consiga algum dinheiro rápido. No entanto, se está determinado a partir antes de ver o sol nascer, pode vir comigo e arriscar seus únicos bens numa rodada de cartas. O que vai ser?
Shoran olhou para o relógio e o acariciou, pensativo. O relógio era tão antigo que apensas mostrava as horas, que o limitava o seu uso, e o cordão era ainda mais velho. Ambos haviam passado, em sua família, de pai para filho, de geração a geração, até chegarem a ele. Já lhe era difícil separar- se de peças tão queridas num balcão de penhores, onde poderia recupera-las mais tarde, e agora, diante da possibilidade de perde-las de uma vez... vacilava. Ainda seria, sem sombra de duvida, o cabeça de sua família, mesmo sem aquelas peças de ouro que representavam insígnias de autoridade para os Li, mas, mesmo assim, bem no fundo de seu coração, sentia que algo mudaria se não estivesse mais com elas.
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O bom senso dizia a Sakura que ela estava seguindo no único caminho ajuizado que havia a sua frente. Sei coração podia avisa-la do contrario, mas ela aprendera havia muito tempo que não devia confiar nesse órgão tão caprichoso. Nem mesmo quando seu experiente cocheiro concordava com Shoran Li.
-Tem certeza de que esta viagem não pode esperar até o amanhecer, senhora?- perguntou Himura, abafando um bocejo.
-Sinto muitíssimo por te-lo tirado de sua cama a esta hora da noite- ela se desculpou, porem mantendo o tom educado e insistente. Esforçava-se por não bocejar também, enquanto Hetty a ajudava a colocar a capa.
Mesmo no mês de maio, as noites podiam ser muito frias, em especial quando se pretendia ficar varias horas sentadas em uma carruagem seguindo por campos desertos.
-Acho que esse assunto não pode esperar- concluiu.- A carruagem já está pronta?
-Sim, senhora.- O criado girava o antiquado chapéu de três bicos nas mãos, indicando a porta.- Posso perguntar para onde seguimos?
-Espero estar em Tekawa amanha à noite.- Sakura fez alguns cálculos rápidos, imaginando quando Hideki e Fuutie poderiam ter partido de Tomoeda.
Pedia a Deus que seu sobrinho tivesse alugado uma carruagem não tão rápida, nem queria imaginar que ele pudesse ter embarcado num coche ligeiro, ou, pior ainda, que tivesse alcançado a carruagem do correios, que era extremamente rápida e eficiente.
-Espero não precisar seguir alem de Tekawa- murmurou quase para si mesma.
O cocheiro, porem, ouviu-a e assentiu, sabendo que teria sentir-se muito bem disposto para enfrentar a estrada.
-Pelo menos o tempo está limpo e temos uma lua clara.-comentou.
Minutos mais tarde, Himura abria a porta da carruagem para sua patroa.
-Partindo agora, passaremos por Gifu ainda antes do transito mais intenso do mercado- disse.- E, se não tivermos contratempo algum, podemos parar na taverna Chiroi para o desjejum.
-Muito boa sugestão, Himura- Sakura apoiou, aceitando a mão que ele lhe oferecia para entrar no veículo.
Quase sempre ficavam nessa taverna e hospedaria, que era muito limpa e organizada, quando seguiam para Tomoeda ou voltavam para a capital. Se Hideki tivesse alugado um coche e levado a srta. Li condigo antes do meio dia, deveriam com certeza passar sua primeira noite de viagem na Chiroi. Sakura poderia obter noticias deles ali, talvez até intercepta-los, se não tivessem retomado a estrada de manha bem cedo.
O cocheiro subiu para a boléia e, segundos depois, a elegante carruagem de lady Kinomoto descia a rua Tomoe. Dentro dela, Sakura sorria para si mesma. Antevia seu retorno a Tomoeda na noite seguinte, e a expressão atônita de Shoran quando lhe trouxesse a irmã de volta. Mas o rosto dele não desapareceu de sua mente com tanta facilidade quando esperava. Era como se algumas imagens de Shoran ainda a assombrassem, revia-o chegando a porta de seu quarto, querendo saber sobre a irmã desaparecida, seu estado de desespero, sua expressão tensa, seus cabelos desfeitos... e aquela preocupação que lhe deixava os olhos ainda mais encantadores. Ah, aqueles olhos!
Depois revia-o zangado como nunca o vira antes. E, em seguida, curioso enquanto ela abria a carta que Hideki deixara... Enfim, a cada segundo, uma nova imagem de Shoran aparecia em sua mente, forte, insistente, ainda sedutora.
Talvez tivesse sido a coisa mais acertada desfazer aquele relacionamento com ele prematuramente, antes que a influencia que Shoran parecia exercer sobre seus sentidos ficasse forte demais.
Os cavalos seguiam num trote compassado e Sakura envolveu-se mais em seu longo casaco, encolhendo-se num dos cantos do banco estofado e confortável da carruagem. Cerrou os olhos, descansando a cabeça contra o veludo do assento, tentando deixar de pensar em qualquer coisa que fosse, sobretudo Shoran. Queria dormir.
Mas, sem conseguir, decidiu concentrar-se em seus pensamentos em algo que, com certeza, afastaria qualquer outra imagem de sua mente: seu bebê.
Por baixo da capa, passou a mão pelo ventre ainda elegante, num gesto de carinho e de proteção. Apesar de todas as evidencias concretas que conhecia, custava ainda a crer que havia uma criança sendo gerada dentro de si. Quantas vezes, durante os primeiros anos de seu casamento, rezara para engravidar, mas se vira decepcionada inúmeras vezes. E, nesse meio-tempo, a prole bastarda de Percy crescia como se cada uma daquelas crianças fosse um novo insulto contra ela, uma prova a mais da virilidade dele- crianças que vinham ao mundo para serem criadas e educadas à custa de seu próprio dinheiro.
Quantas supostas "curas" tentara para acabar com sua esterilidade! Às vezes até doloridas, outras vezes, humilhantes.
Ano após anos, vira a falta de um herdeiro acabar com o relacionamento com seu marido e destruir seu casamento. Até que, por fim, mal conseguia olhar para ele de frente porque sabia o que Percy devia estar pensando. Por que se casara com a filha de um rico comerciante? Para repor as perdas dos cofres de sua família com a fortuna que ela herdara. Mas Sakura nem mesmo conseguia produzir uma criança para herdar o que ele se sacrificara tanto para restaurar.
A carruagem já seguia pelos campos ao longo de Tsukinimo , calmos e silencioso, e ela chorava, numa mistura de suspiros e soluços, mas tão baixo que nem o cocheiro nem o criado que o acompanhava na boléia poderiam ouvir.
Quem fora o tolo mais ingênuo?, perguntava-se mais uma vez, analisando seu passado. Ela mesma ou Percy? Como nenhum dos dois tinha percebido que as amantes dele poderiam ter filhos de outros amantes?! Mas as mulheres tinham forçado a paternidade de suas crianças sobre ele porque Percy tinha dinheiro para prover por elas e também porque ele estava ansioso demais para provar sua masculinidade, clamando aos quatro ventos que aqueles eram filhos seus.
E agora ali estava ela, finalmente grávida. E de um homem com o qual não tinha a menor intenção de se casar.
Shoran Li teria aceitado ser seu amante se imaginasse haver alguma possibilidade de que ela engravidasse? Sakura sabia a resposta para tal pergunta, pois o própria Shoran levantara a questão quando ela se aproximara dele pela primeira vez com sua proposta escandalosa.
Shoran chegara a corar e gaguejara com uma inocência que a encantara, pois vinha de um verdadeiro cavalheiro. Foram necessárias três tentativas para que Shoran deixasse claro o que estava querendo perguntar.
Sakura chegara a pensar em mentir para esconder seu doloroso passado, mas algo dentro de si a fizera deixar de lado a autopiedade e o embaraço e confessar-lhe a verdade. Shoran quisera saber se havia perigo de uma gravidez indesejada, mas ela garantira que não, explicando que, enquanto fora casada, seu marido tivera vários filhos com outras mulheres, mas ela nunca conseguira conceber um. E rira para disfarçar sua dor e não ver nenhum olhar de piedade ou de constrangimento que pudesse surgir nos doces olhos castanhos de Shoran. E acrescentara: "Sou tão livre quanto um homem para viver meus prazeres".
Talvez essa sua afirmação tivesse tentado o destino a provar-lhe o contrario, analisava agora. Mas seria ela quen iria rir por ultimo, apesar de tudo. Sua grande fortuna e sua viuvez garantiram-lhe os prazeres de ser mãe sem a presença incomoda e intediante de um marido.
Sua consciência podia recrimina-la por imaginar que Shoran pudesse ser considerado incomodo ou intediante, mas preferia ignorar tais recriminações. Mesmo se tivesse pensado em arriscar um novo casamento, até por questão de decência, analisaria a conveniência de um marido em uma escala diferente de que usara para escolher um amante. E Shoran estaria numa das ultimas posições em tal lista de pretendentes.
Respirou fundo, imaginando que talvez tivesse sido melhor ter trazido Hetty. Pelo menos a conversa fútil da criada a teria distraído e permitido que seus pensamento não se voltassem tanto assim para Shoran.
Talvez tivesse sido muito mais fácil expulsa-lo de sua casa e de sua vida do que era para tira-lo de seus pensamentos, concluiu, aborrecida. Precisava fazer planos para si mesma e o seu bebê assim que aquela viagem inesperada e problemática tivesse terminado e a situação de Hideki e Fuutie estivesse resolvida.
Primeiro, seguiria para o interior, onde pretendia ficar em retiro até o nascimento da criança. Um lugar bem tranquila, com clima saudável. Bem distante de Tomoeda, com certeza, e ainda mais distante de Wakayami, onde sua família vivia. Talvez um lugar em Satouki fosse o ideal. Exceto que...
De repente, a idéia de que Shoran pudesse possuir uma casa em Satouki a deixou confusa e inquieta. Tentava lembrar-se de algo que ele tivesse dito a respeito, mas não conseguia. Não se lembrava de terem falado sobre tal assunto.
Não verdade, raramente haviam falado fosse do que fosse alem de trivialidades, talvez até por receio de haver um envolvimento maior entre ambos.
Sakura respirou fundo, zangada consigo mesma. Estava pensando em Shoran de novo. Se queria saber se ele tinha ascendência em algum lugar do interior, precisava afastar as perguntas e as divagações e deixa-las para quando estivesse com Fuutie, de volta a Tomoeda. Poderia perguntar tudo o que quisesse a moça sobre sua família, suas propriedades...
Deixou de pensar nisso e tentou outra coisa: a casa silenciosa e agradável que arrumaria para si mesma e seu filho. Eram pensamentos doves e suaves que lhe agradavam muito. E deixou-se levar, sentindo o balanço da carruagem embalar seus sonhos e planos.
Foi com certo desconforto que, pouco tempo depois, sentiu a mudança de ritimo no seguir da carruagem. Percebeu, entao, que cochilara, talvez até dormira, e imaginou que deviam estar seguindo pelas ruas calçadas de pedras de Tekawa. Tranquila, deixou-se adormecer de novo. E só tornou a despertar de repente quando a carruagem diminuiu abruptamente de marcha, quase lançando-a contra o banco da frente.
Tudo estava imerso na escuridão lá fora. Quanto tempo dormira?, Sakura tentava imaginar. Onde estariam agora?
Os relinchos dos cavalos soaram no silencio da noite quando o veiculo, por fim parou. Sakura ajeitou-se no banco e ergueu o braço para bater contra a parede da carruagem, exigindo uma explicação do cocheiro. Mas o som que veio em seguida, lá de fora, fez sua mão parar no ar enquanto um frio terrível percorria-lhe o corpo, e seu estomago revirava, mas sem ter nada a ver com sua gravidez.
-Desça daí e entregue tudo!- gritou uma voz.
Talvez alguém estivesse fazendo uma brincadeira de mau gosto, Sakura chegou a pensar, mas logo afastou tal idéia, considerando-a ridícula. Escondeu sua bolsa sob as dobras da capa, pensando nas figuras famosas e terríveis dos salteadores de estrada, que haviam sido numerosos no século anterior, mas que agora quase não existiam.
Talvez tivessem sido viajantes, que ficaram mais conscientes dos perigos de viajar à noite e passaram a evitar as estradas nessas horas, considerou, estremecendo. O aviso prudente de Shoran parecia ecoar em sua mente. Ele dissera que a viagem podia ser difícil, até perigosa...
Mas ela estava tão ansiosa por afastar-se dele, tão impaciente em relação as tentativas por afastar-se dele de controlar a situação que não o ouvira.
-Deixem-nos passar!- ouviu bdizer.- O que querem, afinal?
-O que acha que queremos?- o outro homem rebateu com desdém. E entao seguiu-se uma gargalhada que fez com que Sakura se arrepiasse.- Uma carruagem assim bonita deve ter uma bom recheio, não é? Vamos dar uma olhadinha...
sakura encolheu-se junto ao banco enquanto ouvia alguém desmontando e seus passos se aproximarem da porta do veiculo.
-Estou com uma pistola armada e pode ter certeza de que não tenho receio de usa-la- avisou o salteador para quem estivesse dentro da carruagem.
Sakura vasculhou em sua bolsa e retirou algumas notas das muitas que trazia. Aquele bandido jamais se daria por falta delas.
Mesmo com o coraçao na boca, ela estendeu o braço, abriu a porta e fogou sua bolsa para fora, para a silhueta que aparecia nas sombras da noite.
-Pegue isso e deixem-nos em paz- disse.- Preciso chegar a Nagasaki pela manha. Minha mae se encontra muito enferma.
Se aquelas terriveis criaturas tinham coraçao, a mentira e a colaboraçao que demonstrava deviam ajuda-la a não ser molestada ainda mais.
-Sinto muito em saber disso, moça- disse o salteador, sacudindosua bolsa, onde as moedas tilintaram.- Obrigado pelo presentinho, mas não se apresse tanto assim para seguir viagem.
Ele deu dois passos à frente, e Sakura encolheu-se ainda mais dentro da carruagem.
-Sabe, estou imaginando se você é tao linda quanto sua voz é suave- continuou o bandido, enfiando o braço para dentro do veículo.
Sakura notou que a mao que tentava alcança-la estava enluvada.
-Não sou bonita- disse, tentando desesperadamente pensar em alguma coisa que dissuadisse aquele criminoso de fazer o que parecia ter em mente.- E estou com varíola!
De repente, o corpo do homem invadiu a carruagem, e ela não conseguiu reter um grito de pavor.
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Oie!!!! To sem assunto entao vo ser breve beijos para todos q deixaram comentarios e para os q não deixaram. Beijos a todos!!!
Warina
Se Sakura achava que poderia livrar-se dele com tal facilidade, esta redondamente enganada!, pensava Shoran, enquanto passava pelos edifícios da parte velha da cidade. Lançou um olhar aborrecido às janelas escurecidas do New Assembly, o salão de bailes mais concorrido de Tomoeda, mas agora já estava as escuras, pois seus freqüentadores havia muito voltado para suas casas. Depois dos dois últimos dias, nos quais sofrera com um condenado, estava a ponto de amaldiçoar o local onde vira pela primeira vez sua problemática ex-amante.
O que teria acontecido a ele e a Fuutie se não tivesse deixado que a irmã o convencesse a ir aquele baile, o primeiro dessa temporada?, avaliou, aborrecido. Se, de repente, diante de si aparecesse um ser fantástico que lhe desse a oportunidade de realizar um desejo, o de voltar atrás no passado, dois meses antes precisamente, para modificar o que acontecera, não tinha certeza se aceitaria a oferta ou não...
Tudo acabara de forma tão amarga! Aquele romance com lady Kinomoto mudara tanto a sua vida! Mas, enquanto durara, ele vivera os momentos mais maravilhosos que um homem poderia sonhar em ter.
Shoran meneou a cabeça, querendo afastar os pensamentos sombrios. De nada adiantava ficar se lamentando, analisou. Precisava apenas pensar na viagem que ainda queria fazer a Kioto.
Diminuiu os passos apressados com que deixara, indignado, Tsuki, sentindo a brisa suave, mas fria, que passava pelas ruas de Tomoeda. Havia nela o suave aroma de comida que vinha das janelas das cozinhas de muitas das casas elegantes daquele bairro. Também podia ouvir de longe os últimos ruídos, risadas e notas musicais de festas que estavam acabando só agora. Havia no ar uma sensação de convívio social e de riqueza que pareciam zombar de sua situação e o deixavam ainda mais zangado.
Mas não podia deixar-se abater por tais idéias, lembrou-se, seguindo adiante. Estudava o problema que ele tinha diante de si com a mesma determinação com que enfrentava os problemas financeiros que sua família vinha enfrentando havia já algum tempo. Sabia muito bem que, com uma boa analise, calma e segurança, qualquer problema poderia ser resolvido. E tinha mais experiência do que a maioria dos homens de sua idade e classe no que se regeria a arranjar uma solução para o que parecia sem solução.
Passou a descer a rua Imen, ponderando sobre o problema da forma mais sensata e fria que conseguia, mantendo-se firme e determinado. Uma solução podia não ser a melhor, entao avaliava outra, pesando prós e contras, descartando idéias absurdas, seguindo as mais prudentes.
Ainda possuía alguns artigos de valor dos quais podias se separar no intuito de fazer dinheiro para a viagem ate Kioto. Muitos dos itens que pretendia vender eram-lhe caros e valeriam muito menos em dinheiro do que em consideração pessoal, mas esse era um aspecto do problema que precisava ser superado.
Seus passos agora ecoavam na madrugada quando pesava sobre o calçamento um tanto irregular da rua Tomoe. Muitas das peças que pensara vender eram-lhe queridas demais. Tinha de haver outra solução. Alem do mais, se quisesse apenas empenha-las, as lojas de penhores ainda estavam fechadas e assim permaneceriam por muitas horas, e ele tinha pressa em arranjar uma solução para poder partir em breve.
A sensatez dizia-lhe para regressar a sua casa, separar o que tinha de valor, dormir um pouco e depois voltar ao problema pela manha. No entanto a idéia de ver a irmã e Hideki Kinomoto tomando uma dianteira muito grande o impelia a agir naquele exato momento. Outro motivo o empurrava, e com mais força ainda: o fato de que Sakura estaria numa bela carruagem, sozinha, cruzando boa parte do país. Mesmo porque ela levaria como companhia apenas um velho cocheiro e um criado jovem demais para poder protege-la.
Seus pensamentos desviaram-se para outro aspecto do problema, pensou por instantes e, de repente, com um sorriso, murmurou:
-Mas é claro...
Podia estar sem dinheiro agora, mas ainda dispunha do que a maioria dos homens de bem possuía: amigos. Se pudesse falar com seu cunhado! Yamazaki Yatsuro tinha muitos cavalos, carruagens e fundos, e estava certo de que ele os colocaria a sua disposição de imediato, quando fosse necessário. Infelizmente, a propriedade de campo de Yamazaki ficava a quilômetros de distancia de Tomoeda... Se fosse até lá, estaria provocando um atraso ainda maior em sua perseguição ao casal de namorados que ele pretendia trazer de volta. Pensou nos amigos que ele tinha em Tomoeda e ao quais poderia recorrer de pronto.
Lembrou-se de Eriol Hiiraguizawa. Se havia alguém que poderia ajuda-lo num momento tão difícil, esse alguém era o homem que o havia apresentado a lady Kinomoto!, avaliou, com um breve sorriso. E seus passos se apressaram quase que automaticamente.
Estava praticamente diante de sua casa e, ao chegar, entrou apressado e lá permaneceu tempo suficiente apenas para escrever um recado a sua governanta dizendo que Fuutie e ele tinham sido chamados para fora da cidade e que não retornariam senão em alguns dias.
Quando saiu mais uma vez para a escuridão da rua, Shoran virou ao sul, em direção a Japan Gardens. Era naquele exato lado da cidade que Hiiraguizawa mantinha sua bela casa.
Não haveria problemas em acordar seu velho e melhor amigo de infância, mesmo no adiantado daquela hora. Ao contrario, temia ate que o noctívago e farrista Eriol ainda não tivesse voltado para casa e fosse demorar muito a faze-lo.
Dobrou a esquina, apressado, e, ao ver que havia uma luz na sala da frente da casa do amigo, respirou aliviado. Bateu na porta entalhada e não esperou muito ate que um criado viesse abri-la. Quando este o introduziu a presença de seu patrão, Eriol mostrou-se espantado e também um tanto divertido:
-Ora, ora! Li?! Mas o que houve para estar aqui tão cedo? Problemas com lady Kinomoto?
Shoran não sorriu.
-Estou surpreso que ela não lhe tenha contado- disse, muito serio. Conhecia muito bem o amigo para saber o quanto ele gostava de saber de todas as novidades da cidade.- Ela rompeu comigo há dois dias.
-Mas que pequena travessa, não?- Eriol indicou-lhe uma poltrona e sentou- se à sua frente.- Mas devo dizer-lhe, meu amigo, que o invejo até por ter passado algumas semanas na companhia de uma dama tão bela e interessante!- Indicando uma mesa próxima, onde havia bandejas com copos e uma garrafa de conhaque, ofereceu:- Não quer afogar suas mágoas?
Depois do que acabara de passar com Sakura, a oferta parecia tentadora, mas Shoran preferiu recusar:
-Acho que não ousaria...
-Não?- Eriol olhou-o com certa indulgência.- Claro... Nunca afoga suas mágoas né? Nunca foge delas. Não gosta de cobardices. Sei muito bem que prefere encarar os problemas e lutar com eles até vencer.
Shoran encarou-o por alguns segundos, depois comentou, um tanto amargo:
-Uma maneira um tanto aborrecida de ser, não?- Imaginava como conseguiram, ambos, continuar aquela amizade durante tantos anos tendo temperamentos tão opostos.
Sakura poderia ter feito uma escolha melhor se tivesse ficado com Hiiraguizawa, avaliou, em vez de apenas usa-lo como menino de recados entre ela mesma e Shoran. Alem de ostentar uma beleza masculina clássica, de ser elegante e atraente, Eriol tinha um jeito todo especial para com as mulheres que as fazia esvoaçar ao seu redor como abelhas em torno de uma fonte de néctar.
-Aborrecida?- ele repetiu.- Não, meu amigo. Muito ao contrario!- Hiiraguizawa serviu-se de conhaque e ajeitou-se melhor na poltrona que ocupava.- Sou uma pessoa que costuma cansar-se das outras até com felicidade, porque a maioria das que conheço é como eu: um tanto frívola, preguiçosa, egoísta... Mas pessoas que são o sal da terra, como você, frustram-me o tempo todo. Vivo numa constante antecipação de que vocês possam sair de seu caminho absolutamente reto e honesto e se deteriorar num mar de orgias e maldades.
Shoran assentiu.
-Foi assim que me imaginei.
-Está se referindo ao seu romance com lady Kinomoto? Ora, foi apenas um leve escorregão seu, porem discreto demais para acabar com sua honra impecável, amigo. Mas, vamos deixar isso de lado e falar coisas mais praticas: o que o traz a minha casa a esta hora? Acho que eu até poderia adivinhar, mas como você continua a me confundir... Vamos lá, diga-me o que ouve.
-Trata-se de minha irmã, Fuutie. Ela enfiou na cabeça que deveria fugir com Hideki Kinomoto, sobrinho de lady Kinomoto.
Eriol ergueu as sobrancelhas.
-E ela o fez?!- indagou, surpreso. Sentou-se mais para a frente, interessado com os olhos brilhando.- Oh, eu queria ter uma bela irmã que me obrigasse a correr atrás de seus pequenos pecados...
-É mesmo? Por que não fica com a minha, entao?- Shoran indagou, amargo. E contou ao amigo tudo o que acontecera, inclusive a insistência de Sakura em perseguir o jovem casal e sua necessidade desesperada de conseguir um bom cavalo e algum tipo de dinheiro para financiar aquela viagem.
Hiiraguizawa parecia divertir-se com toda aquela situação, porem Shoran procurou ignorar o sorriso do amigo; se queria partir ainda nessa noite atrás de Fuutie e Hideki, o homem a sua frente era a única fonte de ajuda possível.
-Imagino que queira que eu mantenha todo esse caso em segredo, agora que confiou em mim.- Eriol analisou. Levantou-se, entao, e, um tanto cambaleante, foi ate a lareira.
Shoran também se levantou, acrescentando:
-Não me adiantaria nada perseguir minha irmã até Kioto para traze-la e vê- la malfalada, se a informação que lhe dei vazar. Entao, eu seria obrigado a casa-la com Kinomoto para que a questão da honra ficasse resolvida. Mas você sempre foi um grande amigo, Eriol. O que me diz? Posso contar com a sua descrição e também com o seu auxílio?
-Olhe, quanto à discrição, juro por minha honra duvidosa que não vou abrir a boca! Agora, quanto ao auxilio...- Ele enfiou a mão no bolso e o revirou.- Acabei de chegar de uma noite de jogatina monstruosa. Não sei ao certo quanto perdi, mas, seja quanto for... você ficaria escandalizado em saber. Sinto informa-lo, meu querido amigo, mas não tenho o suficiente para você aqui comigo. Só terei quando me encontrar com o meu contador pela manha.
-Droga!- Shoran deixou escapar, passando, de imediato, a pensar em quem mais poderia ajuda-lo.
Eriol pareceu raciocinar um pouco e continuou, como se não o tivesse ouvido:
-A não ser que...
-Sim?- Shoran adiantou-se, ansioso. Mas sentia, no tom do amigo, que não deveria animar-se tanto.
-Não tem alguma coisa de valor com você?- Hiiraguizawa perguntou, olhando para o relógio que Shoran trazia em seu bolso, como se avalia-se quanto ele poderia render.
-Tenho isto- Shoran respondeu, erguendo o relógio.- E o cordão que foi de meu avô. Mas não vai adiantar, já tinha pensado nisso. As lojas de penhores estão todas fechadas a esta hora e ainda vão demorar muito para abrir.
-Não me referi à penhora de seus bens, caro amigo.- Eriol espreguiçou-se com prazer, como se tivesse acabado de acordar de uma relaxante noite de sono.- O que acha de apostar essas peças.
Shoran entreabriu os lábios para protestar, porem seu anfitrião o impediu de falar, adiantando-se:
-Uma boa mão no jogo no qual acabei de sair e você terá dinheiro suficiente para seguir com conforto até Kioto e depois voltar. Três boas mãos e você poderia financiar uma bela e longa viagem.- Eriol já o instigava a seguir para a porta.
-Mas eu nunca fui um jogador!- Shoran exclamou.- Sabe muito bem disso!
De certa maneira, ele jogara ao iniciar aquele romance com lady Kinomoto. Tentara ganhar uma partida de puro prazer. E jogara, chegando a acreditar que tinha tudo a ganhar absolutamente nada a perder. No entanto avaliara tarde demais que ua aposta fora em suas habilidades para levar uma mulher para cama sem se apaixonar por ela... O risco maior havia sido para o seu coração. E Shoran perdera.
Eriol Hiiraguizawa parou à porta e se virou para encarar o amigo.
-Pode tentar o quanto quiser jogar em segurança, meu caro, mas a vida é um grande jogo, em qualquer aspecto. Pode ficar aqui esta noite, é bem-vindo, sempre foi. E, quando amanhecer, poderemos procurar meu contador para que eu consiga algum dinheiro rápido. No entanto, se está determinado a partir antes de ver o sol nascer, pode vir comigo e arriscar seus únicos bens numa rodada de cartas. O que vai ser?
Shoran olhou para o relógio e o acariciou, pensativo. O relógio era tão antigo que apensas mostrava as horas, que o limitava o seu uso, e o cordão era ainda mais velho. Ambos haviam passado, em sua família, de pai para filho, de geração a geração, até chegarem a ele. Já lhe era difícil separar- se de peças tão queridas num balcão de penhores, onde poderia recupera-las mais tarde, e agora, diante da possibilidade de perde-las de uma vez... vacilava. Ainda seria, sem sombra de duvida, o cabeça de sua família, mesmo sem aquelas peças de ouro que representavam insígnias de autoridade para os Li, mas, mesmo assim, bem no fundo de seu coração, sentia que algo mudaria se não estivesse mais com elas.
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O bom senso dizia a Sakura que ela estava seguindo no único caminho ajuizado que havia a sua frente. Sei coração podia avisa-la do contrario, mas ela aprendera havia muito tempo que não devia confiar nesse órgão tão caprichoso. Nem mesmo quando seu experiente cocheiro concordava com Shoran Li.
-Tem certeza de que esta viagem não pode esperar até o amanhecer, senhora?- perguntou Himura, abafando um bocejo.
-Sinto muitíssimo por te-lo tirado de sua cama a esta hora da noite- ela se desculpou, porem mantendo o tom educado e insistente. Esforçava-se por não bocejar também, enquanto Hetty a ajudava a colocar a capa.
Mesmo no mês de maio, as noites podiam ser muito frias, em especial quando se pretendia ficar varias horas sentadas em uma carruagem seguindo por campos desertos.
-Acho que esse assunto não pode esperar- concluiu.- A carruagem já está pronta?
-Sim, senhora.- O criado girava o antiquado chapéu de três bicos nas mãos, indicando a porta.- Posso perguntar para onde seguimos?
-Espero estar em Tekawa amanha à noite.- Sakura fez alguns cálculos rápidos, imaginando quando Hideki e Fuutie poderiam ter partido de Tomoeda.
Pedia a Deus que seu sobrinho tivesse alugado uma carruagem não tão rápida, nem queria imaginar que ele pudesse ter embarcado num coche ligeiro, ou, pior ainda, que tivesse alcançado a carruagem do correios, que era extremamente rápida e eficiente.
-Espero não precisar seguir alem de Tekawa- murmurou quase para si mesma.
O cocheiro, porem, ouviu-a e assentiu, sabendo que teria sentir-se muito bem disposto para enfrentar a estrada.
-Pelo menos o tempo está limpo e temos uma lua clara.-comentou.
Minutos mais tarde, Himura abria a porta da carruagem para sua patroa.
-Partindo agora, passaremos por Gifu ainda antes do transito mais intenso do mercado- disse.- E, se não tivermos contratempo algum, podemos parar na taverna Chiroi para o desjejum.
-Muito boa sugestão, Himura- Sakura apoiou, aceitando a mão que ele lhe oferecia para entrar no veículo.
Quase sempre ficavam nessa taverna e hospedaria, que era muito limpa e organizada, quando seguiam para Tomoeda ou voltavam para a capital. Se Hideki tivesse alugado um coche e levado a srta. Li condigo antes do meio dia, deveriam com certeza passar sua primeira noite de viagem na Chiroi. Sakura poderia obter noticias deles ali, talvez até intercepta-los, se não tivessem retomado a estrada de manha bem cedo.
O cocheiro subiu para a boléia e, segundos depois, a elegante carruagem de lady Kinomoto descia a rua Tomoe. Dentro dela, Sakura sorria para si mesma. Antevia seu retorno a Tomoeda na noite seguinte, e a expressão atônita de Shoran quando lhe trouxesse a irmã de volta. Mas o rosto dele não desapareceu de sua mente com tanta facilidade quando esperava. Era como se algumas imagens de Shoran ainda a assombrassem, revia-o chegando a porta de seu quarto, querendo saber sobre a irmã desaparecida, seu estado de desespero, sua expressão tensa, seus cabelos desfeitos... e aquela preocupação que lhe deixava os olhos ainda mais encantadores. Ah, aqueles olhos!
Depois revia-o zangado como nunca o vira antes. E, em seguida, curioso enquanto ela abria a carta que Hideki deixara... Enfim, a cada segundo, uma nova imagem de Shoran aparecia em sua mente, forte, insistente, ainda sedutora.
Talvez tivesse sido a coisa mais acertada desfazer aquele relacionamento com ele prematuramente, antes que a influencia que Shoran parecia exercer sobre seus sentidos ficasse forte demais.
Os cavalos seguiam num trote compassado e Sakura envolveu-se mais em seu longo casaco, encolhendo-se num dos cantos do banco estofado e confortável da carruagem. Cerrou os olhos, descansando a cabeça contra o veludo do assento, tentando deixar de pensar em qualquer coisa que fosse, sobretudo Shoran. Queria dormir.
Mas, sem conseguir, decidiu concentrar-se em seus pensamentos em algo que, com certeza, afastaria qualquer outra imagem de sua mente: seu bebê.
Por baixo da capa, passou a mão pelo ventre ainda elegante, num gesto de carinho e de proteção. Apesar de todas as evidencias concretas que conhecia, custava ainda a crer que havia uma criança sendo gerada dentro de si. Quantas vezes, durante os primeiros anos de seu casamento, rezara para engravidar, mas se vira decepcionada inúmeras vezes. E, nesse meio-tempo, a prole bastarda de Percy crescia como se cada uma daquelas crianças fosse um novo insulto contra ela, uma prova a mais da virilidade dele- crianças que vinham ao mundo para serem criadas e educadas à custa de seu próprio dinheiro.
Quantas supostas "curas" tentara para acabar com sua esterilidade! Às vezes até doloridas, outras vezes, humilhantes.
Ano após anos, vira a falta de um herdeiro acabar com o relacionamento com seu marido e destruir seu casamento. Até que, por fim, mal conseguia olhar para ele de frente porque sabia o que Percy devia estar pensando. Por que se casara com a filha de um rico comerciante? Para repor as perdas dos cofres de sua família com a fortuna que ela herdara. Mas Sakura nem mesmo conseguia produzir uma criança para herdar o que ele se sacrificara tanto para restaurar.
A carruagem já seguia pelos campos ao longo de Tsukinimo , calmos e silencioso, e ela chorava, numa mistura de suspiros e soluços, mas tão baixo que nem o cocheiro nem o criado que o acompanhava na boléia poderiam ouvir.
Quem fora o tolo mais ingênuo?, perguntava-se mais uma vez, analisando seu passado. Ela mesma ou Percy? Como nenhum dos dois tinha percebido que as amantes dele poderiam ter filhos de outros amantes?! Mas as mulheres tinham forçado a paternidade de suas crianças sobre ele porque Percy tinha dinheiro para prover por elas e também porque ele estava ansioso demais para provar sua masculinidade, clamando aos quatro ventos que aqueles eram filhos seus.
E agora ali estava ela, finalmente grávida. E de um homem com o qual não tinha a menor intenção de se casar.
Shoran Li teria aceitado ser seu amante se imaginasse haver alguma possibilidade de que ela engravidasse? Sakura sabia a resposta para tal pergunta, pois o própria Shoran levantara a questão quando ela se aproximara dele pela primeira vez com sua proposta escandalosa.
Shoran chegara a corar e gaguejara com uma inocência que a encantara, pois vinha de um verdadeiro cavalheiro. Foram necessárias três tentativas para que Shoran deixasse claro o que estava querendo perguntar.
Sakura chegara a pensar em mentir para esconder seu doloroso passado, mas algo dentro de si a fizera deixar de lado a autopiedade e o embaraço e confessar-lhe a verdade. Shoran quisera saber se havia perigo de uma gravidez indesejada, mas ela garantira que não, explicando que, enquanto fora casada, seu marido tivera vários filhos com outras mulheres, mas ela nunca conseguira conceber um. E rira para disfarçar sua dor e não ver nenhum olhar de piedade ou de constrangimento que pudesse surgir nos doces olhos castanhos de Shoran. E acrescentara: "Sou tão livre quanto um homem para viver meus prazeres".
Talvez essa sua afirmação tivesse tentado o destino a provar-lhe o contrario, analisava agora. Mas seria ela quen iria rir por ultimo, apesar de tudo. Sua grande fortuna e sua viuvez garantiram-lhe os prazeres de ser mãe sem a presença incomoda e intediante de um marido.
Sua consciência podia recrimina-la por imaginar que Shoran pudesse ser considerado incomodo ou intediante, mas preferia ignorar tais recriminações. Mesmo se tivesse pensado em arriscar um novo casamento, até por questão de decência, analisaria a conveniência de um marido em uma escala diferente de que usara para escolher um amante. E Shoran estaria numa das ultimas posições em tal lista de pretendentes.
Respirou fundo, imaginando que talvez tivesse sido melhor ter trazido Hetty. Pelo menos a conversa fútil da criada a teria distraído e permitido que seus pensamento não se voltassem tanto assim para Shoran.
Talvez tivesse sido muito mais fácil expulsa-lo de sua casa e de sua vida do que era para tira-lo de seus pensamentos, concluiu, aborrecida. Precisava fazer planos para si mesma e o seu bebê assim que aquela viagem inesperada e problemática tivesse terminado e a situação de Hideki e Fuutie estivesse resolvida.
Primeiro, seguiria para o interior, onde pretendia ficar em retiro até o nascimento da criança. Um lugar bem tranquila, com clima saudável. Bem distante de Tomoeda, com certeza, e ainda mais distante de Wakayami, onde sua família vivia. Talvez um lugar em Satouki fosse o ideal. Exceto que...
De repente, a idéia de que Shoran pudesse possuir uma casa em Satouki a deixou confusa e inquieta. Tentava lembrar-se de algo que ele tivesse dito a respeito, mas não conseguia. Não se lembrava de terem falado sobre tal assunto.
Não verdade, raramente haviam falado fosse do que fosse alem de trivialidades, talvez até por receio de haver um envolvimento maior entre ambos.
Sakura respirou fundo, zangada consigo mesma. Estava pensando em Shoran de novo. Se queria saber se ele tinha ascendência em algum lugar do interior, precisava afastar as perguntas e as divagações e deixa-las para quando estivesse com Fuutie, de volta a Tomoeda. Poderia perguntar tudo o que quisesse a moça sobre sua família, suas propriedades...
Deixou de pensar nisso e tentou outra coisa: a casa silenciosa e agradável que arrumaria para si mesma e seu filho. Eram pensamentos doves e suaves que lhe agradavam muito. E deixou-se levar, sentindo o balanço da carruagem embalar seus sonhos e planos.
Foi com certo desconforto que, pouco tempo depois, sentiu a mudança de ritimo no seguir da carruagem. Percebeu, entao, que cochilara, talvez até dormira, e imaginou que deviam estar seguindo pelas ruas calçadas de pedras de Tekawa. Tranquila, deixou-se adormecer de novo. E só tornou a despertar de repente quando a carruagem diminuiu abruptamente de marcha, quase lançando-a contra o banco da frente.
Tudo estava imerso na escuridão lá fora. Quanto tempo dormira?, Sakura tentava imaginar. Onde estariam agora?
Os relinchos dos cavalos soaram no silencio da noite quando o veiculo, por fim parou. Sakura ajeitou-se no banco e ergueu o braço para bater contra a parede da carruagem, exigindo uma explicação do cocheiro. Mas o som que veio em seguida, lá de fora, fez sua mão parar no ar enquanto um frio terrível percorria-lhe o corpo, e seu estomago revirava, mas sem ter nada a ver com sua gravidez.
-Desça daí e entregue tudo!- gritou uma voz.
Talvez alguém estivesse fazendo uma brincadeira de mau gosto, Sakura chegou a pensar, mas logo afastou tal idéia, considerando-a ridícula. Escondeu sua bolsa sob as dobras da capa, pensando nas figuras famosas e terríveis dos salteadores de estrada, que haviam sido numerosos no século anterior, mas que agora quase não existiam.
Talvez tivessem sido viajantes, que ficaram mais conscientes dos perigos de viajar à noite e passaram a evitar as estradas nessas horas, considerou, estremecendo. O aviso prudente de Shoran parecia ecoar em sua mente. Ele dissera que a viagem podia ser difícil, até perigosa...
Mas ela estava tão ansiosa por afastar-se dele, tão impaciente em relação as tentativas por afastar-se dele de controlar a situação que não o ouvira.
-Deixem-nos passar!- ouviu bdizer.- O que querem, afinal?
-O que acha que queremos?- o outro homem rebateu com desdém. E entao seguiu-se uma gargalhada que fez com que Sakura se arrepiasse.- Uma carruagem assim bonita deve ter uma bom recheio, não é? Vamos dar uma olhadinha...
sakura encolheu-se junto ao banco enquanto ouvia alguém desmontando e seus passos se aproximarem da porta do veiculo.
-Estou com uma pistola armada e pode ter certeza de que não tenho receio de usa-la- avisou o salteador para quem estivesse dentro da carruagem.
Sakura vasculhou em sua bolsa e retirou algumas notas das muitas que trazia. Aquele bandido jamais se daria por falta delas.
Mesmo com o coraçao na boca, ela estendeu o braço, abriu a porta e fogou sua bolsa para fora, para a silhueta que aparecia nas sombras da noite.
-Pegue isso e deixem-nos em paz- disse.- Preciso chegar a Nagasaki pela manha. Minha mae se encontra muito enferma.
Se aquelas terriveis criaturas tinham coraçao, a mentira e a colaboraçao que demonstrava deviam ajuda-la a não ser molestada ainda mais.
-Sinto muito em saber disso, moça- disse o salteador, sacudindosua bolsa, onde as moedas tilintaram.- Obrigado pelo presentinho, mas não se apresse tanto assim para seguir viagem.
Ele deu dois passos à frente, e Sakura encolheu-se ainda mais dentro da carruagem.
-Sabe, estou imaginando se você é tao linda quanto sua voz é suave- continuou o bandido, enfiando o braço para dentro do veículo.
Sakura notou que a mao que tentava alcança-la estava enluvada.
-Não sou bonita- disse, tentando desesperadamente pensar em alguma coisa que dissuadisse aquele criminoso de fazer o que parecia ter em mente.- E estou com varíola!
De repente, o corpo do homem invadiu a carruagem, e ela não conseguiu reter um grito de pavor.
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Oie!!!! To sem assunto entao vo ser breve beijos para todos q deixaram comentarios e para os q não deixaram. Beijos a todos!!!
Warina
