Esclarecimento: Só reiterando que esta história não me pertence, ela é uma adaptação do livro de mesmo nome, de Barbara Cartland, que foi publicado na série homônima de romances, da editora Nova Cultural.
Capítulo 2
Usagi tomou um ônibus puxado a cavalo e foi até Bloomsbury. De lá, apanhou outra condução que a deixou perto da mercearia onde fazia suas compras.
Preocupava-se em ter de abandonar a mãe sozinha por tantas horas, quando começasse a trabalhar.
A sra. Tsukino podia se locomover pelo quarto, mas o problema da solidão perturbava Usagi. A mãe ficava mais deprimida a cada dia que passava.
Nos primeiros tempos, sua mãe chorara muito. Isso era mais compreensível, de certo modo, do que a apatia completa. A sra. Tsukino acordava deprimida e necessitava de um tremendo esforço para interessar-se por alguma coisa. Jamais sorria.
Assim que desceu do ônibus, Usagi foi direto à mercearia.
O merceeiro, um homem amável, que atendia com cortesia todos os fregueses, cumprimentou-a:
- Boa tarde, miss Hasegawa. Em que posso servi-la ? E como vai sua mãe ?
- Na mesma, sr. Kiriyama. Trago comigo uma lista de compras, mas gostaria de pagá-lo no fim da semana. É possível ?
- Claro, miss Hasegawa.
Enquanto o sr. Kiriyama a servia, ela perguntou:
- O senhor sabe o endereço daquela senhora que esteve aqui uma tarde dessas, uma professora aposentada ?
- Miss Yukimura ? É uma pessoa muito distinta, mas no momento passa por grande dificuldade financeira.
- Foi o que o senhor me disse antes, sr. Kiriyama. Eu preciso entrar em contato com ela.
- Nada mais fácil, miss Hasegawa. Miss Yukimura mora aí na esquina.
- Diga-me o endereço exato, sr. Kiriyama.
- Museum Lane, nº 22. Quer que eu mande meu filho Kazuki entregar as compras em sua casa ?
- Por favor, sr. Kiriyama. Preciso disso ainda hoje.
- Kazuki chegará lá antes da senhorita - prometeu o merceeiro.
Usagi foi à casa de miss Yukimura, uma mulher de mais de sessenta anos, magra e pálida, que dava a impressão de ser mal alimentada.
Ela sorriu para Usagi quando abriu a porta.
- Posso falar com a senhora por alguns minutos ? - pediu Usagi.
- Claro, miss Hasegawa. Entre. Não repare no quarto, é muito pequeno, mas é meu lar.
O quarto, na verdade mínimo, estava limpíssimo. A cama servia de sofá durante o dia. Numa das paredes havia estantes cheias de livros e um bufê onde miss Yukimura guardava tudo: roupas e utensílios de cozinha. O pequeno fogão ficava sobre o consolo da lareira. Uma mesa desmontável fora colocada junto à janela.
Usagi sentou-se na única cadeira do quarto.
- Vim aqui para ver se a senhora pode me ajudar, miss Yukimura.
- De que maneira ? Farei tudo que estiver ao meu alcance - falou miss Yukimura, meio medrosa, meio preocupada.
Usagi desconfiou que a pobre senhora estivesse pensando que ela fora pedir dinheiro emprestado. Por isso acrescentou depressa:
- Acabei de achar um emprego excelente. Porém preocupo-me com a minha mãe.
Ela notou então o alívio na expressão da sra. Yukimura, e concluiu que acertara em sua suspeita.
- Não quero deixar minha mãe sozinha o dia inteiro - explicou Usagi - A senhora poderia passar ao menos algumas horas na companhia dela ?
- Naturalmente, miss Hasegawa. Será um prazer para mim.
- Mas eu insisto em pagá-la por esse serviço.
- Não é necessário. Sinto-me honrada com seu convite.
- A senhora precisa entender, miss Yukimura, que não posso abusar de sua bondade. É orgulhosa, eu sei, mas nós também somos. Vou começar agora a trabalhar ganhando muito bem, e não será um peso para mim.
- Então, guarde o dinheiro para sua mãe.
- Que tal pormos as coisas desta maneira - sugeriu Usagi: - Eu pagarei suas despesas, e isso inclui a condução daqui até onde nós moramos. Gostaria também que a senhora fizesse as compras para a casa e preparasse o almoço para minha mãe. E coma com ela, por favor.
- Isso não ! Não vou tirar a comida de sua mãe - protestou miss Yukimura.
- Mamãe não gosta de comer sozinha, eu sei !
Enfim, depois de muita luta, miss Yukimura aceitou um pequeno pagamento. Além disso, ela teria uma boa refeição por dia, coisa que com certeza não poderia comprar.
A sra. Tsukino concordou com o arranjo sem protestar. Preocupava- se, contudo, com o emprego da filha.
- Há muitos homens nesse escritório onde você vai trabalhar ? - perguntou ela na primeira oportunidade.
- Há muitos, mamãe. Não se preocupe. Com estes meus óculos, nem me olharão.
- É verdade, Usagi. São horríveis ! Tire-os, por favor. Não agüento ver você assim. Seu pai sempre detestou mulheres feias !
Após uma ligeira pausa, a sra. Tsukino quis saber o nome do chefe da filha. Usagi informou-a.
- Sr. Chiba ? - repetiu - Não ! Não me diga que é Mamoru Chiba !
A jovem logo concluiu que não se enganara ao pensar que Mamoru fora um dos homens que abandonara o pai quando ele mais necessitava de apoio.
- Conte-me, mamãe, o que se lembra sobre Mamoru Chiba.
- Seu pai gostava muito dele. Admirava-o pelo modo com introduzia reformas em seu país…
A sra. Tsukino interrompeu o que dizia.
- Quando papai foi acusado de traição, foi ele um dos que agiu contra papai ? - interpôs Usagi.
- Não exatamente. Mas também não o auxiliou, mesmo depois da carta que seu pai lhe escreveu.
- Papai escreveu-lhe uma carta ?
- Escreveu. Seu pai estava desesperado, deprimido, tão constrangido com as mentiras que se espalhavam sobre ele que decidiu escrever ao sr. Chiba, pedindo-lhe conselhos. E o homem que seu pai acreditava ser um grande amigo, nem mesmo dignou-se a responder.
- É difícil de acreditar! - ela exclamou - A carta foi entregue em mãos ?
Usagi sabia que o correio não era muito confiável.
- Foi - respondeu a sra. Tsukino - Um de nossos mais responsáveis criados levou-a. Se o sr. Chiba não estivesse em sua casa, na Plaza San Martin, um empregado a teria enviado para a fazenda dele, que fica a menos de duas horas da cidade.
- Lembro-me disso ! Lembro-me dessa fazenda. Nunca estive lá, mas papai uma vez apontou para a direção onde ficava, enquanto cavalgávamos pelos arredores. Sei que é uma das estâncias mais lindas e modernas do país.
- O sr. Chiba é riquíssimo, e tem muita influência na política da Argentina.
- Odeio-o pelo que fez com papai, mas vou trabalhar para ele porque paga bem. E, de uma maneira ou de outra, espero vingar papai.
- Não. Não fale assim, minha filha - suplicou a sra. Tsukino - Não é de seu feitio alimentar vinganças. O ódio é uma coisa perigosa não apenas para a pessoa a quem é dirigido, como também para a que odeia.
- Isso é o que a senhora me ensinou, mamãe, desde que eu era muito jovem; e segui seu conselho por muitos anos. Mas não pode esperar que eu não odeie os homens causadores da morte de papai.
Pela primeira vez Usagi expressou em alto e bom som o que sempre estivera no pensamento dela e da mãe: a morte de Kenji Tsukino não fora acidental.
- Com certeza você encontraria trabalho com outra pessoa, Usagi - disse a sra. Tsukino após algum tempo.
- Duvido que eu encontrasse outro patrão me pagando tão bem. E, afinal de contas, não será por muito tempo, mamãe.
Muito provavelmente, pensava Usagi, o sr. Chiba a dispensaria após uma semana, se não achasse seu trabalho satisfatório, ou se encontrasse um rapaz para substituí-la.
Porém, nesse meio tempo, a mãe teria suficiente leite, creme, ovos e frutas. E também os franguinhos de leite que o médico recomendara.
"E, enquanto pego o dinheiro dele, continuo odiando-o !"
O alto salário que o sr. Chiba lhe daria servia-lhe de consolo.
No segundo dia de trabalho, Usagi entregou ao sr. Chiba o seu primeiro relatório.
- Aqui está o relatório, senhor - disse ela.
Mamoru levantou os olhos da escrivaninha e encarou-a com espanto.
- O relatório que lhe dei ontem ?
- Sim, senhor.
Mamoru tomou-o das mãos de Usagi e, pelo modo como o fez, ela deduziu que seu chefe acreditava estar o trabalho cheio de falhas. Suas próximas palavras confirmaram isso.
- Sente-se, miss Hasegawa. Haverá por certo alterações a serem feitas, e vou explicá-las enquanto leio.
Ela sentou-se. Fitava-o, detestando-o ainda mais que no dia anterior.
Mamoru virou página por página do relatório, sem comentários. Tinha no rosto uma expressão de incredulidade. Enfim, pôs o trabalho sobre a escrivaninha e declarou:
- Muito bom, miss Hasegawa ! Achei que seria o primeiro rascunho de vários outros, mas vai seguir como está.
Ela ergueu-se para se retirar. Mamoru então perguntou-lhe:
- Onde aprendeu a fazer um relatório complicado tão bom ? - Usagi não respondeu, e ele insistiu:
- Fiz-lhe uma pergunta, miss Hasegawa.
- No meu último emprego, senhor.
- E onde foi ele ?
- No exterior.
- Em que país ?
- Em Portugal, senhor.
- Como é possível que tenha adquirido em Portugal experiência sobre as condições do mercado na Argentina ?
Mais uma vez Usagi não respondeu, e Mamoru disse:
- Fiz-lhe outra pergunta, miss Hasegawa.
- O senhor acabou de ler um relatório e achou-o bom. Se eu o levar agora, poderá alcançar a próxima mala postal.
- Em outras palavras, miss Hasegawa, não quer responder às minhas perguntas ?
- Não.
- Acha que não tenho o direito de fazê-las ?
- Acho, pois isso não tem nada a ver com meu trabalho.
- Fui bastante relapso em nossa primeira entrevista, miss Hasegawa. Como empregador, tenho direito de indagar muitas coisas do candidato. Imaginei que o sr. Akagi houvesse feito isso, mas ele me informou não saber nada sobre a senhorita.
- É verdade.
- Por que não lhe deu mais detalhes de sua vida profissional ?
- Porque ele não me pediu.
- E ainda não acha que eu tenho o direito a essas perguntas, agora ?
- Espero, senhor, que meu trabalho seja satisfatório.
- Sabe que é, miss Hasegawa. Jamais conheci, e falo com muita sinceridade, uma pessoa que pudesse elaborar um relatório tão complicado, na primeira tentativa, com tanta competência.
Usagi inclinou a cabeça em agradecimento. E o sr. Chiba prosseguiu:
- Tenho curiosidade acerca de sua pessoa, miss Hasegawa. Não é comum se encontrar alguém como a senhorita tendo de trabalhar para viver. Mora sozinha ?
- Moro com minha mãe.
- E ela permitiu que trabalhasse num escritório ?
- Permitiu.
Mamoru esboçou um sorriso.
- A senhorita não agüenta de vontade de me dizer que não devo intrometer-me em sua vida. Garanto ! Confesso, contudo, que não posso ler isso em seus olhos ! Precisa usar esses óculos ? Aposto que dificultam seu trabalho.
- Sou forçada a usá-los.
- Você parece uma corujinha - observou ele - Mas, claro, uma corujinha inteligente. Temos muitas corujas na Argentina, e há umas pequenas, cinzentas, que piam como os pombos, e que rondam as casas à noite.
Usagi conhecia bem as corujas a que ele se referia. Quantas vezes ela ouvira aquele piado que emitiam quando, junto com seus pais, passava temporadas no campo ! Sentiu saudades da Argentina, do tempo em que fora feliz. Seus dias eram sempre cheios de Sol ! Só de pensar nisso sentiu o aroma do tomilho selvagem, da ervilha-de-cheiro e da alfafa.
Mas ela não falou nada e, após segundos, com certa exasperação, Mamoru Chiba entregou-lhe o relatório, dizendo:
- Remeta-o imediatamente, miss Hasegawa. Estou preparando outro relatório mais longo e mais complicado para lhe dar.
No dia seguinte, ao chegar no escritório, Usagi encontrou uma enorme quantidade de trabalho sobre a sua mesa.
Surpreendeu-se ao ver o número de telegramas em código a serem expedidos e imaginou a despesa que isso representava.
Esses telegramas iam da Inglaterra para a Argentina, e vice-versa, como bandos de pássaros, diariamente.
Concluiu que o sr. Chiba estava envolvido em muitos negócios entre os dois países, além do da carne.
A Argentina não exportava apenas carne, um comércio que, aliás, crescia ano a ano; mas também lã, cereais, trigo e óleo de linhaça.
Buenos Aires tornara-se sinônimo de riqueza, prosperidade e luxo.
Usagi e a mãe costumavam rir dos magnatas argentinos que alugavam vagões de estrada de ferro para transportar tudo de suas residências de inverno para as de verão.
Um fazendeiro chegou a levar seu rebanho de vacas para a Europa a fim de garantir que os filhos tivessem leite de boa qualidade para beber.
E, mais ainda. O Jóquei Clube em Calle Florida era não somente um centro de recreação da elite, como também uma galeria de arte e biblioteca.
Ela sabia que a riqueza de Buenos Aires não estava distribuída eqüitativamente. Alguns argentinos levavam vida miserável, como as pessoas dos becos de Londres. Porém, na Argentina, comia-se bem.
O sr. Tsukino dizia sempre à filha que a razão de os homens e mulheres do campo serem altos, saudáveis e bonitos residia na boa alimentação. Em contrapartida, na Inglaterra, o povo não comia bem, sofria por causa do frio e das doenças graves.
A aristocracia argentina tinha tudo. Mamoru Chiba era um exemplo disso. Ele possuía um ar arrogante, muito autoconfiante; nunca hesitava em conseguir, com o poder, o que não obtinha de outra forma.
Usava roupas bem talhadas, mas sem exageros, e chamaria atenção em qualquer lugar que fosse.
A reserva de Usagi o irritava. Como vingança, ele desafiava-a, ditando numa velocidade incrível; e só pelo fato de conhecer o assunto é que ela conseguia taquigrafar.
Algumas vezes ele ditava de costas, olhando para as verdes árvores do St. James's Park, sendo difícil se ouvir o que dizia.
Percebendo que Mamoru dispunha-se a lutar contra ela, Usagi revidava. Não admitia derrotas e inventava palavras quando não as escutava bem; mas fazia isso com tanta habilidade que Mamoru jamais notava nada de irregular nos relatórios.
Por várias vezes ele preparara armadilhas para ver se Usagi caía nelas, e revelava os lugares onde trabalhava antes, e para quem.
Mas ela respondia por monossílabos, e exultava ao ver que vencia a secreta batalha entre os dois.
Se não estivesse tão consumida pelo ódio, ela admiraria a maneira como Mamoru ganhava concessões e fantásticos contratos para a Argentina.
Ele negociava não apenas seus produtos, mas os de uma dúzia de outros fazendeiros, criadores de gado, todos eles proprietários de grandes glebas dos famosos pampas que faziam a riqueza da Argentina.
O primeiro carneiro foi levado para lá em 1550. E, dois anos mais tarde, sete vacas e um touro consistiram no início dos poderosos rebanhos agora espalhados pelos pampas.
Os colonizadores espanhóis reconheceram logo a adequabilidade dos pampas para a criação de gado. Porém só muitos anos mais tarde os criadores tiveram a idéia de exportar qualquer coisa além do couro que vendiam à Espanha e ao Brasil.
Usagi lembrava-se de seu pai ter lhe contado como, em 1882, um comerciante argentino convertera seu navio, chamado Saladero, que supria o mercado doméstico de carnes-secas, em frigorífico.
Daí por diante foi possível transportar carne congelada para a Europa e para a Inglaterra. Esse comércio cresceu de modo fantástico ano após ano. E os contratos de Mamoru Chiba iriam tornar a Argentina mais rica do que nunca.
Usagi considerava o trabalho que ela executava fascinante. E não somente por causa dos cálculos que sempre a interessaram, mas também porque, enquanto trabalhava, visualizava os enormes rebanhos espalhados pelos pampas, sob os raios dourados do Sol. E tinha a impressão de ver gaúchos cavalgando ao lado deles, com botas de esporas de prata, soltando fumaça de seus cachimbos, com a mesma arrogância que caracterizava Mamoru Chiba. E, à noite, quando voltava para casa, respondia às perguntas da mãe aflita, afirmando que homem algum do escritório prestara atenção nela.
Por assessorar exclusivamente o sr. Chiba, os outros funcionários tratavam-na com respeito e conservavam-se a distância.
Os homens de negócios, que visitavam Mamoru Chiba todos os dias, nunca lhe lançavam um olhar.
Era um alívio para ela, ao chegar em casa, tirar os óculos enormes e soltar os cabelos, sentindo-se livre do disfarce.
Uma noite, olhou-se no espelho antes de ir para a cama e, sem saber por que motivo, pôs-se a imaginar se Mamoru a acharia bonita sem os óculos e de cabelos soltos.
Entre suas obrigações no trabalho estava a de encomendar buquês de flores e jóias que Mamoru enviava a mulheres de seu relacionamento. Ele pedia também a Usagi que comprasse frascos de perfume, dúzias de luvas de pelica; ou bolsas de cetim. Isso tudo adquirido nas lojas de Bond Street, onde ele possuía conta. Ora Usagi comprava um sombrinha com cabo cravejado de jóias, ora binóculos de ópera, de ouro ou tartaruga.
Pelo visto, Mamoru confiava na opinião dela, pois, uma tarde chamou-a em sua sala a fim de lhe mostrar uma série de pulseiras cravejadas de diamantes.
- Quero seu conselho, miss Hasegawa - disse ele - Preciso escolher um presente muito especial. Como mulher, qual destas pulseiras acha a mais bonita ?
Usagi examinou-as uma a uma. Algumas lhe pareceram de mau gosto, outras vistosas demais. Depois de pensar um pouco, declarou:
- Depende muito, senhor, da pessoa que vai receber o presente.
- O que quer dizer com isso, miss Hasegawa ?
- Exatamente o que eu disse - replicou ela friamente - Para uma atriz, ou uma mulher que deseje chamar atenção, é óbvio que essas à sua direita são as mais adequadas. Para uma lady, as que estão à sua esquerda.
- É muito perspicaz, miss Hasegawa. E, agora, diga-me: Gostaria de saber qual eu escolheria ?
- Não é da minha conta, senhor.
Sem esperar permissão, ela saiu da sala. Achou que Mamoru quis lhe dar uma alfinetada, e odiou-o ainda mais por isso.
Não obstante, pensava nele o tempo todo.
"Espero que este emprego não dure muito", pensava.
Mas, quando chegou o fim da semana, alegrou-se enormemente com o dinheiro que recebeu. Mamoru lhe pagara horas extras em três ocasiões, e isso aumentou muito o seu salário. Usagi teve vontade de dizer a ele não ser necessário lhe pagar tanto, de dizer que, ao mencionar sua hora de saída às cinco, só pensara em não deixar a mãe sozinha por tanto tempo.
Contudo, refletindo melhor, não falou nada. Que importava o que o sr. Chiba pensasse dela ?
Ganhava honestamente cada libra; sabia ser mais eficiente para aquele trabalho do que qualquer secretária da Inglaterra.
Quem mais poderia dominar o espanhol falado na Argentina tão bem quando ela ?
Quem mais poderia entender frases e palavras em espanhol não muito puro, neologismos criados pelos nativos e por outros imigrantes que se instalaram no país após à conquista dos espanhóis ?
Poloneses, turcos, franceses, judeus, russos, alemães levaram sua contribuição à língua.
"Ele teve muita sorte em me contratar como secretária, essa é a verdade", admitiu Usagi, enfim.
Não obstante, voltou à casa no primeiro dia de pagamento sentindo-se ligeiramente culpada. Seria humanamente impossível a uma mulher ganhar tanto dinheiro em tão pouco tempo.
Mamoru Chiba era um grande sucesso em Londres. Quanto a isso não havia dúvida. Todos os dias chegavam convites para jantares e recepções. Usagi fora encarregada de abri-los, selecioná-los e apresentá-los à aprovação dele.
- O senhor quer jantar com o primeiro-ministro na quarta-feira ? - perguntou ela.
- Suponho que precise ir, miss Hasegawa.
- E haverá uma recepção no Ministério do Exterior no dia seguinte. O senhor pretende comparecer ?
- Não há outro jeito, penso eu.
Em meio à correspondência, havia sempre cartas pessoais. Usagi abriu uma delas por engano e leu as primeiras frases. Corou. Aquilo não fora escrito para os seus olhos !
Colocou-a no envelope de novo e a pôs em cima da escrivaninha de seu chefe.
Depois desse incidente, tomou mais cuidado ao abrir as cartas. Algumas eram perfumadas, e isso facilitava a seleção. Porém, de qualquer maneira, ficou calejada em reconhecer a caligrafia feminina. Levava então a correspondência íntima, intacta, ao sr. Chiba.
Às vezes meninos de recados traziam bilhetes e aguardavam pela resposta.
Mamoru começou a dar ordens a Usagi para que reservasse mesas em restaurantes; comprasse entradas de teatro; providenciasse carruagens para seus convidados.
Logo ela percebeu que Mamoru interessava-se por Sílvia Standish, uma dançarina do Teatro de Variedades.
Noite após noite Usagi tinha ordem de providenciar uma carruagem para esperar Sílvia na porta do teatro, terminado o espetáculo.
Sílvia Standish era loira, graciosa e encantava a todos com seu charme e vivacidade.
Havia outra artista, essa francesa, chamada Renée Lefleur, que também atraía o sr. Chiba. Um dia ela apareceu no escritório. Vestia-se com exagero, cheia de diamantes.
Ela pôde ouvir Mamoru e Renée rindo despreocupadamente na sala ao lado. Perguntava-se o que falavam de tão engraçado. E o perfume deixado pela atriz ficou no ar por muitas horas depois da saída dela.
Uma mesa era reservada permanentemente para Mamoru Chiba no Romano's, a casa noturna da moda.
Usagi recordou-se do pai, que costumava amolar sua mãe dizendo que certa vez levara uma mulher famosa para jantar lá. Essa mulher pediu pratos tão caros que ele teve grande dificuldade em pagar a conta.
Havia outras boates, restaurantes luxuosos, dos quais Mamoru era habitué. Porém Usagi achava que mulheres iguais a ela não os freqüentavam. E não duvidava que a maioria das atrizes de Londres consideravam Mamoru terrivelmente sedutor. Mas reconhecia que ele não se assemelhava em nada aos aristocratas típicos, que amavam a ostentação. Fazia tudo de maneira bastante discreta. Às vezes ela pensava no que teria sido sua vida se os Estados Unidos não tivessem sonhado com uma base naval na Argentina. Ela tomaria parte em festas da corte, dançaria com rapazes solteiros e um deles, provavelmente, casar-se-ia com ela. Seus pais haviam planejado isso tudo.
Não obstante, o que a preocupava mais no momento era a saúde da mãe.
"Preciso cuidar de mamãe. Ele tem de sarar. E talvez algum dia voltemos à nossa antiga vida social."
Olhando para trás, Usagi recordou-se de como a mãe gostava dessa vida. Não havia um só dia em que ela não recebesse visitas, tanto em Madrid quanto em Lisboa ou Buenos Aires.
Usagi estava quase certa de que os amigos ingleses não acreditaram nas acusações, publicadas nos jornais, de que o pai fora vítima. Todos receberiam-nas com prazer, sem dúvida.
Ela trabalhava com o sr. Chiba há quase três semanas, e a saúde de sua mãe parecia melhorar progressivamente.
Miss Yukimura estava sendo um grande sucesso. Era uma mulher inteligente e a sra. Tsukino gostava dela. As duas mulheres tinham muito em comum.
Isso representou um grande alívio para Usagi. Em geral, ela chegava em casa cansada e encontrava tudo muito limpo, em perfeita ordem. Nem mesmo tinha de preparar seu próprio jantar.
A sra. Tsukino esperava pela filha ansiosamente e queria ouvir notícias da Argentina. Queria saber acerca dos bebês que nasciam, das pessoas que se casavam. Achava que, como a filha trabalhava em uma firma argentina, devia estar a par das crônicas sociais dos periódicos portenhos.
Uma tarde, quando Usagi preparava-se para sair do escritório, o sr. Chiba mandou chamá-la.
- Vou partir para Buenos Aires no fim da semana - comunicou ele.
Ela esperava por isso mais cedo ou mais tarde; porém, chegada a hora, assustou-se. Não receberia mais o seu bom salário, e teria de voltar à agência à procura de emprego.
- Nem ao menos diz que está triste com a minha partida ? - observou Mamoru com sarcasmo.
Usagi percebeu que estava sendo rude. Pensava só em si, nada mais.
- Desculpe - disse ela depressa - Mas eu sabia que isso iria acontecer um dia.
- Quero que vá comigo, miss Hasegawa.
- Impossível !
- Por que impossível ? Tenho muitos relatórios a preparar durante a viagem, e sabe que ninguém pode substituí-la.
- Desculpe-me, mas não posso ir com o senhor.
- Por quê? - insistiu ele. E como Usagi não respondia, acrescentou: - Imagino que mantenha sua mãe com o que ganha. Ela não sofrerá nada com sua ausência. Providenciarei para que não lhe falte coisa alguma.
- Não posso ir - repetiu ela com firmeza.
- Mesmo se eu assumir a responsabilidade sobre sua mãe, nega-se me acompanhar ?
- Nego-me.
- Maldição ! Por que a senhorita é tão difícil assim ? Qualquer mulher de sua idade daria gritos de alegria à chance do sair do país, de ver o mundo, de viajar em grande estilo !
- Não existe a menor possibilidade de eu aceitar seu convite ! - Usagi retirou-se da sala. Precisava urgentemente voltar à sua casa. Tentáculos pareciam segurá-la, impedindo-a de escapar.
Não ignorava o fato de que Mamoru era insistente. Para não ceder, pensou em não voltar mais ao trabalho. O sr. Akagi lhe enviaria o salário da semana. Ela pensou até em desistir do dinheiro. Mas logo mudou de idéia, pois precisava dele. Enfim, seriam apenas mais alguns dias… o sr. Chiba continuaria insistindo, mas nada a faria ceder.
"Ele vai sentir falta de mim, que bom ! Também sentirá falta das mulheres com quem se divertiu na Inglaterra esse tempo todo ?", ela se perguntava.
Enfim, aquilo não era de sua conta.
Chovia quando Usagi desceu do ônibus lotado. Sentiu-se incrivelmente deprimida ao chegar na rua miserável onde viviam. Entrou no pequeno hall do prédio, com cheiro forte de repolho. Subiu a escada estreita até o segundo andar, onde se situava o seu apartamento.
Assim que abriu a porta, para sua surpresa, viu o médico de sua mãe.
- Boa noite, dr. Garajan - exclamou ela.
- Boa noite, miss Hasegawa. Foi bom ter chegado, preciso falar-lhe. Vim aqui, hoje, porque sua mãe não passava bem.
- O que houve ? - perguntou Usagi, preocupada.
- Ela parece melhor, agora, mas esta é minha segunda visita hoje.
- Por que não mandaram me chamar no escritório ? - indagou Usagi - Minha mãe sabe onde trabalho.
- Não achamos necessário. Mas eu trouxe um especialista para examiná-la.
- O que há de errado com ela ?
- Vou lhe dizer francamente, miss Hasegawa. Sua mãe está com tuberculose. Eu já suspeitava disso, e o especialista confirmou meu diagnóstico.
Usagi empalideceu, mas o médico a tranqüilizou:
- Não se trata de um caso muito adiantado, e há esperança de recuperação se ela tiver um bom tratamento.
- Mas, onde ? - perguntou Usagi.
- O especialista sugeriu que a sra. Tsukino partisse para a Suíça imediatamente. Há uma clínica nas montanhas que ele recomenda. Lá, talvez em três meses, as manchas do pulmão podem cicatrizar.
- Quanto isso… custará, doutor ?
Usagi sabia que, embora sendo o tratamento barato, ela não teria condições de arcar com a despesa.
- Eu já antecipava a sua pergunta. Incluindo a viagem e as despesas médicas, a senhorita precisará de, no mínimo, duzentas libras.
P. S.: Nos vemos no Capítulo 3.
